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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA JOAQUIM SEBASTIÃO DIAS PODER E SUBJETIVIDADE EM MICHEL FOUCAULT: PERSPECTIVA TEÓRICA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA NA ESCOLA PÚBLICA SÃO PAULO 2013

UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU PROGRAMA DE PÓS … · exigências do programa de pós-graduação stricto sensu da Universidade São Judas Tadeu para a obtenção do título de mestre

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

JOAQUIM SEBASTIÃO DIAS

PODER E SUBJETIVIDADE EM MICHEL FOUCAULT :

PERSPECTIVA TEÓRICA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA NA ESCOLA PÚBLICA

SÃO PAULO

2013

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JOAQUIM SEBASTIÃO DIAS

PODER E SUBJETIVIDADE EM MICHEL FOUCAULT :

PERSPECTIVA TEÓRICA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA NA ESCOLA PÚBLICA

Dissertação apresentada como parte das exigências do programa de pós-graduação stricto sensu da Universidade São Judas Tadeu para a obtenção do título de mestre em filosofia.

PROF. DR. TOMÁS MENDONÇA DA SILVA PRADO - ORIENTADO R

SÃO PAULO

2013

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JOAQUIM SEBASTIÃO DIAS

PODER E SUBJETIVIDADE EM MICHEL FOUCAULT :

PERSPECTIVA TEÓRICA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA NA ESCOLA PÚBLICA

Dissertação apresentada como parte das exigências do programa de pós-graduação stricto sensu da Universidade São Judas Tadeu para a obtenção do título de mestre em filosofia.

São Paulo, 13 de dezembro de 2013.

PROF. DR. TOMÁS MENDONÇA DA SILVA PRADO

UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

PROF. DR. HÉLIO SALLES GENTIL

UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

PROFª DRª MARÍLIA MELLO PISANI

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC

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As palavras que seguem testemunham a saudade do Professor Luis Enrique Morales,

instigador da paixão pela filosofia. E, certamente, se há nelas algum mérito deve-se à presença

de Flávia Moraes, mestra em ressignificar a palavra. Saudade e presença nutrindo o incessante

desejo de experimentar (ainda que com menor intensidade e em outra ordem), a fagulha do

discurso de Foucault em sua aula inaugural: “ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser

envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível”1.

1FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 5 ed. São Paulo: Loyola, 1999. p. 5

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AGRADECIMENTO

A Marina e Margarida, filha e esposa, que pacientemente se resignaram ao meu

silêncio estendido por longas horas de leitura e escrita. Com elas aprendi que o amor não

precisa de muitas palavras.

Ao Professor Manoel Vieira dos Santos. Ontem estagiário nas aulas de filosofia; hoje

parceiro de positividades no magistério; amanhã e sempre, um amigo: irrepreensível no

caráter e coração virtuoso.

Ao Capitão PM Arlindo Soares de Albergaria Henriques da Silva Junior e ao Professor

Edwalds Marques Farias Jr. pela valiosa contribuição no termo final do texto.

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RESUMO

A presente dissertação, movida por indagações – algumas delas – nascidas da prática

em sala de aula, pretende explorar as formas explícitas ou camufladas de poder na escola, de

seus mecanismos e de suas implicações na vida dos indivíduos. O poder polimorfo em

micropoderes, a produção de saberes associada ao exercício de poder, a disciplina, o Estado

liberal como sedutor e gestor da liberdade do indivíduo, são contribuições conceituais de

Michel Foucault (1926–1984) para o debate sobre as relações de poder e seus efeitos, em

particular no universo da sala de aula. A filosofia, componente curricular do Ensino Médio

tem, por seu caráter transdisciplinar, o dever de participar desse debate contribuindo para

torná-lo tão rico quanto as análises propostas por Foucault.

Palavras-chave: Foucault. Dispositivo. Relações de poder. Vigilância. Disciplina.

Sujeito. Educação.

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ABSTRACT

This dissertation, motivated by questions raised in the classroom, sets out to explore

the clear and unclear forms of power in the school, its mechanisms and its implications in the

individual's life. The polymorphous techniques of power in micropowers, the production of

knowledge associated with the exercise of power, the discipline and the seductive liberal State

as the manager of the individual's freedom, are Michel Foucault’s (1926-1984) conceptual

contributions to the debate on the relations of power and its effects, especially in the

classroom. Because of it’s transdisciplinary character, philosophy – a high school subject –,

must be part of this debate and make it as rich as the Foucault's proposals.

Key-words: Foucault. Tool. Relations of power. Surveillance. Discipline. Subject.

Education.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 8

PARTE I 15

2 O PODER COMO REDE DE RELAÇÕES 16

2.1 O poder em rede, a rede de poderes 16

2.2 Exercício do poder: os dispositivos 26

3 ARTICULAÇÃO ENTRE PODER E VIGILÂNCIA 36

3.1 A vigilância: dispositivo de poder sobre o corpo 36

3.2 Poder e vigilância: do panoptismo à biopolítica 42

PARTE II 47

4 RELAÇÃO ENTRE O DISPOSITIVO E A INSTITUIÇÃO ESCOL AR 48

4.1 A escola situada dentro do dispositivo de poder 48

4.2 Genealogia do eixo tecnicista na escola brasileira 53

5 AS RELAÇÕES DE PODER E FILOSOFIA EM SALA DE AULA 62

5.1 Ensino de filosofia: perspectiva teórica 62

5.2 Educação como recusa a modelos exemplares de sujeitos 67

6 CONCLUSÃO 74

REFERÊNCIAS 77

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1 INTRODUÇÃO

A consciência espontânea das pessoas em geral confere à instituição escolar o estatuto

de lugar privilegiado na construção do saber. Antes de considerar tal atitude como ingênua,

convém compreendê-la no quadro de expectativas que se lança sobre a escola. As crianças e

adolescentes que nela ingressam trazem consigo projetos – próprios ou de seus representantes

legais – de formação, profissionalização ou que possam gozar de melhor sorte que aquela dos

adultos que ficaram em casa. Preliminarmente, a aceitação da escola está no fato de se ver

nela o saber como garantia de sustentação dos projetos de vida de cada indivíduo. Em

seguida, deduz-se que o domínio da linguagem pela escrita, bem como a quantificação de

objetos em códigos matemáticos, são signos de independência e autonomia. No entanto, este

olhar positivo convive com o seu reverso, expresso sobretudo na queixa dos que se percebem

alijados de todas as vantagens anunciadas. Na maioria das escolas públicas, tal ocorrência é

muito comum entre os adolescentes concluintes do Ensino Fundamental e Médio. Faltou base,

reclamam.

O saber adquirido durante o tempo da Educação Básica não foi suficiente para se

converter em conhecimento efetivo, capaz de atender às exigências do mercado de trabalho ou

à continuidade dos estudos. Basta verificar os indicadores das avaliações realizadas pelo

SARESP, em âmbito estadual, e pelo IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação

Básica), de abrangência nacional, e logo aparecem lacunas em níveis elementares de

letramento como a escrita de uma carta, ou em conteúdos mínimos de matemática, referentes

à leitura e compreensão de um gráfico.2

Então perguntamos: o que se faz na escola? Por que a aprendizagem é tão deficitária?

Observe-se que a discussão poderia avançar em direção a argumentos mais sistêmicos

incluindo inquirições de outra natureza: Para quem e sob qual expectativa a aprendizagem é

deficitária? Pais, alunos ou avaliadores externos? A escola, em suas estratégias, possui um

plano de ensino anual? De que maneira o plano de ensino escolar se articula com o projeto de

vida dos estudantes? Em primeiro lugar, se tais questões são levantadas pela opinião pública,

a resposta vem em forma de equação reduzida: investimentos na infraestrutura e nos materiais

didáticos resultarão, necessariamente, na qualidade de ensino. Posição compartilhada pelo

Poder Público, que periodicamente avaliza e destina recursos para merenda escolar, livros 2Cf.: FUNDAÇÃO VUNESP. Relatório Pedagógico do SARESP (Sistema de Avaliação e

Rendimento Escolar do Estado de São Paulo). Língua Portuguesa e Matemática. São Paulo: Fundação VUNESP 2010 p. 175 e 199 respectivamente.

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didáticos, laboratórios de informática, reforma e manutenção de prédios etc. Em segundo

lugar, quando aquelas questões brotam do interior da escola, quase sempre são os professores

os atores principais de queixas sobre a superlotação das salas, indisciplina dos alunos, jornada

estafante de trabalho, salários desestimulantes. Reaparece a equação reducionista: a educação

não vai bem se o professor não é valorizado. O princípio equalizador é o mesmo; muda

apenas o objeto de investimento: antes, a infraestrutura, agora, os profissionais da educação.

Talvez o leitor queira garimpar com quem está a razão. O sucesso da educação

depende do envolvimento da família e da sociedade, pensariam alguns; outros diriam que,

sem a tutoria do Estado, a educação não anda; por fim viriam aqueles que, vasculhando falhas

na formação dos profissionais da área, iriam advogar que parte deles não merece o salário do

contracheque, o que implicaria na adoção de mecanismos mais rigorosos para o exercício da

docência. Polêmicas à parte, pretendemos aventar tão somente a possibilidade de abordar a

educação (sem a totalidade de seus problemas) à luz do ensino de Filosofia. O nosso propósito

não é responder, senão entender como os discursos e práticas (produtores de saber) no

cotidiano escolar, se imbricam com as relações de poder e investem esforços na

disciplinarização e na biopolítica, tendo em vista descortinar, no ensino de filosofia, possíveis

práticas insubmissas a essas relações de poder.

O filósofo francês Michel Foucault, embora não seja um teórico específico da

educação, desenvolveu alguns conceitos que, em uma perspectiva teórica, caberiam

perfeitamente para explicar o cotidiano escolar. Roger Deacon, por exemplo, reconhece a

relevância de Foucault para o debate educacional quando afirma:

No âmbito mais amplo das críticas pós-estruturalistas dos pressupostos que fundamentam uma ainda potente modernidade, o trabalho de Foucault sobre a natureza produtiva do poder, sua estreita conexão com o saber e seu papel na constituição do sujeito é especialmente útil para reconceptualizar a educação moderna”.3

A genealogia, que recusa a ciência como único discurso de verdade; as relações de

poder em suas formas moleculares; os discursos como mecanismos de relação entre saber e

poder; o olhar que vigia e controla são referenciais conceituais de Foucault aos quais iremos

recorrer ao longo deste trabalho, para iluminar o problema proposto.

Os dispositivos enquanto estratégias de exercício do poder e o investimento da

disciplina na vigilância sobre o corpo serão, respectivamente, objetos centrais dos capítulos 1

3DEACON, R. ; PARKER, Ben. Educação como sujeição e como recusa. In: SILVA. Tomaz Tadeu da, (org.) O sujeito da Educação: estudos foucaultianos. 6ª edição, Petrópolis: Vozes 2008 p. 97.

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e 2. Nos capítulos 3 e 4 discutiremos o ensino de filosofia na escola e como ele se articula

com outros saberes. A hipótese que pretendemos demonstrar é que conceitos foucaultianos

como: dispositivo, vigilância, disciplina e sujeito constituem um referencial significativo para

entender como a escola, por vezes, captura e reproduz o poder tal qual disseminado na

sociedade, outras vezes, é ela própria, que fabrica, incita e engendra formas de poder para

espelhar a comunidade na qual se insere. Pressupondo a escola simultaneamente, reprodutora

e centro de difusão do poder teremos que considerar o quanto estes dois elementos se

harmonizam ou se conflitam, em especial, na convivência entre professores e alunos no

espaço da sala de aula. Neste quesito estaremos melhor equipados se tomarmos posse da

genealogia foucaultiana como uma ferramenta teórica capaz de recortar as práticas aí vividas,

para além de meros acontecimentos supostamente dotados de sentido em si mesmos. Com

efeito, se o poder funciona como engrenagem cujo “combustível” são as estratégias e os

saberes, de que maneira os homens e as mulheres são, ou se deixam capturar por esses

mecanismos? Como funcionam as estratégias de poder? De quais “arquivos” Foucault se

serviu em sua analítica do poder? O destaque para arquivos indica um problema metodológico

importante. Parece-nos procedente a analogia. Há ocasiões em que Foucault se apropria de

uma palavra e antes de incorporá-la em seu vocabulário, à semelhança de um arquivista,

atualiza as fichas, acrescenta-lhes outros registros até chegar a um significado pertinente ao

problema que deseja responder. Conforme acenou Alfredo Veiga Neto, a genealogia é “uma

ferramenta que Foucault tomou emprestado de Nietzsche e desenvolveu em suas próprias

pesquisas”.4

Segundo Foucault, e não em sentido amplo e geral, a genealogia sobrevém a

contrapelo como resistência aos discursos teóricos da ciência positivista. Uma ciência que, ao

produzir saber, se faz vanguardista, autoritária, ponto de referência obrigatório para acesso ao

conhecimento e, portanto, detentora de poder pelo discurso que produz. Se admitimos que a

verdade pertence ao discurso, em que medida podemos afirmá-la? De quais elementos se

compõe tal discurso? Em quais condições históricas se desenvolve e o que ele pretende

ocultar? Todo discurso produz, instiga, e projeta ao seu interlocutor um modelo de verdade

ajustado aos mecanismos como ele próprio veio à existência. Condição que pode torná-lo

mais ou menos verdadeiro. Como afirmava Foucault: “É sempre possível dizer o verdadeiro

no espaço de uma exterioridade selvagem; mas não nos encontramos no verdadeiro senão

4VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica 2011, p. 21.

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obedecendo às regras de uma ‘polícia’ discursiva que devemos reativar em cada um de nossos

discursos”5

A genealogia emerge como crítica à epistemologia moderna, ou seja, à ideia de que a

ciência tem o discurso afirmativo; único fundamento de explicação da realidade; ciência

produtora de um pragmatismo absoluto, que por sua vez, alimenta o mito de saberes nascidos

da ciência e que a ela devem voltar. A genealogia interpela os saberes instituídos como

verdades cristalizadas, não na perspectiva relativista, mas no sentido de desnaturalização do

olhar frente àquilo que é suposto como dogma pronto e acabado; aponta para as possibilidades

de luta entre o saber científico e outros saberes desqualificados pela tirania dos discursos

englobantes. Neste particular, Foucault é enfático:

As genealogias não são, portanto, retornos positivistas a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata, mas anticiências. Não que reivindiquem o direito lírico à ignorância ou ao não-saber; não que se trate da recusa de saber ou de ativar ou ressaltar os prestígios de uma experiência imediata não ainda captada pelo saber. Trata-se da insurreição dos saberes não tanto contra os conteúdos, os métodos e os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição dos saberes antes de tudo contra os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa.6

De onde se segue que a forma assumida pelo discurso científico (produção de saber),

engendra a ambição de poder. O saber produz um discurso que, na pretensão de se traduzir em

verdades absolutas, se faz a si mesmo detentor de poder por aquilo que anuncia como

paradigma da visão de mundo, da maneira de pensar e de como as pessoas devem se

comportar. Portanto, a crítica da genealogia não se dirige ao poder pelo poder, o que seria

atitude ingênua, mas à verticalidade do poder quando se impõe pela bipolaridade descendente

da biopolítica de governar e ser governados, de dirigir e ser dirigidos, de ensinar e ser

ensinados. Trata-se de uma crítica à prepotência do saber manifesto no poder que subordina,

circunscreve, delimita, decide em quais verdades se deve crer. Face a esta associação saber-

poder, Foucault lança um olhar de estranhamento típico de quem tem a coragem de se afastar

da realidade para abarcá-la sob outros aspectos. Decorre daí a genealogia como esforço

titânico em desconstruir “verdades” estabelecidas como rochas imóveis, mas insuficientes

para explicar a realidade; ou, como pensa Foucault, em realizar o duro combate contra o

discurso científico e seus “efeitos intrínsecos de poder”:

5FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 1999. Op. cit., p. 35. 6FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. 24ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 2007 p. 171.

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Pouco importa que esta institucionalização do discurso científico se realize em uma universidade ou de modo mais geral, em um aparelho político com todas as suas aferências, como no caso do marxismo; são os efeitos de poder próprios a um discurso considerado como científico que a genealogia deve combater.7

Saber e poder se instauram em nossa sociedade articulados em discursos e práticas. A

cultura do perigo calculado nas diferentes faces da violência, por exemplo, desencadeia o

discurso da segurança na força coercitiva do Estado e fecunda a ação da polícia que tem, entre

outras atribuições, a prisão dos autores de ações violentas. O discurso da segurança,

comportando tecnologias e saberes equivalentes, reclama por uma prática de privação da

liberdade de alguns para resguardar o interesse coletivo. De modo análogo, é possível detectar

também no ambiente escolar, práticas de sujeição dos indivíduos tanto nas condutas

pedagógicas como no controle, da disciplina: a alocação dos estudantes em salas segundo a

faixa etária; alinhamento das cadeiras e espaçamento entre elas; turmas mais próximas ou

mais afastadas da administração conforme apresentem ou não “perigo” em potencial; registros

na ficha individual; uso do uniforme e o “território” sala de aula onde a disciplina instala uma

dinâmica especial de relações de poder. A justificativa corrente para tais dispositivos é a

contribuição que a escola deve oferecer à sociedade formando indivíduos dóceis ao

cumprimento das normas. E isto vale tanto para os que vão ingressar no mercado de trabalho

quanto para os que darão continuidade aos estudos em busca de melhor qualificação. A

escola, em seus mecanismos e em sua dinâmica de funcionamento, engendra relações de

poder, na maioria das vezes, acomodadas naturalmente e ignorando a complexa teia de

relações sociais que aí se desenvolvem. Poder que se imbrica com múltiplas faces do saber aí

produzido e veiculado: as formas rígidas da gramática, a frieza dos cálculos matemáticos, os

arquivos de memória de história e geografia e daí por diante. Poder e saber manifestos, por

exemplo, no livro didático como a palavra derradeira sobre o que deve ser o conhecimento.

Mediante o livro didático (apresentação visual, disposição dos temas, recortes de textos e

imagens etc.) a ciência se propõe a definir o que seja a prática em sala de aula. Ora, somente

os discursos e as descobertas realizadas por alunos e professores conseguem dizer o que é a

prática. O livro didático ao ser produzido por alguém não escapa da armadilha dos

mecanismos de poder. A genealogia de Foucault nos convida a, como tão bem expressou

Frank Pignatelli: “questionar nossa tendência a não ver esses processos”.8

7Ibidem. 8PIGNATELLI, F. Que posso fazer? Foucault e a questão da liberdade e da agência docente. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (org.) 2008, p. 135

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Se na escola, existem dispositivos de controle capazes de erigir práticas de submissão,

por exemplo, nos horários de entrada e saída, se partirmos da genealogia, poderíamos pensar

que outras práticas – insubmissas – surgem desse contexto. Poderíamos ainda superar a

dicotomia poder-submissão, e prever a resistência como outra face das relações de poder,

visto que cada “ofensiva” do poder serve de ponto de apoio a uma contra-ofensiva. Segundo

Foucault, diante da relação de poder deve se abrir todo um campo de respostas, reações,

efeitos, invenções possíveis. Assim, se a escola é um espaço de esquadrinhamento e

uniformização é, igualmente, a possibilidade de insurreição contra tudo o que é “uniforme”

em segmento restrito à letra das regras. À luz das contribuições de Foucault, é possível

ensinar filosofia transpondo os limites de poder e submissão voluntária? Como o ensino de

filosofia se identifica ou pode alimentar práticas insubmissas? Por práticas insubmissas

entendemos o “campo de tensões” entre o conhecimento dado como pronto e o crivo da

experimentação do aluno que lhe permite ascender a um patamar que não seja aquele das

“verdades” atual ou potencialmente cristalizadas. Suscitar no aluno a construção de conceitos

capazes de interpelar os saberes instituídos, para dentro de uma discussão que contemple sua

relação com o conhecimento na qualidade de sujeito ativo em vez de inteligência passiva, tal

qual é subentendida nos registros do Diário de Classe ou nas lições do livro didático.

Consideraremos em nossa pesquisa algumas obras nucleares tais como: História da

Sexualidade 1; Em Defesa da Sociedade; Ditos e Escritos, Vigiar e Punir e Microfísica do

Poder. Fizemos este recorte para objetivamente atender à nossa questão basilar, a saber:

entender as relações de poder em Foucault e como estas relações são regidas por uma rede de

dispositivos que, em virtude de seu caráter heterogêneo, permitem que o exercício do poder

seja sempre relação de força, simultaneamente ação e resistência entre os polos envolvidos.

Outras referências incluem comentadores como Hubert L. Dreyfus/Paul Rabinow e Giorgio

Agamben. Na relação Foucault/educação, Veiga-Neto e Tomaz Tadeu da Silva, com maestria

singular, traduzem Focault para a reflexão de temas educacionais. Aqui vale lembrar, e com

vigor renovado, a advertência de Alfredo Veiga-Neto: “é preciso cuidar para não cair nos

esquematismos que acabam fazendo de Foucault o que ele não quis ser”.9 Entendemos não

ser de bom senso transportar Foucault para a escola pública paulista, em uma relação direta de

causa e efeito como se tudo o que ele enunciou em seus cursos no Collège de France pudesse

ser validado em nossa realidade. Fundamentalmente, o que importa é perceber de que modo

as suas análises sobre a constituição dos sujeitos entrelaçada por relações de poder ajudam a

9VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Op. cit., p. 7.

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compreender determinadas práticas vividas no cotidiano escolar. Práticas que Foucault

esmiúça com precisão cirúrgica:

Sua organização espacial, o regulamento meticuloso que rege sua vida interior, as diferentes atividades aí organizadas, os diversos personagens que aí vivem e se encontram, cada um com uma função, um lugar, um rosto bem-definido – tudo isso constitui um ‘bloco’ de capacidade-comunicação-poder. A atividade, que assegura o aprendizado e a aquisição de aptidões ou de tipos de comportamento, aí se desenvolve através de todo um conjunto de comunicações reguladas (lições, perguntas e respostas, ordens, exortações, signos codificados de obediência, marcas diferenciais do ‘valor’ de cada um dos níveis de saber) e através de toda uma série de procedimentos de poder (vigilância, enclausuramento, recompensa e punição, hierarquia piramidal).10

Se a ideia de poder em Foucault é pensada em termos de relações, pode ser

interessante descrever a escola, com suas formas de controle, como um lugar onde tais

relações são ativadas, de maneira densamente rica, tanto nos processos de subjetivação

(mecanismo que liga o indivíduo a uma identidade que lhe é atribuída como própria) quanto

nas descobertas e nos arranjos de convivência com outras subjetividades. Aqui está o objeto

de nossa investigação no capítulo que se avizinha.

10FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS H. L. ; RABINOW P. Michel Foucault – uma trajetória filosófica . Tradução de Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro, 2ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2010 p. 285-286.

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PARTE I

PODER E SUBJETIVIDADE

É verdade, parece-me, que o poder ‘já está sempre ali’; que nunca estamos ‘fora’, que não há ‘margens’ para a cambalhota daqueles que estão em ruptura. Mas isso não quer dizer que se deva admitir uma forma incontornável de dominação ou um privilégio absoluto da lei. Que nunca se possa estar ‘fora do poder’, não quer dizer que se está inteiramente capturado na armadilha11.

11 FOUCAULT, M. Ditos e Escritos. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003 v. IV p. 248.

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2 O PODER COMO REDE DE RELAÇÕES

2.1 O poder em rede, a rede de poderes

Durante muito tempo a concepção de poder como um bloco monolítico solidamente

instalado e de difícil remoção, fazia parte de uma verdade implícita à definição do termo.

Poder como instância de separação entre o “príncipe” e seus súditos – herança das monarquias

antigas – que os gregos e os romanos por meio da Assembleia e do Senado, haviam

catalogado das comunidades tribais e unificado no espaço da “polis”. Na Idade Média, o

poder dividido em temporal (confinado em pequenos reinos, principados ou no prestígio dos

senhores feudais) e espiritual (nas mãos da Igreja e centralizado na figura do papa), era

concebido como algo estritamente hierárquico sob a égide de governo e obediência. O

conceito de poder já está dado, mas ainda não existe uma arte de governar, projeto

renascentista despertado a partir de Maquiavel em “O Príncipe”, cujo objetivo se voltava para

o cálculo das estratégias responsáveis de sua manutenção e conservação. No século XVIII,

ocorre o trânsito da teoria de Hobbes em “Leviatã”, e o poder soberano em direção ao projeto

liberal empreendido por John Locke com a distinção entre direito natural e direito positivo.

Segundo Locke, o poder só é legitimado quando se estabelece o Estado de civilização apoiado

nas leis. Por conseguinte, a teoria do estado liberal se assenta na derrocada das monarquias

absolutistas e transfere o poder do soberano para os aparelhos de estado. A proliferação de

instituições no século XIX permite que o poder expanda suas raízes e produza seus efeitos em

campos cada vez mais vastos. Este breve percurso não tem a pretensão de esmiuçar a história

do poder, o que nos levaria ao desconforto de decifrar labirintos complexos para resultados

sem préstimos. Tratamos apenas de situar a particularidade do pensamento de Foucault que

traz uma nova concepção sem que isto equivalha rigorosamente a uma nova teoria do poder.

Como muito bem lembra Edgardo Castro, “Foucault não escreveu uma teoria do poder, se por

teoria entendemos uma exposição sistemática. Antes, o que encontramos é uma série de

análises, em grande parte históricas, acerca do funcionamento do poder”.12

Foucault não pensa o poder como um conceito universal, abstrato e a priori, mas como

essencialmente relações estabelecidas entre diferentes sujeitos que se entrecruzam nas

situações históricas por eles vividas: “As formas e os lugares de ‘governo’ dos homens uns

12CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault – um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Tradução de Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica 2009, p. 323.

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pelos outros são múltiplos em uma sociedade: superpõem-se, entrecruzam-se, limitam-se e

anulam-se, em certos casos, e reforçam-se, em outros”.13

Segundo Judith Revel no seu Dicionário Foucault, – verbete “poder” – nosso filósofo

“nunca trata o poder como uma entidade coerente, unitária e estável, mas como ‘relações de

poder’ que supõem condições históricas de emergência, complexas, e implicam múltiplas

consequências, inclusive fora do que a análise filosófica identifica tradicionalmente como o

campo do poder”. Em prosseguimento, Revel acrescenta que Foucault, em suas análises,

recusa “descrever um princípio primeiro e fundamental de poder”. Ao contrário, opta por “um

agenciamento no qual se cruzam as práticas, os saberes e as instituições, e no qual o tipo de

objetivo perseguido não se limita apenas à dominação, mas também não pertence a ninguém

e, ele mesmo, varia ao longo da história”.14

Logo, a questão que Foucault se coloca não é responder “o que é o poder”, – conforme

ele próprio, uma pergunta sem resposta – e por uma razão muito simples: Foucault nunca

pretendeu fazer uma ontologia ou uma metafísica do poder. Abordar o poder como conceito

globalizante e substantificador, para dissecar suas categorias, jamais fez parte do projeto de

suas pesquisas. Esta opção se faz em torno de um recorte metodológico que desobriga o

interlocutor a questões simplistas acerca “de onde vem; quem exerce e a quem se destina o

poder”? A inquietação própria de Foucault, se voltará ao “como o poder se exerce”, marcando

um deliberado abandono do poder como objeto de descrição, para inquirir a mecânica de seu

funcionamento. Ainda segundo Revel, ao privilegiar a questão do “como o poder se exerce”,

Foucault quer analisar, a “emergência histórica de seus modos de aplicação, os instrumentos

que ele se atribui, os campos onde intervém, a rede que projeta e os efeitos que implica numa

determinada época”. Assim, a substituição de “o que é”, por “como se exerce o poder” indica

sua escolha metodológica de trocar a investigação da origem metafísica do poder pela análise

de suas manifestações concretas. É o que constatamos em seu depoimento:

Grosso modo, eu diria que começar análise pelo ‘como’ é introduzir a suspeita de que o ‘poder’ não existe; é perguntar-se, em todo caso, a que conteúdos significativos podemos visar quando usamos esse termo majestoso, globalizante e substantificador; é desconfiar que deixamos escapar um conjunto de realidades bastante complexo, quando claudicamos, indefinidamente, ante a dupla interrogação: ‘o que é o poder? De onde vem o poder?’ A pequena questão, direta e empírica: ‘como isto acontece?’, formulada como esclarecedora, não tem por função denunciar como fraude

13

FOUCAULT, M. “O sujeito e o poder”. In: DREYFUS H. L. ; RABINOW P. Michel Foucault – uma trajetória filosófica. Op. cit., p. 292. 14

REVEL, J. Dicionário Foucault. Tradução de Anderson Alexandre da Silva. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. p. 120.

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18

uma ‘metafísica’ ou uma ‘ontologia’ do poder, mas tentar uma investigação crítica sobre a temática do poder.15

Graças a essa mudança de perspectiva Foucault livra-se do risco de se deter sobre um

objeto de natureza estritamente hierárquica, reduzido a um conceito capaz de absorver os

indivíduos nos aparelhos de Estado ou nas instituições. Liberta-se também de uma concepção

traumática que ignora os sujeitos e reduz o poder a seus efeitos. Resoluto em abandonar tal

caminho, Foucault pode afirmar:

O objetivo do meu trabalho nestes últimos vinte anos não foi analisar o fenômeno do poder nem elaborar o fundamento de tal análise. Meu objetivo, ao contrário, foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos.16

De onde se segue que as relações de poder não devam ser tomadas como aplicativos a

que eventualmente recorramos para explicar como o poder se difunde e se organiza em uma

sociedade como a nossa. Se o poder “só existe em ato” é porque se aplica a sujeitos inseridos

na história. No dizer de Foucault “o sujeito preso a relações de produção e significação, está

igualmente preso a relações muito complexas de poder”. 17 Então uma genealogia do poder

terá necessariamente que levar em consideração a história das subjetividades. O exercício do

poder só se compreende dentro de um “campo de possibilidades” no qual “o comportamento

de sujeitos ativos” ganha visibilidade. Em termos técnicos, se assim o leitor preferir, diríamos

que Foucault categoriza o exercício do poder como “um modo de ação sobre as ações dos

outros” em certa dinâmica que cada investida do poder é marcada pela resposta do outro polo

da relação, em atitude de consentimento ou discordância. A passagem que selecionamos em

sequência nos parece bastante esclarecedora:

Ele (o poder) incita, induz, desvia, facilita ou dificulta, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, coage ou impede absolutamente, mas é sempre um modo de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são susceptíveis de agir.18

E aqui se descortina um ponto nevrálgico do pensamento de Foucault que coloca em

xeque tanto os processos de individualização quanto os de totalização do sujeito. O que

podemos encontrar de mais permanente em seu pensamento é a recusa tanto a esquematismos

disciplinares afeitos a penetrar e controlar as consciências dos indivíduos, quanto às práticas

15FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS H. L. ; RABINOW P. Michel Foucault – uma trajetória filosófica. Op. cit., p. 283-284. 16Ibidem p. 273. 17

Ibidem p. 274. 18

Ibidem p. 288.

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19

de sujeições coletivas comuns nos regimes totalitários. Em uma das tantas referências feitas

ao texto de Kant sobre a Alfklärung, declara: “Talvez , o objetivo hoje em dia não seja

descobrir o que somos, mas recusar o que somos. Temos de imaginar e construir o que

poderíamos ser para nos livrarmos desse ‘duplo constrangimento’ político, que é a simultânea

individualização e totalização própria às estruturas do poder moderno”.19

Avançando um pouco mais encontramos em Foucault, o poder investido de múltiplas

formas não podendo ser apreendido apenas na “escala descendente” (piramidal), distinguindo

aquele que ordena daqueles que obedecem, mas também captado como algo que funciona em

“escala ascendente”, quando os que estão na base da pirâmide podem se articular para

reivindicar direitos ou validar a maneira como desejam ser representados. Da estrutura interna

do poder, emerge a possibilidade do contrapoder, isto é, onde o poder se mostra, aí aparece o

seu oposto – o que implica embate, guerra, interesses conflitantes, luta permanente. Foucault

chama a nossa atenção a esse quadro quando afirma:

As relações de poder nas sociedades atuais têm essencialmente por base uma relação de força estabelecida, em um momento historicamente determinável, na guerra e pela guerra. E se é verdade que o poder político acaba a guerra, tenta impor a paz na sociedade civil, não é para suspender os efeitos da guerra ou neutralizar os desequilíbrios que se manifestaram na batalha final, mas para reinscrever perpetuamente estas relações de força, através de uma espécie de guerra silenciosa, nas instituições e nas desigualdades econômicas, na linguagem e até no corpo dos indivíduos.20

E também:

Que não há relações de poder sem resistências; que estas são tão mais reais e eficazes quanto mais se formem ali mesmo onde se exercem as relações de poder; a resistência ao poder não tem que vir de fora para ser real, mas ela não é capturada porque ela é compatriota do poder. Ela existe tanto mais quanto ela esteja ali onde está o poder. Ela é, portanto, como ele, múltipla e integrável a estratégias globais.21

Além do que, convém destacar que o poder funciona e se exerce em rede. O indivíduo

tanto pode exercer como sofrer a sua ação. Por este ângulo, o poder não é apenas o coeficiente

do confronto entre a vontade de um soberano e as necessidades de seus súditos (poder

jurídico-econômico) ou entre dois extremos polarizados, na expressão de Foucault, “uma

estrutura binária tendo de um lado, os dominantes e, do outro, os dominados” (poder

econômico-produtivo). O poder é relação de forças que perpassa as instituições, se corporifica

19

Ibidem p. 283. 20FOUCAULT M. Microfísica do poder. Op. cit., p. 176 21FOUCAULT, M. Ditos e Escritos. v. IV Op. cit., p. 249.

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nos discursos produtores de “verdades” e reinventa, a todo momento, dispositivos para

controlar as ações dos indivíduos.

Tudo isto nos remete a uma irrecusável excursão pelo que aqui denominamos

configurações do poder em Michel Foucault. Por vias de condicionamentos históricos, sociais

e econômicos bem determinados (e aí poderíamos agrupar, por exemplo, a passagem do

feudalismo para um modo de produção mercantilista, e logo depois, liberal, sem esquecer as

transformações no campo do direito entre os séculos XVIII e XIX), a sociedade ocidental tem

experimentado diferentes tecnologias de poder.22

A primeira delas, fundada no princípio jurídico da soberania, se caracteriza pelo

direito de vida e morte que o soberano detém sobre os súditos. O princípio: “fazer morrer e

deixar viver” é, segundo Foucault, um direito assimétrico que se exerce de forma

desequilibrada, e sempre do lado da morte. “O soberano só marca seu poder sobre a vida pela

morte que tem condições de exigir”.23 Além disso, esse direito corresponde a um tipo de

sociedade em que as relações de poder se dão de forma vertical e descendente não por acaso,

simbolizado pela espada cujos frutos imediatos são o terror e o medo. Um tipo de sociedade

que aceita interdições e expropriações de bens, como testemunha Foucault na passagem que

segue:

Talvez se devesse relacionar essa figura jurídica a um tipo histórico de sociedade em que o poder se exercia essencialmente como instância de confisco, mecanismo de subtração, direito de se apropriar de uma parte das riquezas: extorsão de produtos, de bens, de serviços, de trabalho e de sangue imposta aos súditos. O poder era, antes de tudo, nesse tipo de sociedade, direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente da vida; culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la.24

A vida do súdito tem um valor secundário dado que mesmo dotes como segurança,

proteção e a possibilidade de estar vivo ou eventualmente morto, só se efetivam pela vontade

soberana. Poder absoluto, dramático e sombrio, classifica Foucault, mas que o século XVIII

vai se encarregar de demolir.

No decorrer do século XVIII, irrompe nova configuração do poder sedimentada pelo

surgimento de técnicas centradas no corpo. A soberania, se não sai de cena por completo, já

22 Para o que se segue cf. FOUCAULT, M. História da sexualidade - a vontade de saber . Tradução de Maria Thereza da costa Albuquerque e J. A. Gilhon Albuquerque. 20ª reimpressão. Rio de Janeiro: Graal 2010 v. I p. 147-174; ver também: FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France – aula de 17 de março de 1976. Tradução de Maria Ermantina Galvão São Paulo: Martins Fontes 2005 p. 285-315. 23

FOUCAULT, M. História da Sexualidade – a vontade de saber v. I Op. cit., p. 148. 24

Ibidem.

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21

não tem a mesma eficácia. Na avaliação de Foucault, os mecanismos de poder aí vigentes

tinham muitas brechas: sistema lacunar, aleatório, global, ignorava o detalhe, abusava de

correções exemplares para enfrentar as resistências e com pouca capacidade de resolução.

Fatores como a explosão demográfica e as mudanças econômicas do século XVIII fizeram

emergir o poder disciplinar. O confisco e as interdições em suas mais variadas tipologias

cedem lugar a procedimentos de reforço da vida que se manifesta no corpo. “Um poder

destinado a produzir forças, fazê-las crescer e a ordená-las mais do que a barrá-las, dobrá-las

ou destruí-las”.25 E é exatamente esta motivação que faz o poder disciplinar inverter o

princípio da soberania: “fazer morrer e deixar viver” é convertido para “fazer viver e deixar

morrer”. Contudo, é preciso alertar que tal inversão não se deu de forma neutra nem mesmo

como expressão de filantropia. Em um contexto de celeridade do crescimento urbano e de

abandono da mentalidade fisiocrata, o princípio de “fazer viver e deixar morrer” atende a um

projeto de Estado que faz as pessoas viverem mais para extrair delas maior produtividade.

Prolongar a vida em vista de mais trabalho, para produzir mais riquezas como instrumentos de

mais poder.

Portanto, toda a eficácia do poder disciplinar sobre o corpo está confinada em um

duplo empreendimento. Se por um lado as disciplinas na prática de exercícios e treinamentos,

aumentam-lhe a força útil e produtiva, por outro lado, elas desenvolvem um saber sobre o

corpo para “fabricar” sua sujeição. “O corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo

produtivo e corpo submisso”.26 Mais adiante, no capítulo 2 quando tratarmos da articulação

entre poder e vigilância, nos deteremos com mais vagar a esse tema da sujeição dos corpos.

Por hora julgamos suficiente apenas recordar como Foucault liga o poder disciplinar a

técnicas específicas de racionalização da economia. Sim, o poder disciplinar para se tornar

menos oneroso faz “circular seus efeitos por canais cada vez mais sutis, chegando até os

próprios indivíduos, seus corpos, seus gestos, cada um de seus desempenhos cotidianos”.27

Distribuição dos corpos; treinamento; técnicas difusas nos aparelhos de Estado, são razões

que nos despertam a esta bifurcação do poder disciplinar, que cuidando das pulsações do

corpo do indivíduo, também se preocupa com outros campos. Afinal, parece ser inerente à

própria estrutura do poder disciplinar uma verdade incontestável: os indivíduos considerados

25

Ibidem. 26FOUCAULT, M. Vigiar e Punir - o nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 39ª Ed. Petrópolis-RJ: Vozes 2011p. 29. 27FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Op. cit., p. 214.

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separadamente, demandam investimentos em ações específicas de controle e vigilância; para

extinguir possíveis ameaças, para afastar eventuais perigos.

Durante a segunda metade do século XVIII, surge uma outra tecnologia de poder que

não anula o poder disciplinar, e a ele se integra adotando o mesmo princípio “fazer viver e

deixar morrer”, mas se separa dele na aplicação daquele princípio. Enquanto o poder

disciplinar se volta para o indivíduo e seu corpo, o biopoder considera a vida que se manifesta

em processos globais: nascimentos, óbitos, fecundidade da população, incidência de doenças

em determinas áreas etc. Selecionamos do curso no Collège de France, aula de 17 de março

de 1976, um registro de Foucault, sobre o que há de discordante entre essas duas tecnologias

de poder:

A disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença etc. Logo, depois de uma primeira tomada de poder sobre o corpo que se fez consoante o modo da individualização, temos uma segunda tomada de poder que (...) se faz não em direção do homem-corpo, mas do homem-espécie. Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer do século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma ‘biopolítica’ da espécie humana.28

Sendo assim, o fenômeno sobre o qual o biopoder deve continuamente se debruçar é,

comenta Foucault, um novo corpo: corpo múltiplo, com inúmeras cabeças, se não infinito

pelo menos necessariamente numerável. Evidentemente referência direta à população,

universo do qual derivam outros tantos fenômenos tais como: velhice; acidentes;

medicalização das doenças; efeitos do meio natural (pântanos e variações climáticas); e

também efeitos do meio não natural como os fluxos demográficos das cidades. Eis que nos

encontramos diante de um quadro muito vasto do qual, segundo Foucault, a biopolítica vai

extrair seu saber e definir o campo de intervenção de seu poder. Em razão disso ela vai se

utilizar daquilo que Foucault chama de mecanismos reguladores como sejam: previsões,

medições globais, controles estatísticos, mapeamento de epidemias, controle da natalidade e

outras tantas ações capazes de equacionar corpos saudáveis e população produtiva. Portanto,

28FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France – aula de 17 de março de 1976. Op. cit., p. 289.

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esses mecanismos reguladores integrados a táticas de governo, têm uma intencionalidade

terminante: arrancar tanto quanto possível da população, o seu potencial econômico.

Soberania, disciplina e biopoder: a primeira se define por um poder de natureza

jurídica frente a duas acomodações, uma sobre o corpo e outra sobre fenômenos globais e

resumidas por Foucault, em um parágrafo:

Tudo sucedeu como se o poder que tinha como modalidade, a soberania, tivesse ficado inoperante para reger o corpo econômico e político de uma sociedade em via, a um só tempo, de explosão demográfica e industrialização. De modo que à velha mecânica do poder de soberania escapavam muitas coisas, tanto por baixo quanto por cima, no nível do detalhe e no nível da massa. Foi para recuperar o detalhe que se deu uma primeira acomodação: acomodação dos mecanismos de poder sobre o corpo individual, com vigilância e treinamento – isso foi a disciplina. (...) E, depois, temos em seguida, no final do século XVIII, uma segunda acomodação, sobre os fenômenos globais, sobre os fenômenos de população, com os processos biológicos ou bio-sociológicos das massas humanas. Acomodação muito mais difícil, pois, é claro, ela implicava órgãos complexos de coordenação e de centralização.29

Em outra síntese Foucault vê na sociedade nazista a realização histórica mais

contundente de simultaneidade dessas três tecnologias de poder:

É uma sociedade que generalizou absolutamente o biopder, mas que generalizou ao mesmo tempo, o direito soberano de matar. Os dois mecanismos, o clássico, o arcaico, que dava ao Estado direito de vida e de morte sobre seus cidadãos, e o novo mecanismo organizado em torno da disciplina, da regulamentação, em suma, o novo mecanismo de biopoder, vêm, exatamente, a coincidir.30

Vale a pena frisar: as palavras de Foucault reproduzidas acima não servem de suporte

para concluir a favor de uma tecnologia de poder em detrimento da exclusão de outra. A

biopolítica não torna a disciplina obsoleta e ultrapassada. Pelo contrário, ambas se articulam e

se sobrepõem frequentemente, não sendo possível pensar o biopoder sem a existência do

poder disciplinar que o alimenta e lhe serve de esteio. Foucault cita o exemplo das cidades

operárias onde se viabiliza o controle sobre o corpo (localização, visibilidade, normalização

dos comportamentos) e mecanismos regulamentadores que incidem sobre a população tais

como: poupança, seguro-saúde, regras de higiene, escolaridade, etc.

Desse modo, somos estimulados a concluir que disciplina e biopoder se mesclam e se

sobrepõem continuamente e que até mesmo a soberania possui formas sutis de se infiltrar nas

29

Ibidem p. 297-298. 30

Ibidem p. 311.

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disciplinas e nos mecanismos reguladores do biopoder. Para ratificar os modos como essas

três tecnologias de poder se mostram tão estreitamente imbricadas, colhemos o depoimento de

Foucault, na aula de 1º de fevereiro de 1978 no Collège de France:

Devemos compreender as coisas não em termos de substituição de uma sociedade de soberania por uma sociedade disciplinar e desta por uma sociedade de governo. Trata-se de um triângulo: soberania – disciplina – gestão governamental, que tem na população seu alvo principal e nos dispositivos de segurança seus mecanismos essenciais.31

Temos, pois, que admitir em um Estado reunindo forças para combater uma epidemia

ou prevenir uma catástrofe, são desencadeadas inúmeras ações, tanto em mecanismos

disciplinares quanto por controles e regulações. Em tais ações são embutidos outros tantos

elementos, que podem ser “discursivos” ou não, com a finalidade explícita de modelar o

comportamento dos indivíduos. A população como campo de intervenção não exime o poder

de atingir os indivíduos: nos seus corpos; nos seus gestos; em suas consciências. Tradutor

exímio deste ponto de vista, Foucault afirma: “Que o poder, mesmo tendo uma multiplicidade

de homens a gerir, seja tão eficaz quanto se ele se exercesse sobre um só”.32 Neste sentido o

dispositivo (mais adiante explicaremos o termo) é sempre um ponto a partir do qual algumas

estratégias precisam ser adotadas para se alcançar os efeitos desejados. Fica evidente que o

mecanismo primário regulador da população acaba produzindo efeitos sobre os indivíduos em

suas particularidades mais ínfimas; migrando de ações globais para as minúcias de conduta;

valorizando o detalhe; com punições a quem ouse burlar as regras e recompensas aos que se

comportam docilmente.

Se o efeito didático não for o esperado antecipamos o pedido de desculpas ao leitor.

Todavia, julgamos que a síntese proposta no quadro em sequência, pode de alguma forma, ser

útil para retomar as ideias que acabamos de condensar.

31

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Op. cit., p. 291. 32 Ibidem p. 214.

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CONFIGURAÇÕES DO PODER EM MICHEL FOUCAULT

PODER SOBERANO (até século XVII)

PODER DISCIPLINAR (século XVIII)

BIO-PODER (século XVIII; início do XIX)

Fundado no direito jurídico com base no contrato. O rei detém poder sobre a vida de seus súditos.

Tem como alvo o indivíduo, campo de técnicas de adestramento para arrancar dele forças, habilidades e obter corpos úteis e dóceis.

Não mais o corpo do indivíduo isolado, mas o indivíduo como parte da espécie; previsões; estatísticas; medições globais e estímulos à natalidade; controle das doenças; prolongamento ao tempo de vida da população. São ações incorporadas às táticas de governo

Dispositivos: terror e medo.

visibilidade e vigilância.

regulação, sexualidade e norma.

Princípio: fazer morrer e deixar viver.

fazer viver e deixar morrer

fazer viver e deixar morrer

Estratégias: confisco, proibições e subtração da liberdade.

gestão da vida e valorização do corpo. Caráter individualizante.

cálculo minucioso na condução de comportamentos favoráveis à arte de “governo” da população. Ao mesmo tempo individualizante e global.

Localização: nação, território.

instituições.

Estado

O poder se constitui e se nutre da produção de saberes que por meio de técnicas de

dominação cria engrenagens para se manter e se reproduzir. À semelhança do enxadrista que

pensa as estratégias para capturar as peças do adversário, a disputa de poder implica avanços e

recuos constantes, quando o objetivo final não é a anulação do outro, mas tirar dele as

vantagens que permitam a manutenção e reprodução da ordem estabelecida.

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2.2 Exercício do poder: os dispositivos

Como se exerce o poder? A análise do poder pode ser deduzida da economia? São

interrogantes que conduzem Foucault em Microfísica do Poder a uma breve excursão em

torno de duas concepções: em primeiro lugar a teoria jurídica do século XVIII, que concebe o

poder como aquisição de um bem, algo de que se possa apropriar por meio de ato jurídico

fundado no consenso do contrato:

Com isto quero dizer o seguinte: no caso da teoria jurídica clássica o poder é considerado como um direito de que se seria possuidor como de um bem e que se poderia, por conseguinte, transferir ou alienar, total ou parcialmente, por um ato jurídico ou um ato fundador de direito, que seria da ordem da cessão ou do contrato. O poder é o poder concreto que cada indivíduo detém e que cederia, total ou parcialmente, para constituir um poder político, uma soberania política. Neste conjunto teórico a que me refiro a constituição do poder político se faz segundo o modelo de uma operação que seria da ordem da troca contratual.33

O poder monárquico, por exemplo, centrado na figura do rei, é a face revelada da

soberania. O poder emana de um só, que dele dispõe da mesma maneira como administra os

territórios em seu domínio. Passível de transmissão em herança, o poder, assim concebido,

tem a equivalência dos dotes de riqueza; um tesouro que pode ser ampliado ou que requer

estratégias para não ser usurpado por outrem.

Em segundo lugar, a concepção marxista cravada no princípio da funcionalidade

econômica, interpreta o poder como custeio das relações de produção e, por conseguinte,

dominação de uma classe sobre as outras. As leis que regem as relações de poder são as

mesmas do bom governo da casa. O governo da casa legitimado na pessoa do pai de família é

figurativo do grupo governante que de tudo dispõe para garantir o bem-estar da coletividade.

Para tanto o poder se reveste da força dos discursos de convencimento cuja finalidade é

consentir a dominação como algo natural e permanente.

Para uma análise não econômica do poder, Foucault recusa essas duas concepções

porque vê em ambas o substrato do economicismo. “O poder não se dá, não se troca, nem se

retoma, mas se exerce, só existe em ação. (...) Não pode ser reprodução das relações

econômicas, funciona como relação de força”.34 A inovação que Foucault traz em suas

análises está em arrancar do conceito de poder um suposto caráter substancial em troca do que

este potencializa no entrelaçamento das múltiplas formas de convivência; ou na expressão

33 FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Op. cit., p. 174 34Ibidem p. 175.

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consagrada em Kant e que Foucault também faz uso dela, “condições de possibilidade”. Daí o

acento em o poder “se exerce”; o poder é “relação de força”. Ou de outro modo,

parafraseando o próprio Foucault: se a questão que se coloca é acerca de como se exerce o

poder o pronome interrogativo “como” não será utilizado para captar o poder como

fenômeno, mas no sentido de procedimento – “como acontece quando os indivíduos exercem

seu poder sobre os outros”?35 A partir dos anos 1970, Foucault se dedica com mais entusiasmo

a investigar o “como” do poder separando dois campos de entendimento: por um lado, o

direito36 enquanto limitação do poder e, de outro, a verdade produtora de efeitos de poder. Na

sociedade ocidental, diz ele, relações de poder se constituem na e pela produção, acumulação,

circulação e funcionamento do discurso legitimado pelo direito. Se por um lado, somos

estimulados a produzir verdades nos moldes da produção de mercadorias, o que Foucault

chama de “regimes de verdade”, por outro, somos submetidos à lei (no universo mais amplo

de corpo jurídico), lugar natural de engendramento de verdades, capazes de reger nossas

vidas.

Convidamos o leitor a uma excursão por três situações particulares que sugerem

esclarecimentos sobre como os discursos produzem efeitos de poder. Considerando o

professor frente a seus alunos, o técnico de uma equipe de basquete e um sindicalista

metalúrgico, cada um deles é portador de um discurso que, no jogo das palavras sela verdades

a serem incorporadas, ou pelo menos, seguidas pelos membros do grupo que os escuta. No

entanto, isso não garante que o poder esteja personificado em cada um deles tal qual o

filatelista afixa em seu quadro o selo que lhe apraz. Essas três lideranças encontram-se no

exercício de um poder meramente funcional e não escapam do encargo de um discurso de

convencimento nivelado ao mesmo grau de dependência e sujeição; a embates políticos,

enfrentamento das adversidades, sensibilidade às questões do grupo, acordos em torno das

estratégias, entre outras. Vale ressaltar que em tais condições, o conteúdo do discurso tem a

potência de justapor a forma pensada de verdade à forma realizada de poder sem imprimir

peso ideológico a nenhum dos termos. Essas relações de poder exigem um mínimo de

consenso sobre quais verdades devem se estabelecer. Não se trata de um poder hegemônico e

muito menos de uma verdade dogmática. Dessa forma, o poder é mais facilmente consentido

na medida em que se abre ao “jogo” do contraditório. Fórmula que assegura àqueles sobre os

quais ele se exerce, a certeza de não serem lesados. Como em outras ocasiões aqui se percebe 35

DREYFUS H. L. ; RABINOW P. Michel Foucault – uma trajetória filosófica, Op. cit., p. 284. 36 É importante frisar que quando se refere ao direito, Foucault não pensa simplesmente na lei, mas “no conjunto de aparelhos, instituições e regulamentos que aplicam o direito”. Cf. FOUCAULT, M. Microfísica do Poder Op. cit., p. 181.

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o cuidado de Foucault de revelar a face positiva do poder nos efeitos que ele produz. A

imbricação verdade e poder, antes de ser uma arquitetura meramente intelectual, é o engenho

que primeiro condiciona e depois, desenvolve uma “economia” de mudanças no interior da

sociedade: revendo critérios, convertendo rumos e renovando formas de viver. Foucault não

acredita que a verdade esteja dissociada do poder:

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade ; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.37

Se o poder se exerce, que tecnologias são empregadas para seu exercício? Foucault

lança mão de duas respostas contemporâneas:

Uma primeira resposta que se encontra em várias análises atuais consiste em dizer: o poder é essencialmente repressivo. (...) Quando o discurso contemporâneo define repetidamente o poder como sendo repressivo, isto não é uma novidade. Hegel foi o primeiro a dizê-lo; depois, Freud e Reich também o disseram. (...) Uma segunda resposta: (Nietzsche) se o poder é em si próprio ativação e desdobramento de uma relação de força (...) não deveríamos analisá-lo acima de tudo em termos de combate, de confronto e de guerra?38

A primeira hipótese traz a análise do poder atrelada aos mecanismos de repressão. A

segunda tem como substrato o conflito entre forças que se digladiam permanentemente, ou

seja, a paz na sociedade civil não é mais que experimentar o efeito anestésico de um

interstício de tempo no qual o conflito abafado pode emergir a qualquer momento. Seja como

for, Foucault não vê desacordo entre as duas hipóteses e até considera que elas podem se

articular. A repressão traz o efeito e alimenta a relação de dominação manifestada na guerra

onde se trava o contraste luta e submissão. O poder que submete não anula a força dos que lhe

apresentam resistência e contra ele se rebelam.

No entanto, Foucault não partilha da ideia de que o poder seja eminentemente

repressivo. E ao constatar a insuficiência dos dois modelos – repressivo e combate belicoso –

Foucault abandona as duas hipóteses que segundo ele levam, por caminhos diferentes, ao

mesmo destino: o poder plasmado e gerido pelo edifício da soberania. Em oposição à face

negativa do poder, destaca sempre o seu caráter positivo, visto que ele incita, provoca, e é

37FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Op. cit., p. 12. 38Ibidem p. 175-176.

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produtivo. O poder não é algo que surge; não tem geração espontânea, mas se mostra; se

exerce; se materializa em condições históricas bem determinadas. Assim ao emancipar-se de

modelos obsoletos de poder, Foucault introduz à nova concepção, os dispositivos como

instrumentos de positividade que desempenham a função estratégica de conciliar exercício do

poder e exercício da liberdade. Com efeito, “O poder só se exerce sobre ‘sujeitos livres’,

enquanto ‘livres’ – entendendo-se por isto sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de

si um campo de possibilidades em que diversas condutas, diversas reações e diversos modos

de comportamento podem acontecer”.39 Passamos agora a analisar os dispositivos, quer dizer,

a forma positiva como o poder se exerce.

No Dicionário Foucault, de Judith Revel, verbete dispositivo encontramos o seguinte

comentário: “O termo ‘dispositivo’ surge em Foucault na década de 1970 e designa

inicialmente operadores materiais do poder, isto é, técnicas, estratégias e formas de assujeitar

desenvolvidas pelo poder”.40 Com base em algo em que Foucault se aproxima da definição do

termo, em uma entrevista41 de 1977, nossa comentadora destaca o caráter heterogêneo dos

dispositivos, uma vez que estes abrangem tanto discursos quanto práticas, tanto instituições

quanto táticas instáveis: é assim, prossegue Revel, que Foucault conseguirá falar de

“dispositivos de poder”, de “dispositivos de saber”, de “dispositivos disciplinares”, de

“dispositivos de sexualidade”, etc.

Os dicionários em geral – que o leitor não se perturbe com esta nossa digressão, mas

alguns esclarecimentos são necessários antes de passarmos adiante – têm um objetivo prático

de introduzir o conceito em um universo de pesquisa que só se amplifica na medida em que o

pesquisador se lança a explorar outros campos. No texto presente, Judith Revel sugere que o

termo “dispositivo” tenha entrado no vocabulário foucaultiano a partir de 1977. Diz ela: “O

surgimento do termo ‘dispositivo’ no vocabulário conceitual de Foucault está provavelmente

ligado a seu uso por Deleuze e Guattari em O anti-édipo (1972): é, ao menos, o que leva a

entender o prefácio que Foucault escreve em 1977 para a edição americana do livro”.42

Outra hipótese para a origem do termo ligada aos registros biográficos de Foucault,

encontra-se no testemunho de Didier Eribon. O estágio no liceu Henri IV, anterior ao exame

de admissão na École Normale, permitiu a Foucault e seus colegas disporem de excelentes

professores. “Porém o professor que marcará profundamente esse grupo é aquele encarregado

39 DREYFUS H. L. ; RABINOW P. Michel Foucault – uma trajetória filosófica. Op. cit., p. 289. 40

REVEL, J. Op. cit., p. 43 41

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Op. cit., p. 243-276. 42

REVEL, J. Op. cit. p. 43

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de preparar a classe para a prova de filosofia. Chama-se Jean Hyppolite”.43 Hyppolite,

continua Eribon, comenta para os alunos a Fenomenologia do espírito de Hegel e a Geometria

de Descartes. Os estudantes tendem a se afinar com o curso sobre Hegel, a novidade, em

contraste a uma filosofia oficial quase refratária a esse nome. Dois registros emblemáticos de

Eribon, nos permitem diagnosticar a admiração e o apreço de Foucault por um homem que

marcou decisivamente sua vida:

Quando Jean Hyppolite faleceu, em 1968, foucault declarou: os que estavam no Khâgne após a guerra se lembram das aulas de monsieur Hyppolite sobre a Fenomenologia do espírito: naquela voz que não parava de se recompor como se meditasse no interior de seu próprio movimento não ouvíamos apenas a voz de um professor: ouvíamos algo da voz de Hegel e talvez até da voz da própria filosofia. Não creio que seja possível esquecer a força daquela presença, nem a proximidade de (Hegel) que ele pacientemente invocava.44 Em 1975, sete anos após a morte de Hyppolite, (Foucault) enviara à viúva um exemplar de Vigiar e Punir com a seguinte dedicatória: A madame Hyppolite, como lembrança daquele a quem devo tudo.45

A relação de proximidade entre Foucault e seu mestre, possibilitou ao filósofo italiano

Giorgio Agamben, partindo do ensaio – Introduction à La Philosophie de Hegel, escrito por

Jean Hyppolite – concluir que Foucault tomara por empréstimo o conceito hegeliano de

“positividade” e o presentificara em Arqueologia do Saber (1969). Lá pela metade dos anos

setenta “positividade” atingirá o estágio maduro do “dispositivo”. A explicação de tal

ocorrência está na demarcação que alguns especialistas46, usando, ora o critério metodológico,

ora o critério cronológico, estabelecem para falar de três etapas no pensamento de Foucault:

arqueologia, genealogia e ética. “Positividade” voltada para a ‘episteme’ corresponde à fase

arqueológica, enquanto “dispositivo” está no domínio da genealogia. Agamben exprime a

passagem do primeiro ao segundo termo com uma eloquência capaz de silenciar qualquer

murmúrio:

Se ‘positividade’ é o nome que, segundo Hyppolite o jovem Hegel dá ao elemento histórico, com toda sua carga de regras, ritos e instituições impostas aos indivíduos por um poder externo, mas que se torna, por assim dizer, interiorizada nos sistemas das crenças e dos sentimentos, então

43ERIBON, D. Michel Foucault. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras 1990. P. 32. 44 Ibidem p. 33 45

Ibidem p. 34 46Giles Deleuze, Alan Sheridan, Hubert Dreyfus & Paul Rabinow e Miguel Morey estão entre aqueles que discutem a sempre difícil periodização de Foucault. Afinal, como afirmou o Professor Edson Teles em uma palestra na Universidade São Judas: “O pensamento de Foucault não é para ser historicizado; antes, é de louvável prudência considerá-lo como objeto de pesquisa”.

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Foucault, tomando emprestado este termo (que se tornará mais tarde ‘dispositivo’) toma posição em relação a um problema decisivo, que é também o seu problema mais próprio: a relação entre os indivíduos como seres viventes e o elemento histórico, entendendo com este termo o conjunto das instituições, dos processos de subjetivação e das regras em que se concretizam as relações de poder. O objetivo último de Foucault não é, porém, como em Hegel, aquele de reconciliar os dois elementos. E nem mesmo o de enfatizar o conflito entre estes. Trata-se para ele antes de investigar os modos concretos em que as positividades (ou os dispositivos) atuam nas relações, nos mecanismos e nos ‘jogos’ de poder.47

De todo modo, o jeito como Revel arrumou as palavras para apresentar o que Foucault

entende por dispositivos, tem algo que não devemos perder de vista, ou seja, que eles

funcionam como “operadores materiais do poder”, não sendo possível desvincular os

dispositivos das técnicas, das estratégias e das formas de assujeitamento. Além disso, frente à

heterogeneidade dos elementos que constituem o dispositivo, Revel enfatiza: “O problema é,

então, para Foucault, examinar tanto a natureza dos diferentes dispositivos com que ele se

depara quanto sua função estratégica”.48

Há, portanto, pelo menos duas inferências iniciais que devemos considerar: em

primeiro lugar, quando falamos em dispositivos, estamos nos referindo tanto a elementos

discursivos como àqueles não-discursivos; em segundo lugar, como costumava lembrar

Foucault, “o dispositivo está sempre inscrito em um jogo de poder”; um tipo de jogo, insiste

ele, no qual as posições não são perenes e as funções não permanecem sempre as mesmas.

Concluímos, pois, que os dispositivos são para Foucault, precisamente o que caracteriza as

relações de poder como modos de ação de “uns” sobre “outros” sendo que os dois polos da

relação são igualmente equilibrados pelo princípio da liberdade. Vale a pena retomar o texto

o sujeito e o poder e ver como Foucault define estes termos:

Quando definimos o exercício do poder como um modo de ação sobre as ações dos outros, quando o caracterizamos como “governo” dos homens, uns pelos outros, no sentido mais extenso da palavra, incluímos um elemento importante: a liberdade. O poder só se exerce sobre ‘sujeitos livres’, enquanto “livres” – entendendo-se por isto sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidades em que diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer. Não há relação de poder onde as determinações estão saturadas – a escravidão não é uma relação de poder, (...) – mas apenas quando ele pode se deslocar e, no limite escapar. Não há, portanto, um confronto entre poder e liberdade, em uma relação de exclusão (...), mas um jogo muito mais complexo: nesse jogo, a liberdade aparecerá como condição de existência do poder (...)

47AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? In: Outra Travessia. Conferência proferida em set. de 2005. Disponível em <http://periodicos.ufsc.br/index.php/outra/article/download/12576>. Acesso em 1 jun. 2013. 48REVEL, J. Op. cit. p. 44.

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porém, aparece também como aquilo que só poderá se opor a um exercício de poder que tenda, enfim, a determiná-la inteiramente.49

Para compreender ainda melhor o termo que nos prende tomemos o exemplo, da

relação entre esposo e esposa, também aquela entre namorados ou onde quer que se

confrontem masculino e feminino, haverá sempre um campo de tensões no qual se alternam

poder e resistência. Logo, não é construtivo pensar os dispositivos como estratégias de poder

fixas apenas em um dos polos sem que o outro lhe ofereça o contraponto. Frente a frente com

as relações de poder aparecem as estratégias de confronto como limite e fronteira. Em 1982,

em um texto publicado também em inglês50, Foucault registra:

Ora se é verdade que no centro das relações de poder e como condição permanente de sua existência, há uma insubmissão essencial ao princípio de liberdade, então, não existe relação de poder sem tentativa de escape ou fuga possível. Toda relação de poder implica potencialmente uma estratégia de luta, sem que as duas forças contrárias venham a se superpor, ou perder sua natureza específica, ou ainda finalmente, se confundir. Cada uma representa para a outra uma espécie de limite permanente, um ponto de inversão possível.

Até aqui tentamos explicitar como o dispositivo funciona em termos de estratégias e

relações de forças. Outro aspecto sobre o qual devemos dirigir nossa investigação é a natureza

do dispositivo; saber como se constitui a mola daquele processo que Foucault nomeou de

governamentalidade51 – “governo dos homens pelos homens”. Para tanto não parece existir

recurso mais apropriado do que o retorno àquela entrevista de 1977 que mencionamos na

página vinte e nove. “Acho que é a primeira vez que encontro pessoas que querem participar

49FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS H. L. ; RABINOW P. Michel Foucault – uma trajetória filosófica. Op. cit., p 289. 50“For, if it is true that at the heart of Power relations and as a permanent condition of their existence there is an insurbordination and a certain essential obstinacy on the part of the principles of freedom, then there is no relationship of power without the means of escape or possible flight. Every power relationship implies, at least in potential, a strategy of struggle, in which the two forces are not superimposed, do not lose their specific nature, or do not finally become confused. Each constitutes for the other a kind of permanent limit, a point of possible reversal”. In: University of Chicago - Critical Inquiry, vol 8, No. 4 (Summer 1982) p 794. Disponível em: <http://www.csun.edu/ ~snk1966/M.%20--%20The%Subject%20and%20Power.pdf>. Acesso em 26 jun. 2013. 51Por governamentalidade Foucault entende três coisas: em primeiro lugar o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer uma forma específica de poder tendo como alvo a população, substrato de saber a economia política e como instrumentos técnicos os dispositivos de segurança; em segundo lugar, a tendência instalada no Ocidente há séculos de estabelecer a preeminência daquilo que se pode chamar de “governo”sobre todos os outros: soberania, disciplina. Enfim, o resultado do processo pelo qual o Estado de Justiça da Idade Média, tornado nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco, governamentalizado. (Cf. FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos. v. IV Op. cit., p. 303).

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do jogo que proponho em meu livro”.52 “Le jeu de Michel Foucault” (cf. nota de rodapé nº 41

p. 29); é um momento ímpar em que Foucault se abre com extraordinária franqueza a

comentar o seu livro A história da sexualidade – a vontade de saber. Foucault e seus

interlocutores debatem sobre os dispositivos e sua ligação direta na analítica do poder bem

como a especificidade do dispositivo de sexualidade no controle dos prazeres do corpo ou, em

situação extremada, na política racista disseminada no mito do sangue, tal como aparece na

última parte do livro.

Eis como Foucault define dispositivo:

Em primeiro lugar, um conjunto heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas etc. (...) Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relação que pode existir entre estes elementos heterogêneos. Sendo assim, tal discurso pode aparecer como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação desta prática, dando−lhe acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma, entre estes elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes. Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante.53

Para resumir: o dispositivo é a rede que se estabelece entre elementos heterogêneos;

não se fixa em um ponto determinado, não se prende a esta ou àquela prática, mas engloba o

discursivo e o não discursivo e também dependendo do jogo e do momento histórico, deve

responder a uma urgência. Tem, portanto, uma função estratégica dominante. Com isso

compreende-se que todo dispositivo nascendo de um objetivo estratégico, produz efeitos, mais

ou menos calculados, dentro de uma racionalidade e que são finalizados nas práticas

cotidianas. Ninguém escapa; somos todos capturados. Da moda ao ponto de ônibus; do

sorvete no shopping à música preferida, há sempre um dispositivo a espreitar nossa conduta

como condicionante do sujeito que julgamos ser e das escolhas que reivindicamos serem

nossas. Com isso queremos dizer que não há processo de subjetivação sem a interferência, em

maior ou menor grau, de algum tipo de dispositivo. Conforme Giorgio Agamben, disse em

52FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Op. cit., p. 243. 53 Ibidem p. 244.

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uma conferência,54 os dispositivos têm a mesma idade do homo sapiens e no tempo presente

“não há um só instante na vida dos indivíduos, que não seja modelado, contaminado, ou

controlado por eles”.55 E para fortalecer ainda mais este argumento, destacamos outro

depoimento por si só digno de nossa atenção:

Generalizando posteriormente a já amplíssima c1asse dos dispositivos foucaultianos, chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panoptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc, cuja conexão com o poder é em um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e - porque não - a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata - provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam - teve a inconsciência de se deixar capturar.56

Outra perspectiva a ser lembrada é o uso que o biopoder faz dos dispositivos. Do

ponto de vista da prática política os dispositivos valem para o biopoder tanto quanto o

alimento para o corpo; de tal maneira que é impensável o governo da população sem o uso de

mecanismos que, pelo menos em princípio, almejem sucesso no enfrentamento de uma

situação ou de um problema específico. Para prevenir a violência ou inibir a ação de

delinquentes – dispositivo de segurança; para garantir o direito à propriedade e à liberdade – o

dispositivo da lei; para assegurar o controle da natalidade – o dispositivo da sexualidade e

assim por diante. Eis porque um Estado politicamente organizado e de razoável eficiência, só

funciona com o suporte de instituições que prolonguem o seu “braço” e sua presença até os

setores mais capilares da sociedade. Se retomamos o axioma de Foucault: “o dispositivo

sempre se inscreve em um jogo de poder”, percebemo-lo como uma aposta estratégica no

jogo das cartas que fixam o tipo das relações de poder, que se desenredam nos processos de

subjetivação. É nesse jogo, de magna eficiência para esculpir uma sociedade de modelo

disciplinar, que Agamben detecta o “olho clínico” de Foucault, ao tecer o seguinte

comentário:

Todo dispositivo implica, com efeito, um processo de subjetivação, sem o qual o dispositivo não pode funcionar como dispositivo de governo, mas se

54Ensaio apresentado na Universidade Federal de Santa Catarina em setembro de 2005 (cf. nota de rodapé 47, p. 31). 55 Ibidem p. 13. 56 Ibidem, ibidem.

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reduz a um mero exercício de violência. Foucault assim mostrou como, em uma sociedade disciplinar, os dispositivos visam através de uma série de práticas e de discursos, de saberes e de exercícios, a criação de corpos dóceis, porém livres, que assumem a sua identidade e a sua ‘liberdade’ enquanto sujeitos no processo mesmo do seu assujeitamento. O dispositivo é, na realidade, antes de tudo, uma máquina que produz subjetivações, e só enquanto tal é uma máquina de governo.57

Assim, para pensar o projeto da presente dissertação e torná-lo viável tivemos que nos

submeter a uma série de regras, regulamentos e exigências inclusas desde o processo seletivo

da Universidade até as minúcias do rigor metodológico requerido em tal empreitada. Ocorre

que, se por um lado, todos estes procedimentos tomados em seu conjunto tinham o efeito de

um fardo enfadonho, por outro lado, é preciso considerá-los no escopo de nossa liberdade que

aceitamos participar do “jogo”, fazendo concessões e correspondendo ao que nos era pedido.

E ao situar este evento no horizonte da liberdade escapamos do exílio de nossa

individualidade. Sempre haverá ocasião propícia a desenredar o “jogo” dentro dos próprios

dispositivos, ao escolhermos os rumos da escrita, que partes do trabalho estender ou

condensar, a orquestração das ideias, o diálogo com o leitor, etc. Ocasião que não anula a

objetividade de, por exemplo, nos preocuparmos menos em mostrar erudição que discorrer

sobre o assunto proposto. Em outras palavras, no interior de todo e qualquer processo de

assujeitamento, faz-se necessário encontrar formas de subjetivação e identidade que nos

permitam entremear os enunciados externos e o que queremos fazer de nós mesmos.

Vimos que em um dado momento histórico a forma jurídica de poder, fundamento da

soberania, foi incorporada pelo poder disciplinar, que por seu turno foi completado pelo

biopoder – arte liberal de governo e controle efetivo da população. Controle meticuloso,

estatístico, calculado, e estrategicamente distribuído em um conjunto vasto de dispositivos.

Um destes dispositivos tem na vigilância a fórmula de sua eficiência. Das estratégias que

fazem funcionar a vigilância trata o capítulo seguinte.

57 Ibidem p. 14-15.

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3 ARTICULAÇÃO ENTRE PODER E VIGILÂNCIA

3.1 A vigilância: dispositivo de poder sobre o corpo

O corpo imerso em “campo político” e não somente “lugar de processos fisiológicos e

de metabolismos, sede de necessidades e apetites”, sinaliza para o que ousaríamos denominar

de “redescoberta do corpo”58 realizada por Foucault em Vigiar e Punir. Com efeito, ele arrasta

e introduz em seu vocabulário a expressão “economia política” do corpo, ou seja, o corpo

como alvo das relações de poder que incidem direta e imediatamente sobre ele; o corpo

instância de procedimentos que desencadeiam “investimentos políticos ligados segundo

relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como

força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação”.59 Enfim, o

corpo como alvo de um saber que penetra seu funcionamento orgânico; que conhece sua

sexualidade; que prevê e aprimora sua força produtiva. Por conseguinte, o corpo torna-se

força útil, prossegue Foucault, na medida em que, a um só tempo, produz e se deixa submeter.

Sujeição não necessariamente extraída pelos instrumentos da violência ou da ideologia.

Antes de submeter o corpo à questão das ideologias convém estudar os efeitos do

poder sobre ele, como assevera Foucault:

Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande superego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos no nível do desejo – como se começa a descobrir – e também no nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. É a partir de um poder sobre o corpo que foi possível um saber fisiológico, orgânico.60

A esta altura estimulamos o leitor a perceber o quanto Foucault, na maneira de pensar,

no estilo de escrever vez ou outra, deixa escapar sua índole de exímio “arqueólogo do saber”.

À medida que avança vai recolhendo “cacos”; “sedimentos”; “fragmentos de cultura”; tudo

que possa ser interpretado como vestígios da sua “microfísica do poder”. Aqui o processo é

evidente. Da hipótese de haver um “saber sobre o corpo” e um “controle de forças”

58 Não sabemos ao certo até que ponto a expressão é original. Talvez ela já pertença a outros domínios fora das pesquisas que realizamos. Entretanto, sua pertinência ao contexto aqui considerado, sugere singularidade. 59

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir . Op. cit., p. 28-29. 60 FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Op. cit., p. 148-149.

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empreende o que ele próprio denominou de “tecnologia política do corpo” por meio do

acoplamento poder e saber. Tecnologia difusa, afirma ele, raramente formulada em discursos

contínuos e que não pode ser localizada numa instituição ou num aparelho de Estado.

Ao produzir saber, o poder desenvolve tecnologias de sujeição e dominação dos

corpos. O vetor desta dominação é a disciplina que prescreve o comportamento – sem a

anulação de nossas escolhas – a forma de vestir, os gestos, os deslocamentos etc. Por

dominação Foucault não entende a forma global de um sobre os outros (como se pensava na

monarquia), mas múltiplas formas que podem se exercer na sociedade. Como por exemplo, o

poder de um só diluído na família, nas práticas religiosas, no quartel, na prisão, na fábrica e na

escola – instâncias de regulação e realinhamento social. E para um entendimento eficaz destas

múltiplas sujeições, Foucault estabelece cinco precauções metodológicas, apresentadas a

seguir e acompanhadas de um exemplo proposto à nossa escolha:

Em primeiro lugar, “captar o poder em suas extremidades, em suas últimas

ramificações. Principalmente no ponto em que ultrapassando as regras do direito (...) penetra

em instituições, corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos de intervenção material,

eventualmente violento”.61 Nas extremidades o poder é menos jurídico e mais relação de

força. Não é a força da lei que indica onde e quando o poder deve se instalar. Mais que isso:

existem artifícios concretos de se consentir aferições de poder ao espaço geográfico, cultural e

histórico dos grupos humanos. Na companhia de Foucault podemos afirmar que o poder só é

palpável na medida em que é “exercido por ‘uns’ sobre os ‘outros’; o poder só existe em ato

mesmo que se inscreva em um campo de possibilidade esparso que se apoia em estruturas

permanentes”.62 “Campo de possibilidade esparso”, inserido na cultura, capaz de separar e

“sexualizar” encargos do lar. Por exemplo, o impedimento da realização de tarefas

domésticas pelos homens não deriva de determinação legal. Antes, se desenvolve no seio da

convivência familiar nutrida por uma mentalidade machista – aceita pela mulher e pelo

homem – que equivocadamente vê em tais tarefas ameaças reais à masculinidade.

A segunda precaução deve captar a instância material da sujeição na multiplicidade

dos corpos em práticas reais e efetivas, nas quais o poder se mostra, revela sua face externa.

Onde ele se implanta deixa sua marca entendida esta não como “estratégia global” de

dominação, mas como “funcionam as coisas ao nível do processo de sujeição ou dos

processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os corpos, dirigem os gestos, regem os

61 FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Op. cit., p. 182. 62FOUCAULT, M. DREYFUS H. L. ; RABINOW P. Michel Foucault – uma trajetória filosófica. Op. cit., p. 287.

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comportamentos etc. (...) Captar a instância material da sujeição em oposição à alma soberana

do Leviatã de Hobbes. (...) um corpo único, movido por uma alma – a soberania”.63

Exemplificando: os alunos na escola são corpos disciplinados – e com isto não

queremos indicar força repressiva porque os sujeitos aderem a essas práticas disciplinares – ao

controle dos espaços (corredores, pátio, cantina, sala de aula, quadra de esportes); do tempo

(horário de entrada e saída, intervalos, descanso, início e término do ano letivo); dos

movimentos (sentar, ficar de pé, correr, caminhar).

Terceira precaução: não tomar o poder em termos antagônicos de superioridade e

inferioridade como se só pudéssemos nos referir a ele para incluir indivíduos que dominam

contra outros que se submetem. “O poder não é algo que se possa dividir entre aqueles que o

possuem e o detêm exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos. (...) O

poder funciona e se exerce em rede. (...) nas suas malhas os indivíduos sofrem sua ação, mas

também são seu centro de transmissão”.64 Para compreender melhor a sutileza do poder em

seu exercício destacamos o que Foucault afirma em outra passagem:

De fato, o poder em seu exercício vai muito mais longe, passa por canais muito mais sutis, é muito mais ambíguo, porque cada um de nós é, no fundo, titular de um certo poder e, por isso, veicula o poder. O poder não tem por função única reproduzir as relações de produção. As redes da dominação e os circuitos da exploração se recobrem, se apoiam e interferem uns nos outros, mas não coincidem.65

De modo mais explícito trazemos o seguinte exemplo: os grupos de alunos formados

em sala de aula pelo critério de afinidades e simpatia, são capazes de esquecer as diferenças e

se unirem em bloco único caso alguma intervenção externa ameace o interesse comum;

“ilhas” separadas que podem se coligar para defender os interesses de classe; células

apartadas, mas sempre em possibilidade de se agregar em corpo orgânico para exibir o poder

ampliado do qual se consideram portadores.

Quarta precaução: substituir a escala descendente por uma análise ascendente, partindo

do micro ao macrocosmo; não pensar o poder como uma grandeza que se sobreponha a

realidades ínfimas e que por essa condição se estabeleça uma disjunção entre o que coloniza e

o que é colonizado, entre o que transforma e o que é transformado e assim por diante. Não

existe uma dominação global capaz de arrebanhar a muitos e fixar-se em um centro a partir de

onde controla “corpos” orbitando à sua volta. Foucault propõe uma outra análise que partindo

63

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Op. cit., p. 182-183. 64 Ibidem p. 183. 65Ibidem, p.160.

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de tecnologias minúsculas de poder busca compreender o investimento de fenômenos mais

globais sobre essas tecnologias. Por assim dizer, não é um grupo determinado que induz a

necessidade de excluir o louco, mas dada exclusão existente em nível familiar ou entre os

vizinhos, otimiza-se o lucro político e econômico em torno da loucura. Com efeito, o louco

incomoda a seus familiares e atrapalha a vida produtiva de quem precisa trabalhar. Para tanto

há que se cuidar de procedimentos e técnicas, como aparece explicitado a seguir:

Não é a dominação global que se pluraliza e repercute até embaixo. Creio que deva ser analisada a maneira como os fenômenos, as técnicas e os procedimentos de poder atuam nos níveis mais baixos; como estes procedimentos se deslocam, se expandem, se modificam; mas sobretudo como são investidos e anexados por fenômenos mais globais; como poderes mais gerais ou lucros econômicos podem inserir-se no jogo destas tecnologias de poder que são, ao mesmo tempo, relativamente autônomas e infinitesimais.66

Por exemplo, a relação com a ciência em suas verdades cristalizadas pode ser

retomada na escala ascendente quando os alunos, em sala de aula, se apropriam do processo

de sua produção. Tal apropriação não requer grandes eventos ou projetos majestosos como se

existisse um “sol”, astro sede do conhecimento e que eventualmente o aluno (do latim ad

lumine – aquele que é desprovido de luz), atingido por seus raios, afortunadamente venha se

apossar. Pelo contrário, o conhecimento é algo a ser construído no “varejo”, ao se transformar

o conteúdo refletido em saber que é buscado, a partir e dentro das experiências que cada um

traz consigo..

Por fim, Foucault avisa que não devemos deslocar o poder para fontes ideológicas:

Se houve uma ideologia da educação; uma ideologia do poder monárquico, uma ideologia da democracia parlamentar; não creio que aquilo que se forma na base sejam ideologias: muito mais que isso. São instrumentos de formação e acumulação do saber: métodos de observação, técnicas de registro, procedimentos de inquérito e de pesquisa, aparelhos de verificação. Tudo isto significa que o poder, para exercer-se nestes mecanismos sutis, é obrigado a formar, organizar e por em circulação um saber, ou melhor, aparelhos de saber que não são construções ideológicas.67

Dizendo de outro modo, para “exercer-se nestes mecanismos sutis” o poder inventou

uma certa “economia” de insidiosa extensão no campo do saber; ou como afirma Foucault em

outro momento: “na realidade, a impressão de que o poder vacila é falsa, porque ele pode

recuar, se deslocar, investir em outros lugares...”. Portanto, não é possível circunscrever em

uma palavra todos os anseios de um grupo sem dimensionar o alcance real da palavra em

66 FOUCAULT, M. Microfisica do poder. Op. cit., p. 184. 67 Ibidem p. 186.

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pauta. Por exemplo, os sindicatos interpretam que suas práticas, fundadas em pautas de

reivindicações, sejam mecanismos infalíveis na diluição da força dos aparelhos de Estado e

acreditam que por esse caminho transfiram poder aos trabalhadores. Não percebem que o

poder “recua, se desloca, investe em outros lugares... e a batalha continua”. Em nome e por

causa da “luta”, não admitem outro segmento que não seja o enfrentamento daquela

polarização consagrada: no topo a burguesia com um olhar malevolente e astucioso

planificando artifícios para extrair vantagens dos que estão em baixo. Na base, os

trabalhadores e suas “lutas”. A palavra “luta” parece suficiente para abafar os discursos, em

especial, aqueles que lhe ofereçam resistência. Dado que o poder, mesmo na esfera política,

tornou-se um bem que pode ser partilhado ou pelo menos negociado – e isso talvez já seja

ideológico – os discursos e práticas ali vividos, objetivam conquistar e, depois, determinar

que parcela caberá aos trabalhadores.

Precauções providentes que permitem Foucault se debruçar no percurso histórico entre

os séculos XVI e XVIII mostrando as alterações da teoria jurídico-política de soberania em

direção a uma nova tecnologia de poder que como foi explicado no primeiro capítulo, se

apropria dos corpos e de seus movimentos, por meio de táticas e estratégias cuidadosamente

calculadas. Doravante será inconcebível olhar o poder de fora como algo que tenha

arbitrariamente pontos e ocasiões a eleger e se manifestar. Tem-se nova configuração do

poder: a soberania cede lugar ao poder disciplinar. E qual é o princípio sobre o qual se assenta

a disciplina? Não outro que aquele do olhar vigilante capaz de criar visibilidade e quebrar

todos os espaços de escuridão. Na soberania o corpo do rei era o centro de irradiação do

poder. Agora, os corpos dos indivíduos, em sua singularidade, como alvo de investimentos

disciplinares tão meticulosamente considerados quanto a “arte de talhar pedras”, podem ser os

objetos esculpidos pelo olhar:

Aqueles que cuidam dos detalhes muitas vezes parecem espíritos tacanhos, entretanto esta parte é essencial, porque ela é o fundamento, e é impossível levantar qualquer edifício ou estabelecer qualquer método sem ter os princípios. Não basta ter o gosto pela arquitetura. É preciso conhecer a arte de talhar pedras.68

A citação do Marechal de Saxe não é casual. Foucault quer chamar a atenção da

disciplina que enquanto técnica de fabricação de corpos dóceis, também significa a

“racionalização utilitária do detalhe na contabilidade moral e no controle político”.69 A

disciplina carece de um mecanismo estruturante, permanente, que na medida em que se ocupa 68SAXE, Marechal de. Apud FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. P. 135. 69Ibidem, p. 135.

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do corpo em sua singularidade pode ter o controle dos indivíduos também na sua

multiplicidade. Na esteira de Jeremy Bentham, autor de um projeto arquitetônico de reforma

dos presídios da Europa no final do século XVIII, Foucault apropria-se, do Panóptico70,

intuindo a eficácia do poder medida pela pela qualidade da vigilância do olho que tudo vê,

tudo abarca e a todos controla. O “olho do poder” expressão consagrada em entrevista

concedida a Jean-Pierre Barou e Michele Perrot em 1977, é segundo Foucault, “olho perfeito

a que nada escapa e centro em direção ao qual todos os olhares convergem”.71 Porém, o poder

disciplinar que se serve da vigilância não é repressivo nem obstinado a apoderar-se das

consciências. Se assim fosse, teria um custo muito alto no esforço de neutralizar focos de

resistência – era desse modo, diz Foucault, que funcionava o poder monárquico. Muito mais

eficaz parece ser a estratégia do “olho do poder” que a longo prazo produz naquele que é

vigiado a convicção de só se reconhecer nessa condição. Tecnologia de poder capaz de fazer

mais com menos esforços. Eis o que afirma Foucault:

Já o olhar vai exigir muito pouca despesa. Sem necessitar de armas, violências físicas, coações materiais. Apenas um olhar. Um olhar que vigia e que cada um, sentindo-o pesar sobre si, acabará por interiorizar, a ponto de observar a si mesmo;sendo assim, cada um exercerá esta vigilância sobre e contra si mesmo. Fórmula maravilhosa: um poder contínuo e de custo irrisório.72

E, em outra passagem:

Graças às técnicas de vigilância, a ‘física’ do poder, o domínio sobre o corpo se efetuam sob as leis da ótica e da mecânica, segundo um jogo de espaços, de linhas, de telas, de feixes, de graus, e sem recursos, pelo menos em princípio, ao excesso, à força, à violência. Poder que é em aparência ainda menos ‘corporal’ por ser mais sabiamente físico.73

70“Convém lembrar que o Panóptico ou casa de inspeção, não constituía simplesmente um modelo de organização penitenciária, mas a ‘ideia de um novo princípio de construção’ capaz de se aplicar a todo tipo de estabelecimento”. FOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes 2008 p. 99. 71

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir . Op. cit., p. 167. 72FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Op. cit., p. 218. 73 FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Op. cit., p. 170.

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3.2 Poder e vigilância: do panoptismo à biopolítica

O biopoder se serve tanto de mecanismos disciplinares (indivíduo) quanto de controles

e regulações (população). Quer dizer, o Estado se ocupa de gerir as pessoas quer se trate de

sua individualidade ou no conjunto de sua multiplicidade, mediante cálculo minucioso de

intervenção nas condutas. É o dispositivo de governo desenvolvendo estratégias com o fim de

alcançar efeitos desejados: previsões estatísticas; medições globais; controles de doenças e

epidemias; prolongamento do tempo de vida. Desse modo, não há nenhuma ação sobre a

população que não recaia também sobre o indivíduo. E de outro lado, o indivíduo é sempre

considerado como parte da espécie de tal maneira que, os investimentos do poder para

discipliná-lo visam sempre resultados sobre fenômenos globais. É uma tecnologia de poder ao

mesmo tempo individualizante e totalizante que no governo sobre os outros – com

intervenção dos dispositivos disciplinares – garante ao Estado a capacidade de gerir-se a si

mesmo afastando o perigo de cair na ruína. Foucault sintetiza tudo isso com o conceito de

“governamentalidade, englobando nesse termo, uma forma específica de poder sobre a

população, tendo como substrato de saber a economia política e como instrumentos técnicos

os dispositivos de segurança”.74

Como já explicitado no capítulo anterior, não é possível pensar o biopoder sem o

suporte das disciplinas, expresso tanto nas formas de controle sobre o corpo do indivíduo

quanto no corpo considerado em dimensões ampliadas, a população. É assim que, na

complexidade do quadro político da segunda metade do século XVIII, o liberalismo minando

a hegemonia do antigo regime, faz o panoptismo se estender a outras instituições que não só

os presídios. Também a igreja, o quartel, a escola e a fábrica. Em cada uma delas se detecta a

vigilância como um dispositivo que no dizer de Roberto Machado é diferente não apenas na

extensão, mas também na natureza: “A disciplina é o diagrama de um poder que não atua do

exterior, mas trabalha o corpo dos homens, manipula seus elementos, produz seu

comportamento, enfim, fabrica o tipo de homem necessário ao funcionamento e manutenção

da sociedade industrial, capitalista”.75 Foucault não parece menos incisivo:

O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor (...) A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao

74FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos. v. IV Op. cit., p. 303 75 MACHADO, R. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Op. cit., p. xvii.

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mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fiar em seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente.76 .

No rastro da leitura feita por Foucault, entre o final do século XVIII e inicio do século

XIX, é importante assinalar que o “fenômeno” população emerge como um elemento

preponderante nas táticas e nas estratégias dos dispositivos de poder. Por exemplo, a

ingerência da economia na política, ora suscitando, ora administrando o crescimento

demográfico, teria influenciado Bentham a ver a população como alvo de relações de

dominação: “Gerir a população significa geri-la em profundidade, minuciosamente, no

detalhe”.77 Economia política herdada da arte de governar que desde o final do século XVII,

com o advento dos estados modernos, esboça exigências de controle e vigilância sobre os

indivíduos, de modo a garantir a “paz perpétua” ao príncipe e a seus súditos. Na medida em

que determinados eventos se tornam fenômenos de população – a peste como iminência da

morte e a lepra como deficiência dos corpos – estratégias diferentes são pensadas e colocadas

em prática. Em Vigiar e Punir (1975) Foucault descreve dois modelos adotados para o

enfrentamento da lepra e da peste: Aos leprosos, “modelos de exclusão”; aos pestilentos,

“esquemas disciplinares”. Entre a ameaça da peste e o desconforto de corpos mutilados

brechas para que se efetivem táticas específicas de poder cuja finalidade é marcar os

indivíduos em vigilância contínua:

O leproso é visto dentro de uma prática de rejeição, do exílio-cerca; (...) os pestilentos são considerados num policiamento tático meticuloso onde as diferenciações individuais são os efeitos limitantes de um poder que se multiplica, se articula e se subdivide. (...) O exílio do leproso e a prisão da peste não trazem consigo o mesmo sonho político. Um é de uma comunidade pura; o outro, o de uma sociedade disciplinar. Duas maneiras de exercer poder sobre os homens, de controlar suas relações, de desmanchar suas perigosas misturas. A cidade pestilenta, atravessada inteira pela hierarquia, pela vigilância, pelo olhar, pela documentação, a cidade imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos individuais – é a utopia da cidade perfeitamente governada.78

Apesar da evidente diferença dos dois esquemas Foucault ressalta não haver

incompatibilidade entre eles e chama a atenção para ocorrências do século XIX quando se

otimiza o espaço da exclusão para o uso da técnica de poder própria do “quadriculamento”

disciplinar. É então que em um processo simbiótico com benefícios de ambos os lados, o

76 FOUCAULT, M. Vigiar e Punir . Op. cit., p. 164. 77 FOUCAULT, M. Microfísica do poder . Op. cit., p. 291. 78 FOUCAULT, M. Vigiar e punir . Op. cit., p. 188-189.

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“espaço confuso do internamento” é penetrado pelos “recortes finos da disciplina”. O saldo

primário dessa mistura não poderia ser outro que aquele da “divisão binária e da marcação

(louco – não louco; perigoso – inofensivo; normal – anormal) e o da determinação coercitiva,

da repartição diferencial (quem é ele; onde deve estar; como caracterizá-lo, como reconhecê-

lo; como exercer sobre ele, de maneira individual, uma vigilância constante, etc.)”.79 O

Panóptico de Bentham, arremata Foucault, é a figura arquitetural dessa composição. Uma

torre ao centro, como ponto estratégico de vigília, com ampla visibilidade das celas que

ladeiam a face interna da construção em anel.

Mas ocorre que a torre do panóptico é referência de controle tanto para vigilantes

como para vigiados. No entrecruzamento dos olhares a vigilância coletiva e anônima. Cada

olhar é uma torre do panóptico. O poder se faz, se reproduz, funciona como engrenagem na

qual todos são submetidos e ninguém consegue escapar:

Não se tem neste caso uma força que seria inteiramente dada a alguém e que este alguém exerceria isoladamente, totalmente sobre os outros; é uma máquina que circunscreve todo mundo, tanto aqueles que exercem o poder quanto aqueles sobre os quais o poder se exerce. Isto me parece ser a característica das sociedades que se instauram no século XIX. O poder não é substancialmente identificado com um indivíduo [ninguém se faz fonte do poder]. Ele torna-se uma maquinaria de que ninguém é titular, embora alguns lugares sejam preponderantes e permitam produzir efeitos de supremacia.80

O panóptico é uma prática não discursiva; um dispositivo permanente que segundo

Foucault, é capaz de “automatizar e desindividualizar o poder”. É um dispositivo que

despreza o espetáculo. Não se ocupa de exibir o fausto da cerimônia que personifica e

identifica o poder em uma pessoa. A pompa do poder soberano especialista em destacar “um”

a ser visto por muitos; tem sua ordem subvertida, quando o panoptismo cunha uma sociedade

disciplinar. “Proporcionar a um pequeno número, ou mesmo a um só, a visão instantânea de

uma multidão”.81 Isto não se realiza sem uma distribuição dos corpos, devidamente treinados e

conformados a técnicas difusas, que tendo no olhar o seu ponto de partida, também se servem

de um conjunto de instrumentos, de procedimentos, de níveis de aplicação concernentes às

instituições ou à mercê delas, nunca contra elas. Embora a disciplina não se identifique a esta

ou àquela instituição, conforme testifica Dreyfus:

79 Ibidem p. 189. 80 FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Op. cit., p 219. 81 JULIUS, N. H. Apud FOUCAULT, M. Vigiar e punir , Op. cit., p. 191.

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A disciplina é uma técnica, não uma instituição. Ela funciona de modo a ser maciça e quase totalmente apropriada em certas instituições (casas de detenção, forças armadas) ou usada para fins precisos em outras (escolas, hospitais); ela poderia ser empregada por autoridades preexistentes (controle das doenças) ou por parte do aparelho judiciário do Estado (polícia). Porém, não é redutível nem identificável com nenhuma dessas instâncias particulares.82

Sobre os reflexos do panoptismo na sociedade moderna, a síntese de Edgardo Castro,

em seu Vocabulário de Foucault, nos parece digna de registro:

No século XIX, assistimos a uma multiplicação das instituições disciplinares segundo o modelo benthaniano. Esse processo, no entanto, é o aspecto mais visível de outro, mais profundo, de reestruturação das disciplinas que Foucault resume em três pontos. 1) A inversão funcional das disciplinas: anteriormente, o objetivo das disciplinas era neutralizar os perigos; agora, desempenham papel positivo, o de acrescentar a utilidade possível dos indivíduos. 2) A dispersão dos mecanismos disciplinares. Multiplicam-se as instituições panópticas, mas os mecanismos disciplinares tendem a ‘desinstitucionalizar-se’. Os procedimentos disciplinares se disseminam na sociedade mediante centros de controle dispersos. 3) A estatização dos mecanismos disciplinares: formação de uma polícia centralizada, instrumentos de vigilância permanente e exaustiva.83

É por esta razão que, paralelamente ao panóptico, se desenvolve nova estratégia de

governo voltada para a produção e gestão da liberdade dos indivíduos: o liberalismo. O

panóptico havia fracassado por depositar demasiada confiança na eficácia do olhar. “As

pessoas não se tornam virtuosas pelos simples fato de serem olhadas”.84 O liberalismo, afirma

Foucault, produz liberdade não como “coisa” e sim como sedução. Em lugar de ofertar

liberdade, seduzir as pessoas a serem livres. Em Nascimento da Biopolítica – resumo do curso

no Collège de France (1979) Foucault, de modo sui generis, sintetiza aquela distinção,

conforme comprovamos a seguir:

A prática (liberal) de governo que está se estabelecendo no século XVIII não tende a respeitar nem garantir esta ou aquela liberdade. Mais profundamente, ela é consumidora de liberdade. Só funciona se houver certo número de liberdades: liberdade de mercado, liberdade de propriedade, de discussão, de expressão etc. consome liberdade e é obrigada a produzi-la, organizá-la. A nova arte governamental se apresenta como gestora da liberdade, não no sentido imperativo ‘seja livre’ – não é esta a sua formulação. O liberalismo formula o seguinte: vou produzir o necessário para tornar você livre. Que você tenha a liberdade de ser livre.85

82 DREYFUS H. L. ; RABINOW P. Michel Foucault – uma trajetória filosófica. Op. cit., p. 201. 83CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault. Op. cit., p. 315. 84 Ibidem p. 224. 85

FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Op. cit., p. 86-87.

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Como consequência o panóptico se revelará em duas feições. Em primeiro lugar, ele

assumirá as técnicas disciplinares ligadas à liberdade econômica. Em segundo lugar,

funcionará como princípio motor de ampliação das liberdades. Por exemplo, a política do

welfare nos Estados Unidos a partir de 1932, se constitui em intervenção econômica para

garantir as liberdades democráticas.

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PARTE II

PODER E SUBJETIVIDADE NA ESCOLA

Um sistema de ensino é sempre uma ritualização da palavra; uma qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam; a constituição de um grupo doutrinário, embora difuso; uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes.86

86 FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Op. cit., p. 44-45.

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4 RELAÇÃO ENTRE O DISPOSITIVO E A INSTITUIÇÃO ESCOL AR

4.1 A escola situada dentro do dispositivo de poder

O esportista de montanha que se põe em busca do desconhecido precisa se precaver

com água, alimento, lanterna e primeiros socorros. O encanto da montanha não dispensa a

prudência do caminheiro. De modo análogo, o arcabouço conceitual de Foucault na primeira

parte do trabalho, serviu para nos acautelar de trilhas incertas. Partindo da investigação sobre

o poder nos acercamos dos dispositivos enquanto prática social que organiza relações de

poder; espelhados no Panóptico de Bentham captamos o engenho da disciplina e aportamos,

enfim, na vigilância como tática de controle sobre o corpo dos indivíduos, cujo produto final é

a subjetivação, fechando de volta o circuito nos próprios dispositivos. Na esteira do que

pensava Foucault e usando as lentes de sua genealogia, nossa narrativa agora se volta para a

escola inserida em um dispositivo de poder materializado no currículo; regulado na disciplina

e na vigilância; justificado nas práticas discursivas. É o dispositivo que produz subjetivação e

não há dúvidas de que a escola esteja aí situada. À semelhança do peixe capturado pela

tarrafa, a escola não escapa de uma rede de poderes que tem nos dispositivos um alcance mais

abrangente que ela própria. No intuito de ratificar a força do dispositivo, o pensamento de

Agamben parece sugerir singularidade:

Todo dispositivo implica, com efeito, um processo de subjetivação, sem o qual o dispositivo não pode funcionar como dispositivo de governo, mas se reduz a um mero exercício de violência. Foucault assim mostrou como, em uma sociedade disciplinar, os dispositivos visam através de uma série de práticas e de discursos, de saberes e de exercícios, a criação de corpos dóceis, porém livres, que assumem a sua identidade e a sua ‘liberdade’ enquanto sujeitos no processo mesmo do seu assujeitamento. O dispositivo é, na realidade, antes de tudo, uma máquina que produz subjetivações, e só enquanto tal é uma máquina de governo.87

Na medida em que a escola está dentro do dispositivo de poder ela também, por tabela,

produz subjetivação. Em um espaço (talvez) imaginário/real entre verdade e saber a escola

(por meio de práticas: ensino, disciplina, exames, classificação e vigilância) estabelece seus

discursos como estratégias das relações de poder, subjetivando os indivíduos aí envolvidos.

Nela o dispositivo de poder ganha o suporte de que precisa para proliferar indefinidamente

seus discursos em polifonias pelos pátios, salas de aula, corredores, anfiteatro, laboratórios e

biblioteca. Nela se encontram sujeitos que em maior ou menor intensidade experimentam

87AGAMBEN, G. 2005. Op. cit., p. 14.

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relações de poder, relações de comunicação e capacidades objetivas. É o próprio Foucault

quem vê na instituição escolar o ajuste sistêmico e concorde destas três esferas:

Sua organização espacial, o regulamento meticuloso que rege sua vida interior, as diferentes atividades aí organizadas, os diversos personagens que aí vivem e se encontram, cada um com uma função, um lugar, um rosto bem-definido – tudo isso constitui um ‘bloco’ de capacidade-comunicação-poder. A atividade, que assegura o aprendizado e a aquisição de aptidões ou de tipos de comportamento, aí se desenvolve através de todo um conjunto de comunicações reguladas (lições, perguntas e respostas, ordens, exortações, signos codificados de obediência, marcas diferenciais do ‘valor’ de cada um dos níveis de saber) e através de toda uma série de procedimentos de poder (vigilância, enclausuramento, recompensa e punição, hierarquia piramidal).88

Uma maneira de subjetivar está em atribuir à escola a função de formar jovens para o

exercício da cidadania. Neste particular, o Plano Diretor independente da unidade escolar,

constará logo no caput o objetivo de “despertar nos estudantes o desenvolvimento de suas

potencialidades para que como cidadãos autônomos e livres possam interferir no contexto

social de que fazem parte”. Discurso sob certa medida, emancipatório e apropriadamente

afinado com as diretrizes oficiais, tal qual se encontra na proposta curricular de filosofia, ao

apontar a escola como “um lugar privilegiado para o desenvolvimento do pensamento

autônomo, que é condição para uma cidadania responsável”.89 Tais propósitos, são

indubitavelmente bem vindos a um momento histórico em que a população brasileira ganha

cada vez mais consciência de se reconstruir como sociedade democrática. A questão é que

não estacionem em um amontoado de planos, projetos, relatórios, nos quais os discursos

teóricos dissociados da prática jogam contra si mesmos a delação de uma exterioridade

ritualizada em palavras. Como afirmava Foucault: “É sempre possível dizer o verdadeiro no

espaço de uma exterioridade selvagem; mas não nos encontramos no verdadeiro senão

obedecendo às regras de uma ‘polícia’ discursiva que devemos reativar em cada um de nossos

discursos”.90

Não são as práticas (quem fala; quem escuta) que imprimem verdade ao discurso

senão ele mesmo, o discurso; na medida em que se cristaliza, anuncia ‘regimes de verdade’

abarcando em especial o campo do saber. Com efeito, o discurso objetiva comunicar,

inscrever e dar validade a uma verdade, entendida esta última, como expressão de um saber.

Por esta razão a verdade inventariada no discurso remonta a uma raiz mais profunda que

88 FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. 2010. In: DREYFUS, H. e RABINOW, P. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. . Op. cit., p. 285-286. 89 FINI, M. I. (coord.) Proposta curricular do Estado de São Paulo: filosofia/São Paulo: SEE, 2008 p. 10. 90 FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 1999. Op. cit., p. 35.

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alimenta e incita formas de poder. Desse modo, Foucault considera o discurso que “ativa e faz

circular o poder” particularmente na instituição escolar, ocasião de confronto das relações de

poder aí em voga:

Sabe-se que a educação, embora seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo individuo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, segue, em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distância, pelas oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo.91

Além disso, Foucault assinalou de modo bastante peculiar a força dos mecanismos de

subjetivação recorrendo ao tripé: discurso, verdade e poder. Segundo ele, em uma sociedade

como a nossa, onde quer que o poder se mostre aí encontramos um discurso verdadeiro que

circula e tende a se estabelecer como norma. “Não há exercício do poder sem uma certa

economia dos discursos de verdade que funcionam nesse poder, a partir e através dele”,

enfatiza. E ainda, com maior intensidade:

O poder não pára de questionar, de nos questionar; não pára de inquirir, de registrar; ele institucionaliza a busca da verdade, ele a profissionaliza, ele a recompensa. Temos de produzir a verdade como, afinal de contas, temos de produzir riquezas, e temos de produzir a verdade para poder produzir riquezas. E, de outro lado, somos igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a verdade é a norma; é o discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele próprio propulsa efeitos de poder. Afinal de contas, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer, em função de discursos verdadeiros, que trazem consigo efeitos específicos de poder.92

No nosso entendimento, a escola em suas práticas extrai desse tripé todas as vantagens

necessárias para assegurar o funcionamento de tecnologias normalizadoras com o fim de

sujeitar. De maneira bem mais acentuada que em outras instituições, na escola estão sujeitos

normatizados, com rostos bem definidos, uniformes e padrões de conduta que em última

instância especifica as relações de poder; conforme registro de outra passagem:

O termo ‘conduta’ apesar de equivocado, talvez seja um dos que permitem melhor atingir aquilo que há de específico nas relações de poder. A ‘conduta’ é, ao mesmo tempo, o ato de ‘conduzir’ os outros (segundo mecanismos de coerção mais ou menos estritos) e a maneira de se comportar

91 Ibidem p. 43-44. 92FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade 2005. Op. cit., p. 28-29.

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em um campo mais ou menos aberto de possibilidades. O exercício do poder consiste em ‘conduzir condutas’ e em ordenar a probabilidade.93

Se até aqui demos ênfase ao binômio saber/poder é porque dessa articulação Foucault

extrai a sua teorização do sujeito; não mais preso a um cogito cartesiano de afirmar-se como

eu pensante e muito menos como um produto da razão iluminista que patenteia o indivíduo

como uma entidade sólida preexistente à sociedade. Distanciando-se destas duas concepções –

que inaugura e encerra a modernidade – Foucault pensa o sujeito constituído historicamente e

na relação social, política, econômica, afetiva etc. Dada essa proximidade tão real com os

outros, o sujeito deixa de ser uma abstração para ter um corpo de visibilidade histórica ao

mesmo tempo suscetível e agente de práticas discursivas e não discursivas. É evidente que os

sujeitos assim envolvidos só se relacionam dentro de certas categorias inclusas em um campo

de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis que Foucault sintetiza como relação de

poder. Hubert Dreyfus e Paul Rabinow94 dividem a abordagem de Foucault sobre o sujeito em

duas frentes: o indivíduo enquanto objeto e indivíduo tornado sujeito. No primeiro caso temos

investimentos sobre o corpo com a finalidade de treiná-lo como força produtiva. Logo em

seguida, há uma impostação de identidade aceita pelo sujeito e que dela se apropria. Para

resumir com as palavras do próprio Foucault: “Há dois significados para a palavra sujeito:

sujeito ao outro através do controle e da dependência, e ligado à sua própria identidade

através de uma consciência ou do autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder

que subjuga e sujeita”.95

Assim compreendemos a pertinência desta noção de sujeito para o campo educacional

onde as práticas e os discursos escolares forjam um sujeito a ser moldado segundo parâmetros

preestabelecidos e ao fazer isto reproduzem mecanismos disciplinares que em lugar de formar

cidadãos autônomos e livres – como consta nos planos em arquivos – tratam de fabricar

indivíduos dóceis e úteis a projetos sempre prontos a espreitar-lhes a suposta maioridade.

Contra os efeitos nocivos de uma tal captura convém ficar atento à advertência de Foucault:

Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos. Temos de imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos desse ‘duplo constrangimento’ político, que é a simultânea individualização e totalização própria às estruturas do poder moderno.96

93FOUCAULT, M. O Sujeito e o poder. 2010. Op. cit., p. 288. 94 DREYFUS, H. e RABINOW, P. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. 2010. Op. cit., ver títulos do VII e VIII respectivamente. 95 Ibidem p. 278. 96 Ibidem p. 283.

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Se existe uma ideia de autonomia e que durante sua permanência na escola o aluno

deveria conquistar estimulado pela consciência crítica, talvez a filosofia, contando com o

auxilio das lentes de Foucault, se perceba autorizada a trabalhar o negativo, a insubmissão, o

contrapoder na forma de resistência a processos de subjetivação que a escola imprime por seu

edifício discursivo.

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53

4.2 Genealogia do eixo tecnicista na escola brasileira

No final do século XIX, Nietzsche escreveu:

Duas correntes aparentemente opostas, ambas nefastas nos seus efeitos e finalmente unidas nos seus resultados, dominam hoje os nossos estabelecimentos de ensino originariamente fundados em bases totalmente diferentes: por um lado, a tendência de estender tanto quanto possível a cultura, por outro lado, a tendência de reduzi-la e enfraquecê-la. De acordo com a primeira tendência, a cultura deve ser levada a círculos cada vez mais amplos; de acordo com a segunda, se exige da cultura que ela abandone suas mais elevadas pretensões de soberania e se submeta como uma serva a uma outra forma de vida, especialmente aquela do Estado.97

Nietzsche se levanta contra as reformas de ensino que começam a se espalhar pela

Europa e, em particular, aquelas circundantes na recém unificada Alemanha de Otto Von

Bismarck, laureada por um avanço industrial sem precedentes; “até 1900, os alemães

superariam os ingleses na produção de aço”.98 O que havia de comum em todas aquelas

reformas era a crença nos ideais positivistas de uma sociedade técnico-industrial fundada no

progresso da ciência. Aqui é preciso esclarecer o seguinte: a oposição de Nietzsche às

reformas mencionadas não significa rejeição ao grau científico que elas representam. O que

lhe parecia realmente ameaçador era a carga discursiva da ciência e da técnica que

subestimando a cultura, a tornasse submissa ao Estado. Nietzsche não parece interessado em

um projeto de implosão da ciência em proveito do retorno a um conhecimento mítico. Sua

crítica se dirige aos interesses do discurso científico e não à ciência em si mesma. Seguindo a

mesma trilha Foucault, sem dar as costas ao positivismo, adverte que sua genealogia não se

coloca contra a ciência, mas ao uso e às expectativas nela depositadas.99

E para entender ainda melhor os impactos da razão científica naquele momento,

destacamos as teses fundamentais do positivismo que Nicola Abbagnano resume em três

pontos:

97NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho. 3 ed. São Paulo: Loyola, 2003 p. 44. 98 VICENTINO, C. História Geral . São Paulo: Scipione,1997 p. 317. 99 “Trata-se da insurreição dos saberes. Não tanto contra os conteúdos, os métodos ou os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição sobretudo e acima de tudo contra os efeitos centralizadores de poder que são vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso cientifico (...) E se essa institucionalização do discurso cientifico toma corpo numa universidade ou, de um modo geral, num aparelho pedagógico (...) É exatamente contra os efeitos de poder próprio de um discurso considerado cientifico que a genealogia deve travar o combate”. (FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade 2005. Op. cit., p. 14).

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Em primeiro lugar, a ciência é o único conhecimento possível, e o método da ciência é o único válido; (...) a metafísica não tem nenhum valor. Em segundo lugar, o método da ciência é puramente descritivo, no sentido de (...) mostrar os fatos expressos pelas leis, que permitem a previsão dos próprios fatos (Comte); finalmente, o método da ciência por ser o único válido, deve ser estendido a todos os campos de indagação e da atividade humana; toda a vida humana, individual ou social, deve ser guiada por ele.100

Este cientificismo, fruto da Revolução Industrial ainda sob o impacto da razão

iluminista, forçou o estabelecimento de novos paradigmas educacionais visto que o progresso

técnico exigia conexão entre ciência e prática; entre o aprender e o fazer. Tal consentimento

levou a efeito o provimento de políticas educacionais que equacionavam Estado desenvolvido

ao grau de instrução de seus habitantes. Vem de David Martin Jones a constatação de que:

O projeto do progresso universal através da educação não careceu de prosélitos entusiastas nos séculos XIX e XX. Filantropos, igrejas e governos progressistas estavam preparados para investir em esquemas para transformar as pessoas em cidadãos moral e politicamente úteis. Nessa visão iluminista de progresso, democracia, educação e crescimento econômico pareciam caminhar de forma firme e solidaria com a terra prometida da modernização e do desenvolvimento.101

O que Nietzsche não aceita é o substrato iluminista e positivista dessa instrução. Com

efeito, em lugar de formar as pessoas para a autonomia, a educação em fins do século XIX,

pondo-se a serviço de uma infraestrutura tecnológica, se satisfaz em oferecer suporte de

aptidões técnicas tendo em vista a transformação da natureza. Por conseguinte, se alastra uma

crescente depreciação da filosofia cada vez mais lacunar entre os saberes escolares e a

ampliação da cultura. Quanto mais definitiva é a ligação entre a escola e o industrialismo,

mais razões para inquirir a filosofia em sua validade e empobrecer o seu discurso.

Na trilha aberta por Foucault – leitor que se mantém fiel a Nietzsche no que concerne

a rejeitar qualquer discurso autografado como verdadeiro – apresentamos os percalços pelos

quais passou a filosofia no quadro mais geral da educação brasileira a partir do final do século

XIX. Em razão do seu distanciamento da ciência como experiência hegemônica de

conhecimento – discurso que no contexto positivista se apresentava autenticamente

verdadeiro – a filosofia sempre oscilou sob o efeito sanfona, de alargamento extremado como

matriz cultural da área de humanidades, ou de estreitamento reducionista como última

referência dos debates acerca da democracia cidadã. Na perspectiva dos conceitos trabalhados

100

ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007 p. 909. 101 JONES, D. M. Foucault e a possibilidade de um pedagogia sem redenção. In: SILVA. Tomaz Tadeu da, (org.) O Sujeito da Educação: estudos foucaultianos. Op. cit., p. 112.

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em Foucault, a exposição que se segue avalia a ingerência da biopolítica na educação

nacional, com explícita primazia às questões econômicas em caso de convergência com

assuntos pedagógicos. Pode causar estranheza, mas segundo testemunho de Paulo Sergio

Pinheiro, até 1930 diversos órgãos educacionais estavam subordinados ao Ministério da

Justiça e Negócios Interiores e havia assuntos como os relativos ao ensino técnico cujas

diligências eram geridas pelo Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio.102 Não

queremos tratar a temática em termos de denúncia rasgada entre o dado e o que deveria ser,

mas na dinâmica propositiva da genealogia de Foucault tentamos deixar em aberto outras

possibilidades para se pensar a educação, muito além das premissas esposadas com o

tecnicismo do século XIX.

Em nosso país, o ideário positivista ajustou-se perfeitamente à República nascente em

1889, que se apressava em substituir a Bandeira do Império por uma nova inscrição de

“Ordem e Progresso”. O pensamento político naquele momento, como mostra Hilton

Japiassú, contava com a eloquência de Benjamin Constant e Júlio de Castilhos. Discípulos

confessos de Comte, não mediam esforços em associar republicanismo e modernidade

positivista.103 Em acréscimo surge no mesmo período a figura de Ruy Barbosa que, bebendo

da mesma fonte, defendia com semelhante ardor o casamento entre instrução e progresso da

nação: “Se o Brasil é um país essencialmente agrícola, por isso mesmo cumpre que seja um

país ativamente industrial”.104 Aqui e ali seus discursos fazem acreditar que em uma nação que

se presume livre e civilizada, o ensino público há que corresponder a um projeto alinhado

com o progresso:

O ensino público está à orla do limite possível a uma nação que se presume livre e civilizada; é que há decadência, em vez de progresso; é que somos um povo de analfabetos e que a massa deles se decresce, é numa proporção desesperadoramente lenta: é que a instrução acadêmica está infinitamente longe do nível cientifico desta idade; é que a instrução secundária oferece ao ensino superior uma mocidade cada vez menos preparada para o receber; é que a instrução popular, na corte como nas províncias, não passa de um desideratum; é que há sobeja matéria para nos enchermos de vergonha e empregarmos heroicos esforços por uma reabilitação, em bem da qual, se não quisermos deixar em dúvida a nossa capacidade mental ou os nossos brios, cumpre não recuar ante sacrifício nenhum; não só porque, de todos os sacrifícios possíveis, não haveria um que não significasse uma despesa proximamente produtiva, como porque trata-se aqui do nome nacional num

102PINHEIRO, P. S... [et al.] História geral da civilização brasileira. v. 9. Sociedade e instituições. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006 p. 290. 103

JAPIASSÚ, H. e MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 3 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1996 p. 105. 104 LACOMBE, A J. O pensamento vivo de Rui Barbosa. São Paulo: Martins, 1967 p. 212.

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sentido mais rigoroso, mais sério, mais absoluto do que o que se defende nas guerras à custa de dezenas de milhares de vidas humanas roubadas ao trabalho e centenas de milhões arrancados, sem compensação, mediante os mais esterilizadores de todos os impostos.105

Parece que o espírito que animava a primeira infância da República e do qual Ruy

Barbosa não conseguiu se desvencilhar, prescrevia condenar ao ostracismo o menor resquício

do Império, pondo em evidência uma rígida divisão binária entre o velho e o novo. Em termos

educacionais, a cisão entre o Império e a República obedecia a uma lógica pragmática –

também presente nas diretrizes propostas por Ruy Barbosa – de estabelecer conexões entre o

tempo vivido na escola e o aprendizado de um ofício. Desse modo, julgava-se garantir ao

jovem estudante sair da escola para a fábrica; dos livros para o canteiro de obras.

O extraordinário entusiasmo de Ruy Barbosa pelo projeto positivista de sociedade,

coloca-o na contramão do pensamento de Nietzsche. Tudo aquilo que Nietzsche rechaçava,

sobretudo o utilitarismo, é o que Ruy Barbosa aprovava e sem nenhum escrúpulo de sacrificar

a filosofia, dado que, na sua interpretação, ela não agregava contribuições significativas ao

tecnicismo emergente:

Para que a filosofia não destoe deste nome, há de começar por se conhecer a si mesma, por confessar a sua falibilidade, por buscar na consignação dos próprios erros a autoridade moral precisa para censurar os contrários; há de evitar a tentação de erigir em pontífices os seus chefes de escola, e não jurar indistintamente na palavra de seus Aristóteles; e nós que vemos defendida, no grêmio do positivismo, pelo eminente continuador de Comte, a interferência do Estado na instrução nacional, não podemos hesitar um instante em pedir a reconstituição do organismo, que o deve habilitar a satisfazer eficazmente essa missão civilizadora.106

Ocorre que as esparsas reformas educacionais contemporâneas a Ruy Barbosa não

produziram os efeitos esperados e por razões óbvias. Enquanto perdurou o quadro social e

político da assim chamada República Café com Leite, embora se apregoasse rupturas formais

com o Império, na verdade, o que se conservava era o modus vivendi daquele período. Até

1930, o poder dos fazendeiros sobre as camadas populares, determinava como os indivíduos

deviam se submeter ao “voto de cabresto”, na maioria das vezes, única garantia de

permanência do agricultor na terra do “coronel”. Condição de dependência, por si só viciosa e

castradora de consciências emancipadas. Perversidade sistêmica e entrave real a uma

experiência genuinamente republicana. Fatores mais que determinantes para impedir avanços

significativos na área educacional. Mesmo quando se tem iniciativas de reação, como no caso

105

BARBOSA, R. Diretrizes de Ruy Barbosa. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938 p. 283. 106 LACOMBE A J. O pensamento vivo de Rui Barbosa. Op. cit., p. 218.

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da liga nacionalista de São Paulo (1917), que se propunha a combater o analfabetismo, o

panorama que se abre é, segundo o consenso de alguns historiadores, a superestimação do

processo educacional como regenerador da sociedade:

As oligarquias só podem ser combatidas pelo esclarecimento que a educação proporciona, pois elas se sustentam graças à ignorância popular; fruto da falta de patriotismo e da ausência de cultura ‘prática’ ou de formação técnica, as dificuldades econômico-financeiras são eliminadas por virtude da educação, formadora do caráter e das forças produtivas; os empecilhos à formação de uma sociedade aberta encontram-se na grande massa analfabeta e na pouca disseminação da escola secundária e superior, que impedem o alargamento na composição das ‘elites’, bem como o necessário processo de sua circulação.107

A partir de 1930 a sociedade brasileira começa a mudar mais celeremente graças aos

impactos da economia. Segundo Octavio Ianni para sair do paradigma de sociedade agrária

para a sociedade urbano-industrial fazia-se necessário trocar o modelo econômico agrário-

exportador – herança da monocultura cafeeira – pelo modelo de substituição de importações

no qual as manufaturas dariam lugar às ferramentas e máquinas. Mais tratores, menos arados.

Aos egressos do campo a passagem de um estilo de vida rural ao urbano, se por um lado,

abria novos horizontes não deixava de manifestar também profundas contradições a que era

preciso se adequar. Octavio Ianni desenha um quadro bastante ilustrativo destas contradições:

Com as migrações internas, no sentido das cidades e dos centros industriais – particularmente intensas a partir de 1945 – aumenta bastante e rapidamente o contingente relativo dos trabalhadores sem qualquer tradição política. O seu horizonte cultural está profundamente marcado pelos valores e padrões de mundo rural. Neste, predominam formas patrimoniais ou comunitárias de organização do poder, de liderança e submissão, etc. em particular, o universo social e cultural do trabalhador agrícola (sitiante, parceiro, colono, camarada, agregado, peão, volante, etc.) está delimitado pelo misticismo, a violência e o conformismo, como soluções tradicionais. Esse horizonte cultural modifica-se na cidade, na indústria, mas de modo lento, parcial e contraditório.108

E por que contraditório? Porque o meio urbano não deu conta de realizar toda a utopia

anunciada. Havia uma expectativa de emancipação congênita ao processo de urbanização.

Esperava-se que a migração do campo para a cidade automaticamente tornasse as pessoas

107 PINHEIRO, P. S... [et al.] 2006. Op. cit., p. 286. Note-se bem: o problema de reduzir a educação ao horizonte da técnica está no abismo que separa os dois campos, visto que, a primeira enquanto acesso aos bens culturais transcende o mero fazer da segunda. A extrema confiança no poder de libertação da técnica levou ao esquecimento das armadilhas que ela encerra. Pouco valor terá um homem que fabrica aviões se não encontrar significado naquilo que faz. 108IANNI, O. O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978 p. 57

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mais críticas. Isso não ocorreu. Consideradas as devidas discrepâncias, o êxodo rural

significou a fuga de um tipo de alienação para outro mais sofisticado, sutil e rebuscado de

pseudo necessidades impressas no novo ethos. Diante de um quadro tão complexo chega o

momento de ruptura. A exemplo da economia – e em boa parte para se ajustar a ela – também

na educação se processa substituição de modelos. Reformadores como Anísio Teixeira e

Lourenço Filho tomam a frente do Manifesto dos pioneiros da educação (1932). A pedagogia

liberal da Escola Nova ganha expressão, e pretende indicar os rumos para as décadas

subsequentes. Naquele momento a filosofia reafirmava o seu caráter de disciplina símbolo da

cultura humanista e, mais uma vez fora de qualquer projeção tecnicista. Convém esclarecer

que nossa travessia histórica objetiva tão somente fazer a narrativa dos estreitos laços e, às

vezes, com dificuldades extras para desatar os nós, entre política e educação. Qual é o papel

da política na educação? Que subsídio a educação pode oferecer à política? E do mesmo

modo, como a filosofia ficou enredada em um emaranhado de pressupostos da ciência

positiva, de inegável apreciação valorativa para o republicanismo brasileiro. Em síntese,

buscamos um caminho que nos possibilitasse inferir que o eixo tecnicista adotado na reforma

do ensino em 1971, apesar de suas peculiaridades, tinha raízes em contornos históricos

antecedentes com a importação de modelos europeus, patrocinados pelo Positivismo de

August Comte (1789-1854) ou remodelados no Pragmatismo norte-americano de William

James (1842-1910).

A defesa da ordem nacional e a exigência do civismo patriótico imposto no Brasil a

partir de 1964 tiveram reflexos na escola incidindo diretamente sobre a filosofia com a sua

retirada do currículo. A Lei 5692/71, de 11 de agosto de 1971, dividiu a escolarização básica

em 1º e 2º graus. O Estado Brasileiro reservava ao Primeiro Grau função propedêutica tendo

em vista os cursos técnicos de preparação para o trabalho alocados no Segundo Grau. A

transnacionalização da economia requeria mão de obra qualificada, e, estava na “ordem do

dia”109 e, para um país convocado ao progresso, se impunha que o ensino técnico fosse

alinhado às demandas do modelo econômico desenvolvimentista. Cabe ressaltar as perdas que

se processam nessa escolha. O ensino técnico, que tinha o seu valor de aplicar o conhecimento

na prática, foi paulatinamente se desvirtuando em um certo economicismo educacional. A

109

Para o contexto considerado optamos pela significação no campo da disciplina própria da caserna, a saber: “Ocasião, em que um comandante distribui ordens aos seus subordinados. Publicação, feita pelo comando de um corpo militar, ou pelo chefe de certos serviços, e contendo instruções várias, sobre serviço e movimento do pessoal. Publicação oficial de leis, regulamentos, etc., relativos ao exército ou à armada. Regulamento militar” (disponível em: <www.dicionarioweb.com.br/ordem html>; acesso em 02 dez. 2012).

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preocupação em extrair de cada indivíduo um capital humano rentável – mão de obra

qualificada – não conseguia mais separar instrução escolar de qualificação técnica.110 O

progresso significava não só possibilidades da população aceder a benesses – bens de

consumo e conforto – como também elevava o prestígio do Brasil nas relações internacionais,

condição básica para celebração de acordos comerciais e de cooperação tecnológica. Não é

preciso esforço extremado para trazer à memória111 alguns exemplos tornados à época ícones

de desenvolvimento: a Ponte Rio-Niterói (projeto herdado dos ideais republicanos do final do

século XIX), a Usina Hidrelétrica de Itaipu, a Transamazônica e o Pró-álcool. Da descrição

feita por Boris Fausto sobre a política econômica do período, inferimos o peso desses

empreendimentos em sedimentar, nos círculos dirigentes, a crença em um Brasil gigante

como também o valor da mentalidade em germe para os projetos educacionais em curso:

O II PND – Plano Nacional de Desenvolvimento – buscava completar o processo de substituição de importações instalado há décadas no país, mudando o seu conteúdo. (...) Já não se tratava agora de substituir a importação de bens de consumo, mas da avançar no caminho da autonomia no terreno dos insumos básicos (petróleo, aço, alumínio, fertilizantes etc.) e da indústria de bens de capital. (...) A preocupação do II PND com o problema energético era evidente, pois, propunha-se o avanço na pesquisa de petróleo, o programa nuclear, a substituição parcial da gasolina pelo álcool, a construção de hidrelétricas, cujo exemplo mais expressivo foi a de Itaipu.112

As discussões sobre vantagens ou desvantagens desses projetos, como por exemplo, o

otimismo frente à celeridade do processo de industrialização e urbanização ou a crítica ao

endividamento externo em obras sem perspectivas de retorno, como no caso da

Transamazônica, foram sempre laboriosas nesse período. Seja como for, o fato é que,

ignorando esse debate, o projeto tecnicista forjava um consenso em torno da precedência do

“fazer” sobre o “saber”, portanto, com primazia ao ensino profissionalizante em detrimento da

formação acadêmica.

Para que então filosofia? Duas razões para seu descarte: em primeiro lugar, porque

seu objeto de estudo não oferecia resultados práticos no campo técnico-produtivo; em

segundo lugar, porque naquele contexto de crise institucional, a reflexão filosófica podia

110Em outro contexto, mas válido por também sinalizar o conceito de capital humano, lembramos Foucault na aula de 14 de março de 1979 dizendo: “quando os neoliberais falam em investimentos educacionais, quer se trate de aprendizado escolar ou aprendizado profissional, na verdade, se referem a indivíduos tornados competência-máquinas, que vão produzir renda; que vão ser remunerados por renda”. (Cf. FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. 2008. Op. cit., p. 315). 111Para maior profundidade na memória histórica do período que tão rapidamente esboçamos, indicamos: FAUSTO, B. História do Brasil. 13ª edição São Paulo: Edusp 2010 p. 485-504. 112FAUSTO, B. História do Brasil. Op. cit., p. 495.

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parecer densamente “perigosa”, excetuando-se aquelas circunstâncias descritas por Leon

Rozitchner, sob as quais “o chamado filósofo seria um homem programado pelo sistema

repressivo para pensar somente o autorizado a pensar”. 113 As disciplinas de Educação Moral e

Cívica e O.S.P.B foram criadas para exercer esta função. Ambas fixadas na matriz curricular

na condição de base comum não eram facultativas, mas indispensáveis para fomentar o

civismo das crianças do Primeiro Grau (Ensino Fundamental) e introduzir os jovens do

Segundo Grau (Ensino Médio) nos estudos da organização social e política. A ênfase aos

projetos de desenvolvimento econômico escondia os contrastes entre o centro-sul rico e o

norte-nordeste empobrecido.

Todo o contexto descrito acima convergiu para a emergência do “grito” daqueles que,

sem poupar energia, reclamavam o retorno da disciplina de Filosofia no Ensino Médio

brasileiro. Seguiu-se longo debate sobre essa questão, não sem antes apresentar-se polarizado

entre os que defendiam a volta da filosofia em vista de sua criticidade e os que a

consideravam um conhecimento inoperante, razão suficiente para sua exclusão. Boa amostra

desse debate encontramos em Pisani, no que se segue:

Ao longo dos anos 1980 foram realizadas intensas mobilizações e encontros por parte das associações de professores de filosofia na tentativa de ‘afirmar a importância do estudo de filosofia bem como a necessidade de expansão e revitalização de seu ensino’. Neste contexto, a campanha pelo ensino de filosofia estava ligada à oposição política, educacional e cultural no período, revelando o nítido alcance político dessa reivindicação. Já no final dos anos 70 e começo dos 80, o quadro político começa a mudar e com ele os motivos e razões para a volta do ensino de filosofia, que agora passa a ser também defendida pelo discurso oficial, que tende a ‘frisar o valor da filosofia como um bem cultural’: “de sua politização (...) passamos a sua afirmação precipuamente cultural.114

Em junho de 2008, a Lei nº 11.683 sela definitivamente a obrigatoriedade do ensino de

Filosofia no Ensino Médio. No entanto, ainda não dá para sentir a filosofia planando em “céu

de brigadeiro”. Pelo contrário, os antigos debates se reascendem, até com mais vigor, seja

pelo campo de possibilidades que a reflexão filosófica propicia, seja pelo questionamento

pragmático de que sua inserção no currículo comprometeria a carga horária de disciplinas

básicas como Língua Portuguesa e Matemática. De fato, o retorno da filosofia ao currículo do

ensino médio, esforço de muitas lutas, retratava que a vitória alcançada naquela peleja, não

113 ROZITCHNER, L. Freud e o problema do poder. São Paulo: Escuta 1989 p. 188. 114PISANI, M. M. Projeto de Pesquisa apresentado em processo seletivo para provimento e titulação de cargo de professor na UFABC, São Bernardo: maio de 2012. Digitado p.1.

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extinguira outros confrontos. Quer dizer, a reinserção da filosofia na grade curricular,

particularmente pelo quadro de mudanças delineado nas últimas décadas, traz o

enfrentamento de novos desafios como que atualizando de maneira inconteste o aforismo de

Murphy – “toda solução acarreta novos problemas”. Assim é que antes de alimentar

prolongados festejos cabe aos professores de filosofia refletir sobre duas questões: em

primeiro lugar, atentar para o fato de que a volta da filosofia não é neutra; perguntar-se sobre

o projeto político que anima este retorno. A quem interessa e qual discurso está em jogo?

Talvez – mas esta é uma hipótese difícil de provar – o retorno da filosofia não estaria

vinculado a uma tentativa de integração do conhecimento fragmentado nas disciplinas

estanques? Seja como for desaconselha-se ficar alheio a estas questões, visto que elas

representam um posicionamento de importância crucial como antídoto a uma ilusão

messiânica que vislumbrasse na filosofia a salvação dos problemas de nossa educação. Ou

talvez, sem se afastar da mesma concepção, que a filosofia se mostre ferramenta de máxima

utilidade no processo de solidificação da sociedade democrática. Mais radicalmente, convém

diagnosticar o paradoxo que envolve a filosofia neste momento. Sendo ela uma prática

insubmissa, deve se enquadrar e se uniformizar a um dispositivo mais abrangente, o currículo.

Uma vez inserido no ambiente institucional estaria o discurso filosófico imune a se tornar, ele

próprio, um dispositivo de poder? Em segundo lugar, outro problema que se coloca para a

filosofia é que, perdida a referência de disciplina símbolo da cultura humanista, própria da

escola elitista do século passado, deve agora corresponder às exigências de uma escola em

amplo processo de massificação. Segundo Cerletti, “inserida (a filosofia) em uma grade

curricular global, parece que deveria prestar contas de seu aporte à educação geral de um

jovem”.115 Portanto, a filosofia aparece como um recorte que, de tempos em tempos, precisa

justificar-se, inclusive para os militantes da linha de frente dispostos a lutar pela sua

permanência. Falando a este respeito, Silvio Gallo, destaca:

O desafio do professor de filosofia no Brasil hoje, consiste em inventar uma prática de modo que o aprendizado de filosofia faça sentido para os jovens estudantes. Só assim a inclusão da disciplina nos currículos poderá efetivar-se e consolidar-se. Ao contrário, experiências desastrosas neste momento podem levar, em médio prazo, a uma nova retirada dos currículos, desta vez justificada pelo fato de a disciplina não ter conseguido mostrar a que veio.116

115

CERLETTI, A. O Ensino de Filosofia como Problema Filosófico. Belo Horizonte: Autêntica, 2009 p. 41. 116

GALLO, S. Para enfrentar os desafios de ensinar filosofia na educação média brasileira. In:

RODRIGO, L. M. Filosofia em sala de aula. Campinas: Autores associados, 2009 p. XI (Prefácio).

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5 AS RELAÇÕES DE PODER E FILOSOFIA EM SALA DE AULA

5.1 Ensino de filosofia: perspectiva teórica

Sem a pretensão de adivinhar o que acontece nas aulas de filosofia em diferentes

regiões do Estado de São Paulo, mas ao mesmo tempo consciente (depois de 27 anos no

magistério) das dificuldades que, independente da localidade, compõem o mesmo cenário,

parece pertinente vasculhar aquelas que teimosamente se repetem em endereços distintos.

“Hoje vamos discutir sobre tal assunto”. “O que vocês acham que o autor desse texto quis

dizer”? “Qual a sua opinião a respeito de tal assunto”? Situada neste nível, a aula de filosofia

pode se tornar um amontoado de palavras ocas, sem significado, sem objetividade e, por

conseguinte, sem sentido. Não é nossa intenção apresentar soluções para eventuais problemas

didáticos da aula de filosofia nem tampouco elaborar um plano de ensino que sirva de modelo

a outros professores. A questão não é “ensinar” a ensinar filosofia, mas pensar o ensino de

filosofia a partir dos pressupostos de sua inserção como componente curricular do ensino

médio (Lei nº 11.683/2008) e que tarefa ela deve realizar dentro de sua especificidade.

Dentro do horizonte dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) que regulamentam

as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio definidas pela LDB na Lei 9394/96,

sendo a filosofia reflexiva por natureza, delineiam-se três questões pertinentes ao seu ensino:

(a) que conhecimentos são necessários? (b) que filosofia? (c) de que aspectos deve-se recobrir

a concepção de cidadania assumida como norte educativo?117 Não há espaço aqui para uma

ampla exposição sobre as questões em pauta. Por isso, muito brevemente acenamos para as

duas últimas, metodologicamente conexas com a reflexão em curso. A proposta dos PCN é

partir da segunda questão dado que, perante um universo tão vasto de linhas e orientações

filosóficas, o professor precisa fazer seus recortes e suas escolhas para também ele, situar em

que domínio exercerá seu filosofar. Eis o que explicita os PCN:

A resposta que cada professor de Filosofia do Ensino Médio dá à pergunta “que filosofia?” decorre, naturalmente, da opção por um modo determinado de filosofar que ele considera justificado. Aliás, é fundamental para esta proposta que ele tenha feito sua escolha categorial e axiológica, a partir da qual lê e entende o mundo, pensa e ensina. Caso contrário, além de esvaziar sua credibilidade como professor de Filosofia, faltar-lhe-á um padrão, um fundamento, a partir do qual possa encetar qualquer esboço de critica. Por certo, há filosofias mais ou menos críticas. No entanto, independentemente

117 BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais. Distrito Federal. Ministério da Educação: 1999. p. 329-330.

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da posição que tome (...) ele só pode pretender ver bons frutos de seu trabalho docente na justa medida do rigor com que operar a partir de sua escolha filosófica.118

Subjaz na citação em tela a exigência de uma filosofia que tenha um arsenal crítico,

independente da escolha feita pelo professor. Por isso Márcio Danelon amplia a discussão de

forma que a pergunta não termine na “demarcação da filosofia como atividade reflexiva”, mas

que o professor se abra à natureza do problema filosófico que ela comporta de tal maneira

que, ele próprio, se sinta interpelado a respondê-la. Não só “que filosofia” – ensinar? Senão,

com maior radicalidade: “o que é filosofia”?

Assumir um posicionamento sobre “o que é filosofia?” é adentrar no terreno da especificidade da filosofia, ou seja, o que caracteriza a filosofia, dando a ela homogeneidade interna e, também, ao diferenciá-la de outros saberes, definindo sua heterogeneidade. Em outras palavras, ter conceito formado sobre “o que é filosofia?” é refletir e estabelecer um posicionamento plausível sobre a identidade e a diferença da filosofia.119

No que concerne aos fundamentos da cidadania não há divergência de finalidades

entre a filosofia e a Educação Básica. Mais uma vez os PCN ancorados na Lei 9394/96,

sublinham os valores fundantes para uma convivência social que contemple “os interesses

coletivos, os direitos e deveres dos cidadãos, o respeito ao bem comum e à ordem

democrática, como também os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de

tolerância recíproca”.120

Parece interessante esta excursão pelo discurso oficial que pensa a filosofia inserida

em um projeto de nação bem mais amplo que aquele referido no capítulo anterior em que a

educação se fazia serva do tecnicismo. As exigências colocadas pela sociedade produtiva dos

anos 1970 e 1980 tornam-se obsoletas se comparadas aos apelos da sociedade pós-industrial,

marcada nas últimas décadas pela velocidade das comunicações; pela disseminação do uso de

computadores e chips; pelos progressos cada vez mais refinados da microeletrônica e tantas

outras inovações tecnológicas incorporadas ao nosso cotidiano. Um novo mundo se irrompe

118 Ibidem p. 331. 119DANELON, M. Em torno da especificidade da filosofia. In: CORNELLI, G.; CARVALLHO, M. e DANELON, M. (coordenação). Filosofia/ensino médio. Brasília: Ministério da Educação, 2010 p 186. 120Artigo 36 da LDB, incisos I e II. “Tais valores permitem identificar mais precisamente a concepção de cidadania que queremos para nós e que desejamos difundir para os outros. Eles projetam um ethos que, embora se refira à totalidade do ser humano, deixa-se clarificar em três dimensões distintas: estética (sensibilidade); ética (identidade autônoma) e política (participação democrática)”. Ibidem p. 331-332.

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diante do qual não é mais possível dispensar o mesmo tratamento de tempos passados. A

universalização do aceso à informação alterou sobremaneira o comportamento, a visão de

mundo e as relações entre as pessoas, independente da classe social de origem. É bem verdade

que, se as mudanças foram significativas do ponto de vista científico e tecnológico, também

não tardaram a produzir mecanismos de exclusão no nível político e social. Certamente este

paradoxo mais intenso, sobretudo, no final do século XX, contribuiu para fortalecer a

concepção da escola como espaço aberto à construção da cidadania; ou como forma de

promover socialmente os indivíduos ou como expiação de uma dívida também social, que o

tempo histórico não consegue apagar da consciência. Pensar cidadãos livres e autônomos é

sempre o apelo dirigido à filosofia, não só pelo seu caráter interdisciplinar, facilitador do

diálogo com outras áreas, mas principalmente pelo espaço da crítica que ela hospeda. Mas

será que o convite à filosofia para ser a protagonista de consciências cidadãs não esconde uma

armadilha conceitual? É desejável que a filosofia e a escola como um todo, possa subsidiar a

emancipação dos indivíduos; é valoroso que as pessoas possam se apropriar de níveis de

consciência capazes de movê-las em direção ao autogoverno e à liberdade de escolhas porque

o esclarecimento e a autonomia são preferíveis à não-liberdade e à opressão. O nó do

problema está em tomar o conceito de cidadania como uma realidade absoluta; como um

valor ilimitado propenso a se isolar de outros referentes.

Com isto queremos dizer que quando se propõe à filosofia a finalidade de engrossar o

caldo cultural de uma sociedade democrática, na qual cidadania é o conceito estruturante,

talvez fosse oportuno refletir sobre alguns impasses que este conceito representa. Que é ser

cidadão? Quem pode ser considerado como tal? A quem interessa e que modelo de cidadão se

deseja efetivar? Cidadania para que? Cidadania como valor ou como desejo? Se não

enfrentarmos seriamente estas questões o conceito de cidadania corre o risco de ficar

esquecido em compartimentos de estante, empobrecido de seu devir histórico –

transformações possíveis – para se petrificar em uma força bruta e carga ideológica capaz de

aguçar em todos o desejo de possuí-la enquanto poucos se aventuram mergulhar no seu

significado real. Em consequência abre-se outra perspectiva que embora não dê conta de

esgotar o debate pelo menos serve de alerta que a filosofia não deva se vincular a uma

temática, projeto, plano ou o que seja, como se nesse elemento ela fundasse morada

definitiva. Marcio Danelon habilmente especifica na reflexão filosófica o trabalho de

desinstalar em nós aqueles conceitos pretensamente portadores de verdade universal e auto

suficientes por natureza:

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A filosofia é tensional, pois nos tira do lugar comum num chamamento para a inquietude. Em outras palavras, a filosofia, por ser diversa e plural, não se encontra no lugar da verdade universal e inquestionável, ou de conceitos que se bastam a si mesmos. Ela é tensional porque o texto filosófico nos tira do território da certeza, lançando-nos na desconfortável inquietude. (...) Que nos movimenta para lugares sempre diferentes daqueles nos quais nos encontrávamos.121

Também Foucault, em seu comentário ao texto de Kant, o que é o esclarecimento?

(1784), aponta a determinação dos conceitos pelo devir do tempo, relativizando concepções

históricas tornadas verdades indiscutíveis, como por exemplo, a proeminência da “origem”

sobre o acontecimento. A aufklärung antes de ser a origem de como se encaminhou o

pensamento na modernidade, é um acontecimento que torna possível a crítica sobre o que

fazemos com o nosso presente. Dois séculos depois da resposta de Kant, ainda estamos muito

distante do esclarecimento indispensável à maioridade, isto é, aquele estágio em que

decidimos autonomamente o que queremos fazer de nós mesmos. Como arremate a este

comentário Foucault estabelece um ethos filosófico cuja essência é a crítica:

É preciso considerar a ontologia crítica de nós mesmos não certamente como uma teoria, uma doutrina, nem mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula; é preciso concebê-la como uma atitude, um ethos, uma via filosófica em que a crítica do que somos é simultaneamente análise histórica dos limites que nos são colocados e prova de sua ultrapassagem possível.122

Segue-se, portanto, que a filosofia dentro de sua especificidade de produção de

conceitos realiza seu trabalho no horizonte da crítica dos próprios conceitos, como no caso em

questão da aufklärung, ou dos conceitos dados como fichas no jogo da linguagem e do

discurso. Sob esta crítica o conceito de cidadania não pode ser tomado como peças em um

jogo de xadrez cuja movimentação desenha o quadro das estratégias do enxadrista. Cidadania

para a filosofia só pode ser exercício crítico, nos embates, nos confrontos das palavras, mas

também das práticas. Talvez se transpusermos o depoimento de Foucault para o debate acerca

da relação entre filosofia e cidadania, devamos interpretar o segundo termo não como

“origem” de uma sociedade que projetamos para o nosso tempo histórico, mas como

“acontecimento” historicamente situado e susceptível a modificações. Além do que insistir

demais em um ensino de filosofia voltado para a cidadania é estreitar o horizonte de seu valor

e de seu sentido. A esse respeito vale a pena manter-se atento ao alerta de Nietzsche:

121 DANELON, M. Em torno da especificidade da filosofia. Op. cit., p. 191-192. 122 FOUCAULT, M. Ditos e Escritos II. Tradução de Elisa Monteiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008 p. 351.

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O Estado jamais se importa com a verdade, salvo com aquela que lhe é útil – mais exatamente, ele se ocupa em geral com tudo que lhe é útil, seja isso verdade, meia verdade ou erro. A aliança do Estado com a filosofia não tem portanto sentido, senão quando a filosofia pode prometer ser incondicionalmente útil ao Estado, quer dizer, colocar o interesse do Estado acima da verdade.123

123 NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Op. cit., p. 254.

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5.2 Educação como recusa a modelos exemplares de sujeitos

Um olhar mais atento às práticas escolares é suficiente para se detectar pessoas que

dedicam boa parte de suas vidas na tarefa de fazer da escola um lugar de produção de

conhecimento. Corredores, pátios, salas; onde quer que se vá, a presença de conjuntos ou

subconjuntos: professores, inspetores, alunos, colaboradores, gestores etc. Conversam,

silenciam, trabalham, planejam, discutem a direção da escola. Ocorre que parcelas

consideráveis desses esforços se perdem quando o conhecimento consagrado na tradição

científica é acriticamente reproduzido pelos estudantes, e reflete práticas de adestramento, que

na repetição de fórmulas, no treinamento continuado, reduzem a aprendizagem a um

mecanismo de estímulos e respostas; a um processo de relações necessárias entre causa e

efeito. Práticas que denunciam uma escola quadriculada em forma de baldrame de

pensamento que tendo a ciência no topo, imprime ao saber uma verticalidade pronta a

equacionar conhecimento transmitido e conteúdo assimilado. Abrem-se então, espaços para

uma série de desvios pedagógicos que vão desde a consideração do professor como centro do

processo – ele ensina; o aluno aprende – até as famosas e tão combatidas – contudo, nunca

devidamente consideradas – avaliações objetivas com questões de múltipla escolha, cujos

enunciados fechados para respostas instantâneas, cabem dentro de um gabarito previamente

construído. E quando os desvios terminam sua “farra” ou de maneira menos trágica, atingem

níveis insuportáveis, é preciso fazer ressurgir “projetos de salvação” que haviam

desaparecido. Seguindo modelos da própria ciência, não cessam de florescer justificativas

para implantação de um currículo (proposta democrática na forma como se apresenta e saber

dogmático nas exigências de aplicação)124 em nome de diretrizes, programas, planejamentos,

projetos ou modelos educacionais pensados por especialistas, supostamente representantes das

124 Neste sentido o currículo pode desempenhar um papel de subjetivação com uma intencionalidade que vai além do meramente pedagógico. “O currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social. O currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e interessadas. O currículo produz identidades individuais e sociais particulares”. (SILVA, T. T; MOREIRA, A. F. Apud DANELON, M. Em torno da especificidade da filosofia. In CORNELLI, G.; CARVALLHO, M. e DANELON, M. (coordenação). Filosofia/ensino médio. Op. cit., p. 197).

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mais ‘recentes’ tendências pedagógicas.125 A cada nova teoria pedagógica retoma-se o

entusiasmo inicial, mesmo que desgastado por tantas repetições: “agora vai!” Conferir

validade a uma teoria pedagógica não pelo seu conteúdo, mas porque, enquanto novidade

remove o que é antigo, pode estar na raiz de equívocos em muitos projetos educacionais.

Certamente, diremos com Hannah Arendt, “aqui está mais que a enigmática questão de saber

por que Joãozinho não sabe ler”.126

Voltando ao problema da avaliação – assunto instigador de polêmicas – sabemos das

possíveis objeções ao que acabamos de expor principalmente se o leitor tiver visita recente ao

pensamento de Lidia Maria Rodrigo. Segundo ela, “Nas posturas pedagógicas menos

tradicionais, passou a prevalecer o entendimento da avaliação como um meio educativo,

resultando em propostas inovadoras em relação ao seus vários aspectos: o que, quando, como

e para que avaliar”.127 Ocorre que o consenso entre os professores de mudar a forma de avaliar

ainda não se efetivou na prática. O que existem são intervenções pontuais ainda não

disseminadas por toda a rede. De outro lado, ainda são frequentes avaliações dissociadas dos

planos de ensino; distantes dos objetivos de ensino-aprendizagem; classificatórias;

descompasso com a capacidade reflexiva etc. Diríamos que se existem tantos descaminhos na

avaliação é porque, talvez, ela traga em seu âmago a premente denúncia de algo mais grave: o

fato de que a aprendizagem realmente não aconteceu. Para Celso dos Santos Vasconcellos “o

fracasso escolar é uma outra forma de exclusão: a exclusão dos incluídos, já que formalmente

os alunos estão no sistema, mas não estão aprendendo, tendo portanto boa parte de seu

desenvolvimento comprometido”.128 Problema agudo, mas estreitamente ligado à

fragmentação do conhecimento em disciplinas que a pedagogia positivista se encarregou de

distribuir em tempos e espaços também fragmentados. Também aqui Vasconcellos acena para

os efeitos nocivos provocados pelo abismo entre saber e aprendizagem:

A organização do currículo em disciplinas provoca distorções uma vez que a importância maior é do saber e não do sujeito. A história das disciplinas escolares deixa claro como, com o tempo o interesse do aluno que era decisivo a princípio, dá lugar à preocupação com a própria disciplina e seu corpo de especialistas. (...) O saber é fragmentado, dificultando a

125Em muitas ocasiões a escola é pensada como o motor de um carro velho que periodicamente carece de reparos para continuar funcionando. Analogamente, os teóricos da educação fariam as vezes do mecânico de oficina que põe o carro de volta na estrada. 126

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: perspectiva, 1972 p. 222. 127

RODRIGO, L. M. Filosofia em sala de aula. 2009. Op. cit., p. 91. 128 VASCONCELLOS C. S. O desafio da qualidade da educação. Texto preparatório para a CONAE p. 1. disponível em <http://www.celsovasconcellos.com.br/.../CSV-Desafio_da_Qualidade.pdf> Acesso 1 out. 2013.

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compreensão da realidade, bem como a aprendizagem significativa por parte do aluno. Favorece em muito a fragmentação do cotidiano da escola (organização de horários de 50 minutos de aula para cada disciplina).129

A filosofia, componente curricular no ensino médio não está imune a todas essas

armadilhas vigoradas no cotidiano escolar seguidas dos infortúnios que elas acarretam. E

pouco importam os condicionamentos geográficos. Admitida a premissa de que o ensino de

filosofia transmite um conhecimento acumulado na tradição de seus conceitos, onde quer que

o professor se encontre o problema será sempre o mesmo, a saber: a ciência entronizada como

saber soberano em uma verticalidade que inibe o crivo da experiência do estudante como

protagonista no processo de conhecimento.

A genealogia de Foucault vem a contrapelo propor a construção de outra relação com

o saber rompendo com essa verticalidade cujo produto imediato, o distanciamento entre

educador e educando, termina em conteúdos prontos do livro didático e corrobora uma

relação acrítica com o saber. A genealogia não propõe abandonar ou negar a validade do

conhecimento científico, mas antes, denunciar a mediação da ciência, manifestar um olhar de

estranhamento a essa mediação, afeita a transformar saber em poder.

A filósofa alemã Hannah Arendt, ao escrever entre o passado e o futuro (1954),

observa que a crise da educação moderna marcada pela separação entre o mundo artificial da

criança e o mundo racional dos adultos, se prolonga na perda de autoridade que iniciada na

esfera pública contamina também a esfera privada – incluindo-se aí a escola. Em

consequência, quanto mais os adultos se digladiam na recusa da autoridade tanto menos

“assumem a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças”.130 Desse modo,

interpretamos que educação implica necessariamente tomada de posição não apenas sobre o

conteúdo que se ensina, mas acima de qualquer suspeita decidir o nível de engajamento na

responsabilidade sobre o mundo. Daí então, a diferença cabal entre educação e política. A

política compreende um campo de decisão sobre o futuro enquanto a educação se volta para o

passado. Por isso a educação se realiza na transmissão do passado e segundo Hannah Arendt,

faz parte de sua natureza, inserir os mais novos no mundo dos mais velhos.131

129 Ibidem p. 8. 130 ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Op. cit., p. 240. 131“Justamente para preservar o que é novo e revolucionário em cada criança, a educação deve ser conservadora , deve proteger essa novidade e introduzi-la como um fermento novo num mundo já velho que, por mais revolucionários que possam ser seus atos, está, do ponto de vista da geração seguinte, superado e próximo da ruína”. Ibidem p. 243.

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Fernando Savater em O valor de educar, reforça esta ideia.132

O mundo enquanto fenômeno é aquilo que se mostra e como se mostra. Assim o

professor deve ser um tanto fenomenológico posto que, deve apresentar o mundo sem julgar o

mundo. Ser professor é, sobretudo, possibilitar diferentes leituras do mundo; desenvolver a

arte de não controlar; ser presença sem dogma; não ter a pretensão de subjetivar. Quando se

trata do ensino de filosofia, dentro do ethos proposto por Foucault ela se torna uma disciplina

de exceção, visto que, não se ocupa apenas de inserir o jovem no mundo, mas de assumir com

ele uma posição crítica frente ao mundo. Ensinar filosofia não é formar novos filósofos aptos

a criar conceitos próprios, e assim compor a galeria de pensadores ilustres. A tarefa é bem

mais modesta: espera-se que o estudante no contato com os conceitos filosóficos consagrados

pela tradição, atinja um patamar de consciência que lhe permita fazer a crítica do mundo

ainda que essa crítica não seja política. Porém, pelo fato de ser crítica, já é politizada. Neste

aspecto a ação educativa de apresentar o mundo à criança ou ao jovem lhe transmite o

desígnio de na fase adulta exercer a liberdade de transformar o mundo. Não é demais insistir:

cidadania para a filosofia só pode ser exercício crítico, no nível dos discursos e das práticas.

Ao entreabrir alguma janela (talvez na escola e, por que não?) quase ouvimos Foucault

enfatizar “o enraizamento na aufklärung de um tipo de interrogação filosófica que

problematiza simultaneamente a relação com o presente, o modo de ser histórico e a

constituição de si próprio como sujeito autônomo”.133

Dado que a genealogia não dá as costas para a ciência, pensar a educação naquela

perspectiva significa romper com um esquematismo de modelo aristotélico no qual o aluno

representa a matéria informe, o conteúdo, a forma e o professor, a causa eficiente. Neste

esquematismo o saber, torna-se um patrimônio do mestre que se encarrega de transferi-lo ao

estudante, e àquele não restará fazer outra coisa, senão executar tarefas como parte de um

treinamento preparatório para os exames de avaliação. Por isso é importante para o educador

captar a relação entre saber e poder e a partir desse ponto pensar em outro registro. Considerar

o estudante como sujeito livre e autônomo, para além do que foi assentido no Plano Diretor da

Escola no cumprimento estreito à exigência legal. Ou como explicitou Frank Pignatelli:

A agência docente é um empreendimento agonístico, audacioso, marcado por incerteza, resolução e tentativa, um esforço que pode agir às margens da verdade científica sobre nós próprios. Como Foucault repetidamente nos

132 “Ser responsável pelo mundo não é aprová-lo como ele é mas assumi-lo conscientemente porque ele é e porque só a partir do que é pode ser emendado”. Cf. SAVATER, F. O valor de educar. Tradução de Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 1998 p. 177. 133FOUCAULT, M. Ditos e Escritos II. Op. cit., p. 344-345.

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lembra e com frequência demonstra vividamente, os professores não podem nem fugir, nem absorver-se da violência do discurso – sua ‘pesada, aterradora materialidade... e seus vínculos com o desejo e o poder’. Assim o projeto de se tornar consciente, de praticar a liberdade, envolve um profundo e amplo julgamento das próprias posições discursivas e profissionais oficiais como nós ou loci de poder mantidos pela produção de conhecimento sobre si próprio, sobre seus colegas e sobre seus estudantes.134

Um dos efeitos mais imediatos na relação entre poder e saber na escola é o fato dela

ser aceita como geografia espacial dos “regimes de verdades” (expressão foucaultiana) a que

quase nenhuma objeção se apresenta. A escola, por um lado, é detentora de práticas e

discursos que justificam a sua existência. As crianças por ela acolhidas depois de cumprir os

estágios formativos estarão prontas para o ingresso no mundo dos adultos. De outro lado, a

escola dispõe da ciência pedagógica com métodos e linguagem apropriados para a

transmissão do conhecimento e da cultura.

A reflexão de Pignatelli reforça a linha de raciocínio que vínhamos desenvolvendo

dado que expõe a agência docente no “paradoxo entre sujeito cognoscente e objeto

manipulado”. Uma forma de superar esse paradoxo, segundo ele, está na coragem de testar a

escola em seus “regimes de verdades”. Propõe, então, que o docente embora continuamente

interpelado pelo regime discursivo da escola, seja capaz de empreender novos referenciais na

sua relação com os estudantes e na relação destes com o saber. Com efeito, “os professores

estão não apenas envolvidos com esses regimes, eles são também constituídos em seu

interior”.135

Por assim dizer, os regimes de verdade ou mais concretamente os seus mensageiros –

professores e gestores – nem sempre se dão conta da força política da linguagem

frequentemente presa à moralidade; é verdadeiro o que está impresso na norma e esta

funciona como paradigma ao qual os indivíduos devem se sujeitar. Julgamos oportuno trazer à

lembrança o que disse Kenneth Wain, sobre a imbricação de linguagem, jogos de verdade e

norma:

Em contraste com a ética, que tem a ver com liberdade, a moralidade tem a ver com a verdade, com ‘jogos de verdade’ como Foucault os chama. Ela, portanto, desempenha um tipo muito diferente de jogo de linguagem do que o da ética, o jogo do governo e controle, que é o mesmo jogo de linguagem da política. (...) O jogo de linguagem em ambos os jogos de poder tem a normalidade como sua preocupação central. Em ambos, a verdade é representada como a expressão de uma normalidade, como uma questão de

134PIGNATELLI, F. Que posso fazer? Foucault e a questão da liberdade e da agência docente. In: SILVA. Tomaz Tadeu da, (org.) 2008. Op. cit., p. 138-139. 135

Ibidem p. 139.

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conviver com as normas estabelecidas, e a falsidade como abandono ou traição dessas mesmas normas. Subjetivar é impor normas.136

Ratificam-se, frequentemente, processos de subjetivação por vezes explicitados em

práticas que desvelam o rosto da escola em seu aparato burocrático e disciplinar. Outras

vezes, em tentativas vãs, de ocultar a prática política do discurso. Foucault, reforça este

parecer ao declarar: “Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo

tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos

que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório,

esquivar sua pesada e temível materialidade”.137 Por mais que se insista na neutralidade

política dos discursos, ainda assim é impossível isolar – sobretudo na escola – as práticas

discursivas de identidades imersas em relações de poder. A esse respeito, devemos ter em

mente os deslocamentos que se processam em escala de efeitos sobre efeitos envolvendo

saberes, discursos e práticas. Alejandro Cerletti, descreve sinteticamente como se dá essa

trajetória:

As instituições educativas não são lugares neutros. Conformam o cenário de permanentes e múltiplas disputas políticas, econômicas, sociais e culturais. Tampouco os saberes que circulam por elas são ingênuos. Os conhecimentos que chegam a institucionalizar-se e a radiar-se nos programas oficiais costumam ser o que emerge de enfrentamentos, conflitos e lutas de poder que o resultado final dissimula ou quase nunca permite vislumbrar. Mas também tanto os conhecimentos como as práticas consagradas que se dão no interior dos estabelecimentos educativos se entrecruzam com os seus hábitos burocráticos, seus saberes empíricos, suas tradições administrativas, que, por sua vez, geram novos saberes e práticas que têm tanta força quanto os primeiros. Tudo isso não deixa de produzir permanentemente efeitos de dominação e homogeneização.138

Em síntese estamos diante de relações de poder eminentemente normalizadoras;

mediadas por discursos pedagógicos ou pela rigidez da burocracia que, por sua vez, precisa

justificar-se no discurso da eficiência. Frank Pignatelli sugere que estas relações de poder

quase sempre dispensando o alarde, adotam formas muito sutis para se manifestar:

A escola é um local disciplinar, um locus de poder/saber num sentido positivo ou constitutivo. As escolas podem ser locais perigosos, não por causa da presença de formas grosseiras, brutais ou ilícitas de poder, mas porque instrumentalidades disciplinares, aparentemente benevolentes, eficientes e em busca da verdade sobre os professores, suas práticas e seus

136 WAIN, K. Foucault: a ética da autocriação e o futuro da educação. In: PETERS, Michael A. (org.) Por que foucault? – Novas diretrizes para a pesquisa educacional. Tradução de Vinicius Figueira Duarte. Porto Alegre: Artmed, 2008, p. 172. 137FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Op. cit., p. 8-9. 138CERLETTI, A. O Ensino de Filosofia como Problema Filosófico. 2009 Op., cit. p. 72.

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estudantes ampliam o domínio autolimitador da normalidade e da marginalização/ reabilitação do desviante.139

Diante de todos os desafios elencados como a relação dos alunos com o saber,

atropelada muitas vezes pela forma arbitrária e autoritária de ministração do ensino; os

problemas que envolvem a avaliação quase sempre alinhada a parâmetros classificatórios e

punitivos; processos de subjetivação aplicados na escola mediante seus discursos e suas

práticas; convém admoestar que a filosofia como prática insubmissa, acolhendo a

oportunidade de figurar entre as disciplinas do currículo da educação básica, não deve se

submeter a um mero serviço da instituição escolar sob o olhar vigilante do Estado. Significa

conceber a filosofia como um vetor de insurreição aos saberes solidamente instalados como

rochas imóveis. Ela deve ser um campo de possibilidades para o professor desta disciplina se

fazer, em certa medida, também filósofo.

139 PIGNATELLI, F. Que posso fazer? Foucault e a questão da liberdade e da agência docente. In: SILVA. Tomaz Tadeu da, (org.) 2008. Op. cit., p. 137.

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6 CONCLUSÃO

As conferências, as entrevistas, os cursos, os livros, artigos, muito daquilo que Michel

Foucault produziu parece nos convidar a uma atitude de escuta. E logo de início ficamos

divididos entre a perplexidade da palavra fácil, fluente, desembaraçada, decidida e o tom

polêmico que sua fala instiga. Particularmente, as suas análises do poder, despertam o

entusiasmo daqueles que vêem nos dispositivos uma intuição original contra os que vociferam

afirmando que Foucault exagerou em desencavar relações de poder em toda parte. Seja como

for, a nossa condição de sujeitos históricos sempre nos inquire acerca de duas ordens nas

quais nos situamos: a ética e a política. Em ambos os casos, nos sentimos acuados quando a

palavra sujeito pesa sobre nós. Afinal, temos uma identidade que nos pertence ou algo que nos

foi imposto? Em um artigo que tem quase o valor de uma obra – O sujeito e o poder (1984) –

Foucault debatendo estas questões conclui preliminarmente:

O problema político, ético, social e filosófico de nossos dias não é tentar libertar o indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém nos libertarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualização que a ele se liga. Temos de promover novas formas de subjetividade através da recusa desse tipo de individualidade que nos foi imposto há vários séculos.140

A disciplina, o currículo, a avaliação, a verticalidade do conhecimento e o déficit na

aprendizagem dos alunos são indagações que, pela frequência como aparecem na maioria das

escolas, podem ser nomeados problemas cruciais sem que haja aí algum excesso. Em

particular, a avaliação e a disciplina têm muito a ver com os mecanismos de subjetivação que

a escola desenvolve em seus discursos e práticas. Supondo que no âmbito da escola pode

haver, relação simétrica entre poder e subjetividade, nossa pesquisa se desenvolveu em duas

partes.

Na primeira, tratamos de mergulhar no aparato conceitual de Foucault. A

desnaturalização do olhar, típica do método genealógico, nos permitiu evoluir na companhia

de uma precaução indispensável: não interpretar o poder como um bloco monolítico e

substantificador, premente de ser removido de um ponto a outro. Ao contrário, captar o poder

em rede, sendo exercido em uma relação de força e sempre movido pela eficiência dos

dispositivos. São estes dispositivos que possibilitam mecanismos de poder sobre o corpo dos

indivíduos, dentre eles a vigilância como forma de subjetivação.

140 FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. Op. cit., p. 283.

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Na segunda parte, utilizamos o arcabouço conceitual construído, para refletir sobre a

escola e suas práticas. Parece evidente que, em função do seu caráter heterogêneo (em meio a

uma comunidade de diferentes) os dispositivos tenham no universo escolar, formas bem

particulares de esposar relações de poder. Como se saíssem das ondas, duas teses emergiram à

nossa frente reclamando cuidadosa deferência. A primeira delas (já consagrada em discussões

pedagógicas) se bifurca entre a escola centro de irradiação de poder ou apenas reprodutora das

relações de poder situadas fora de seus muros. Na raiz desta forquilha talvez esteja a

concepção da escola como um aparato burocrático-institucional. Pensar a escola como um

subproduto do Estado, significa depositar nela as expectativas de uma força hegemônica na

gerência e organização do poder. Ora, tais expectativas até poderiam ser válidas no século

XIX quando o saber-poder da escola ainda estava distante de ser minado pelas tecnologias e

suas novas linguagens.

No decorrer da pesquisa constatamos que, embora a escola seja uma instituição dentro

e sob a jurisdição do Estado, na verdade, as relações de poder aí vigentes não têm a força

jurídica de um poder soberano que se impõe arbitrariamente sobre os súditos. E isto

fundamenta-se em duas razões: em primeiro lugar, o poder na escola não é um poder jurídico,

é um poder pedagógico; precisa do discurso; produz um saber. Ela se insere dentro de um

dispositivo de poder que, por seu caráter heterogêneo, dilui este poder em práticas

pedagógicas, na disciplina e, sobretudo, na força do discurso. Em segundo lugar, os efeitos de

poder na escola estão intercalados em níveis de gradação e são comunicados na relação de

proximidade. Isso significa que os gestores só chegam ao aluno pela mediação do professor. E

a mesma coisa é dizer: o professor representa para o aluno a absorção dos outros níveis de

poder. Em resumo: a escola induz, dissemina e prolifera relações de poder, mas isso não

significa que ela exista com o fito de exercer dominação. Nesta particularidade a escola cabe

dentro da afirmação de Foucault: “No princípio das relações de poder, não existe, como

matriz geral, uma oposição binária e global entre dominantes e dominados”141

No centro dos debates educacionais da atualidade se inscreve a segunda tese. Se a Lei

11.683/2008 estabelece a filosofia como disciplina obrigatória no currículo do ensino médio,

como alimentar práticas insubmissas? Como enfrentar o paradoxo de ser prática insubmissa

sem correr o risco de ser instrumentalizada? Qual é o espaço da crítica que a filosofia pode

ocupar dentro do currículo? O que fazer frente à vigilância, técnicas de adestramento,

domesticação do corpo, uso do uniforme, ficha individual? De princípio é preciso salientar

141 FOUCAULT, M. História da sexualidade 1. Op. cit., p. 91.

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que não é a filosofia que vai resolver esses problemas. Muito mais que representar a solução

dos problemas, ela se insere neste universo no qual já estão instaladas outras disciplinas.

Certamente, o que está ao alcance da filosofia é elaborar a crítica, nos moldes da genealogia

de Foucault, de desnaturalizar as soluções que parecem evidentes. Destarte que a filosofia não

postule respostas definitivas, propõe um possível ensaio para os problemas levantados quando

o professor promove situações nas quais a aula de filosofia sai da retórica e se torna uma

experiência significativa para o aluno. Que ele (o aluno) tenha a oportunidade de ser agente e

empreendedor do saber que não tem e precisa ter. A prática insubmissa deve entrar como

auxílio e estímulo a esta busca.

Finalmente, é no enfrentamento das verdades cristalizadas, que a filosofia como

prática insubmissa situa-se no aberto postulando outras perguntas ou, pelo menos, tornando a

pergunta inicial mais embaraçosa. Se a pergunta se dirige a uma verdade implícita no poder

ou na forma como ele se exerce, talvez seja interessante abrir mão, por um brevíssimo

instante, das próprias convicções, para escutar a voz que se eleva de uma das salas do Collège

de France, evocativa da genealogia que nos estimulou a pensar outras vezes o que parecia

definitivo:

É verdade, parece-me, que o poder “já está sempre ali”; que nunca estamos “fora”, que não há “margens” para a cambalhota daqueles que estão em ruptura. Mas isso não quer dizer que se deva admitir uma forma incontornável de dominação ou um privilégio absoluto da lei. Que nunca se possa estar “fora do poder”, não quer dizer que se está inteiramente capturado na armadilha.142

142FOUCAULT, M. Ditos e Escritos IV. Op. cit., p. 248.

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da

Universidade São Judas Tadeu

Bibliotecário: Ricardo de Lima – CRB 8/7464

Dias, Joaquim Sebastião

D541p Poder e subjetividade em Michel Foucault : perspectiva teórica para o ensino de

filosofia na escola pública / Joaquim Sebastião Dias. - São Paulo, 2013.

79 f. : il. ; 30 cm.

Orientador: Tomás Mendonça da Silva Prado.

Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2013.

1. Foucault, Michel, 1926 - 1984. 2. Educação - dispositivo. 3. Relação de poder. I.

Prado, Tomás Mendonça da Silva. II. Universidade São Judas Tadeu, Programa de Pós-

Graduação Stricto Sensu em Filosofia. III. Título

CDD 22 – 101