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Cabeça de brócoli e a descoberta do amor ou notas sobre um amigo que escapou do afogamento

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catálogo da exposição "cabeça de brócoli e a descoberta do amor ou notas sobre um amigo que escapou do afogamento"de Luiz Rodolfo Annes.

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Cabeça de brócoli e a descoberta do amor ou notas sobre

um amigo que escapou do afogamento

L U I Z R O D O L F O A N N E S

CU R I T I BA

20 1 4

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Textos

Luiz Rodolfo Annes

Daniela Vicentini

Raquel Stolf

Produção executiva

Ana Rocha

Projeto Gráfico

Jaime Silveira

Revisão de texto

Vanessa Carneiro Rodrigues

Agradecimentos

Aos meus pais, minhãs irmãs e a Matilde

pelo incentivo e suporte.

Ana Rocha

Daniela Vicentini

Frederico Machuca

Fábio Noronha

Luciano Mariussi

Patricia Stuart

Raquel Stolf

e todos envolvidos nesse projeto.

http://luizrodolfoannesart.tumblr.com

esta publicação somente poderá ser reproduzida, em todo ou em parte, ou armazenada em um sistema de recuperação ou transmitida de qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou qualquer outro, desde que seja citada a fonte. Para obter mais informações, entre em contato com: [email protected]

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Sumário

Os sonhos de Luiz Rodolfo Annes

O homem permanecido conversa com as pedras

Cabeça de Brócoli e a descoberta do amor ou notas sobre um amigo que escapou do afogamento

Ele baba no sonho

O homem permanecido

07Daniela Vicentini

Raquel Stolf

Luiz Rodolfo Annes

Luiz Rodolfo Annes

Luiz Rodolfo Annes

Luiz Rodolfo Annes

13

19

59

67

Ele ainda permanece75

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Ossonhosde LuizRodolfoAnnesO SONHO DA BORBOLETA

Chuang Tzu sonhou que era uma borboleta. Ao despertar

não sabia se era Tzu que havia sonhado ser uma borboleta

ou se era uma borboleta e estava sonhando que era Tzu.

Chuang Tzu,

in Antologia da literatura fantástica

(Borges, Bioy Casares e Ocampo, Cosac Naify)

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Nem sempre quando vejo a obra de um artista me ocorre pensar em seu modo

de vida. Mas é diferente diante da produção de Luiz Rodolfo Annes. Há um es-

cancaro de intimidade em seus desenhos, junto à prerrogativa de um mundo hos-

til e solitário, que põe em evidência um limite tênue entre ficção e realidade.

No entanto, isso pode ser parte da estratégia da obra: fazer com que

lateje a dúvida de que certos personagens seriam autorretratos e o desenho

de ações, por sua vez, registros de vivências. Há, certamente, uma permea-

bilidade entre a vida e a obra em Luiz Rodolfo Annes. Não podemos, contudo,

precisar em que medida a obra apresente uma vida real ou uma vida de ficção,

ainda que o sonho da borboleta nos diga com profunda propriedade que pode

ser realmente um solo movediço traçar limites entre ficção e realidade, entre

sonho e vigília.

Os surrealistas foram os primeiros a proclamar o mundo onírico como

realidade equivalente àquela de quando estamos despertos. E, muitas vezes, o

exercício da arte era concretizar em imagens e escrita o acesso aos sonhos e

ao sono profundo. Assim, incluindo o acaso como método da obra, os surrealis-

tas faziam experiências de destravar a consciência para trazer à tona lugares

desconhecidos num “grito da mente que se volta para si mesma” (Artaud).

Luiz Rodolfo Annes desenha e também escreve muito. Os desenhos, a maio-

ria em pequenos formatos, sempre sugerem um extravasamento, tanto pela quan-

tidade de cada série, quanto pela quantidade de linhas que faz surgir cenas

e personagens. Os textos proliferam imagens, tecem uma narrativa disparatada

e criam vozes e histórias para os desenhos. Em ambos há uma evasão, tudo se

movimenta, um turbilhão povoado de muitos personagens, solitários – o lugar

de seu grito.

No entanto, monstros e personagens têm algo pueril. De uma imaginação

que bebe no desenho de história em quadrinhos e dos desenhos animados. De uma

vida que parece ter no recôndito do lar o seu maior amparo.

As palavras no título da exposição Cabeça de Brócoli e a descoberta do

amor ou notas sobre um amigo que escapou do afogamento apresentam a jocosidade

com a qual desenho, texto e vídeo lidam com adversidades. Assim os monstros

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são até bonitinhos, parecem domesticados.

Jo Jo dog e Cara de coxinha nascem por um desenho simples, feito digi-

talmente, despretensioso. Olhamos o grafismo de cada coisa: dentes, lágrimas,

nuvens, olhos, boca, corpos, cigarro, balão. As cores são doces. Percebemos

a distribuição dos personagens na paisagem urbana. O enquadramento dá ênfase

às figuras, elas ocupam quase todo o espaço da cena. Vemos repetições e como

pequenas diferenças ou deslocamentos podem inovar todo o cenário. Atentamos

ao cuidado com que são impressos. Tudo isto vai criando camadas de apreen-

são. Contudo, certa inocência de desenho parece camuflar o rumor de algo em

polvorosa: no conjunto, lateja uma história de inquietações.

Quando Luiz Rodolfo realiza um tipo de animação em que há uma programa-

ção semelhante à do videogame, aciona, mais uma vez, isso que podemos chamar

de um jogo entre o pueril e o adulto, entre sedução e escárnio.

Para que o trabalho aconteça é preciso mexer o mouse. Assim o espectador

é convidado a participar da obra. Com os clicks fazemos o personagem empurrar

pedras ou caminhar, disparamos espinhos em seu caminho; avançamos a câmera

num sobrevoo em montanhas, e assim por diante. É divertido. Rimos. Podemos

ficar absortos, brincar. O mecanismo encanta. É bom reavivar nossa criança.

O mundo adulto exige, por outro lado, um distanciamento da obra: cenári-

os escuros, apenas uma pessoa. Cinco cenas – elas contam uma história? Por

vezes, o respiro de uma paisagem aberta, mas a pedra não sai, os espinhos ir-

rompem no caminho. As flores emanam luzes, mas elas chegam a iluminar? Preto,

preto de muitas linhas.

Por fim, nos damos conta: exige-se nossa participação para que a obra

aconteça; entretanto, ela é condicionada por um programa de computador. Em

que medida minha ação modifica algo desse desenho? Onde está e para onde vai

aquele homem? De onde ele veio? O que faço por ele?

A obra de Luiz Rodolfo Annes opera no jogo entre real e imaginário e

também entre feio e bonito, entre adulto e infantil, entre luz e sombra. Há

certamente um ato de coragem, uma necessidade, digamos assim, em exteriorizar

o grito da mente. E, justamente, é curioso observar que as duas séries de

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desenhos da exposição são feitas por personagens cujo corpo é uma cabeça ou

apenas aparecem cabeças no espaço do papel. Cabeças estão circunscritas pelas

bordas, espremidas.

Na série Ele baba no sonho as cabeças como que brotam umas das outras.

Por vezes, são membros, formas fálicas. Os personagens que sonham têm a mesma

consistência daqueles sonhados ou, podemos acrescentar, dos que são pensados

ou imaginados, na movimentação intensa da mente.

Isso me recorda o personagem de outro conto fantástico, de Giovanni

Papini, A última visita do cavalheiro enfermo: o cavalheiro existe porque

alguém o sonha, num sonho tão intenso que o torna visível até para os homens

que estão acordados, mas ele é feito da mesma substância de que são feitos

os sonhos. Por isso, esse homem era um “semeador de espanto”: “Sua presença

dava uma cor fantástica às coisas mais simples; quando sua mão tocava algum

objeto, este parecia ingressar no mundo dos sonhos...”.

Bem, se a substância do sonho pode semear espanto no mundo da vigília é

bom nutrir, com humor, como o faz a obra de Luiz Rodolfo Annes, a dúvida do

sonho da borboleta.

Daniela Vicentini

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O homem permanecido conversa com as pedrasSobrou um gesto reto no espaço, a fremência,

um modo de passo e voz1.

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Cena 1

O homem permanecido não se separa da respiração das cavernas.

Cada botão pressionado é um coágulo no ouvido, no pulso de um tremor

sem borda.

Um tremor sem margem e sem imagem atravessa as superfícies, deixando a

MARCA DA MORDIDA2.

Sobre os tremores inespecíficos, ele desenha seu próprio arsenal de

classificações secretas.

Pode-se até dizer que suas vibrações são como feixes afiados ou cardumes

de peixes secos. Cada tremor indica um ponto de apoio traiçoeiro. Se o

braço treme, se a cabeça oscila, se os dedos titubeiam: as unhas crescem

tortas, os ossos estalam, os olhos sulcam.

A língua está guardada dentro de algo oco.

Dentes de espinhos e microburacos assombram cada parede de pele. Mas

ele não tem medo de fantasmas, nem de vultos ou de cantos escuros, nem

mesmo do fundo claro dos espelhos.

1 Fragmento do poema O homem permanecido, de Adélia Prado, que Luiz Rodolfo me enviou, respondendo sobre a origem do título homônimo de alguns de seus projetos.

2 Fragmento de Ele ainda permanece, texto de Luiz Rodolfo.

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3 Fragmento de Ele ainda permanece, texto de Luiz Rodolfo.

4 Fragmento de Ele ainda permanece, texto de Luiz Rodolfo.

Cena 2

O homem permanecido baba no deserto.

Perder a baba é um desapego muito protuberante. Envolve mecanismos

moles, táteis, sinistros e sinestésicos. Envolve passar por camadas,

num processo inerte, em que algo pode ficar pendurado, até desgrudar e

deslizar para uma queda líquida.

A baba pode formar uma poça (cova rasa), um poço (abismo) ou uma poção.

Nos confins da boca, dois moluscos dormem um sono leve e cintilante.

(Seu hálito de lesmas doces3 se propaga para dentro do corpo e para fora

da pele.)

As flores dessa sensação de aconchego não têm perfume. Mas, são aveludadas

e miúdas, como cristais cortantes, insípidos.

Na orla úmida, a terra escorre sem sair do lugar.

Cada passo retilíneo finca nele um alfinete instantâneo, sem sangue e sem

aumento de contração.

O homem permanecido, muitas vezes, parece um precipício cremoso.

Na verdade, ele possuía uma ferida onde a terra se alimentava.

Um alimentando o outro mutuamente4.

Uma espécie de ferida tranquila, muito bem assentada e emocionada,

bilíngue. Uma ferida que não pode ser alugada nem vendida e que parece

um dia noturno.

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Cena 3

O homem permanecido conversa com as pedras sem abrir a boca.

Entretanto, lágrimas de pedra não descem muito bem sobre a face. Elas

formam glóbulos Jo Jo, de menta ou limão, que protegem e transportam

tudo o que se deposita nos poros, de um modo silencioso. E, se os

espinhos não rolam:

Jo Jo chora como um golfinho, escutem.5

Ele cava o deserto andando em linha, cavernoso-caverninha:

Jo Jo escapa da morte novamente.6

Os pequenos vermes estão mornos como leite e ficam balbuciando na altura

do chão, sob a máscara. Bolhas de pó estouram nos cantos dos seus olhos

e ele carrega as montanhas nas costas (mas sem lamento ou fermento).

O peso do mar é um amortecedor, um colchão inflável e insone. O mar é

insone, como o céu cinza cheio de pedriscos e pedregulhos.

O homem permanecido não se separa de seu fim, nem de seu começo. Ele não

empurra a velocidade das coisas.

Raquel Stolf, 2014

5 e 6 Fragmento de A iminência do fim de Jo Jo Dog em uma lágrima que escorre e reflete a morte de um Caravaggio ou A iminência da morte de Jo Jo Dog que escorre como uma lágrima de um Caravaggio, ou, ainda, simplesmente, Jo Jo Dog deve morrer, texto de Luiz Rodolfo.

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Cabeça de brócoli e a descoberta do amor ou notas sobre um amigo que escapou do afogamentoCachorros líquidos são chupados de canudinho por vam-

piros marcianos. Porcos azuis na ponta da língua. Meu

pai tem anjos dentro dos bolsos da jaqueta de couro.

Eu não acredito na fala de peixes voadores. Tudo que

amamos desaparece em certo momento.

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Ele estava morto por dentro. Um homem seco de tanto que havia chorado.

Era como uma planta murcha, mas isso tudo era apenas por dentro. Por fora,

todos o achavam normal. Tudo bem que não tinha um aspecto muito saudável era

um tanto pálido, porém não aparentava viver em um deserto interior. A única

coisa que revelava o seu estado de espírito era sua jaqueta com bordado de

escorpião. Ele sentia-se sozinho, um escorpião em um círculo de fogo. Ele

visitava a noite extrema. Corações impuros, lâminas afiadas, manchas de sangue

no carpete, violência. Ele à margem dos outros homens, um ser maldito. Na

fagulha de um instante tudo se rompe, tudo que ele acredita cai por terra.

Desumano ver um homem assim como ele, esgotado, escondido pelos cantos,

cabisbaixo, com o olhar voltado para os próprios passos. Ele estava como uma

sombra sem vida. Estagnado. É aí que decide caminhar em direção ao oceano.

Ele se lança nas águas em busca de purificação. O céu o cansa, azul demais.

Ele abandona o continente. Dessa vez, ele foi longe demais. Queria escapar de

tudo que o transtornava. Tudo aquilo que o transformava em um monstro. Ele

buscava o fim das próprias forças. Ele que se achava um peso para os outros.

Ele foi até o horizonte, mas sem amor. O tempo o devorava. Relembrou sua vida

toda e julgou um fracasso não ser um homem verdadeiro. Não ser um exemplo de

virtude. Ele era cheio de vícios, sonhos secretos. Ele engoliu muita água.

Estava exausto. A beira do delírio entrega-se às ondas que arremessam seu

corpo de um lado para outro. Ele já estava nos braços da morte quando uma

luz o visitou. Ele estava no limite, mas a luz trouxe-lhe um sentimento de

paz. Como se nada daquilo antes tivesse tanta importância. Ele poderia então

recriar um novo começo. Abandonar as sombras e os castelos de tristeza. Ele,

como em um milagre antes do fim, retomou sua consciência e a direcionou para

aquilo que acreditava belo e verdadeiro, mas antes não enxergava. Essas são

as notas sobre um amigo que escapou do afogamento. Aguardo o porvir. É chegada

nova manhã.

Luiz Rodolfo Annes, 2013

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Eu não posso escapar desse

sonho. Eu não tenho controle

dentro da noite. Eu vejo uma parte

negra em mim. Eu sou um monstro.

Talvez parte de mim seja um pouco

doce, mas aí está o verdadeiro

perigo. Estou em transe. As

águas turvas correm ao meu redor

velozmente, mas sem nenhum som.

Recebo a luz vinda de estrelas de

açúcar. Os sinos tocam em sinal

de alerta. Eu corro de um lado

para outro tentando perceber um

caminho que não seja sem volta.

Como tirar esse som de dentro da

minha cabeça, expulsar esse sangue

impuro de minhas veias. Grito, mas

é como se o som estivesse preso

na minha garganta. Recolho as

palavras que não fazem sentido.

Cachorros alados percorrem a

avenida principal em direção a

meu coração. A lágrima do animal

é um alimento raro nesses tempos

secos. Eles ferem minha carne

frágil com seus pelos de navalha.

Quem teria o poder de dissipar

esse tormento. Faço a promessa.

A promessa, sempre a promessa de

não voltar atrás, seguir em frente

mesmo que caminhando de joelhos.

Eu sou um criminoso, um homem

cheio de pecado e violência. A

lágrima do criminoso tem o mesmo

valor que a lágrima do animal

O sonho

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despedaçado. Eu deixo outros homens para trás. Eu corro em direção à luz de

estrelas de açúcar. O que pode salvar um homem da sua dor? Não será agora o

momento de descanso? Eu procuro por irmãos de sangue. Irmãos que me socorram

do perigo. Uma mulher, um marciano, um unicórnio. Qualquer um que se afeiçoe

a mim. Nessa terra cheia de morte, o céu é uma esperança de amor. Procuro pelo

oceano tranquilo para um mergulho.

“Se um espírito contemplativo se deita à água, não tentará nadar,

procurará, primeiro, compreender a água. E afogar-se-á.” Henri Michaux

Estou nos braços do Divino debatendo-me. Às vezes o sonho é perigoso

como facas afiadas. Salve-nos. Salve-nos do afogamento. Da dureza das pedras.

Meu irmão você tem o poder nas mãos. Estou nu, sem forças, entregue. Eu ouço-o

cantar. Essa canção alivia-me a dor. Essa canção que remete a outros tempos,

a outros corações em paz. Isso não é agora, agora estou no sonho marcado para

morrer. E se eu morrer sem tocar sua mão, sem ver o sol nascer, sem sentir o

amor. Eu respiro com dificuldade. Esse corpo esquelético é fraco para travessia

da noite. Eu tenho a pele marcada por uma tatuagem indecifrável. Ranhuras

feitas pelas garras do dragão. Estarei alucinado? Meu corpo pega fogo, é a

febre, a febre que consome. Desejo ser livre. Livre das amarras. Eu tenho

esperança. Do meu dente nasce uma sombra viva. Deixo-a viver. Deixo-a viver

fora de mim. Eu arranco o dente, eu destruo sua casa e ela vai em busca de

outra morada. De outro corpo que a abrigue nesses dias confusos. Quando somos

culpados e inocentes ao mesmo tempo. Oh, Deus! Estou vivo. E esse sonho, e

esse sonho quando acaba? Tem um corpo que brilha ao meu lado e espera por um

sopro de vida. Vozes, vozes murmurando. Vá até ele. Porcos líquidos tomados

por canudinhos cor-de-rosa. Isso refresca o momento intranquilo. É uma pausa,

um minuto impossível que se concretiza. Chega-se o dia que é preciso tomar

um rumo. Eu perdoo você. Eu renuncio minha carne. Esse homem ao seu lado não

sou mais eu. É a sombra que vive liberta à procura de um dente para morar. Eu

não tenho boa lembrança, mas assim eu me torno você. É o fim. Apenas deixe-a

entrar. Eu vivo em você.

Luiz Rodolfo Annes, 2013

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Essa história começou há

alguns anos com a chegada de Jo

Jo Dog até nós, ou melhor, com

a descoberta de Jo Jo Dog, pois

ele relata que está entre nós há

muito tempo, apenas não sabíamos

da sua presença. Ele que sempre

foi um curioso observador da

natureza humana, estava por aí,

vagando, a observar os homens

e seus comportamentos. Sabemos

de relatos anteriores da sua

intrínseca ligação e amizade com

os marcianos e tudo mais, seus

abraços apertados, entre outros

segredos não revelados. O que

sabemos hoje é que Jo Jo Dog está

correndo grande perigo depois

que apareceu publicamente entre

nós. Ele foi flagrado na montagem

e abertura de uma exposição de

arte. O que o denunciou foi seu

retrato pintado pelo artista,

uma mancha verde em fundo azul.

Na verdade, restos de lençóis

azuis cheios das masturbações

de um menino, feitos em uma

tarde; e, ainda, gestos banais e

repetitivos, blá-blá-blá, papo

de artista e as suas declarações

sobre cabeças verdes e tal, o

que pôs sua vida seriamente

em risco. Alguns dizem que Jo

Jo estava lá, outros dizem que

viram apenas seu retrato, mas

A iminência do fim de Jo Jo Dog em uma lágrima que escorre e reflete a morte de um Caravaggio ou A iminência da morte de Jo Jo Dog que escorre como uma lágrima de um Caravaggio, ou, ainda, simplesmente, Jo Jo Dog deve morrer

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agora notícias correm sobre a iminência de seu fim. Ele já está preso há

29 dias em uma caixa, e a Arte contemporânea determinou sua morte. Sim, a

instituição de Arte declarou que ele precisa morrer, que ele precisa ser

silenciado, pois ele se atreveu demais em aparecer entre os homens despido e

com seu veneno. Porém Jo Jo discorda, é uma simples cabeça dessas, sim, bobo

desajeitado nunca negou sua feiura. Seu escárnio incomoda, mas não por mal, o

mal nunca é sua intenção. Ele sabe que sua aparência causa repulsa, que é meio

vulgar nas atitudes, mas não é para tanto, não é para desejarem sua morte.

Ele não canta mais Pissing in a River de Patti Smith, canta apenas: lá

lá lá lá. Está meio desmotivado, pois fica preso em uma caixa pegando pó sem

luz e passeios, sem comida. É difícil dizer isso, mas acho que Jo Jo Dog está

prestes a morrer, ele até toparia viver como atração de circo, entre a jaula

e os holofotes, se tivesse boa comida e um pouco de tranquilidade; seria fiel

ao seu contrato se as cláusulas estivessem em letras bem grandes e alguém

lesse seus direitos. Jo Jo chora. Jo Jo chora como um golfinho, escutem. Ele

deve ter aprendido isso em algum lugar e, se estivéssemos perto do mar, com

certeza acreditaríamos estar diante de um golfinho verde. Ele chora como um

golfinho, mas pra ele não há perdão, não há misericórdia nem segunda chance,

a Arte é inflexível em seus juízos. Ele não soube se comportar, não soube se

apresentar dignamente e agora será punido.

Dizem que quem o induziu a tudo isso foi o artista por trás dele, que

ele foi manipulado como uma marionete. Dizem que foi seu tutor e mestre

quem ordenou que fizesse tudo isso. Jo Jo não diz nem sim, nem não. Não iria

acusar ninguém, não iria reclamar dos amigos que o abandonaram, nem mesmo dos

marcianos que se diziam tão fiéis. Rumores, rumores, sempre rumores sobre algo.

Essas bocas sempre cheias de algo inútil para pôr pra fora, essa vontade de

ranger os dentes, quanta disposição para nada bom. Jo Jo deseja apenas que

alguém segure sua mão enquanto morre, um rosto familiar que lhe traga um pouco

de carinho e esperança neste último momento. Agora, ele é apenas um pobre

diabo desenganado. Quem vai querer perder tempo com ele? Quem vai querer saber

sobre seus sonhos? Ele, que não roubou nada de ninguém, que não matou. Tudo

bem que disse algumas verdades, simplesmente sem querer ofender ninguém, meio

irônico esse seu jeito. Ele não quer morrer. Ele que nunca andou a cavalo,

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que não conheceu os prazeres do sexo nem comeu um prato de batata frita com

ketchup e coca-cola. Seria uma morte infame e trágica, pois ele, apesar de

não revelar a idade, se considera muito jovem. Ele sabia que se morresse

seria como um mártir e talvez se conseguisse entregar-se ao sacrifício que

lhe exigiam, salvaria muitos outros. Mas a Arte estava sendo impiedosa, ela

com sua língua nojenta e seu corpo gordo, quase sem poder mover-se, iria

alimentar-se dele. Isso é como vida de cachorro.

Ele chorou novamente, estava sozinho e desamparado, sentiu o terrível

bafo da Arte já o mastigando. Suas lágrimas escorriam e viu em uma delas

seu próprio reflexo: era como se fosse o Narciso de Caravaggio. Ele sentiu

novamente a beleza que tanto perseguia, mas sabe que a Arte não o deixará

viver.

Jo Jo está na iminência de sua morte. Ele ficou em um silêncio estarrecedor.

Será que vai sobreviver?

Luiz Rodolfo Annes, 2006 - 2007

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Sabemos que a Arte

contemporânea estava bem perto

de conseguir seu objetivo, tendo

Jo Jo Dog já dentro de sua boca.

Ela estava prestes a devorá-lo e

já havia dado algumas dentadas

na pele macia de Jo Jo. Ele, já

na iminência de sua morte, teve

uma visão profunda através de uma

lágrima de dor, um Carravagio. O

que acontece de inesperado, sem a

Arte esperar, é que o Jo Jo, ao ser

mordido e liberar uma lágrima junto

de suas glândulas lacrimais, libera

uma enzima. Jo Jo Dog, quando na

iminência de sua morte, libera uma

toxina que paralisa o agressor por

pouco tempo, pouco tempo para alguns,

mas, para ele, tempo suficiente

para conseguir escapar de suas

garras. A Arte logo sentiu em sua

língua um gosto horrível, começou

a sentir-se enjoada e vomitou Jo

Jo. Ele mais que depressa, com as

poucas forças que lhe restavam, se

afastou um pouco. Jo Jo pensou que

os marcianos podiam aparecer agora

e salvá-lo, levando-o a um lugar

seguro. Seria belo ver a Terra lá

do alto de um disco voador. Tudo

preenchido de azul, Jo Jo até

suspirou azul, sua cor preferida.

Seria uma visão de esplendor, como

um Caravaggio escorrendo por seus

olhos? Por um instante, ele ficou

leve e esqueceu sua própria dor.

Porém, o sangue corria e ele voltou

depressa à sua crua realidade. Ele

A lágrima de Jo Jo Dog, ainda um Caravaggio

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precisava escapar antes que a Arte se recuperasse e o comesse de verdade.

Jo Jo entrou pelas sombras da noite e ali ficou paralisado. Viu ao longe

a Arte debatendo-se e indo embora, confiante de um destino melhor. Jo Jo sabia

que a partir de agora iria precisar de novos cuidados, não poderia mais andar

por aí livremente, passear no parque ou cheirar o rabo de outros cachorros.

Ele se arrastou por ruas escuras e pensou que deveria usar um disfarce.

Maquiar-se como um personagem do Kiss. Jo Jo não queria semear a discórdia

por aí, não ia se revoltar, nem se desesperar, nem criar dor aos outros por

causa do seu pequeno desentendimento com a Arte contemporânea. Desejava paz

no mundo, paz com a Arte. Poderiam ser amigos. Poderiam até tomar algumas

taças de champanhe em um vernissage. Se não houvesse afeto, que pudesse ser

uma relação justa e simpática, onde os diferentes reconhecem os valores um

do outro.

Jo Jo queria sair o mais rápido dali, pegou seu pênis na tentativa de,

masturbando-se, conseguir uma conexão com o espaço, seu pênis excitado era

como uma antena que se conectava ao universo.

Ele e sua pele misteriosa que nenhum humano nunca tocou. Ele precisava

fugir, a Arte nunca está satisfeita, nunca está saciada. Eles poderiam se

amar. O amor é inescapável. Jo Jo não roubaria mais nenhum pirulito de uma

criança, a morte poderia tê-lo transformado em uma santidade. Pensou nas

capas de revistas, notícias na TV, no jornal; toda mídia à disposição de suas

palavras e imagens.

Mas a única matéria possível seria: jo jo dog, ser desconhecido, é

assassinado a dentadas pela arte contemporânea, mas ele queria ir para algum

castelo ou ilha e aparecer em revistas de celebridades, tomando coquetéis

de frutas e usando pouca roupa. Ele gostaria de ter dinheiro pra comprar um

Nike, pra fazer uma tattoo com a palavra hot. Ele adentra a escuridão, seus

olhos quase se fecham, é a morte lhe estendendo sua fria mão; ele era duro,

iria resistir, mas não sabia como lidar com seus sentimentos. Como ele tinha

nas camadas da sua pele uma complexa aparelhagem eletrônica, poderia tentar

com sua antena um novo contato com os marcianos, mas não ficou excitado,

conseguiu uma breve conexão com as batatas, que não responderam. Só se ouvia

elas gritarem: nós queremos ser livres. Ele, que bem as conhecia, já imaginava

a confusão.

Jo Jo Dog também tinha dessas coisas, aparentemente não mostrava sua

verdadeira anatomia física; fingindo ser uma pasta de tinta, ele era uma

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mancha verde que se moldava em diferentes formas. Foi fácil para ele ampliar

seus nervos e criar uma antena mais potente com seu pênis. Ele tenta manter-

se desperto, ouve sirenes de todos os tipos, ambulâncias, carros policiais,

alarmes, tudo ao mesmo tempo no mundo todo. Sua cabeça está prestes a

explodir. Ele queria que tivessem fotografado todos os instantes de sua vida.

Ele cantaria algo para ela, uma canção ou duas. Naqueles momentos de terror,

onde a vida se esvai, lembrou-se daqueles que lhe protegeram e abrigaram sua

alma; conheceu algo sobre bondade e esperança. Ele respirou fundo, não admitiu

que aquela fosse sua hora derradeira, andou alguns passos, enfiou uma mão no

corpo e arrancou algumas moedas. Resolveu comprar uma coca-cola e um maço de

cigarros; ele tomava um gole de coca e engolia aquela fumaça que rasgava sua

garganta, mesmo sem nunca ter feito isso antes em sua vida, sentiu-se vivo,

pois, se fosse pra morrer, que fosse depois de beber sua coca-cola e fumar seu

primeiro cigarro. Ele precisava ser como um homem e não como um cachorro. Ele

sentia medo, saiu correndo, largou o cigarro no ar. Correu desesperadamente

até que teve de aceitar o desgaste de seu corpo; tinha corrido por horas até

o máximo do fracasso.

Jo Jo estava caído, sem forças, estava encolhido em um canto e chorava

baixinho. Mas seu choro, como sempre, parecia o de um pequeno animal frágil e

sensível, um golfinho fora da água murmurando. Passaram algumas pessoas na rua

próxima do beco onde ele se escondia da velha Arte, mas um pequeno menino se

interessou pelo ruído e largando a mão da sua mãe se dirigiu à fonte daquele

barulho e logo foi antecipando à mãe: mãe, mãe, um golfinho chorando. Jo Jo

estava perdido e solitário, chorava mais ainda ouvindo aquelas vozes que

remetiam aos seus laços familiares. Nesse momento não estaria chorando como

em um Caravaggio, mas sim como um Delacroix, era como se estivesse na cruz,

como se estivesse na amargura da barca dos desesperados. Ele chorava, pois

habitava profunda tristeza. Ele que não possui beleza procurava na arte um

conforto, algo maior que lhe desse uma direção, mas só encontrou nesse meio

de pessoas desprezo e rancor, viviam todas elas de aparências e conveniências.

Achou que hoje a Arte contemporânea poderia tê-lo aceitado, um monstro

verde e decadente, já que antes, em outros tempos, ela havia lutado como

voz das minorias e dos excluídos. Mesmos as feministas mais radicais hoje

mantinham seus sutiãs bem reservadinhos para que ninguém as visse mais. Ele

gritava acuado. Hoje especialmente, todos estavam com ares de desdém para com

ele, para com a vida, para com a arte. Para Jo Jo, a arte não traduzia mais a

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vida, não falava mais nem do feio nem do belo. A arte estava se afastando do

pensamento do homem e muitas vezes apenas revelava o desprezo dele pela vida

e pelos outros. Ali também havia interesses, tramas de poder e de vaidade e

Jo Jo não era dado à vaidade, era feio e verde, sim, se olhava no espelho, mas

pra reconhecer-se, ali havia mentiras, traições, jogos e jogos. Ele deveria

ter se acostumado, viu isso no mundo todo, não era exclusividade daquele meio.

Mas ele preferia acreditar que um dia o mundo seria um lugar mais fraterno,

sem egoísmo e maldade no coração das pessoas. Aí todos os seres dariam abraços

apertados uns nos outros e tudo seria amor.

Ele resolveu desistir de tudo e voltar a isolar-se no silêncio das

estrelas. Tentou uma nova masturbação buscando com seu pênis, que era uma

antena para um satélite secreto, comunicação com seus amigos marcianos. Dessa

vez, eles ouviram sua mensagem e em breve estariam ao seu lado novamente. O

céu todo foi se escurecendo e depois se abriu em uma luz maravilhosa. E com

um espetacular raio laser, os marcianos pegaram Jo Jo Dog e o levaram para sua

nave. Nessa hora, o menino que a tudo observava se agarrou a Jo Jo e foi parar

dentro da nave. Quando se deram conta havia um menino na nave chorando, mas

o choro do menino não era como o de um golfinho e, sim, como o de um cachorro.

A luz da manhã surgia para os bons e para os maus, não havia tempo a perder e devolveram o menino antes que se criassem problemas maiores. E apagaram aquele evento da memória do garoto.

Para Jo Jo não importa a forma, ele busca coisas além dos gestos, busca além da beleza e da feiura, além dos sentimentos e dos corpos mostrados nas TVs e nas capas de revistas. Para ele, a beleza era como em um filme de Fellini. Para ele, havia espaço para tudo e para todos. Para ele, o belo está em uma mancha verde que escorre, nos seres desprovidos ainda de caráter, o belo para ele estava além de qualquer norma ou regra que se inventasse na estética.

Todos meus amigos: monstros, tigres, marcianos, inocentes, divinos, sonhadores, pastores; feitos de ouro, de carne, de vento, de merda e sentimento; de paranoia e amor, nuvens e cavalos, serpentes e ciprestes, cachorros, os demônios e os contrários, os rebeldes e os generosos, os macacos e os homens;

todos abraçados na vida eterna. Todos em um grande abraço apertado inegável.

Luiz Rodolfo Annes, 2009

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Vestido com seu blue jeans,

ele olha no espelho. Todos foram

embora. Foi aí então que Jo Jo deu

seu melhor sorriso. Lembrou do amor

distribuído sob os flashlights. Por

um momento, ele sonha com cores,

brilhos e caveiras. Ele começa a

assobiar a velha canção Pissing in

a River. No fim está em lágrimas.

Ele gostaria de chegar em sua

casa até a noite. Ele amava os

homens, mas queria ser um animal

à beira da floresta, não poderia

viver livremente entre eles e suas

cobranças. As coisas quebram-se em

suas mãos. Ele tenta conserta-las,

porém nada funciona. Jo Jo sabe

que tudo exige uma arte e a própria

arte é um jogo. Ele é sincero

demais para algo além do amor. Jo

Jo ficou viciado em orange juice e

em pulseiras de ouro 18 quilates.

A fama o assustava, preferia ver

a tudo de longe, silencioso. Jo

Jo é do tipo discreto. Quer fazer

simplesmente sua parte e entregar

o resto ao divino. Jo Jo era

muito temente a Deus. Acreditava

realmente que existia algo maior

que sua compreensão. Ele tentava

entender a vida, porém, isso era

pedir demais para sua cabeça boba

e verde. Jo Jo era ingênuo demais,

assim corria imenso perigo.

Jo Jo Dog à deriva no espaço comendo um cachorro-quente de saudade sabor churrasco enquanto visita o castelo da solidão e sente que a vida não pode seguir sem amor. Tesão absolutamente cego de sinceridade

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Da sua visão do espaço procurava encontrar na Terra algo que refletisse

o brilho de um coração. Jo Jo achava tudo entediante. Estava meio depressivo,

de mal com a vida. Achava muito chato o Superman vagando pelo céu azul em

seu uniforme colante. Vidas desgastadas, serpentes. Ele aparenta sentir medo

e culpa. Ele continua tentando salvar a todos do mal criado pelos próprios

homens como ele. Jo Jo se perguntava. Qual o destino de um homem em um

uniforme colante? Que sentimento o movia? Não encontrava respostas. Vamos

fazer alguma coisa juntos, pensava. Quem sabe uma taça de champanhe? E aí

você me conta seus segredos, por trás da pele, por trás desse seu jeito bobo

como o meu. Vamos fazer alguma coisa doce, abra a boca sem solenidades. Jo Jo

não entendia por que a grande maioria dos heróis tem que usar roupa grudada

no corpo. Aceitava que eles usassem máscaras. As máscaras exerciam uma

fascinação em Jo Jo. Ele queria que os heróis fossem nus escancarando o corpo.

Jo Jo cansou de tanto assistir a desenhos animados e perceber a repetição

claustrofóbica da falência moral humana. Homens diante da TV sorrindo em meio

à violência e ao exagero. Jo Jo estava à beira da exaustão. Sentia o peito

apertado, a respiração ofegante. Via diante de seus olhos a estupidez se

repetir como coelhos. Queria que a influência dos marcianos pudesse criar novos

paradigmas criativos na humanidade. Jo Jo ansiava mais que nunca ter o domínio

psicológico dos seres entristecidos. Não que quisesse uma volta à escravidão

ou conquistar o mundo. Queria ver a todos felizes com sorriso aberto no

rosto. Jo Jo crê na beleza e na verdade do amor ao próximo, inclusive aos seus

inimigos destinava uma dose de seu carinho. Oh! Tantos mistérios no coração

de Jo Jo que ninguém conseguia desvendar. Me escreve mais, me mande um postal,

uma foto, uma poesia. Me diga coisas que não ouço faz tempo, ouse um pouco pra

me conquistar devagarzinho. Eu me jogo a teus pés e você nem nada. Saudades

loucas, afundar com você nessa arte de pintar. Minha boca está seca, tenho

sede. Sede de algo que só você pode me dar.

Gargalhada no ar. Jo Jo decidiu voltar à Terra. Decidiu que não fugiria

mais dos holofotes, decidiu total, ser sensível mesmo na aridez do deserto.

Agora estava preparado para compreender a Arte contemporânea. Tantas coisas

passando pela sua cabeça. Não tinha mais temor da morte. Sabia que sua alma

era eterna. A primeira coisa que queria fazer ao chegar à Terra era dar um

abraço apertado em alguém. Não importava quem fosse. O calor de um abraço

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fazia Jo Jo achar que qualquer coisa valia a pena. Queria comer uma pizza

em Veneza. Queria dar um giro nas pirâmides. Queria sentir a brisa do mar.

Queria entregar-se às lutas sociais. Porém, Jo Jo iria reservar uma tarde

tranquila para pintar. Esse prazer ninguém poderia lhe tirar. Jo Jo ia andar

à toa por aí, celebrar a vida. Quem sabe se embriagar, por que não? Fez

uma promessa a si próprio, um voto secreto onde não caberiam mais dramas

existências. Era uma busca por bom senso. Ele precisava que algo o guiasse

nessa nova caminhada. Assim se inicia a nova trama. Tesão absolutamente cego

de sinceridade. A concha se antena com o artista conceitual. Jo Jo comendo um

cachorro-quente sabor churrasco. Ele engole rapidinho pra não perder o barco

azul-marinho. O anjo enlouquece e rola no chão. O olhar de Jo Jo se perde

na sombra, em seguida ele acende um cigarro amassado que fica rolando de um

canto a outro da boca. Ele navega tranquilo entre azul, canto de sereias,

montanhas virgens, corações sanguessugas, pecados atrás dos olhos de meninas

sérias, mato sem cachorros. Distâncias vencidas, novos territórios, fissura

da verdade. Pulo pra fora, aviso que vou virando avião, pele de anfíbio, não

me afogo mais. Jo Jo está em terras desconhecidas. Eis que um passante lhe

diz: – Me entenda. Jo Jo, emotivo, o abraça. Você é tão cool. O estranho o

guia por um caminho secreto. Em seguida, estão em meio a um jardim de rosas

vermelhas. Jo Jo ficou emotivo, mas temeu por tanta beleza. O estranho se

aproxima e lhe diz ao pé do ouvido: – Você é um anjo. E logo vai estendendo

a mão tentando tocar o seu sexo. Jo Jo o empurra e corre desesperado pelo

meio dos espinhos. Nunca ninguém havia ousado estar tão próximo de sua

intimidade, o fato dele distribuir abraços por aí não significava que estava

disponível para aproximações mais íntimas. Jo Jo sentiu uma repulsa só de

pensar em algo dessa natureza. E corria e sangrava, mas não chorou por nenhum

momento. Ele acreditava ser forte como uma rocha. Depois de percorrer uma

grande distância suas pernas estavam amolecidas e Jo Jo sem mais forças cai

no chão. Olhou ao redor: já não havia mais flores e espinhos. A paisagem havia

mudado completamente. Agora estava num chão pedregoso e seco. Ele resignou-

se e, caído, largou-se no tempo. Sentia o cheiro de estrelas decadentes. Por

um instante Jo Jo sentiu-se sujo e impuro, mas esses sentimentos logo se

dissiparam. Não é fácil estar entre os homens, ele pensou.

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Jo Jo enrola-se em forma de um ninho e adormece. O que será dele nessa

sua nova passagem? O que faz ele acreditar no impossível e seguir sempre em

frente? É inútil tal adivinhação. Dito isso atemos aos fatos.

Luiz Rodolfo Annes, 2009

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O verde da pele de Jo

Jo os encantava. Rasteiro ele

afastou-se dentro da mata. Tinha

medo, pois sabia do perigo que

corria. Andava na ponta dos pés

dando gemidos imperceptíveis para

aliviar a sua dor. Eles eram como

soldados, determinados e armados

até os dentes. Jo Jo sabia que

se o capturassem seriam cruéis,

o torturariam com chicotes de

fogo, colocariam álcool em suas

feridas. Seria esse o ritual antes

de, finalmente, comê-lo. Jo Jo não

entendia: por quê? Havia escapado

da morte outras vezes e agora

era perseguido por escoteiros

canibais. Isso inquietava seu

espírito sensível. A noite cai.

Jo Jo segue guiado apenas por uma

luzinha vermelha que vê no fim do

horizonte. A luz piscava e ele

imaginava aquilo como um coração

pulsante. Jo Jo entregou-se a

fantasia de que aquela luz era o

pulsar do coração de alguém que o

amava. Pensava em descansar, mas

seguia com passos firmes, mesmo

que com o olhar fatigado. Ouvia

explosões e ficou tenso novamente,

tomado pelo medo da morte. Ele

perguntava-se: O que fiz dos meus

dias? Onde depositei minha vida?

Jo Jo chorou naquele momento. Ele

sabia que não era comestível. Que

Jo Jo Dog e os escoteiros canibais

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apesar de ser verde, não tinha gosto nem de legume, nem de salada, muito menos

de churrasco. Porém, os escoteiros acreditavam que ao comer da carne verde

dele teriam poderes afrodisíacos. Agora que Jo Jo descobriu o gosto pela vida

não queria partir. Não queria deixar para trás o beijo da serpente de prata.

Agora que conhecia a delicadeza de marcianos abençoados, o prazer de entrar

nu no oceano. O gozo das estrelas. O cheiro da noite. Jo Jo definitivamente

não queria morrer. Mas para tudo há solução no final. A fome deles poderia ser

saciada de outra maneira. E se Jo Jo os tratasse com ternura, com certeza

poderiam amá-lo, porém ele tinha dificuldades em demonstrar seus sentimentos.

Quem sabe se pedissem uma pizza e a compartilhassem à beira de uma grande

fogueira. Assim, o amor seria celebrado. Foi aí que Jo Jo cai em uma armadilha

fatal: a entrega de si para outro. Foi aí que os escoteiros o pegaram e

estavam prontos para saboreá-lo. Foi quando, misteriosamente, perceberam que

ele era uma criatura especial. Então se tornaram amigos e tudo terminou em um

grande abraço apertado. Jo Jo continuou seguindo a luz, ele havia encontrado

uma nova direção em sua vida. Ele seria um entregador de pizzas.

Luiz Rodolfo Annes, 2012

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I don´t need drugs. I don’t

have pure heart. I want be a

human. I want to know where

the true is gone.

Don’t cry no more.

I say love you.

Jo Jo escapou da morte

novamente. Dessa vez, enquanto

caminhava distraído pela mata, ele

quase foi devorado por escoteiros

canibais com suas guitarras melosas

feitas de ossos humanos. Agora

o silêncio o cerca. Jo Jo andou

ausente dos grandes vernisages,

isolou-se dos círculos sociais

em uma casa de repouso, junto de

batatas com tendências suicidas

em busca de esperança e cowboys

melancólicos. Ele abandonou seus

planos diabólicos para dominar o

mundo e toda aquela luta e revolta

contra a Arte contemporânea

resolveu-se com um longo e intenso

trabalho terapêutico executado por

marcianos especialistas na cura

de traumas profundos e que usam a

hipnose como técnica essencial. Jo

Jo queria ser um homem. Mas como

ser um homem sem vícios e venenos?

Estava decidido a ser um artista.

Foi criado pelas mãos de um. Essa

era a vida a que estava destinado.

Jo Jo Dog Never Die

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Havia passado tanto tempo concentrado em sua fuga da Arte contemporânea, que

iria viver agora plenamente a vida do artista, não seria mais um à margem

de todos. Apesar de sua aparência não ter sido modificada, sentia dentro de

si que algo havia mudado. Havia para ele agora novos caminhos. Pode ser que

tudo em Jo Jo contrarie o seu sentido de beleza, o seu sentimento de justiça,

os seus hábitos, as suas tradições, as suas esperanças. Jo Jo é considerado

aversivo por muitos. O mundo suspeita contra ele. Ele carrega consigo a marca

da degradação. Jo Jo pensa em suicídio. Porém, a honra da sua arte o proibia.

Ele apenas queria seguir sem ser mais importunado pelo mundo. E mergulhado

outra vez dentro de si mesmo, sem se importar com ninguém, nem mesmo com a

batida do relógio, ele decide se tornar um artista da fome, a ideia de jejuar

o agradava. Ele também não havia encontrado alimento que saciasse sua fome

interior. Ele, sem medo algum, se lança nas chamas. Ele tinha o sentimento de

que algo extraordinário iria acontecer.

Luiz Rodolfo Annes com participação de Kafka, 2011

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Jo Jo Dog e o mergulho nas estrelas

As lágrimas se foram.

Isso é incrível.

Quem um dia diria que Jo Jo iria parar de chorar?

Não que ele não chore mais, estava sentindo-se mais forte, um palavra rígida

não o abalava mais, Não chora mais por uma trombada à toa, um pisão de pé ou

mesmo pelo leite derramado. Só não havia superado o choro secreto das cebolas.

Jo Jo não é mais apenas uma cabeça verde.

Jo Jo não tem mais a delicadeza de grafite.

Ele construiu para si uma identidade secreta que o protege.

Apesar disso, Jo Jo ainda tem um coração de manteiga.

Ele não aceita mais os insultos de antes, não que agora ele arranje briga por

aí. Jo Jo é a favor da paz mundial.

Ele acredita ainda que todos nós podemos nos dar um grande abraço apertado.

Por que não fazemos uma festa?

Jo Jo não acredita mais em corações de pedra.

Jo Jo não acredita mais em fantasmas.

Jo Jo não acredita mais na melancolia desnecessária.

As coisas não são mais as mesmas.

Dancing in the rain is cool.

Love is very cool.

Is kissin’ time.

Não abra as cortinas, apenas me chame de anjo pela manhã.

Enquanto ele dorme, a saliva escorre pela boca.

Você tem cara de cavalo, e daí?

Você tem a cabeça de pudim, e daí?

Você tem pele de cobra, e daí?

Você vive largado, de cabeça para baixo, e daí?

Beba uma soda.

Sorria um pouco sem exagero.

The insane heart.

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Jo Jo percebeu que havia se isolado, construído paredes sem saída a sua volta.

Mas eis que na escuridão da noite lampeja um fio de esperança.

Ele confiou um pouco em si, teve fé, as montanhas estremeceram.

Ele confiou mais um pouco e viu que nada seria impossível.

Ele que nunca havia chorado nos braços de alguém.

Ele sempre chorou solitário, escondido pelos cantos.

Ele queria ser simples.

Ele queria pouco, o calor de um abrigo, alguns amigos sinceros, uma grana pra

gastar em livros de poesia, tintas e pincéis.

Jo Jo não queria mais o estrelato.

Ele queria ser apenas um figurante de zumbi em um filme de terror, ter uma

cadeira ao sol no verão, poder tomar um chá quente de maçã no inverno.

Sem grandes pretensões, percebeu que seria feliz.

Jo Jo Dog mergulha nas estrelas.

Sentia já em si um despertar de humanidade.

Poderia sim, tornar-se um homem de valor.

Jo Jo volta a cantar sua canção.

A Arte contemporânea já não era mais um inimigo mortal.

Ele agora era mais livre.

Ele sabia que haveria novos perigos, novos desafios, enfim o mundo não era

perfeito e nem ele.

Haveria dor e sofrimento, alegria e prazer, porém isso não o assustava.

Ele sentia que a vida na Terra era um breve suspiro diante das eternidades

intergalácticas.

Sem medo, ele vaga pela noite.

Ele apenas tenta ser um bom homem. É isso que ele faz . Dedica-se a novas

ciências. O que ele tem em mente é distribuir uma porção de abraços apertados

e cheios de energia por aí, cavalgando por lugares incertos e muitas vezes

malditos.

Love is very cool.

Nada é seguro, mas ele arrisca no vazio.

Deixe Jo Jo lhe mostrar como sorrir é mais fácil que sofrer.

Ele que conheceu o sofrimento na pele.

Agora quer viver o amor.

Luiz Rodolfo Annes, 2013

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Seria o paladino dos

fliperamas sujos e sombrios? Quem

sabe mais uma alma perdida entre

divertimentos e vícios eletrônicos.

Uma pequena criatura monstro, com

uma cara engraçada remetendo ao

formato de uma coxinha. Ele está

preso na armadilha, ele está cego,

hipnotizado pelo brilho colorido

das luzes que o emocionam, ele está

sendo comandado por alienígenas que

dominam seu corpo, instigando-o

ao impulso de amar. Sim, o amor

é seu destino final. Isso o torna

uma prova viva da existência de

bondade, mesmo nos seres mais

cruéis. Sim, Cara de Coxinha, na

verdade, nunca foi um exemplo de

bom sujeito ou de garoto educado

e de família. Conta sua história

que foi criado sem parentela por

ratos de esgoto dentro de uma

caixa de papelão em uma rua escura

e sem saída. Ratos assassinos do

esgoto, diga-se de passagem. É com

eles que o pequeno Cara de Coxinha

cresce e aprende a arte de matar.

Para ele, a morte era motivo de

histeria e mágica, por isso tanta

afinidade com as lutas, com as

mortes dentro da sala de fliperama.

Não curtia muito a morte com armas

de fogo e explosões, ele era mais

interessado em facas, espadas,

algo cortante como navalha, algo

Quem é Cara de Coxinha?

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em que ele pudesse ver o sangue correr mais lentamente. Isso até começar a

ser influenciado pelos Marcianos, que emitiam energias positivas através do

colorido das telas de fliperama. E Cara de Coxinha passou a ter aversão a

qualquer tipo de violência. Está preocupado em ser honrado e bondoso. Estava

adentrando a arte oculta dos abraços apertados, do perdão e outras formas de

expressão amorosa. Cara de Coxinha deixa de ser mais um rato assassino para

ser um verdadeiro paladino das salas de diversão. É lá que ele distribui seu

amor. Entrega-se como instrumento do amor. É lá que ele encontra seu destino

final: a morte pela fria lâmina de um rival antigo. Os velhos tempos não o

haviam abandonado por completo, afinal, pelo caminho Cara de Coxinha cultivou

muitas inimizades com sua nova postura devotada. Sim, o fim de Cara de Coxinha

mistura-se com seu início. Aquele que feriu sem pudor acaba sendo tomado pela

fúria da vingança. Mas, para Cara de Coxinha, quem sabe haja uma próxima

oportunidade. Os Marcianos conservam seu cérebro vivo em um laboratório no

espaço onde fazem testes psicológicos. Para ele talvez haja um amanhã.

Rodolfo Annes, 2013

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Ele baba no sonhoDear darkness

Dear darkness

Won’t you cover, cover

Me again?

Dear darkness

Dear

I’ve been your friend

For many years

Won’t you do this for me?

Dearest darkness

And cover me from the sun

(Songwriters: Harvey, Polly Jean)

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Ele tem seus segredos. A sombra o visita a noite. Venha até minha

porta. Eu sou o único que pode levá-lo até lá. Você mergulha todos os dias

nessas terras desconhecidas. Você o segue enquanto ele adormecido baba no

sonho suavemente. Da sua boca escorre a baba que tece e abriga você e outros

seres. Ele não chora mais. Quando está nas profundezas do sonho ele baba.

Sua fina e cintilante baba que alimenta corpos estranhos. Ele não é um herói

é outra pessoa saindo de si mesmo. Ele baba no sonho. Alguma ideia sobre ele

é essencial para entender a ressonância de sua vida nesse continente, para

rastrear os caminhos que o trouxeram até aqui, para ver esse seu momento

de chegada como a mais recente numa série de fugas maiores. Ele já estava

morto. Estava farto da visão que possuía. A náusea tomava conta dele até ele

adormecer tornando-se inteiramente outra pessoa. Ele baba no sonho. Sua baba

era sua arte. Enquanto todos estão presos de olhos abertos ele vaga livremente

no sonho. Ele é um homem em fuga. Deu as costas á sua família e amigos, ao

conforto do lar, ao seu próprio futuro brilhante como poeta. Rompeu os laços

que o ligavam ao resto de nós. Ele viu o bastante e conheceu o bastante agora

fecha os olhos e baba no sonho. Ele corre em busca da impossível liberdade,

que é a de desaparecer.

You know the day destroys the night

Night divides the day

Tried to run

Tried to hide

Break on through to the other side

Break on through to the other side

Break on through to the other side (The Doors)

Silencie sua felicidade. Silencie seu coração. Silencie no peito

toda escuridão.

Ele baba no sonho. Ele acredita que está aqui para ficar. Ele murmura

alguma coisa. Uma linguagem que desconhecemos. Faz estranhos desenhos cheios

de improviso e delicadeza. Ele é sujo como um animal. Como um cachorro que

vaga pelas estrelas. Sua presença é opressiva para quem os quer destruí-

lo. Ele exala um ar denso que ninguém consegue respirar. A única maneira

de uni-los é o amor. Chega a hora em que todos estão entorpecidos. Vejo-o

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ainda babando e essa visão me remete a um anjo. Ele esboça um sorriso vago.

Há nisso tudo uma espécie de maravilha. Clarões de um céu interno. Cinco

meninos tentam persuadi-lo. Tentam arrastá-lo furiosamente. Ainda assim, ele

busca seu caminho em direção a terras distantes. Ele baba no sonho. Ele segue

solitário e, por fim, depois de quatrocentos dias envia uma carta: não fiquem

tristes, não chorem. Estou no meio de um sonho. Um dia voltarei.

Meu coração baba na popa,

Triste e cheirando a caporal:

Vêm-lhe jogar jatos de sopa,

Meu coração baba na popa:

Sob os apupos dessa tropa

Que lança risos em geral,

Meu coração baba na popa,

Triste e cheirando a caporal! (Rimbaud)

Luiz Rodolfo Annes com a participação de PJ Harvey, Charles Nicholl, The Doors, Rimbaud, 2013

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O homempermanecidoPara que sol gravitam

tantos desejos?

Rilke

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Ele se desequilibrou. Gemendo e rindo, agitou-se pelo chão como um

animal. Seu corpo próximo de outro corpo até então desconhecido. Seus

movimentos desordenados. Ele se esgota, se reduz ao silêncio. Ele e a terra

em um longo silêncio agora. Uma imagem simples de um homem deitado no chão,

uma paisagem. Ele se encolheu. Tocou a terra. Finalmente sentiu-se desejado.

Seu corpo moveu-se novamente agora de forma sutil. Ele sente pesar sobre

si certa crueldade. O libertino torna-se puro. Ele esgota-se, entrega-se,

desejando o infinito. E ele escolheu o ínfimo de dentro, onde basta espremer

o pâncreas, a língua, o ânus ou a glande. Então o homem recuou e fugiu. Um

homem nu como um animal. Lançado à terra, ligado a ela de forma íntima. Um

homem, um homem só, em uma terra hostil. As fêmeas chamam os machos; e no

meio de tudo está a pedra. O sonho dele conhecemos. Excessivo amor. Nenhum

dever, nenhuma lei, nenhuma luta, nenhuma multidão. Solitário impulso o

prazer. Na verdade, ele possuía uma ferida de onde a terra se alimentava. Um

alimentando o outro mutuamente. Os mistérios são belos. Escondeu o rosto. Um

verme indefeso, pálido, insatisfeito. Ele cria novas sementes. Ele se dedica

a isso laboriosamente. O seu corpo ligado à terra através de um ferimento

mortal. Ele se enrijece. Ele se infiltra no chão e se perde. Caloroso toque. A

terra se entreabre, ele entregando-se como uma oferenda, um fruto que volta

à origem. Ele faz dela uma proteção, uma parte que se completa ao seu corpo,

que lhe permite estender-se a regiões ocultas. Todas essas experiências exigem

muito cuidado. Exigem uma delicadeza que perturba, quase um abandono. A terra

o cospe para fora. Ela precisa da sua ferida para alimentar-se. Uma vida que

se consome aos poucos. Ossos quebrados, desamparo. O homem teve medo. Sempre

teve medo, mas nesse momento o medo dilatava o seu corpo inteiro. Ele ainda

tem fome. Ele coloca a boca na terra, mas não consegue tirar nada dali. Ele

não está realmente sozinho. Está junto de outros animais que, como ele,

também vagam sem rumo. A ideia de seu mundo perfeito desaba. Ouvimos seus

grunhidos. Ele sobrevive e persiste. Volta para vida na terra. havia terra

neles, e escavam. Escavam, escavam, e assim o dia todo, a noite toda. E não

louvam a Deus que, como ouviram queria isso tudo, que como ouviam, sabia disso

tudo. Seres amontoados em um só corpo. Compartilhando desejos. Corpos gerando

outras tramas de vida. Ele é feito da mesma pele que o cerca. Um grande gozo

que tudo envolve. Ele se dilacera. Ele queria apenas manter-se vivo. Ele

doando sua ferida para ela se alimentar. Ela dando-lhe abrigo. Ele gemia, ele

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gritava, mas não falava, e todas as coisas na iminência da morte eram vazias

de sentido. Escondeu o rosto numa imensidão de estrelas. Take me desejou, sou

seu. Ficou tranquilo. Por um momento, a menor suspeita de um corpo. O infinito

em uma grande gota. Amor se dispersando em meio ao solo seja o que for isso

– origem ou morte, santidade ou pecado. A carne se abre fresca e verdejante

feito um jardim. Ele vive o perigo desse instante.

Ele nada conquistou, nenhuma posse, nenhum coração; foi, na verdade,

possuído, tomado. Foi aos poucos se tornando um homem permanecido. Lançado à

terra e nela se perdendo, se misturando sem poder deter esse movimento. Lançou

ali suas sementes, seus resíduos, toda sua sujeira e pureza largada em um

delírio. Não tinha piedade, apenas um corpo nu que sofre. Não tinha a menor

piedade, curvava-se por medo. Puro medo do absoluto, medo de olhar e de não

reconhecer mais nada.

Bebi na fonte do bosque o silêncio de Deus.

(Georg Trakl)

Luiz Rodolfo Annes com participação de Artaud, Bataille, Celan e W. B. Yeats, 2003-2007

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ELEAINDAPERMANECEHave some else’s will as your own

You are beautiful and you are alone.

Nico

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Frio inverno da alma. Diante desses inacessíveis corações ele faz uma

prece. Eu sou um caçador do amor. Ninguém despertou, o sono veio sobre eles.

Ele entregou um pedaço de seu corpo a eles. Quem ele pensa que é? Tentáculos

do divino? Enquanto eles entregam-se a noite da felicidade corrosiva. Entre

sombras, ele caminhava em busca do sagrado. Coração batendo na vibe do amor.

Extrema solidão na paisagem deserta. Ele e seus passos pequenos entre anjos,

espinhos, lesmas, cachorros, vampiros, sangue e dor. Fizemos silêncio sobre

isso. Como se fosse pecado pronunciar uma palavra que revelasse seu destino.

O lugar pra onde estou indo, por que esses obstáculos? Falta muito, ainda?

O horizonte aponta paraísos de neon. Ele seguiu essa trilha. Ele carregava

esperança para ele e para mim. Ele testemunha do desespero de tantos homens.

Tantos que como ele caíram ao solo desamparados, vencidos de suas batalhas

mais íntimas. Ele sem sonhos e triste. Qual o seu destino? Ele trêmulo se

lançou nas águas. Ele que guardava consigo notas sobre um amigo que escapou do

afogamento. Onde estão os rostos amáveis de outros tempos? Ninguém estava lá.

Algo havia entre eles. Não olhavam através. Como eles chegarão até aqui? Quem

sabe da verdade das canções do deserto? Violência de um animal cintilante. Ao

entardecer o azul do céu se desfez em cinzas. Um homem ajoelhou-se e chorou.

Ele carregava consigo uma marca que não se engana. Ele e seu cachecol vermelho

desbotado. Ele que tem uma tatuagem de caveira no peito que pulsa com o bater

de seu coração. Vai, tua hora é esta. Testemunha do silêncio das estrelas. Não

me chame pra casa. Uma voz acomodou-se em sua cabeça. – Vai em busca da luz.

Sou eu ainda depois de tantos despertares? O que sobra de um homem depois de

seus dias de caminhada? Ele engole e solta a fumaça de um cigarro impuro. (Amo

tua boca devastada por fumaças diabólicas). Surgem as horas difíceis. Lágrimas

umedecendo o chão seco. Para chegar ao seu destino, ele arrasta-se gritando.

Um homem ferido, um homem ferido que o coração ainda bombeia.

“Não precisa de estrelas, em lugar algum

perguntam por ti.” Paul Celan

Mesmo assim, ele insistia no vazio. Onde todos falharam, ele mantinha

a fé de que é possível continuar. Ele uniu-se a terra como em um encontro

amoroso. Um alimentando o outro. Eu e tu talvez sejamos a mesma coisa. Ali,

ele renovou suas forças. Ele estava em comunhão, não se preocupe. Armadilhas,

ossos, venenos, perversidades, beleza imensa, vermes, deserções, dias negros,

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paixões ardentes, milagres, pérolas, perfumes e cinzas. Ele permanece

incansável. Ele sabe que não precisa voar. Sabia que os anjos estenderiam suas

asas sobre ele. Ele transpassou o abismo do seu eu. A noite fixa sob seus olhos

e ele continuava avançando, mas sem medo agora. Sua respiração era trêmula no

fim da linha. Sabe que não tinha nada a perder, mesmo diante das tempestades.

Ele gritou confiando que poderia, assim libertar-se de todas as amarras. De

todos os nós cegos em sua garganta. Ele gritou rejeitando o grande silêncio

das montanhas de carne. Animal louco. Ele sentiu em si a eternidade da vida.

Quando me abandonei em ti, nos tornamos um.

Não o segui, apenas colhi do chão suas migalhas.

Sou eu, eu, estava entre vocês, estava aberto, estava audível. Sou eu

ainda, vocês estão dormindo.

Ele veio pela noite. Escapei, perguntou-se? Queria brilhar, queria

brilhar diante da morte. Ele correu. Ele veio até nós, invisível. Nesse

instante, o mundo insere o seu mais íntimo no jogo com as novas horas. Ainda

há tempo, uma estrela ainda tem luz. Nada, nada está perdido. Ele arrisca um

movimento sutil, entregando-se a seu destino. Ele escapa dessa vez. Ele vive

para sempre. Como é belo esse momento. A aurora do sonho. Quem precisa disso?

Ele está em contato com sua verdadeira realidade possível nesse instante. Ele

em contato com a coisa real e certa: o Bem, a verdade, o Perdão. Salutares

e puros como o Amor. No fim de tudo isso, há um minuto de paz, um minuto gota

de sereno. Arrasto meu corpo. Esta hora, tua hora. a marca de uma mordida

em lugar algum. Também a ela tens de combater a partir daqui. Seu esplendor

me fere. Uma celebração. A paz é tão imensa que entorpece. Seus olhos se

abrindo sobre uma coisa maravilhosa. Ele e seu hálito de lesmas doces e pedras

preciosas. Ele esta pronto para imensidão.

“tua voz é eterna eu vejo a mão cinzenta rasgar a parede do mundo

estamos definitivamente na vida.” R. Piva

É ali que começo a nascer.

Luiz Rodolfo Annes com a participação de Nico, Paul Celan, Roberto Piva e Sylvia Plath, 2011

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PROJETO REALIZADO COM O APOIO DA PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA,

FUNDO MUNICIPAL DA CULTURA – PROGRAMA DE APOIO E INCENTIVO À CULTURA

26 DE N OVEM BRO A 22 DE FEV ERE IRO D E 20 15

M USEU DA GRAVU RA C I DA DE DE CURIT I BA ( SOL AR DO BARÃO)

Cabeça de brócoli e a descoberta do amor ou notas sobre

um amigo que escapou do afogamento

L U I Z R O D O L F O A N N E S

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