John Steinbeck - Boemios Errantes

Embed Size (px)

Citation preview

John SteinbeckBomios errantesClRCUtO DO tIVROPrefcioCRCULO DO LIVRO S.A.Caixa postal 7413 01051 So Paulo, BrasilEdio integralTtulo do original: "Tortilla Fiat" Copyright 1935 John StenbeckTraduo: Jos San2Capa: layout de Natanael Longo de Oliveira; foto Ica PressLicena editorial para o Crculo do Livro por cortesia da Distribuidora Record de Servios de Imprensa S.A.Venda permitida apenas aos scios do CrculoComposto pela Linoart Ltda. Impresso e encadernado pelo Crculo do Livro S.A.468 10 9753 87 89 90 88 Esta a histria de Danny, de seus amigos e de sua casa. a histria de como esses trs se tornaram uma coisa s, de tal maneira que, em Tortilla Fiat, se algum fala da casa de Danny, no quer se referir a um prdio de madeira compensada, com uma caiao antiga, coberta por uma velha trepadeira no podada. No, quando se fala da casa de Danny, fica entendido que significa um grupo composto de homens, do qual emana delicadeza, alegria, filantropia e, no fim, um arrependimento mstico. Pois a casa de Danny no era diferente da Tvola Redonda, e os amigos de Danny no eram diferentes dos cavaleiros pertencentes quela. E esta a histria de como esse grupo se constituiu, como vicejou e cresceu, tornando-se uma organizao bela e sbia. Esta histria conta as aventuras dos amigos de Danny, o bem que fizeram, seus pensamentos e empreendimentos. No final, esta histria conta como o talism foi perdido e como o grupo se desintegrou.Em Monterey, velha cidade da costa da Califrnia, esses fatos so muito conhecidos, foram repetidos e, s vezes, enfeitados. Por isso, bom que esse ciclo seja escrito, para que, no futuro, os estudantes, ao ouvirem as lendas, no possam dizer o que dizem de Artur, de Rolando e de Robin Hood: "Danny no existiu, nem seus amigos, nem sua casa. Danny um deus da natureza, e seus amigos so smbolos primitivos do vento, do cu, do sol". Esta histria tem como ob-jetivo ltimo afastar as zombarias da boca dos estudantes sarcsticos.Monterey fica na encosta de uma colina, acima de umabaa azul e frente de uma densa floresta de enormes pinheiros. As partes mais baixas da cidade so habitadas por americanos, italianos, pescadores e enlatadores de peixes. Mas na colina, onde a floresta e a cidade se misturam, onde as ruas no so asfaltadas e as esquinas no tm lampies, os velhos habitantes de Monterey estavam preparados para o combate como os antigos bretes o estavam no Pas de Gales. Chamavam-se "paisanos".Moravam em velhas casas de madeira, em meio a quintais cobertos de ervas daninhas, tendo os pinheiros da floresta como fundo. Os paisanos estavam isentos de comercia-lismo, livres do complicado sistema dos negcios americanos, e, nada tendo que pudesse ser roubado, explorado ou hipotecado, aquele sistema no os atingiu muito fortemente.O que um paisano? \ uma mistura de sangue espanhol, ndio, mexicano e caucasiano de vrias procedncias. Seus antepassados vivem na Califrnia h mais de cem ou duzentos anos. Fala ingls com sotaque paisano e espanhol da mesma forma. Quando perguntado sobre sua raa, reivindica, indignado, um puro sangue espanhol e levanta a manga da camisa para mostrar que a parte interna do brao quase branca. Sua tez, da cor de um usado cachimbo de espuma-do-mar, descrita por ele como bronzeada pelo sol. um paisano e mora no ngreme distrito acima da cidade de Monterey denominado Tortilla Fiat, embora no tenha nada de plano.Danny era paisano, cresceu em Tortilla Fiat, e todos gostavam dele, porm no se distinguia especialmente dos barulhentos garotos que viviam ali. Era aparentado de quase todos em Tortilla Fiat, pelo sangue ou por aventuras amorosas. Seu av era um homem importante, dono de duas pequenas casas em Tortilla Fiat e respeitado por sua riqueza. Se o jovem Danny preferia dormir na floresta, trabalhar em ranchos e tirar sua comida e vinho de um mundo relutante, no era por no ter parentes influentes. Danny era pequeno, moreno e aplicado. Com a idade de vinte e cinco anos, suas pernas tinham s curvas exatas das ancas de um cavalo.Ora, quando Danny fez vinte e cinco anos, houve a declarao de guerra com a Alemanha. Danny e seu amigo Pilon (Pilon, alis, estava sempre includo, ao ser acertado um trabalho: uma lambujem) estavam com dois garrafes de vinho quando ouviram falar da guerra. Big Joe Portagee viu o brilho dos recipientes por entre os pinheiros e foi juntar-se a eles. medida que o vinho baixava de nvel nos garrafes, o patriotismo crescia nos trs homens. E quando o vinho acabou, desceram a colina de braos dados, por camaradagem e segurana, e foram para Monterey. Na frente de um posto de recrutamento, deram fortes vivas Amrica e desafiaram a Alemanha a derrot-los. Berraram ameaas ao Imprio Germnico at o sargento recrutador acordar, vestir a farda e sair para a rua a fim de silenci-los. Acabou alistando-os.O sargento colocou-os diante da sua escrivaninha. Passaram em tudo, menos no teste de sobriedade, e depois o sargento comeou as perguntas por Pilon.Em qual das armas deseja se alistar?

Pouco me importa respondeu Pilon, alegremente.

Acho que a infantaria est precisando de gentecomo voc.

E alistou Pilon nela. Virou-se ento para Big Joe, e ele foi ficando sbrio.Para onde deseja ir?

Quero ir para casa retrucou Big Joe, triste.

O sargento alistou-o tambm na infantaria. Finalmente, encarou Danny, que estava dormindo em p.Para onde quer ir?

H?

Para que arma?

Que quer dizer com "arma"?

Que sabe fazer?

Eu? Qualquer coisa.

Que fazia antes?

Eu? Sou condutor de mulas.

Ah, ? Quantas mulas pode guiar?

Danny inclinou-se para a frente, meio em dvida, mas com ar profissional.Quantas tem?Umas trinta mil respondeu o sargento.

Pode p-las em fila! disse ele.

E assim Danny foi para o Texas, onde amansou mulas durante a guerra toda. Pilon foi para o Oregon com a infantaria e Big Joe, como mais tarde ser esclarecido, foi para a cadeia. Como Danny, de volta da guerra, tornou-se herdeiro e como jurou proteger os deserdadosQuando Danny voltou do exrcito para casa, soube que se tornara herdeiro e proprietrio. O viejo, ou seja, o av, morrera, deixando para Danny duas casinhas em Tortilla Fiat.Quando Danny soube disso, ficou um pouco abatido pela responsabilidade de ser dono. Antes mesmo de ir olhar sua propriedade, comprou um garrafo de vinho tinto e bebeu sozinho quase tudo. O peso da responsabilidade ento o abandonou, e o que havia de pior em sua natureza veio tona. Berrou, quebrou algumas cadeiras num bilhar da Al-varado Street e travou duas pequenas mas gloriosas brigas. Ningum deu muita ateno a Danny. Por fim, suas vacilantes pernas arqueadas o carregaram para o molhe aonde, quela hora da manh, os pescadores italianos comeavam a chegar, com suas botas de borracha, a caminho do mar.A antipatia racial sobreps-se ao bom senso de Danny. Ameaou os pescadores.Sicilianos filhos da puta! gritou, acrescentando: Escria da priso. Cachorrada. Continuou: Chingatu madre, pojo.Meteu o polegar no nariz e fez gestos obscenos abaixo da cintura. Os pescadores apenas riram, acenaram com os remos e disseram:Ol, Danny. Quando voltou? Aparea hoje noite.Temos vinho novo.Danny ficou indignado. Berrou:Pon un condo a Ia cabeza.Eles responderam: At logo, Danny. At a noite.Pularam para seus pequenos barcos e remaram, afastando-se. Ento ligaram os motores e partiram.Danny estava ofendido. Voltou para a Alvarado Street, aonde chegou quebrando janelas, e, no segundo quarteiro, um policial o segurou. O grande respeito de Danny pela lei fez com que no reagisse. Se no tivesse acabado de dar baixa do exrcito aps a vitria contra a Alemanha, teria pegado seis meses de cadeia. Esse fato fez com que o juiz lhe desse s trinta dias.Por isso, durante um ms, Danny ficou sentado em seu catre na cadeia pblica de Monterey. s vezes desenhava coisas obscenas nas paredes e s vezes ficava pensando na sua carreira militar. Ali naquela cela da cadeia pblica, o tempo custava a passar para Danny. Vez por outra, metiam um bbado na sua cela por uma noite, mas o crime quase no existia em Monterey, e Danny ficava s. A princpio, os percevejos o incomodavam um pouco, mas quando estes se acostumaram com ele e ele com suas picadas, passaram a conviver pacificamente.Comeou a fazer uma brincadeira divertida. Pegou um percevejo, esmagou-o contra a parede, fez-lhe um crculo em volta com um lpis e chamou-o "Prefeito Clough". Depois pegou outros e deu a cada um o nome dos vereadores. Em pouco tempo, tinha uma parede inteira enfeitada com percevejos esmagados, cada um com o nome de um figuro local. Desenhou orelhas e rabos neles e tambm nariges e bigodes. Tito Ralph, o carcereiro, ficou escandalizado. Mas no fez queixa porque Danny no incluiu a justia que o condenara nem os membros da polcia. Ele tinha um enorme respeito pela lei.Certa noite, quando a priso estava vazia, Tito Ralph foi at a cela de Danny com duas garrafas de vinho. Uma hora depois, saiu para buscar mais vinho e Danny foi com ele. A priso era muito triste. Ficaram no Torrelli, onde compraram o vinho, at serem postos para fora. Depois disso, Danny foi para o pinheiral, onde ficou dormindo, enquanto Tito Ralph voltou cambaleando para comunicar sua fuga.Quando o sol ofuscante acordou Danny, por volta do10 meio-dia; ele resolveu esconder-se o dia inteiro para evitar a perseguio. Correu e abrigou-se numa sebe. Olhou por entre os arbustos como uma raposa caada. E, de noite, depois que as normas foram cumpridas, saiu e voltou sua ocupao.A ocupao de Danny foi absolutamente direta. Dirigiu-se porta de trs de um restaurante.Tem a um po velho para o meu cachorro? perguntou ao cozinheiro.E enquanto aquela crdula criatura estava embrulhando o alimento, Danny roubou duas fatias de presunto, quatro ovos, uma costeleta de carneiro e um mata-moscas.Um dia lhe pagarei disse Danny.

No precisa pagar por sobras. Se voc no as levar,eu as jogarei fora.

Ouvindo isso, Danny sentiu a conscincia mais leve' pelo roubo. Se essa era a filosofia deles, aparentemente ele no era culpado. Voltou ao Torrelli, trocou os quatro ovos, a costeleta de carneiro e o mata-moscas por um copo cheio de bagaceira e voltou para o mato, a fim de preparar seu jantar.A noite estava escura e mida. A neblina pendia como farrapos de gaze dos pinheiros escuros que demarcavam os limites de Monterey. Danny baixou a cabea e correu para o abrigo da floresta. Distinguiu sua frente uma outra figura apressada e, quando a distncia diminuiu, reconheceu o andar rpido do seu amigo Pilon. Danny era um rapaz generoso, mas lembrou que havia vendido toda a sua comida, com exceo dos dois pedaos de presunto e do po amanhecido.No vou tomar conhecimento de Pilon resolveu. Ele anda como se estivesse cheio de peru assado e coisasassim.Ento, de repente, Danny reparou que Pilon havia fechado o casaco carinhosamente sobre o peito.Oi, Pilon amigo! gritou Danny.Pilon aumentou as passadas. Danny comeou a correr.Pilon, meu amiguinho! Aonde vai to depressa?Pilon resignou-se ao inevitvel e esperou. Danny aproximou-se cautelosamente, mas seu tom era entusistico.11Procurei-o, mais querido dos amigos anglicos, poisolhe, tenho aqui dois grandes nacos de porco do prprioDeus e um saco de doce po branco. Partilhe da minha fartura, Pilon, meu tampinha.Pilon encolheu os ombros.Como queira resmungou brutalmente.Entraram juntos na mata. Pilon estava confuso. Finalmente, parou e encarou o amigo.Danny perguntou com voz triste , como soube que eu tinha uma garrafa de conhaque escondida nocasaco?

Conhaque? gritou Danny. Voc tem conhaque? Talvez seja para uma velha me doente disse, candidamente. Talvez voc a tenha guardado para o MeninoJesus, para quando Ele voltar. Quem sou eu, seu amigo,para avaliar o destino desse conhaque? Nem mesmo estoucerto de que voc o tenha. Alm do mais, no estou comsede. No beberei seu conhaque. Seja bem-vindo a este enorme porco assado que me pertence, mas, quanto ao seu conhaque, ele seu.

Pilon respondeu duramente:Danny, no me importo de dividir meu conhaquecom voc, meio a meio. Tenho a obrigao de no deixarque voc o beba todo.Danny deixou o assunto morrer.Vou cozinhar este porco aqui na clareira e voctostar os bolinhos que esto neste saco. Ponha seu conhaque ali, Pilon. Ali melhor, onde o possamos ver e ver tambm um ao outro.Acenderam uma fogueira, grelharam o presunto e comeram o po dormido. O conhaque diminuiu rapidamente na garrafa. Depois de comerem, acocoraram-se junto da fogueira e tomaram delicadamente golinhos da garrafa, como abelhas exaustas. A neblina caiu sobre eles, cobrindo seus casacos de umidade. O vento sussurrava tristemente nos pinheiros, acima de suas cabeas.E pouco depois a solido abateu-se sobre Danny e Pilon. Danny pensou nos amigos desaparecidos.Onde est Arthur Morales? perguntou Danny,virando as palmas das mos para cima e estendendo os bra- OS Morto na Frana respondeu a si mesmo, virando as palmas das mos para baixo e deixando os braos carem, desalentado. Morto pela ptria. Morto em terra estranha. Estranhos andam perto de seu tmulo e no sabem que Arthur Morales jaz ali. Tornou a virar as palmas das mos para cima. Onde est Pablo, aquele bom sujeito?Na cadeia respondeu Pilon. Pablo roubouum ganso e o escondeu no mato. O ganso bicou Pablo, quegritou e foi apanhado. Agora ficar na priso durante seismeses.Danny suspirou e mudou de assunto, pois percebeu que havia utilizado abusivamente o nico conhecido apropriado para alimentar a conversa. Mas a solido continuava dentro dele e pedia passagem.Aqui estamos ns comeou.

. . .de corao partido acrescentou Pilon, com-passadamente.

No, isto no um poema falou Danny. Aquiestamos ns desabrigados. Demos nossas vidas pela nossaptria e agora no temos um telhado para nos abrigar.

Nunca tivemos completou Pilon, corrigindo-o.Danny bebeu pensativamente, at que Pilon tocou emseu brao e pegou a garrafa.Isso me faz lembrar disse Danny a histriadaquele homem que tinha duas penses de mulheres. . . Ficou de boca aberta. Pilon! gritou. Pilon! Meupatinho gordo, meu garotinho. Eu tinha esquecido! Sou herdeiro! Possuo duas casas.

Casas de mulheres? perguntou Pilon, esperanoso. Voc um bbado mentiroso prosseguiu.

No, Pilon. Estou dizendo a verdade. O viejo morreu. Sou o herdeiro dele. Eu, seu neto predileto.

Voc o nico neto disse o realista Pilon. Onde ficam as casas?

Voc conhece a casa do viejo em Tortilla Fiat,Pilon?

Aqui em Monterey?

Sim, aqui em Tortilla Fiat.

Essas casas valem alguma coisa?Danny recostou-se, exausto de emoo.

12 13No sei. Esqueci que era dono delas.Pilon ficou calado e ensimesmado. Sua tristeza aumentou. Atirou um punhado de folhas na fogueira, olhou as chamas crescerem freneticamente e depois morrerem. Durante muito tempo fixou o olhar no rosto de Danny, com profunda ansiedade, e depois suspirou ruidosamente mais de uma vez.Agora est acabado disse, tristemente. Agorachegaram os grandes tempos. Seus amigos vo lamentar,mas de nada adiantar.Danny largou a garrafa e Pilon apanhou-a, colocando-a no colo.O que que est acabado? perguntou Danny. O que que voc quer dizer?No a primeira vez continuou Pilon. Quando a gente pobre, pensa: "Se eu tivesse dinheiro, dividiriatudo com meus amigos". Mas, assim que o dinheiro chega,a caridade some. O mesmo se dar com voc, meu antigoamigo. Voc foi guindado acima dos seus amigos. umhomem de posses. Vai esquecer seus amigos, que dividiramtudo com voc, inclusive o conhaque.Essas palavras preocuparam Danny.

Eu, no! gritou. Jamais o esquecerei, Pilon. o que voc pensa agora respondeu Pilon,friamente. Mas quando tiver duas casas onde dormir,ento ver. Pilon continuar um pobre paisano, enquantovoc comer com o prefeito.Danny ergueu-se dificultosamente e conseguiu manter-se em p contra uma rvore.

Pilon, juro, tudo o que meu seu. Enquanto eutiver uma casa, voc ter uma casa. Me d um gole.Preciso ver para crer respondeu Pilon, com vozdesanimada. Ser uma coisa maravilhosa se acontecer.Vir gente de todos os cantos para ver. E, alm disso, a garrafa est vazia.14

Como Pilon foi atrado pela ambio de posio, desistindo da hospitalidade de DannyO advogado os deixou no porto da segunda casa, entrou no seu Ford e sacolejou colina abaixo, de volta a Monterey.Danny e Pilon pararam defronte da cerca sem pintura e olharam com admirao para a propriedade, uma casa baixa, com restos de uma caiao antiga, janelas sem cortinas, vazias e opacas. Mas uma grande roseira vermelha cobria a varanda, e os gernios do av cresciam entre as ervas daninhas do jardim.Esta a melhor das duas disse Pilon. Emaior que a outra.Danny tinha uma chave mestra na mo. Entrou cuidadosamente na varanda vacilante e abriu a porta. A sala estava exatamente como era quando o viejo morava ali. O calendrio de 1906, com a rosa vermelha, a flmula de seda na parede, com Fighting Bob Evans olhando do convs de um couraado, o buque de rosas vermelhas de papel, as fieiras de pimenta vermelhas e alhos empoeirados, a estufa impermevel, as estragadas cadeiras de balano.Pilon olhou pela porta.Trs quartos disse, ofegante , uma cama euma estufa. Ficaremos felizes aqui, Danny.Danny entrou cautelosamente na casa. Tinha amargas recordaes do velho. Pilon passou frente dele e entrou na cozinha.Uma pia com torneira! gritou. Abriu a torneira. No tem gua. Danny, voc precisa fazer com que acompanhia ligue a gua.15Pararam e sorriram um para o outro. Pilon reparou que a preocupao com a propriedade se estampava no rosto de Danny. Nunca mais na vida aquele rosto estaria livre de preocupaes. Nunca mais Danny quebraria janelas, agora que ele possua janelas que podiam ser quebradas. Pilon tinha razo: ele crescera entre amigos. Seus ombros tinham se erguido para enfrentar a complexidade da vida. Mas um grito de dor escapou-lhe antes de abandonar para sempre sua existncia velha e simples.Pilo disse, tristemente , eu gostaria quevoc fosse o dono e eu pudesse morar com voc.Enquanto Danny foi a Monterey tratar de ligar a gua, Pilon ficou vagabundeando no quintal cheio de mato. Havia rvores frutferas, raquticas e escurecidas pela idade, retorcidas e quebradas pelo abandono. Havia alguns galinheiros no meio das ervas daninhas. Uma pilha de arcos de barril enferrujados, um monte de cinzas e um colcho encharcado. Pilon olhou, por cima da cerca, para o galinheiro da sra. Morales e, depois de um momento de reflexo, abriu alguns pequenos buracos na cerca para dar passagem s galinhas. "Elas gostaro de fazer ninhos no mato alto", pensou, bondoso. Ficou imaginando como fazer uma armadilha para evitar que os galos tambm entrassem, incomodassem as galinhas e as mantivessem afastadas dos ninhos. "Vamos viver felizes aqui", tornou a pensar.Danny voltou indignado de Monterey.A tal companhia quer um depsito informou.

Depsito?

. Querem trs dlares antes de tornarem a ligara gua.

Trs dlares anunciou Pilon seriamente sotrs garrafes de vinho. E quando ele acabar, pediremos emprestado sra. Morales, a ao lado, um balde de gua.

Mas no temos trs dlares para o vinho.

Eu sei respondeu Pilon. Talvez possamospedir um pouco emprestado sra. Morales.

A tarde passou.Vamos nos instalar amanh anunciou Danny. Amanh comearemos a limpar e esfregar. E voc, Pilon,capinar esse mato e o jogar na ravina.16 Esse mato? gritou Pilon, horrorizado. Essemato, no.E explicou-lhe sua teoria sobre as galinhas da sra. Morales. Danny concordou imediatamente.Meu amigo disse ele , estou contente porvoc ter vindo morar comigo. Agora, enquanto apanho umpouco de lenha, voc ir procurar alguma coisa para o jantar.Pilon, lembrando-se do conhaque, achou isso injusto."Estou comeando a depender dele", pensou, com amargura. "Minha liberdade em breve acabar. Logo me tornarei escravo por causa desta casa enganadora." Mas assim mesmo saiu procura do jantar.Duas quadras adiante, quase entrando no pinheiral, estava um frango plymouth rock ciscando a estrada. Havia chegado idade adolescente em que a voz racha e as pernas, o pescoo e o peito ficam pelados. Talvez porque houvesse pensado de maneira caridosa a respeito das galinhas da sra. Morales, aquele frango despertou a simpatia de Pilon. Caminhou devagar para o escuro pinheiral, e o animal correu sua frente.Pilon murmurou:Pobre bichinho desamparado. Deve estar muito friopara voc nesta madrugada, com o orvalho caindo e o aresfriando com o amanhecer. O bom Deus nem sempre muito generoso com os bichinhos.E pensou: "Agora voc brinca na rua, franguinho. Um dia, um automvel o atropelar, e se o matar, ser o melhor que pode acontecer. Poder apenas quebrar sua perna ou sua asa. Ento, por toda a sua vida, voc se arrastar sofrendo. A vida muito dura para voc, passarinho".Mexia-se devagar e com cuidado. De vez em quando, o frango tentava voltar, mas Pilon estava sempre no lugar escolhido por ele. Finalmente, o animal desapareceu no pinheiral, e Pilon lanou-se atrs dele.Para glria de sua alma, deve ser dito que nenhum pio de dor saiu daquela moita. O frango, para quem Pilon havia profetizado uma vida de dor, morreu pacificamente u, pelo menos, silenciosamente. E isso no foi uma homenagem pequena tcnica de Pilon.Dez minutos depois, saiu do bosque e voltou para a17casa de Danny. O galeto, depenado e esquartejado, estava distribudo em seus bolsos. Se havia uma norma de conduta mais forte que qualquer outra para Pilon, era esta: nunca, em nenhuma circunstncia, leve penas, cabea ou ps para casa, pois, sem eles, uma galinha no pode ser identificada. Ao anoitecer, acenderam um fogo de agulhas de pinheiro na estufa. As chamas subiram pela chamin. Danny e Pilon, bem alimentados, aquecidos e contentes, sentaram-se nas cadeiras de balano e embalaram-se suavemente. Tinham usado um toco de vela durante o jantar, mas agora apenas a luz vinda das brasas da estufa dissipava a escurido da sala. Para tudo ficar perfeito, a chuva comeou a tamborilar no telhado. Apenas algumas pequenas goteiras, e isso em lugares onde, afinal de contas, ningum queria se sentar. bom isto aqui comentou Pilon. Pense nasnoites em que dormimos ao relento. Isto que vida.

verdade, e estranho respondeu Danny. Durante anos no tive casa e agora tenho duas. No possodormir em duas casas.

Pilon detestava o desperdcio.Essa uma coisa que vem me preocupando. Porque voc no aluga a outra casa? sugeriu.Os ps de Danny bateram no cho com estrondo.Pilon! gritou. Por que no pensei nisso? A ideia comeou a criar razes. Mas quem quereralug-la?

Eu disse Pilon. Pagarei dez dlares por msde aluguel.

Quinze insistiu Danny. uma boa casa. Valequinze.

Pilon concordou, resmungando. Mas teria concordado com muito mais, pois sabia a importncia de um homem que morava em sua prpria casa. E Pilon ansiava por sentir essa importncia.Ento estamos acertados concluiu Danny. Voc alugar minha casa. Ah, eu serei um bom locador,Pilon. No importunarei voc.Pilon, com exceo daquele ano no exrcito, nunca possura quinze dlares em toda a vida. Mas, pensou, o18 aluguel s seria pago dali a um ms, e nunca se sabe o que pode acontecer num ms.Ficaram se balanando diante do fogo. Depois de algum tempo, Danny saiu um instante e voltou com mas.De qualquer maneira, a chuva iria estrag-las justificou-se.Pilon, para no ser sobrepujado, levantou-se e acendeu a vela. Foi ao quarto e, logo depois, voltou com uma bacia e um jarro, dois vasos de vidro vermelho e um punhado de penas de avestruz.No bom ter muitas coisas quebrveis em volta disse. Quando se quebram, a gente fica triste. muitomelhor nunca t-las tido.Arrancou um pedao do papel de rosas da parede.Um presente para a senora Torrelli explicou,enquanto caminhava para a porta e saa.Voltou logo depois, molhado de chuva, mas triunfante, pois exibia um garrafo de vinho tinto.Discutiram acaloradamente mais tarde, mas nenhum deles se importou em saber quem venceu, pois estavam cansados com a excitao da jornada. O vinho os deixara meio sonolentos, e deitaram-se no cho para dormir. O fogo apagou-se. A estufa estalou e arrefeceu. A vela bruxuleou e expirou em sua prpria gordura, emitindo pequenas fagulhas azuis de protesto. A casa ficou escura, silenciosa e tranquila.19Como o veneno da posse agiu sobre Pilon e como o mal triunfou temporariamente sobre eleNo dia seguinte, Pilon foi morar na outra casa. Era exatamente igual de Danny, s que menor. Tinha a mesma roseira no alpendre, o quintal de ervas daninhas, as rvores velhas e infrutferas, os gernios vermelhos. . . e o galinheiro da sra. Soto bem ao lado.Danny tornou-se um homem importante por ter uma casa para alugar, e Pilon subiu na escala social por ter alugado uma casa. impossvel saber se Danny esperava receber algum aluguel ou se Pilon pretendia pag-lo. Se esperavam, ficaram ambos decepcionados. Danny nunca cobrou, e Pilon jamais o ofereceu.Os dois' amigos estavam sempre juntos. Bastava Pilon chegar com um garrafo de vinho ou um pedao de carne e era certa a visita de Danny. E, se Danny tinha a mesma sorte ou era to esperto quanto Pilon, este passava uma noite dissoluta com ele. O pobre Pilon teria pago o aluguel se algum dia possusse um nquel, coisa que nunca aconteceu . . . pelo menos at que ele encontrasse Danny. Pilon era um sujeito honesto. s vezes ficava preocupado pensando na bondade de Danny e em sua prpria pobreza.Certa noite, conseguiu um dlar, obtido de maneira to espantosa que tratou imediatamente de esquec-la, com medo de que a recordao o deixasse maluco. Um homem, defronte do San Carlos Hotel, meteu-lhe um dlar na mo, dizendo: "Corra e traga-me quatro garrafas de ginger-ale. O hotel no tem". Essas coisas acontecem quase por milagre, pensou Pilon. Algum confiou nele, sem se preocupar ou fazer perguntas. Pegou o dlar e saiu correndo para d-lo a Danny, mas no caminho comprou um garrafo de vinho e, com isso, atraiu duas garotas rechonchudas para sua casa.Danny, passando por l, ouviu o barulho e entrou, alegre. Pilon caiu em seus braos e ps tudo disposio dele. E mais tarde, depois de Danny dar conta de uma das moas e de metade do vinho, houve uma briga realmente boa. Danny perdeu um dente e Pilon ficou com a camisa em farrapos. As garotas gritavam e chutavam qualquer dos homens que caam. Finalmente, Danny levantou-se do cho e deu uma cabeada na barriga de uma das moas, que saiu porta afora, coaxando como um sapo. A outra roubou duas panelas e seguiu-a.Por um momento, Danny e Pilon lamentaram a perfdia das mulheres.Voc no sabe o que essas vagabundas so disseDanny, judiciosamente.

Sei respondeu Pilon.

No sabe.

Sei.

Mentiroso.

Houve uma nova briga, mas no to boa.Depois disso, Pilon ficou mais contente no que tocava ao aluguel no pago. No havia sido anfitrio do seu locador?Passaram-se vrios meses. Pilon recomeou a se preocupar com o aluguel. E, com o passar do tempo, a preocupao tornou-se intolervel. Finalmente, em desespero, trabalhou um dia inteiro para Chin Kee, limpando lulas, e ganhou dois dlares. De noite, amarrou o leno vermelho no pescoo, colocou na cabea o venerando chapu do pai e comeou a subir a colina para pagar os dois dlares a Danny, por conta.Mas, no caminho, comprou dois garrafes de vinho. "Assim melhor", pensou. "Se dou a ele erva viva, isso no exprime o quanto eu prezo o meu amigo. Mas um presente, sim. E direi a ele que os dois garrafes custaram cinco dlares." Aquilo era uma bobagem e Pilon sabia disso, mas perdoou-se. Ningum em Monterey sabia o preo do vinho melhor que Danny.

20 21Pilon prosseguiu alegremente. Estava decidido. Seu nariz estava firmemente apontado para a casa de Danny. Seus ps moviam-se no rapidamente, mas tranquilamente na di-reo certa. Sob cada brao levava um saco de papel e dentro de cada um, um garrafo de vinho.Era um crepsculo avermelhado, aquela hora agradvel em que a sesta acabou e a noite de prazer e conversa ainda no comeou. Os pinheiros recortavam-se, muito escuros, no cu, e todos os objetos no cho estavam ocultos pela escurido. Mas a cu tinha o brilho embaado de uma recordao. As gaivotas voavam preguiosamente para os ninhos, nas rochas marinhas, depois de um dia de visita s fbricas de peixe enlatado de Monterey.Pilon era amante da beleza e um mstico. Ergueu o rosto para o cu e sua alma desprendeu-se, integrando-se nos ltimos clares do sol. Aquele Pilon no to perfeito assim, que intrigava e brigava, que bebia e praguejava, avanava lentamente. Mas o Pilon anelante e luminoso elevou-se para as gaivotas, que batiam suas asas sensveis no anoitecer. Aquele Pilon era belo, e seus pensamentos no eram maculados pelo egosmo e a cobia. E valia a pena conhecer seus pensamentos."Nosso Senhor est no anoitecer", pensou. "Aqueles pssaros esto cruzando a fronte de Deus. Queridos pssaros, queridas gaivotas, como eu os amo a todos. Suas asas lentas acariciam meu corao como a mo de um dono gentil acaricia a barriga de um co adormecido, como a mo de Cristo acariciou as cabeas das criancinhas. Queridos pssaros", pensou, "voem para Nossa Senhora das Dores, com meu corao-aberto." E depois pronunciou as mais belas palavras que conhecia: "Ave Maria, gratia plena. . ."Os ps do mau Pilon haviam parado. Na verdade, o mau Pilon tinha, naquele momento, deixado de existir (Oua isto, anjo anotador!). No havia, no houve ou jamais haveria uma alma mais pura que a de Pilon naquele instante. O buldogue feroz de Galvez aproximou-se das pernas nuas de Pilon, paradas solitrias na escurido. Farejou e foi embora sem mord-las.Uma alma lavada e salva uma alma duplamente em perigo, pois tudo no mundo conspira contra ela. "At as22 palhas sob meus joelhos", diz Santo Agostinho, "gritam para me distrair da prece."A alma de Pilon nem mesmo era prova de suas prprias recordaes. Pois, enquanto olhava os pssaros, lembrou-se de que a sra. Pastano s vezes usava gaivotas em seu iamales', e essa recordao o deixou esfomeado, e a fome fez sua alma desabar do cu. Pilon tornou a andar, mais uma vez uma astuta mistura do bem com o mal. O buldogue mau de Galvez virou-se rosnando e afastou-se, lamentando agora ter permitido que a perfeita oportunidade das pernas de Pilon se fosse.Pilon arqueou os braos para aliviar o peso das garrafas. um fato confirmado e registrado em muitas histrias que a alma capaz das maiores bondades tambm o das maiores maldades. Que h de mais mpio que um padre apstata? Quem mais carnal que uma virgem moderna? Este, porm, pode ser um problema de aparncia.Pilon, recm-voltado do cu, estava, embora no o soubesse, singularmente receptivo a cada vento amargo, inclinado a cada influncia m que abarrotava a noite ao seu redor. De fato, seus ps continuavam movendo-se em direo casa de Danny, mas no havia nenhuma inteno nem convico neles. Aguardavam o menor sinal para dar meia-volta. Pilon j estava pensando em como ficaria estupendamente bbado se pudesse beber dois garrafes de vinho e, mais, em quanto tempo a bebedeira duraria.Agora estava quase escuro. A estrada poeirenta no era mais visvel, nem as valas em ambos os lados. Nenhuma concluso moral pode ser tirada do fato de que, naquele momento, quando os impulsos de Pilon estavam to precariamente equilibrados quanto uma pena entre a generosidade e o egosmo, naquele exato momento, aconteceu de Pablo Sanchez estar sentado na vala ao lado da estrada, desejando ter um cigarro e um copo de vinho.Ah, as preces de milhes, como precisam lutar e destruir umas s outras no seu caminho para o trono de Deus.__1 Pamonhas de milho. (N. do T.)23Pablo primeiro ouviu passos, depois viu um vulto borrado e ento reconheceu Pilon.Oi, amigo! gritou entusiasticamente. Quegrande peso esse que voc carrega?Pilon imobilizou-se e voltou-se para a vala.Pensei que voc estivesse na cadeia disse, asperamente. Ouvi falar a respeito de um ganso.

Estive, Pilon disse Pablo alegremente. Masno fui bem recebido. O juiz disse que minha sentena noseria boa, e a polcia disse que como mais que a rao detrs homens. Por isso terminou com orgulho , estouem livramento condicional.

Pilon foi salvo do egosmo. De fato, no levou o vinho para a casa de Danny, mas convidou imediatamente Pablo para partilhar dele na casa alugada. Se duas amplas trilhas partem da estrada da vida e s uma pode ser palmilhada, quem pode dizer qual a melhor?Pilon e Pablo entraram alegremente na casinha. Pilon acendeu uma vela e trouxe dois potes de gelia para servir de copos.Sade! disse Pablo.

Salud! retrucou Pilon.E, momentos aps:

Salud! disse Pablo.

Areia nos seus olhos! disse Pilon.Descansaram um momento.

Su servidor disse Pilon.

Abaixo o buraco de rato disse Pablo.

Dois garrafes um bocado de vinho, mesmo para dois paisanos. Espiritualmente, o garrafo pode ser graduado assim: logo abaixo do gargalo do primeiro, conversa sria e concentrada. Cinco centmetros mais abaixo, suaves e tristes recordaes. Sete centmetros mais, lembranas de velhos e agradveis amores. Dois centmetros, pensamentos de amores antigos e amargos. Fundo do primeiro garrafo, tristeza geral, esparsa. Abaixo do gargalo do segundo garrafo, desalento pecaminoso e sinistro. Dois dedos abaixo, canto de morte ou ansiedade. Um polegar, qualquer cano que cada um conhea. A gradao pra aqui, pois a trilha se divide e no h certeza. Desse ponto em diante, tudo pode acontecer. Mas voltemos primeira marca, que trata de conversa sria e concentrada, pois foi a que Pilon deu seu golpe. Pablo disse ele , voc nunca se cansa de dormir em valas, molhado e sem lar, sem amigos e solitrio? No disse Pablo.Pilon amaciou a voz persuasivamente. Pois eu pensei, meu amigo. Quando era cachorro desarjeta, eu tambm, estava contente, pois no sabia como agradvel uma casinha, um telhado, um jardim. Ah, Pablo, isso que viver! muito bacana concordou Pablo.Pilon atacou.Olhe, Pablo, voc gostaria de alugar metade daminha casa? Voc nunca mais ficar ao relento nas noitesgeladas. Ficar livre da areia dura do embarcadouro e doscaranguejos que se metem em seus sapatos. Que tal moraraqui comigo?

De acordo disse Pablo.

Olhe, voc s pagar quinze dlares por ms! Epoder usar a casa toda, menos minha cama. E todo o jardim. Pense nisso, Pablo! E se algum lhe escrever uma carta,ter para onde enderear.

Claro disse Pablo. timo.

Pilon deu um suspiro de alvio. Ele no tinha percebido quanto a dvida para com Danny pesava em seus ombros. O fato que ele estava plenamente convencido de que Pablo jamais pagaria aluguel algum que aliviasse sua vitria. Se Danny alguma vez pedisse dinheiro, Pilon podia dizer: "Pagarei quando Pablo me pagar".Passaram para a segunda marca, e Pilon recordou-se de seu tempo feliz de criana.Sem preocupaes, Pablo. No conhecia o pecado.Eu era muito feliz.

Nunca fomos to felizes desde ento concordouPablo, triste.

24

Como Jesus Maria Corcoran, um bom homem, tornou-se um veculo involuntrio do malA vida passava suavemente por Pilon e Pablo. Pela manh, quando o sol brilhava sobre os pinheiros, quando a baa azul se agitava e reluzia l embaixo, eles se levantavam preguiosa e pensativamente da cama.Era um momento de alegria silenciosa, de manh ensolarada. Quando o orvalho reluzente molhava as touceiras de malva, cada folha exibia uma jia que era bela, apesar de no ser valiosa. No era hora para pressa ou alvoroo. Os pensamentos eram lentos, profundos e preciosos de manh.Pablo e Pilon, com suas calas e camisas de algodo, caminhavam como camaradas at a ravina que havia atrs da casa e logo depois voltavam, para sentar-se ao sol na varanda da frente, ouvir a corneta dos peixeiros nas ruas de Monterey e discutir, em tom vago e sonolento, os acontecimentos de Tortilla Fiat. Pois havia milhares de coisas importantes em Tortilla Fiat a cada volta que o mundo dava sobre si mesmo.Estavam em paz, ali na varanda. S os dedos de seus ps se mexiam nas tbuas quentes, quando as moscas pousavam neles.Se todo o orvalho fosse diamantes disse Pablo, seramos muito ricos. Ficaramos bbados a vida inteira.Mas Pilon, sobre quem a maldio do realismo pesava incomodamente, acrescentou:Todo mundo teria diamantes s pampas. No haveria preo para eles, mas o vinho sempre custa dinheiro.Agora, se chovesse vinho pelo menos durante um dia etivssemos um tanque para encher, a sim. Mas vinho bom interrompeu Pablo. E noaquela zurrapa que voc trouxe da ltima vez. No paguei por ele disse Pilon. Algum oescondeu na grama perto do salo de danas. Que se pode esperar de vinho achado?Sentaram-se e abanaram as mos, sem prestar ateno, espantando as moscas. Cornelia Ruiz cortou o negro mexicano ontem comentou Pilon.Pablo ergueu os olhos, meio interessado.Briga? perguntou.

No, o negro no sabia que Cornelia havia arranjado um novo homem ontem e tentou entrar. Ento Corneliapassou-lhe a faca.

Ele deveria saber disse Pablo, honestamente.

Bem, ele estava na cidade quando ela levou ohomem novo. O negro apenas tentou entrar pela janelaquando ela trancou a porta.

O negro louco disse Pablo. Morreu?

No. Ela apenas lanhou seus braos. Cornelia noestava zangada. S no queria deixar o negro entrar.

Cornelia no uma mulher muito constante disse Pablo. Mas, apesar disso, ainda manda rezar missapor seu pai, morto h dez anos.

Ele precisa disso comentou Pilon. Foi umhomem malvado e nunca pegou cadeia por isso, e ademaisnunca se confessou. Quando o velho Ruiz estava agonizando,o padre foi dar-lhe conforto e Ruiz se confessou. Corneliaconta que o padre estava amarelo como cera quando saiudo quarto dele. Mais tarde, aquele padre disse que no tinhaacreditado em metade do que Ruiz confessou.

Pablo, com um movimento felino, matou uma mosca que pousara em seu joelho.Ruiz foi toda a vida um mentiroso disse. Aquela alma precisa de muitas missas. Mas voc acha queuma missa tem valor quando o dinheiro que custa sai dobolso dos homens que dormem embriagados na casa deCornelia?No7~ Uma missa uma missa respondeu Pilon. interessa, a quem lhe vende um copo de vinho, onde

26 27voc achou o dinheiro. E de onde vem uma missa no interessa a Deus. Ele apenas gosta delas, como voc gosta de vinho. O padre Murphy costumava pescar o tempo todo, e durante meses a hstia sagrada tinha gosto de cavala, mas nem por isso deixava de ser sagrada. So coisas que os padres explicam. No temos que nos preocupar com isso. Estou imaginando onde poderemos arranjar uns ovos para comer. Seria timo comer uns ovos agora.Pablo inclinou o chapu sobre os olhos para evitar que o sol o incomodasse.Charlie Meeler me contou que Danny est com RosaMartin, a moa portagee.Pilon empertigou-se, assustado.Talvez ela queira se casar com Danny. Essas por-tagees querem sempre se casar e adoram dinheiro. TalvezDanny comece a nos amolar, depois de casado, por causa doaluguel. Essa Rosa vai querer vestidos novos. Todas asmulheres querem isso. Eu as conheo.Pablo tambm estava aborrecido.Quem sabe se formos falar com Danny. . . sugeriu.

Talvez Danny tenha alguns ovos disse Pilon. As galinhas da sra. Morales so boas poedeiras.

Calaram os sapatos e partiram devagar para a casa de Danny.Pilon parou e apanhou uma tampa de garrafa de cerveja. Disse um palavro e jogou-a fora.Um sujeito mau deixou isto aqui para desapontaras pessoas falou.

Vi isso ontem de noite disse Pablo.

Deu uma olhada num quintal onde as espigas de milho estavam maduras e tomou nota mentalmente da sua madureza.Encontraram Danny sentado no alpendre da frente, por trs da roseira, mexendo os dedos para afastar as moscas.Ei, amigos saudou-os, sem muito entusiasmo.Sentaram-se ao lado dele, tiraram os chapus e os sapatos. Danny apanhou uma bolsa de fumo e papis, entregando-os a Pilon. Pilon ficou um tanto chocado, mas no fez nenhum comentrio. . Cornelia Ruiz cortou o negro mexicano disse.Ouvi falar respondeu Danny.Pablo comentou acidamente: No h mais virtude nessas mulheres.. um perigo dormir com elas disse Pilon. Soube que h uma moa portagee aqui em Tortilla Fiat que pode dar a um homem algo de que ele no se esquecer, se se der ao trabalho de estar com ela.Pablo cacarejou, manifestando sua desaprovao. Abriu os braos.Que pode um homem fazer? perguntou. Nose pode confiar em ningum?Encararam Danny e no viram qualquer sinal de alarme em seu rosto.A moa se chama Rosa disse Pilon. No seiseu sobrenome.

Ah, voc est falando de Rosa Martin comentouDanny, revelando pouco interesse. Ora, que se pode esperar de uma portagee?

Pablo e Pilon respiraram, aliviados.Como vo as galinhas da sra. Morales? perguntou Pilon, como que por acaso.Danny balanou tristemente a cabea.Morreram todas. A sra. Morales colocou vagens emjarras e as jarras arrebentaram. Ento ela deu as vagens sgalinhas, que morreram todas, sem exceo.

Onde esto essas galinhas agora? perguntouPablo.

Danny fez um gesto negativo com dois dedos.Algum disse sra. Morales que no comesse essasgalinhas, pois poderia ficar doente, mas ns as raspamosbem por dentro e as vendemos ao aougueiro.Algum morreu? perguntou Pablo.Ningum. Acho que aquelas galinhas estavam boas.Talvez voc tenha comprado um pouco de vinhocom o dinheiro dessas galinhas. . . sugeriu Pilon.Danny sorriu-lhe cinicamente.~ Foi o que a sra. Morales fez, e eu fui ontem de nite casa dela. uma mulher de certa maneira interessante e tambm no muito velha.

28 29O susto apoderou-se novamente de Pablo e Pilon.Meu primo Weelie disse que ela tem cinquenta anoscomentou Pilon, irritado.Danny abriu os braos.Que que tem a idade dela? perguntou filosofi-jcamente. Ela est viva. Possui sua prpria casa e temduzentos dlares no banco. A Danny ficou meio atrapajlhado. Eu gostaria de dar um presente sra. Morales.Pilon e Pablo ficaram olhando os prprios ps e fizeram f um esforo mental para aparar o que estava para vir. Mas, seu esforo de nada valeu.Se eu tivesse um dinheirinho disse Danny , |eu compraria para ela uma bruta caixa de bombons. (Olhou significativamente para seus inquilinos, mas nenhumdeles se deu por achado. S preciso de um ou dois dla-1res sugeriu.J

Chin Kee est secando lulas informou Pilon. \

Talvez voc possa limpar lulas durante meio dia.Danny comentou intencionalmente:No fica bem, para um homem que possui duas;casas, limpar lulas. Mas talvez se um aluguelzinho fosse ;pago...Pilon levantou-se, zangado.Sempre o aluguel reclamou. Voc quer nosatirar na rua. . . nas sarjetas, enquanto dorme na sua camamacia. Vamos, Pablo continuou Pilon, com raiva ,vamos arranjar dinheiro pra este sovina, para este judeu.Saram pomposamente.Onde vamos arranjar dinheiro? : perguntouPablo.

No sei respondeu Pilon. Talvez ele no peaoutra vez. Mas a exigncia desumana calou fundo em suapaz interior. Vamos cham-lo de "judeu velho" quando Io virmos continuou. Fomos amigos durante anos. fQuando precisou, ns o alimentamos. Quando sentiu frio,]ns o agasalhamos.

Quando foi isso? perguntou Pablo.

Ora, ns teramos feito isso, se ele precisasse e ns jtivssemos. Essa era a espcie de amigos que seramos parai

30 ]e E agora ele joga fora nossa amizade em troca de uma caixa de bombons, para dar a uma velha gorda. Bombons no fazem bem gente disse Pablo.Tanta emoo deixara Pilon exausto. Ele se sentou na vala da estrada, apoiou o queixo nas mos e ficou desconsolado.Pablo tambm se sentou, mas apenas para descansar, pois sua amizade com Danny no era to antiga e bela como a de Pilon.O fundo da vala estava cheio de grama seca e de mato rasteiro. Pilon, olhando para baixo, em sua tristeza e seu ressentimento, viu um brao saindo de sob um arbusto. E ento, ao lado do brao, um garrafo de vinho pela metade. Agarrou o brao de Pablo e apontou.Pablo olhou.Talvez esteja morto, Pilon.Pilon havia recuperado o flego e a acuidade visual.Se est morto, o vinho no vai lhe servir de nada.No pode ser enterrado com ele.O brao mexeu-se, recolheu-se moita e revelou o rosto sujo e a barba vermelha, desmazelada, de Jesus Maria Corcoran.Ei, Pilon, ei, Pablo disse, com os olhos enevoados. Qu tomas?Pilon desceu para junto dele.Amigo Jesus Maria! Voc no est bem!Jesus Maria sorriu docemente.S bbado murmurou. Ps-se de joelhos. Vamos tomar um gole, amigos. Um golao. H muito mais.Pilon inclinou o garrafo sobre o cotovelo. Engoliu quatro vezes e mais de meio litro saiu do garrafo. Ento Pablo tirou-lhe o recipiente das mos e brincou com ele como um gato com uma pluma. Limpou a boca com a manga. Cheirou o vinho. Tomou trs ou quatro golinhos preliminares e deixou algumas gotas escorrerem da boca, para se torturar. Finalmente, disse:Madre de Dios, que vino!Ergueu o garrafo e o vinho tinto desceu alegremente Por sua garganta.A mo de Pilon estendeu-se muito antes de Pablo poder31tornar a respirar. Pilon exibiu uma suave e admirvel conteno para seu amigo Jesus Maria.Descobriu um tesouro na floresta? perguntou.Algum figuro morreu e incluiu voc no testamento,amiguinho?Jesus Maria era um filantropo, e a bondade vivia com ele. Pigarreou e cuspiu.Me d um gole disse. Estou com a gargantaseca. Vou lhe contar como foi. Bebeu sonhadoramente, Jcomotim homem que tem muito mais vinho que tempo parabeb-lo e que pode derramar um pouco sem remorsos. Eu estava dormindo na praia, h duas noites disse. Napraia perto de Seaside. Naquela noite, as ondas mansas carre- Jgaram um bote a remos at a praia. Ah, era um lindo botea remos, e os remos estavam l. Embarquei e remei at 1 Monterey. Valia facilmente vinte dlares, mas era um nego- j cio demorado, e s consegui sete.Gastou o dinheiro?

Estou lhe contando como foi disse Jesus Mariacom dignidade. Comprei dois garrafes de vinho, trouxe-os aqui para a floresta e depois fui conversar com Ara- |bella Gross. Comprei para ela um par de calcinhas de sedaem Monterey. Ela gosta. . . so muito macias e cor-de-rosa.

E ento comprei meio litro de usque para Arabella, e ento, | logo depois, encontramos alguns soldados e ela foi com eles.Ah, a ladra de dinheiro de um bom homem! gritou Pilon, horrorizado.

No respondeu Jesus Maria, sonhador. Afinal de contas, j estava na hora de ela ir embora. E entovim para c e dormi.

Ento no tem mais dinheiro?

No sei respondeu Jesus Maria. Vamos ver.

Catou no bolso e apresentou trs notas de um dlaramarrotadas e um nquel. Esta noite continuou -vou comprar para Arabella Gross uma dessas coisinhas quebalanam de um lado para outro.Voc quer dizer bolsinhas de seda, presas porum fio?

Isso respondeu Jesus Maria , mas no topequenas como voc pensa.

Tossiu para limpar a garganta. Imediatamente, Pilon encheu-se de cuidados. o ar da noite falou. No faz bem dormirao ar livre. Venha, Pablo, vamos lev-lo para nossa casa e curar seu resfriado. A doena dos pulmes comea assim, mas vamos cur-lo. De que esto falando? perguntou Jesus Maria.Estou bem. 0 qUe voc pensa disse Pilon. RudolfoKelling tambm pensava. E voc mesmo foi ao enterro dele no ms passado. Angelina Vasquez tambm pensava. Morreu na semana passada.Jesus Maria ficou apavorado.Voc acha que o qu?

esse negcio de dormir ao ar livre disse Pilon,judiciosamente. Seus pulmes no aguentam.

Pablo enrolou o vinho numa roupa de tal maneira que quem quer que passasse ficaria morto de curiosidade at saber o que continha.Pilon caminhou ao lado de Jesus Maria, pegando-o de vez em quando pelo cotovelo para lembrar-lhe que no estava bem. Levaram-no para casa e o deitaram num catre, e, apesar de o dia estar quente, cobriram-no com um acolchoado velho. Pablo falou, comovido, daqueles pobres coitados que sofreram e ficaram desfigurados pela tuberculose. E ento Pilon ergueu a voz com suavidade. Falou com respeito da alegria de viver numa casinha. Quando a noite est adiantada, a conversa e o vinho terminados, e l fora a mortal neblina agarrada ao solo como fantasmas de lesmas gigantescas, ento a gente no quer sair para dormir na umidade doentia de uma vala. No, vai para uma cama quente, suave e fofa, e dorme como uma criancinha.Nessa altura, Jesus Maria caiu no sono. Pilon e Pablo tiveram que acord-lo e dar-lhe um gole. Ento Pilon falou com emoo das manhs em que se fica no ninho quente at o sol ficar alto no cu o suficiente para ter alguma utilidade. Ningum fica tiritando na madrugada, batendo as mos para evitar que gelem.Finalmente, Pilon e Pablo aproximaram-se de Jesus Maria como dois terriers caadores convergindo sobre a presa.

32 33Alugaram a Jesus, por quinze dlares mensais, o direito usar sua casa. Ele aceitou alegremente. Houve apertos mos em profuso. O garrafo saiu do seu invlucro. Piloa tomou uma profunda golada, pois sabia a tarefa difcil qu tinha pela frente. E comeou, muito suave e como que acaso, enquanto Jesus Maria estava bebendo diretamente garrafo:E agora voc s d trs dlares por conta.Jesus Maria depositou o garrafo e olhou horrorizadpara ele.No explodiu. Prometi a Arabella Groscomprar-lhe uma daquelas coisinhas. Pagarei o aluguel quado chegar a hora.Pilon compreendeu que tinha cometido um erro.Quando voc estava cado naquela praia em Seade, Deus fez aquele bote flutuar at voc. Voc pensao bom Deus fez isso s para que voc pudesse comprar calcil nhs de seda para uma sarnenta da fbrica de conservas? No! Deus fez isso para que voc no morresse de fri dormindo no cho. Voc acha que Deus est interessado na peitos de Arabella? E, alm disso, queremos um depsit de dois dlares continuou. Por um dlar voc comprar uma daquelas coisas, grande o bastante para conte as tetas de uma vaca.Apesar disso, Jesus Maria protestou.Quero lhe dizer prosseguiu Pilon que, sepagarmos a Danny dois dlares, seremos jogados na ruapor sua culpa. Vai ficar com remorso por dormirmos navalas.Diante de tantos ataques, vindos de tantos lugare Jesus Maria Corcoran sucumbiu. Entregou duas das not amassadas a Pilon.Nesse instante, a sensao de tenso desapareceu, senq| substituda por uma camaradagem profundamente pacfic quente e silenciosa. Pilon ficou relaxado. Pablo levou o aco choado para sua prpria cama, e a conversa se ampliou.Precisamos levar este dinheiro a Danny.Acalmado o apetite mais premente, estavam agoraboreando o vinho. Por que Danny precisa tanto de dois dlares? perguntou Jesus Maria.Pilon assumiu um ar confidencial. Suas mos juntaram-se formando duas mariposas gmeas, que s os pulsos e braos impediam de voar pela porta. Nosso amigo Danny est transando com a sra. Mo-rales. Ah, no pense que Danny bobo. A sra. Morales possui duzentos dlares no banco. Danny quer comprar uma grande caixa de bombons para ela. Bombons no fazem bem s pessoas comentoupabl0, Fazem os dentes doerem.Isso problema de Danny disse Jesus Maria. Se ele quer fazer os dentes da sra. Morales doerem, isso lcom ele. Por que nos importarmos com os dentes da sra.Morales?Uma nuvem de ansiedade cobriu o rosto de Pilon.Mas interrompeu secamente se o nosso amigoDanny levar os bombons para a sra. Morales, ir comeralguns tambm. Portanto, os dentes do nosso amigo poderodoer.Pablo sacudiu a cabea, aflito.Seria muito ruim se os amigos de Danny, dos quaisele depende, contribussem para que seus dentes doessem.

Que faremos, ento? perguntou Jesus Maria,embora tanto ele como os outros soubessem exatamente oque fazer.

Cada um esperou educadamente que o outro fizesse a sugesto inevitvel. O silncio continuou. Pilon e Pablo achavam que a sugesto no devia partir deles, embora, de certa maneira, pudessem ser considerados partes interessadas. Jesus Maria ficou calado em considerao aos seus hospedeiros, mas, quando o silncio daqueles o tornou consciente do que esperavam dele, aproveitou imediatamente a oportunidade.Um garrafo de vinho um belo presente para uma senhora sugeriu, em tom ntimo.1 lon e Pablo ficaram atnitos com essa soluo." Podemos dizer a Danny que ser melhor para os seus dentes dar o vinho.

3,0 35Mas talvez Danny no d ateno nossa advertecia. Se dermos dinheiro a Danny, no saberemos o que facom ele. Afinal, poder comprar bombons, e assim perde*mos tempo e cuidados.Tinham feito de Jesus Maria seu fornecedor de fras seu desobstrutor de situaes embaraosas.Talvez, se ns mesmos comprarmos o vinho edermos a Danny, no haja perigo sugeriu.

isso a! gritou Pilon. Agora, sim.

Jesus Maria sorriu modestamente ao lhe ser creditad a soluo. Ele tinha sentido que, cedo ou tarde, aquela luo teria sido apresentada por algum na sala.Pablo derramou at a ltima gota de vinho nos pot de gelia e beberam cansadamente depois desse esforo. Er motivo de orgulho para eles que a ideia tivesse chegado t logicamente e por uma causa to filantrpica.Agora estou com fome disse Pablo.Pilon levantou-se, foi at a porta e olhou para o so|J passa do meio-dia disse. Pablo e eu vamcao Torrelli apanhar o vinho, enquanto voc, Jesus Maria, vaia Monterey arranjar algo para comermos. Talvez a sra. Bru|no, no cais, lhe d um peixe. Talvez voc consiga um pedade po em alguma parte.

Eu preferia ir com vocs disse Jesus Maria, pou|desconfiava que outra sequncia to lgica e inevitvelmeasse a nascer nas cabeas dos amigos.

No, Jesus Maria responderam com firmeza.Agora so duas horas, ou quase. Dentro de uma hora, sertrs. Ento nos encontraremos com voc aqui e comeremoalguma coisa, que talvez possa ser acompanhada de uflcopinho de vinho.

Jesus Maria partiu para Monterey de muito m vont de, mas Pablo e Pilon desceram alegremente a colina direo da casa de Torrelli. Como So Francisco muda a mar e d um castigo suave a Pilon, Pablo e Jesus MariaA tarde chegou to imperceptivelmente como a idade a um homem feliz. Um pouco de dourado juntou-se luz do sol. A baa tornou-se mais azul e agitada pelo vento murmurante que vinha da praia. Os poucos pescadores que acreditam que o peixe morde o anzol na mar alta abandonaram suas pedras e foram substitudos por outros, convencidos de que o peixe morde na mar baixa.s trs, o vento mudou de rumo e soprou suavemente, vindo da baa, trazendo toda espcie de excelentes cheiros de algas marinhas. Os consertadores de redes, nas terras devolutas de Monterey, depuseram as agulhas e enrolaram cigarros. Nas ruas da cidade, senhoras gordas, em cujos olhos se lia o enfado e a sensatez que se v com tanta frequncia nos olhos dos porcos, rodavam em carros de motores poderosos para tomar ch e gin-fizz no Hotel Del Monte. Na Alvarado Street, Hugo Machado, o alfaiate, colocou um cartaz na porta da sua loja: "Volto em cinco minutos", e foi passar o resto do dia em casa. Os pinheiros balanavam lenta e voluptuosamente. As galinhas, em centenas de galinheiros, lamentavam em vozes plcidas sua m sorte.Pilon e Pablo, sentados sob uma rvore no ptio de lorrelli, bebiam vinho calmamente e deixavam a tarde crescer dentro deles como cresce gradatvamnte o cabelo.E muito bom que no levemos os dois garrafes de vinho para Danny disse Pilon. Ele faz algumas restri-es bebida.Pablo concordou. Danny tem uma aparncia saudvel disse ,

36 37mas exatamente essa espcie de gente que diz todos dias que est morrendo. Veja Rudolfo Kelling. Veja Angelin Vasquez.O realismo de Pilon aflorou brandamente superfcie! Rudolfo caiu na mina em Pacific Grove obserf vou, em suave repreenso. Angelina comeu uma lata peixe estragado. Mas continuou, bondoso sei o que quer dizer. H muita gente que morre pelo abuso do vinhal!Monterey inteira comeou a fazer, instintivamente, parativos graduais para a chegada da noite. A sra. Gutierr colocou algumas pimentas-malaguetas no seu molho de en chilada'. Rupert Hogan, o vendedor de bebidas alcolicasJ acrescentou gua ao gim e o separou para ser vendido depois da meia-noite. E adicionou um pouco de pimenta ao usque do comeo da noite. No salo de dana El PaseoJ Bullet Rosendale abriu uma caixa de pretzels e os arranje como grosseira renda castanha nas grandes bandejas de sal|i gadinhos grtis. A Palace Drug Company recolheu seus tol-J dos. Um pequeno grupo de homens que passara a tar defronte do correio, cumprimentando os amigos, caminhou| para a estao, para ver a chegada do Expresso de Monte, que vinha de San Francisco. As gaivotas, saturadas^ voaram das praias da fbrica de conserva de peixes para as| rochas beira-mar. Bandos de pelicanos deslizavam obstina-J damente sobre a gua na direo de onde quer que pudessemj passar a noite. Nos barcos de pesca de arrasto, os italiar acomodavam suas redes sobre os roletes. A pequena srta,J Alma Alvarez, que tinha noventa anos, levava seu buque dirio de gernios vermelhos para a Virgem que havia parede externa da Igreja de San Carlos. Nas vizinhanas aldeia metodista de Pacific Grove, a wctu 2 reunia-se par ch e discusso, prestando ateno quando uma senhora crevia o vcio e a prostituio de Monterey com energia colorido. Ela achava que uma comisso devia visitar os lc de diverso para ver exatamente como eram terrveis as coni; Torta de milho. (N. do T.)2 Unio Crist Feminina de Temperana. (N. do T.) dies. Haviam discutido o problema muito ligeiramente e necessitavam de fatos novos.O sol chegou ao poente, adquirindo um tom alaranjado. Sob o roseiral do ptio de Torrelli, Pablo e Pilon terminavam seu primeiro garrafo de vinho. Torrelli saiu da casa e passou pelo ptio sem ver seus velhos fregueses. Estes esperaram at que ele estivesse fora de vista, no caminho para Monterey. Depois disso, Pablo e Pilon entraram na casa e, com uma consciente noo de sua arte, persuadiram a sra. Torrelli a dar-lhes de comer. Acariciaram suas ndegas e a chamaram de "Pata Macia", tomando algumas liberdades educadas com ela, deixando-a finalmente lisonjeada e ligeiramente desgrenhada.Agora j era noite em Monterey, e as luzes se acenderam. As janelas brilhavam suavemente. O Monterey Theatre comeou a emitir a intervalos, com luzes, "Filhos do inferno. .. Filhos do inferno", ininterruptamente. Um grupo pequeno mas fantico de homens que acreditam que o peixe morde de noite ocupou seus lugares nas pedras frias do mar. Uma bruma leve deslizava pelas ruas e pairava na altura das chamins. Um cheiro gostoso de achas de pinheiro queimando inundava o ar.Pablo e Pilon voltaram para seu canteiro de roseiras e sentaram-se no cho, mas no estavam to felizes como antes.Faz frio aqui disse Pilon, e tomou um gole devinho para esquentar-se.

Devamos ir para nossa casa, que est quente disse Pablo.

Mas no h lenha para a estufa.Muito bem disse Pablo , se voc levar o vinho,nos nos encontraremos na esquina da rua.Coisa que ele fez, meia hora depois. * ilon esperou pacientemente, pois sabia que havia algu-as C0Isas em que mesmo um amigo no podia ajudar. Enquanto esperava, Pilon manteve o olhar atento rua, na ^r tomada por Torrelli, pois este era um homem vio- para quem as explicaes, por mais cuidadosamente

38 39arquitetadas, ou mais belamente ditas, eram sem valor. Alm do mais, Torrelli tinha, como Pilon sabia, a exagerada e totalmente quixotesca opinio dos italianos a respeito das rela-1 es maritais. Mas Pilon vigiou em vo. Nenhum Torrelli voltou para casa bruscamente. Pouco depois, Pablo juntou-se a ele, e Pilon viu, com admirao e satisfao, que o amigo j carregava uma braada de achas de pinheiro, tiradas da pilha' de lenha de Torrelli.Pablo no fez nenhum comentrio sobre sua recente) aventura at terem chegado em casa. Ento repetiu as pala-;] vras de Danny:Aquela Pata Macia uma mulher fogosa.Pilon, no escuro, aquiesceu com a cabea e falou,tranquila filosofia: muito difcil algum encontrar tudo num mesmo|mercado: vinho, comida, amor e lenha. Pablo, meu amigo,!no devemos esquecer Torrelli. um homem a ser lembrado.|Temos de levar-lhe um presentinho um dia destes.Pilon acendeu um fogo crepitante na estufa de fer fundido. Os dois amigos aproximaram suas cadeiras e man-1 tiveram os pcaros perto do calor, para aquecer o vinho uml bocadinho. Nessa noite, a luz era benta, pois Pablo havij comprado uma vela para ser acesa a So Francisco. Alguma! coisa distrara sua ateno antes de aquele plano sagrado sei consumar. Agora, o pequeno crio de cera queimava linda-! mente numa concha, projetando as sombras de Pablo e Pilon j contra a parede, fazendo-as danar.Fico imaginando onde Jesus Maria ter ido CO"Hmentou Pilon.

Ele prometeu voltar j faz muito tempo disse|Pablo. No sei se ele de confiana ou no.

Talvez alguma coisa o tenha detido, Pablo. JesusMaria, com aquela barba ruiva e aquele corao mole, est |sempre pronto a se meter em encrencas com mulheres.

Tem crebro de gafanhoto disse Pablo. Canta, jbrinca e pula. No tem seriedade.

No precisaram esperar muito tempo. Mal tinham co-; meado o segundo garrafo de vinho, Jesus Maria cambaleou! para dentro. Agarrava os dois lados da porta para se manter | firme. Sua camisa estava em tiras e o rosto, ensanguentado. Apresentava um olho preto e de mau aspecto, luz bruxu-leante da vela.Pablo e Pilon correram para ele.O nosso amigo! Est machucado. Caiu de um bar- ranco. Foi atropelado por um trem!No havia o menor tom de brincadeira, mas Jesus Maria considerou aquilo a mais mortal forma de brincadeira. Fuzilou-os com o nico olho que ainda tinha condies de funcionar.As mes de vocs dois eram vacas sem tetas afirmou.Eles recuaram, horrorizados pela vulgaridade do insulto.Nosso amigo no est bom da cuca.

Deve ter quebrado o osso da cabea.

Pablo, d a ele um pouco de vinho.

Jesus Maria sentou-se, taciturno, junto da estufa e acariciou seu copo, enquanto os amigos esperavam pacientemente uma explicao da tragdia. Mas Jesus Maria parecia satisfeito em deixar seus amigos ignorando o infortnio, apesar de Pilon pigarrear inmeras vezes e Pablo olhar para ele de um jeito compreensivo e caloroso. Jesus Maria continuava de mau humor, olhando para a estufa, para o vinho e para a vela benta, at que a prolongada e descorts reticncia levou Pilon a uma reao idntica. Afinal de contas, ele no sabia que culpa tinha.Outra vez aqueles soldados? perguntou.

Sim rosnou Jesus Maria. Dessa vez chegarammuito depressa.

Deveriam ser uns vinte para deixar voc assim comentou Pablo, para satisfazer a vaidade do amigo. Todos sabem que voc uma fera lutando.Ento Jesus Maria ficou um pouco mais feliz.Eram quatro respondeu. Arabella Gross tam-em ajudou. Bateu na minha cabea com uma pedra.Pilon sentiu crescer dentro de si uma onda de ressentimento moral.No quero lhe lembrar disse severamente o quanto seus amigos o avisaram sobre aquela ordinria.naicou imaginando se tinham mesmo avisado Jesus Ma- achou que sim.

40 41Essas branqueias vagabundas tm mau carter, meamigo interveio Pablo. Mas voc lhe deu aquela coisi|nha que estava procurando?Jesus Maria meteu a mo no bolso e tirou um suti rosaJ de raiom, amarrotado.Ainda no chegou a hora disse ele. Eu estava|exatamente chegando ao ponto. E, alm disso, ns ainda nojtnhamos ido para o mato.Pilon fungou e sacudiu a cabea, mas no sem umaj certa tolerncia triste.Voc andou bebendo usque.Jesus Maria confirmou com a cabea.

De onde veio esse usque?

Dos tais soldados disse Jesus Maria. Eles guardavam num bueiro. Arabella sabia que o usque estava! l e me contou. Mas os tais soldados nos viram com garrafa.A histria ia gradativamente tomando forma. Pilon pr feria assim. Uma histria ficava arruinada se fosse contada] toda de uma vez e rapidamente. Uma boa histria consistia! em coisas meio ditas, que precisavam ser completadas pelj prpria experincia do ouvinte. Apanhou o suti rosa colo de Jesus Maria, acariciou-o, e seus olhos tomaram-s pensativos. Mas, logo depois, brilharam com uma cri alegre.J sei! gritou. Daremos este troo a DannyJpara que ele o d de presente sra. Morales.Todos aplaudiram a ideia, menos Jesus, que se sentiu eiti| minoria irremedivel. Pablo, com uma delicada compreens da derrota, encheu o copo de Jesus Maria.No se passou muito tempo e os trs homens come ram a sorrir. Pilon contou uma histria muito engraada bre uma coisa que acontecera com seu pai. O bom humo| voltou ao grupo. Cantaram. Jesus Maria executou um sa teado para provar que no estava muito machucado. O vinc continuou a diminuir no garrafo, mas, antes de acabar, trs amigos caram no sono. Pilon e Pablo cambalearam a cama, e Jesus Maria esticou-se confortavelmente no cr. ao lado da estufa.O fogo morreu. A casa encheu-se com o rudo profuri42 do ressonar deles. Na sala, apenas uma coisa se mexia: o crio bento lanava sua chama pontuda para cima e para baixo, com incrvel velocidade.Mais tarde, aquela pequena vela deu a Pilon, Pablo e Jesus Maria alguns motivos ticos sobre que meditar. Uma simples haste de cera, atravessada por um fio: tal coisa, pode-se dizer, responsvel por certas leis fsicas e no por outras. Sua conduta, podemos pensar, regulada por certos princpios de calor e combusto. Acende-se o pavio: a cera atingida e descobre o pavio. A vela queima durante um certo tempo, fenece e pronto. A coisa est acabada. A vela imediatamente esquecida, e assim, claro, nunca existiu.Esqueceram que a vela era benta? Que, num momento de conscincia ou talvez de pura exaltao religiosa, fora destinada por Pablo a So Francisco? Esse o princpio que tira a haste de cera da jurisdio da fsica.A vela apontou sua espada de luz para o cu, como um artista que se consome para ficar divino. A vela tornou-se cada vez menor. Uma ventania surgiu repentinamente l fora e penetrou pelas frestas da parede. A vela oscilou para todos os lados. Um calendrio brilhante, mostrando o rosto de uma linda garota brotando do miolo de uma grande rosa vermelha, desprendeu-se e flutuou a pequena distncia da parede. Aproximou-se da espada de chama. O fogo lambeu a seda e atirou-se para o teto. Um pedao solto do papel de parede pegou fogo e caiu, aceso, sobre um monte de jornais.No cu, santos e mrtires olharam para baixo, com os rostos imveis e rancorosos. A vela era benta. Pertencia a So Francisco. So Francisco iria ter, naquela noite, uma grande vela em seu altar.Se fosse possvel avaliar a profundidade do sono, poder-se-ia dizer com justia que Pablo, cuja ao censurvel era a culpada pelo fogo, dormia ainda mais profundamente que seus dois amigos. Mas, desde que no h critrio de medio, pode-se apenas dizer que ele dormia profundissimamente.As chamas subiram pelas paredes e atingiram os pequenos orifcios do telhado, deslizando por eles para a noite l ora. A casa estava dominada pelo fragor do fogo. Jesus Ma-la Vlrou-se, inquieto, e comeou, ainda dormindo, a tirar casaco- Nesse instante, uma telha de madeira em chamas43caiu sobre seu rosto. Ele saltou, com um grito, e ficou apar- j valhado com o fogo que se alastrava sobre sua cabea.Pilon! guinchou. Pablo!Correu para a outra pea, arrancou seus amigos dal cama e arrastou-os para fora da casa. Pilon ainda continuava! agarrado ao suti cor-de-rosa.Ficaram parados fora da casa incendiada e olharam;! para dentro, pela porta aberta, coberta por uma cortina de 1 fogo. Puderam ver o garrafo sobre a mesa, com bem uns 1 cinco centmetros de vinho.Pilon pressentiu o estpido herosmo inicial de Jesus Maria.No faa isso! gritou. Deve ser consumidopelo fogo, como castigo por ter sido abandonado.O soar das sirenas chegou at os ouvidos deles, bem i como o rudo dos caminhes que subiam a colina em segun- da, vindos do quartel de bombeiros de Monterey. Os veculos I vermelhos, enormes, aproximaram-se, e seus faris dana-j ram entre os troncos dos pinheiros.Pilon virou-se rapidamente para Jesus Maria:Corra e conte para Danny que a casa dele est pegan-..|do fogo. Depressa, Jesus Maria!

Por que no vai voc?

Olhe respondeu Pilon , Danny no sabe que