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I 3 A nocao de regra: principio da cultura, possibilidade e humanidade* Luiz Henrique Passador Q uantas vezes voce ja reclamou das regras que 0 mu ndo t he impo e, l imi ta ndo sua l iberda de de escolha, acao, pensamento e expressao? Certamente, mais de uma. E certamente voce tambem nao foi 0 unico. Pois as regras cumprem esse papel de cercear,regular e limitar a atividade humana. Mas tambem cumprem 0 papel de ordenar e dar sentido a ela, permitindo que nossas ex- pressoes alcancem urn conteudo que lhes desejamos dar e, assim, possam ser entendidas pelo mundo. It isso que garante a possibilidade do exercicio de liberdade que nos e ma is ca ro: a l iber dade de expressar no ssas pr 6pri as ideias, Portanto, a liberdade s6 e alcancada quando abri- ,~mos mao dela, 0 que parece contradit6rio e paradoxal a primeira vista. Tomemos urn exemplo rotineiro para en- tendermos esse fato. Suponh amos que v oce qu ei ra xi nga r ou f azer u ma declaracao de amor a alguem. Nao faz sentido algurn xingar ou declarar-se se 0 sujeito a quem for dirigido 0 improperio ou a seducao nao entender 0 que voce quer * Quer o e xpre ss ar me us a gr adec ime nt os a Marian Di as Fer ra ri , por suas contribuicoes para 0 ente ndi me nt o d as qu e s to es psicanalfticas discutidas nestecapitulo.

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I

3A nocao de regra:

principio da cultura,

possibilidade e humanidade*

Luiz Henrique Passador

Quantas vezes voce ja reclamou das regras que 0

mundo the impoe, limitando sua liberdade de

escolha, acao, pensamento e expressao?Certamente, mais

de uma. E certamente voce tambem nao foi 0 unico. Pois

as regras cumprem esse papel de cercear,regular e limitara atividade humana. Mas tambem cumprem 0 papel de

ordenar e dar sentido a ela, permitindo que nossas ex-

pressoes alcancem urn conteudo que lhes desejamos dar

e, assim, possam ser entendidas pelomundo. It isso que

garante a possibilidade do exercicio de liberdade que nos

e mais caro: a liberdade de expressar nossas pr6prias

ideias, Portanto, a liberdade s6 e alcancada quando abri-,~mos mao dela, 0 que parece contradit6rio e paradoxal a

primeira vista. Tomemos urn exemplo rotineiro para en-

tendermos esse fato.

Suponhamos que voce queira xingar ou fazer uma

declaracao de amor a alguem. Nao faz sentido algurnxingar ou declarar-se se 0 sujeito a quem for dirigido 0

improperio ou a seducao nao entender 0 que voce quer

* Quero expressar meus agradecimentos a Marian Dias Ferrari,

por suas contribuicoes para 0 entendimento das questoes

psicanalfticas discutidas neste capitulo.

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52 Luiz Henrique Passador

dizer, Para tanto, sera precisoverbalizar seus sentimentos

de forma a garantir que, quem receber suas mensagens,

entendera plenamente 0 conteudoque voceformulou e quis

transmitir atraves delas. Ora, isso s6 sera possivel se

ambos compartilharem da mesma lingua. Nao so voce

verbalizara seus conteudossubjetivos definidospela lingua

,; comum a ambos, como tera de formula-los antes de ex-

pressa-los: vocepensara atraves da lingua. Nao s6 pen-

sara, como produzira emocoes decifraveis pela lingua

utilizada, isto e , que ela podetraduzir empalavras e frases

e que, portanto, ja se encontram previamente decifradas

e codificadas nela: voceorganizara suas emocoes atraves

da lingua. Nao s6voce fara tudo isso, comotambem 0 fara

o sujeito a quemsera enderecada a sua mensagem: ele tera

\ de entender as suas palavras, os seus pensamentos e as

Jsuas emocoes atraves do dominic que tern da lingua que

\YOCeSutilizarao, que tambem ordena as formas de ele

'falarvouvir, pensar e sentir. S6 assim sera possfvel a ele

entender 0 que lhe for transmitido, pois 0 que voce

expressara serao formas de falar, ouvir, pensar e sentir

~ que ele, como voce, ja experimentou e que, portanto,

compoem a subjetividade de ambos. Por isso e que setornado possivel troca-las e compart ilha-Ias. 0 que

senfir ao, pensarao, dirac e ouvirao sera tao-somente

definido par voces? Ja da para comecar a desconfiar,

atr aves desse exemplo, que a liberdade de expressao,

pensamento e producao das emocoes nao e tao ampla e

irrestrita comoas vezes imaginamos, nem uma experiencia

definida por indivtduos isoladamente.

i A Imgua, comotodas as formas de linguagem, e urn

\ corpo repleto de regras que garantem a producao de

, ~ 1 \ sentido pela sua ordem logicae gramatical, permitindo aos

seres humanos 0usa dessa logica na producao e ordenacao

dos seus pensamentos, emocoes e expressces, de forma

individual ou coletiva. Os principios 16gicosdessa ordem

sao ~.regras que€la contem, Facamos outre exercicioparatentarmos comprovar oiesta sendo dito aqui. Pense em

algurna coisa agora, qualquer coisa,mas que nao seja uma

t

I

,~

Anoeao de regra 53

imagem. Formule urn pensamento ... De asas it sua ima-

ginacao, exercite a sua liberdade depensamento! Pensou?

Pois bern, aposto como voce pensou usando palavras ou

formulando frases. Agora eu pergunto a voce: que

liberdade de pensamento e essa que necessita utilizar uma

,lingua para se realizar? Uma lingua que temos de

aprender, pois nao nascemos cornela. Uma lingua que e

dooutro, que nao nos pertence comodomnatural, mas que

nos e emprestada e por n6s utilizada. Uma lingua atravesda qual pensamos e que, sem a qual, nao conseguiriamos

mais pensar como0 fazemos. Uma lingua, enfim, plena de

regras que definem a l6gica do nosso pensamento e que

se torna 0 nosso instrumento de libertacao: se e corn ela

que pensamos, e atraves dela que podemos realizar 0

exercicio de sermos quem somos, livres para xingarmos,

amarmos e sermos correspondidos pelo outro. Voce ainda

acha que as regras tern por funcaotolher a sua liberdade? / A 'o exemplo dos usos da lingua tern uma funcao

esclarecedora. Ela e urn dos elementos mais caracterfsticosdas culturas, urn de seus patrimonies particulares mais

reconhecidos por todos e urn dos elementos fundamentais

que dao identidade aos diversos agrupamentos humanos.

As linguas sao parte das culturas e, como os demais

sistemas culturais (religiao, economia, moral, arte, etc.),

guardam relacao intrfnseca com as formas de vida e

pensamento culturais. 0 fato de serem ordenadas por

regras, assim comoqualquer sistema simb6lico, revela que

as culturas comourn todosao ordenadas a partir de regras,

que se constituem como seus principios de ordenacao

logica, possibilidade de producao e troca de significados

compartilhados e, portanto, de cornunicacao e com-

preensao. Num sentido ample, as culturas podem ser to-

madas comolinguagens, cuja caracterfstica e permitir a

producao de sentido e ordem it atuacao dos seres humanos

e as realidades que eles produzempara si, estando na base

da ordenaeao da subjetividade humana, das relacoes entre \

os individuos e domundo que constr6em e experimentam. )

Enquanto linguagens, as cultur as tern uma grama-

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54 Luiz Henrique Passador Anocao de regra 55

ticalidade, uma estrutura responsavel pelo sentido pre-

sente nas manifestacoes humanas e, portanto, se cons-

tituem comocamposfundados por regras. Assim sendo, as

regras tern uma funcao simb6lica que vai alem da mera

coercao.Elas permitem a producao de sentido.

o que se esta querendo afirmar aqui e que a regra e

~J!rincipio~_~ylt1,lra..,ou seja, que noprinctpio c ia culturadeve ter existido uma regra que levou a sua formacao e

estruturacao enquanto tal. Se a cultura e uma condicao

humana, isto e , se os homens nao produzem formas de

organizacao coletivas que nao estejam fundamentadas

num corpo de regras compartilhadas, entao ela e um dado

comum a nossa especie e fundamento da humanidade.

Logo,0 que fundou a condicaohumana, por deducao, deve

ter sido uma regra que teve um carater universal para

toda a especie humana. Se 0 que nos funda comosujeitos

no mundo sao as formas como pensamos enos ex-

pressamos e seessas formas nao sao inatas, ficaclaro que

foram produzidas e perpetuadas pelos homens, nao pelanatureza. Se 0 que estrutura essas formas sao as regras,

claro tambem fica que regras nao sao fatos naturais, mas

sim producoes hist6ricas engendradas pelos homens; a

vida humana muda porque as regras mudam, enquanto a

:natureza se mantern estavel porque suas leis nao se

alteram. Entao, se ha uma regra na origem da cultura e

da condicao humana, ela foi produzida pelos pr6prios

homens e, conssquencia disso, temos que ° homem e

uma especie que inventou a si mesma aoimpor condicoes

de existencia que 0 retiraram dos dominios e imposicoes

da natureza, colocando-onos dominios da cultura e das

regras.Que regra tao poderosa e fundamental foi essa?

fundadora da cultura: Claude Levi-Strauss e Sigmund

Freud. Ainda que fundadores de escolas de pensamento

tao distintas como a antropologia estruturalista e a

psicanalise, e partindo de pressupostos te6ricos diversos,

os dois autores reconheceram na proibicao das relacoes

sexuais incestuosas a regra que e 0 principio de uma

ordem que leva 0 ser humane a superar suas condicoesnaturais de existencia, resultando no surgimento da

cultura comocondicaoda especie.

A especie humana e a unica que produziu 0 que cha-

mamos de cultura e, aomesmo tempo, a unica que respeita

a proibicao do incesto, ou seja, a interdicao das relacoes

sexuais entre parentes consanguineos. Ora, se a proibicao

do incesto s6 existe entre os seres humanos, e possivelcomecar a questionar se esse evitamento sexual e mesmourn instinto natural de preservacao da especie, como

estamos acostumados a pensar. Se as deformidades

congenitas resultantes de relacoes incestuosas colocassem

a especie em risco, esse fato seria comum a todas asespecies e resultaria num impulso natural de evitamento

delas, Nao e 0 que se observa em outras especies. Mais

ainda, haveria uma regularidade, definida por sua

natureza hio16gicae genetica, no que concerne as relacoes

que seriam evitadas. Acontece que diferentes sociedades

humanas classificam parentes consangtnneos de formas

diferentes, 0 que, emcertos casos, leva a possibilidade de

1 relaeoes sexuais entre pais e filhas biologicamente

Q~fiIJ!g()_s,e.nquantoais, mas que pao sao reconhecidos e

E-~mse reconhecem comoparentes consangtnneos.' Isso

I.I

!

A proibiftao do incesto:

passagem da natureza para a cultura

1. Isso e 0 que se observa entre os nativos das Ilhas Trobriand

estudados no infcio do seculo por Bronislaw Malinowski

(MALINOWSKI, B.A vida sexual dos seluagens), 0 pai biologico nao

e classificado enquanto tal pelo sistema de parentesco dos

trobri~.es;a f'un~aopaterna e exercida pelo lrmiio da lDae.e~';J)re ele'-qiie recaem as proibieoes incestuosas. No-inais, os

trobriandeses sequer reconhecem nas relacoes sexuais a sua

func;aoreprodutiva.

Dais dos mais influentes pensadores do seculo XX

prccuraram dar uma resposta a questao sobre a regra'-,

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Luiz Henrique Passador6

)demonstra que as sistemas de parentesco consangiiineo e

\por afinidade nao sao descritivos de uma ordem biol6gica,

Imas antes classificat6rios, definindo relacoes de parentesco

numa ordem que nao necessariamente reconhece relacoes

de desceridencia por sangue de fato, sendo portanto

socialmente produzidos. Assim sendo, 0 incesto nao e de-

finido por uma 16gica genetica, mas todos os sereshumanos tern em sua consciencia a necessidade de evita-

10.Esse ''horror ao incesto", como definiu Freud", e urn sen-

timento comum a humanidade. Porem, se nao e instintivo,de qualquer forma esta presente no pensamento; se e

pens ado mas nao e de ordem natural, tudo indica que sua

ordem e cultural, nao respondendo a necessidades de

ordem pratica (preservacao da especie, por exemplo), Logo,

o incesto e sua proibicao sao conceitos produzidos pelos

homens, que incidem sohre sua natureza e a modificam,

estahelecendo formas de pensamento e relacoes culturais.

\

Ja se viu alguem proihir urn ato que nao e desejado nem

possivel de ser cometido? Se 0 incesto e uma relacao sexualinterdita, logo e desejada e passivel de ocorrer; tal logica

nos mostra que os instintos deveriam levar os homens ao

cometimento desse ato proihido, nao 0contrario, Portanto,

( a proibieao do incesto e uma regra que ordena e da sentido

. \ it ordem cultural e mental do homem, sendo imposta de

fora para dentro, interiorizada, e que resuita numa

estruturacao da individualidade e da vida coletiva que

segue uma 16gica extern a as propensoes naturais

humanas. 0homem e um ser fundado pela cultura ao ser

retirado da natureza. A ordem da especie que a regra da

proibicao do incesto procura preservar nao e a ordem

reprodutiva natural, mas a ordem cultural que a modifica.Ao pensar a origem e as consequencias da proibicao

do incesto, Levi-Strausa e Freud discutem a natureza

humana, produzindo concepebes sobre a condicao humana

que nos ajudarn a compreender os fundamentos da nossa

II

.[

il

2_ F1t :EOD. Sigmund. 'Totem e tabu", p. 20.

B ib fio te ca Machado de Assis

A n0913.oe regra 57

existencia e 0papel que a cultura cumpre na sua definicao,

Eles identificam a proibicao do incesto como a regra que

afasta 0homem da natureza e inaugura a cultura, origem

da ordem das relacoes humanas. Essa convergencia de

pressupostos, no entanto, nao exprime uma mesma ordem

analttica desenvolvida pelos autores.

Para Sigmund Freud, que discutiu essas questoes em"Totem e tabu", a proibicao do incesto surgiu como solucao

para os conflitos experimentados na "horda primeva'",

, ' tendo por funcao instituir uma ordem paterna fundada na

I interdicao da posse das mulheres do pai pelos filhos, na

3. A horda primeva, para Freud, corresponderia ao primeiro grupo

de homens que experimentaram as consequencias da satisfacao

dos seus desejos incestuosos e, com isso, determinaram a

necessidade da imposicao de uma ordem repressiva que deu

origem a cultura. Vale a pena resumir essa historia imaginada

por Freud, pois ela permite a compreensao de suas teorias a

respeito da funcao das regras culturais. Provavelmenteorganizadas como as hordas de mamiferos observadas por

Charles Darwin, para Freud as hordas humanas primitivas

deveriam ter se organizado em torno de urn macho dominante

que detinha 0 direito a posse sexual de todas as femeas do grupo,

expulsando ou submetendo os machos mais jovens as suas

vontades e impedindo seu acesso a elas. Esse macho, como0 unico

reprodutor da horda, era portanto 0 "pai tiranico" de todas as

mulheres e homens gerados dentro do grupo, e as femeas

reprodutoras, suas maes. Urn dia, os filhos revolt ados contra a

tirania paterna e movidos por seus desejos mais primitivos,

juntaram-se e, mais fortes que 0 pai por terem se unido,

mataram-no. Nao satisfeitos, 0 devoraram e possuiram suas

mulheres (maes e irmas), Realizaram assim os atos que seus

desejos pediam: 0 parricidio e 0 incesto, que resultaram na

experiencia de identificacao com 0 pai, assumindo seu lugar e

incorporando seus direitos e qualidades (esse foi 0 sentido do

"devorar"), Apda a satisfacao de seus desejos primordiais, os filhos

se lembraram que, alem do odio, sentiam tambem amor e

admiraeao pelo pai, que se constituia assim numa figura em

relaeao a qual experimentavam uma ambivalencia emocionaL

o resultado disso foi 0 remorso e a instituicao de um sentimento

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58 Luiz Henrique Passador

repressao dos desejos primordiais (que sao incestuosos) e

no evitarnento do parricidio. A consequencia disso foi 0

surgimento da!lxo~mia comoregra secundaria e derivadada primeira, que permite Q~amento d~_j.~~Qreprimw e a solucao da ambivalencia emocional que ainterdicao impoe, levando a constituicao das instancias

consciente e inconsciente da vida mental, e resultandonuma ordem psiquica que encontra paralelo na ordemnormativa cultural que 0 homem passa a viver e re-produzir. Esse drama coletivo e experimentado psiqui-

camente pelos indivfduos atraves do complexo de Edipo.Assim, na visao freudiana, as relacoes de parentesco estaona origem de uma ordem cultural que se inaugura com avivencia de experiencias sexuais e afetivas projetadas para

a realidade, sendo assim a racionalizacao posterior de urn

i'

,

I:

!

'I

de culpa coletiva experimentada por eles. Para solucionar 0

desprazer experimentado pelos crimes cometidos, os filhosreinstituiram 0 pai na realidade atraves do totem (segundo

Freud, uma figura paterna que passou a ser vista como 0

ancestral comum do clii, primeiro grupo de parentesco

consangiiineo e exogamico produzido pelos homens) e do

estabelecimento dos tabus relacionados a ele: proibieao do incesto

(interdicao de acesso as mulheres do totem, ou seja, mass e

irmas) e proibicao dematar e comer 0 animal totemico (proibicao

do parricfdio), A exogamiapassou a ser, assim, a solucao para a

repressao dos desejos-incestuosos imposta pelo tabu do incesto,

uma forma desatisfa\!B.odos desejos pelo deslocamento deles para

um objeto substituto (no caso, a esposa). A proibieao e a

consciencia dela seriam, portanto, a garantia da repressao dos

desejos, tornados inconscientes; a exogamia se constituiria napessibihdade de deslocamento e satisfa~ao dos desejos reprimidos

e solu~a() dOBconflitos ambivalentes entre proibicao e desejo. Essa

~ a ordem filogenetica (origem da especie) que se repete no

complex:o de Edipo como ontogsnese (origem do individuo). Assim,

Freud percebe nas regras surgidas na borda primeva 0 principio

da cultura e das sociedades patriarcais, da organiza~ao dos

desejos individuais e daTc:lalidade social que os homens

expezimentam, definindg/Bs forrnas universais de vida humana.

A nocao de regra 59

evento originalmente emocional, e que procura, atraves dairrtern al i z acao de regras externas e repressivas,

estabelecer uma ordem intrapstquica que da origem aocomportamento humano.

Levi-Strauss, em As estruturas elementares do

parentesco", tambem reconhece nas relacoes de parentesco

o conteudo original das regras que estabelecem0

campocultural como 0 ordenador do comportamento humano,percebendo da mesma forma a proibicao do incesto comofato universal e constante na especie, que atravessa e

transcende a diversidade e part icularidade das culturas ..Contudo, ele ve a proibil(ao do il!cesto nao como a primeira

regra, mas sim ~omo co~le~entar_ e derlva~d~,

.~~~gaIl?.~_(maisampla e generalizada que a interdicao).Para ele, a proibicao nao tern por essencia a interdicao da

posse e sim ~ obrig~crao da dadiva - ~st~_!la~?Cogamia,qI principio ,da~_El~ip~_9_ctd~<ie,undamento de qualquer regracultural, estabelecendo a cultura comourn campo de trocas

generalizadas que principia com a troca e consequentscirculacao de mulheres, 0 que garante uma distribuicaoeqiiitativa das mesmas e estabelece uma ordem sexual ereprodutiva nao instintiva. Para Levi-Strauss, portanto,

o principio da cultura esta na superacao e transforrnacao

da natureza atraves da racionalizac;ao das!elacroes~exuais\~ reproduti~a~ estruturad9.spela-reCiprocidade das regras!de parentesco que se fundam na exogamia e na proibicao:do inceato.! A cultura seria, assim, originada por umaordem mental primordialmente intelectiva e simb6lica,

4. LEVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares doparentesco.

5. Para explicar isso, Levi-Strauss afirma 0 seguinte: "0 problema

da proibicao do incesto apresenta-se a reflexiio com toda a

ambigtiidade que (...) explica sem diivida 0 carater sagrado da

proibicao enquanto taL Esta regra, social por sua natureza de

regra, e ao mesmo tempo pre-social (.. .) primeiramente pela

universalidade, e em seguida pelo tipo de relacoes a que imp5e

sua norma. Ora, a vida sexual e duplamente exterior ao grupo.

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60 Luiz Henrique Passador

derivando dela uma ordem emocional de conteudo

congruente que reafirma as regras culturais.

Em resumo, para Freud a preocupacao elementar da

cultura e dar solucoes para questoes e conflitos da ordem

das pulsoes, na tentativa degarantir a existencia humana

na coletividade atraves de uma ordem normativa e

repressiva dos desejos (portanto, teria uma origem psi-quica e emocional). Para Levi-Strauss, a cultura trataria ()

de solucionar problemas relativos as trocas simb6licas -

sendo as mulheres os bens de troca primordiais e 0

matrimonio uma troca simb6lica -, garantindo a ordem

das relacoes humanas e, conse-qiientemente, do

pensamento intelectivo queorganizara as relacoes afetivas

(portanto, sua origem e simb6licae intelectiva).Se, par urn lado, esses dais pensadores se afastam no

que concerne aos fundamentos da atividade humana -

pulsional para Freud, intelectual para Levi-Strauss -, por

Exprime no mais alto grau a natureza animal do homem, e

atesta, no seio da humanidade, 'a sobrevivencia mais

caracteristica dos instintos. Em segundo lugar, seus fins sao

transcendentes, novamente de duas maneiras, pois visam a

satisfazer oudesejos individuais (...) ou tendencias especificas que

ultrapassam igualmente, embora em outro sentido, os fins

proprtos da sociedade. Notemos, entretanto, que se a

regulamentaeao das relacoes entre os sexos constitui uma invasao

da cultura no interior da natureza, por outro lado a vida sexual

e , no Intimo da natureza, urn premincio da vida social, porque,

dentre todos os instintos, 0 instinto sexual e 0 iinico que para se

definir tem necessidade do estimulo de outrem (...). Nao fornece

uma passagem, por si mesma natural, entre a natureza e acultura (...), mas explica uma das razdes pelas quais € I no terreno

da vida sexual, de preferencia a qualquer outra, que a passagem

entre as duas orden a pode e deve necessariamente eCetuar-se.

Regra que abrange aquilo que na sociedade lhe € I mais alheio,

mas ao mesmo tempo regra social que retem, na natureza, 0 que

e capaz de supera-Ia. A proibit;8.odoincesto esta ao mesmo tempono limiar da cultura, na cultura, e em certo sentido ( ...) ea.

pr5pria cultura," (Levi-Strauss" 1982: 50).

Anocao de regra 61

outro eles abrem a possibilidade de investigacao da vida

human a a partir de uma ordenacao da sexualidade como "

seu ponto de partida e chegada. Para ambos, proibicao do

incesto e exogamia sao regras que incidem sobre a

sexualidade e a genese da construcao da vida mental e •

cultural que define 0 homem, determinando e estabe-

lecendo sua estruturacao.Ambos demonstram que as formas de estruturacao

dos individuos passam pelas estruturas da ordem coletiva

- 0 sujeito nao pensa ou existe par si s6, mas e humanizado I

quando se relaciona com seus pares dentro de urn campo

culturalmente definido, internalizando ou introjetando 0

mundo social. 0 principia disso tudo esta nas regras.

A regra como conteudo da humanidade

Uma primeira conclusao a respeito do que foi discu-

tido e que a especie humana nao e urn fato produzido na

realidade que obedece apenas aos imperativos naturais,

_imas antes urn fato hist6Li_c_o}~_odificad()or imposicoesq1.}~

·1 i a pr6pria especiecriou para si, A ordem soba qual VIve-

lm o s , nos reproduzimos e produzimos nosso pensamento enossa realidade e uma ordem que surge pelas maos dopr6-prio homem e, portanto, s6 pode ser experimentada num

mundo criado par ele: a cultura. Fora desta, 0 homo sa-

piens nao pode se constituir como ser humano, na acep-

'tao mais ampla do termo; isto equivale a dizer que 0 ho-

Imem s6 se humaniza a_raves de processos_cu_turais, pois

, que a humanidade e uma invencao da cultura.

1 'Em segundo lugar, as instintos ocupam urn espaco\ )muito menor na determinacao docomportamento humane

!doque estamos acostumados a imaginar no senso comum.As formas comopensamos, sentimos emocoes variadas e ,Q

garantimos nossas condicoes materiais de existencia sao

. result antes de uma estruturacao cultural. Nao sao formas

inatas ou herdadas biologicamente, mas resultam de

experiencias e relaeoes impostas pelooutro nodecorrer de

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62 Luiz Henrique Passador A nocaode regra 63

I

i ..

nossa insercao na vida social, exigindo uma ordenacao da

subjetividade nos termos que a ordem sociocultural se da,

Arnor, odio, nojo, cornpaixao e horror, por exemplo, sao

t emoebes estruturadas por formas sociais de producao e

expressao da subjetividade. Nossos desejos devem seguir ..

as imperativos da adequacao a uma ordem governada pela

moral, pela etica, pela religiao e pelo Estado. Fora dessaordem, experimentamos apenas a culpa e 0 desprazer; fora

dela, nosso comportamento e patologizado e sem sentido,

incompreensivel para 0 outro e para n6s mesmos.

, Por fim, essa ordem, que e a ordem human a por

definicao, tem por princfpio e fundamento as regras que

produzimos e sobre as quais alicereamos a possibilidade

de sermos humanos. Sem as regras, serfamos incapazes

Ide produzir ordem e sentido para nossas acoes e

· lpensamentos e, conseqiientemente, para a realidade que

vivemos e produzimos. Sem elas, nao seriamos a especie

de homens que somos e voce nao estaria ai, nesse

momento, lendo este texto e pensando sobre estas ques-

toes, pois somente as regras lhe permitem ler, entender e

debater as ideias que eu procurei expor de forma

minimamente ordenada e compreensfvel, atraves do uso

deuma linguagem e da 16gicade um pensamento coletivo

compartilhado por n6s.

Pense nisso na proxima vez emque se revoltar contra

essa au aquela regra. Voce nao e obrigado a aceita-las e,sendo humano, pode mesmo modifica-Ias ou propor

alternatives, pois elas nos pertencem. De qualquer forma,

¢ J estara propondo novas regras e uma nova ordenacao da

realidade e da subjetividade. Essa e uma possibilidade,1 porque 0 ser humano e , por condicao, 0 criador de sua

realidade e das regras que impoe e segue. Mas pense

sobretudo que, num mundo sem regras - que me perdoem

os criacionistas -, provavelmente ainda estarfamos

sentados em galhos de arvores, fugindo de predadores,

comendobananas e procurando parasitas entre os palos

docompanheiro ao lado.

Referencias bibliograficas

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