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A nocao de cultura nas ciencias sociais

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Page 1: A nocao de cultura nas ciencias sociais

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Page 2: A nocao de cultura nas ciencias sociais

vos títulosdesta coleção

* Ética da informaçãoDaniel Cor mi

* A Deontologiadas mídias

Claude-Jcart Bertmnd

• A Mundialização dacomunicação

Armam} Mattclard

' Introdução à ciênciada comunicação

Daniel Bousnoux

* O MulticulturalismoAndréa Semprini

* A Argumentação nacomunicação

Phílippe Breton

adquiridoivênio entre3 e a UFES.imônioé seu.iservá-lo.

a noçãode cultura nasc n c a s socas

Page 3: A nocao de cultura nas ciencias sociais

Editora dl Univanldad* da Sijiado Confio

Coordenação EditorialIrmã JacintaTurolo Garcia

Assessoria AdministrativaIrmã Teresa Ana Sofiatti

Assessoria ComercialIrmã Áurea de Almeida Nascimento

Coordenação da Coleção VerbumLuiz Eugênio Véscio

a noçãode cultura nasc n c a s socas

Denys Cuche

VERBUM

TraduçãoViviane Ribeiro

Page 4: A nocao de cultura nas ciencias sociais

Cuche* Dennys

A noção de cultura nas ciências sociais

316.722/C963n(182159/02)

ISIíN 2-7071-2649-7 (original}

(..ojjyrigfot © 1996 Éditions I-a Découvcrtc, Paris

© de tradução 1999 EDUSC

Tradução realizada a partir da í- edição (1996).

Direitos exclusivos de publicação em língua

portuguesa para o Brasil adquiridos pela

Editora da Universidade do Sagrado Coração

Rua Irmã Arminda, 10-50Cep 17044-160 -Bauru -SP

Fone (014) 235-71 11 -Fax 235-7219e-mail: [email protected]

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ft

Cuchc, Denys.A noção de cultura nas ciências sociais /

Denys Cuchc; inidução de Viviane Ribeiro. - -Bauru: EDUSC, 1999.

256p.; 19on. - (Verbum)

ISBN 85-86259-59-4

Inclui bibliografia.

Tradução de: La notion de cnlture dans lêssciences sociales

1-Cultura. 2. Antropologia cultural.3.Antropologia social. [.Titulo. II.Série

ti*J& .rfTfcV.

CDD 306

Sumário

Introdução W

Capítulo l - Gênese,spcial da palavrae da idéia de cultura 1 ?e Evolução da palavra na línguafrancesa da Idade Média ao século XDÍ 18«* O debate franco-alemão sobre a cul-tura ou a antítese "cultura" -"civilização"(século XLX - início do século XX) 25

Capítulo 2 - A invenção do conceitocientífico de cultura 33s Tylor e a concepção universalistada cultura 35fl> Franz Boas e a concepção particu-larista de cultura 3V® A idéia de cultura entre os fundadoresda etnologia francesa 48

Capítulo 3 - O triunfo do conceito de cultura 65* As razões do sucesso 6S« A herança de Boas: a história cultural 68* Malinowski e a análise funcionalistada cultura 70* Á escola "cultura e personalidade" "Mô As lições da antropologia cultural 86

Page 5: A nocao de cultura nas ciencias sociais

s Lévi-Strauss e a análise estruturalda cultura 95«• Culturalismo e sociologia: as noçõesde "subcultura" e de "socialização" <-)9« A abordagem interacionistada cultura K)5

Capítulo 4 - O estudo das relações entre asculturas e a renovação do conceito deculturaív "A superstição do primitivo"^ A invenção do conceito deaculturação« Teoria da aculturação e culturalismo* Roger Bastide e os quadros sociaisda aculturação^ A renovação do conceito de cultura

109110

120

12'i

136

143

Capítulo 5 - Hierarquias sociais e hierar-quias culturais% Cultura dominante e culturadominada% As culturas populares* A noção de "cultura de massa"® As culturas de classe& Bourdieu e a noção de "habitus"

Capítulo 6 - Cultura e identidade 175* As concepções objetivistas e subje-tivistas da identidade cultural 177

0 A concepção relacionai e situacional 181* A identidade, um assunto de Estado i H8« A identidade multi dimensional 192* Ás estratégias de identidade 1 %w As "fronteiras" da identidade 200

Capítulo 7 - Conteúdos e usos sociais danoção da cultura 203* A noção de "cultura política" 205ô A noção de "cultura de empresa" 209* A "cultura dos imigrantes" 225

Conclusão em forma de paradoxo:um bom uso do relativismo culturale do etnocentrísmo 237

Bibliografia -'**>

Page 6: A nocao de cultura nas ciencias sociais

Introdução

A jiucíu? de cultura nus ciências sociais

"O problema da cultura, ou ainda, das culturas,passa por uma atualização, tanto no plano inte-lectual, devido à vitalidade do cultüralismo ame-ricano, quanto no plano político. Na França, aomenos, nunca se falou tanto de cultura quanto

- hoje (com relação à mídia, à juventude, aos imi-grantes) e esta utilização da palavra, por maissem controle que seja, constitui por si mesmaum dado etnológico."

Marc AUGE [1988]*

A noção de cultura c inerente à reflexãodas ciências sociais. Ela é necessária, de^cerfãmanejra, para pensaria unidade da ííumaríítiatlélia diversidade além dos

questão da diferença entre os povos, uma vezque a resposta "racial" está cada ve^ mais desa-creditada, à medida que há avanços da genéticadas populações humanas.

O homemj essencialmente um ser de cul-tu£|_._0 longo^ processo de hpminização, come-çado há mais ou menos quinze milhões de anos,

* As referências entre colchetes remetem à bibli-ografia no final

Page 7: A nocao de cultura nas ciencias sociais

consistiu fundamentalmente >assaeem de*—_. *-*

meio ambienfeTiatlf_ cuIturalJAo longo destã~évo-

lução, que resulta no Homo sapiens sapiens, oprimeiro homem, houve uma formidável regres-

jgão^gs.instintQs,.^siibstítuídos""progrcssÍvamen-^te_pela cultura/isto é, por esta adaptação imagi-

nada e controlada pelo homem que se revelamuito mais funcional que a adaptação genéticapor ser muito mais flexível, mais fácil e rapida-mente transmissível. A cultura permite ao 'homem não somente adaptar-se a seu meio,jnasjarnb_ém_adaptar este meiojao jpropnp Tio1"jnenUa suas necessidades e seus projetos. Emsuma, a cultura torna possível a transformaçãoda natureza.

Se todas as "populações" humanas pos-suem a mesma carga genética, elas se diferen-ciam por suas escolhas culturais, cada uma in-ventando soluções originais para os problemasque lhe são colocados. No entanto, estas diferen-ças não são irredutíveis umas às outras pois,considerando a unidade genética da humanida-de, elas representam aplicações de princípiosculturais universais, princípios .suscetíveis deevoluções e até de transformações.

A noção de cultura se revela então o ins-,trumento adequado para acabar com as cxplica-

jgões; naturalizantes dos comportamentos huma-nosj-A natureza, no homem, e^inTêifãmenfeTn-terpretada pela cultura. As diferenças que pode-riam parecer mais ligadas a propriedades bioló-

gicas particulares como, por exemplo, a diferen-ça de sexo, não podem ser jamais observadas"em estado bruto" (natural) pois, por assim di-zer, a cultura se apropria delas "imediatamente":a divisão sexual dos papéis e das tarefas nas so-ciedades resulta fundamentalmente da cultura epor isso varia de uma sociedade para outra..

Nada é puramente natural no homem.Mesmo as funções humanas que correspoiT'dem a ncc^ssiaa'3êrHsiofógicgs, como_ a tome,ò~"sono, o deseio.sgxu^^tc , sà^o informadospelã"cultura:-as sociedades não dão exatamen-te as mesmas respostas a estas necessidades. ,4

domínios em que não há constran-gimento biológico,' os comportamentos sãoorientados pela cultura. Por isso, a ordem; "Sejanatural", freqüentemente feita às crianças, emparticular nos meios burgueses, significa, narealidade: "Aja de acordo com o modelo da cul-tura que lhe foi transmitido".

A noção de cultura, compreendida em seusentido vasto, que remete aos modos de vida e depensamento, é hoje bastante aceita, apesar daexistência de certas ambigüidades. Esta aceitaçãonem sempre existiu. .Desde seu aparecimento noséciüo XVIII, aJd^taJiiQdeglâ^Ç^uí^1 suscitouconstantemente debates acirradosjjualquer queseja o sentido preciso que possa ter sido dado àpalavra - e não faltaram definições de cultura -sempre subsistiram desacordos sobre sua aplica-ção a esta ou àquela realidade. O uso da noção decultura leva diretamente à ordem simbólica, ao

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que se refere ao sentido, isto é, ao ponto sobre oqual è mais difícil de entrar em acordo.

As ciências sociais, apesar de seu desejo deautonomia epistemológica, nunca foram comple-tamente independentes dos contextos intelec-tuais e lingüísticos em que elaboram seus esque-mas teóricos e conceituais. Esta é a razão pelaqual o exame do conceito científico de culturaimplica o estudo de sua evolução histórica, dire-tamente ligada à gênese social da idéia modernade cultura. Esta gênese revela que, sob as diver-gências semânticas sobre a justa definição a serdada à palavra, dissimulam-se desacordos sociaise nacionais (capítulo I). As lutas de definição são,em realidade, lutas sociais, e o sentido a ser dadoàs palavras revelam questões socjaisjtmdamen-tais. Como

Assim se pode rctraçar paralelamente à históriada semântica, isto é, à gênese das diferentes sig-nificações da noção de cultura, a história socialdestas significações: as mudanças semânticas,aparentemente de natureza puramente simbóli-ca, correspondem em realidade a mudanças deuma outra ordem. Correspondem a mudançasna estrutura das relações de força entre, de umlado, os grupos sociais no seio de uma mesmasociedade e, de outro lado, as sociedades em re-lação de interação, isto é, mudanças nas posi-ções ocupadas pelos diferentes parceiros inte-ressados em definições diferentes de cultura[1987, p. 25].

Apresentaremos em seguida a invençãopropriamente dita do conceito científico de cul-tura, implicando a passagem de uma definiçãonormativa a uma definição descritiva. Contra-;riamente à^nocãp de^oTiéTlãctg>maÍs oujasnosriyainomesmo campo semântico, a noção decultura se aplica unicamente ao que é humano.E ela oferece a possibilidade de conceber a uni-dade do homem .na diversidade de seus modosde vida e de crença, enfatizando, de acordo comos pesquisadores, jajunidade^iHi a diversidade(capítulo II).

Desde a introdução do conceito nas ciên-cias do homem, assiste-se a um notável desen-volvimento das pesquisas sobre a questão dasvariações culturais, particularmente nas ciên-cias sociais americanas por razões que nãoacontecem por acaso e que são analisadas aqui.Pesquisas sobre sociedades extremamente di-versas fizeram aparecer a coerência simbólica(jamais absoluta, no entanto) do conjunto daspráticas (sociais, econômicas, políticas, religi-osas, etc.) de uma coletividade particular ou deum grupo de indivíduos (capítulo III).

O estudo_atento do encontro das culturas^revela que este encontre-se realiza segundo mo-

__dalídades muito rariad^aj e^lea^a^jesultados ex-_ ^ ^ ^tremamente contrastados, segundo as situaçõesde contato, As pesquísa_s sobre a "aculturação"permitiram ultcapassai-várias idéias preconcebidas sobre as propriedades da cj.iltura e renovarprofundamente o conceito de cultura. A aculuT

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ração aparece não como um fenômeno ocasi-l, jde^efeitos. deyastadüres,jmas_^rrip uma '

jas_madalid_ade£ habituais

O encontro das culturas não se produz so-mente entre sociedades globais, mas tambémentre grupos sociais pertencentes a uma mesmasociedade complexa. Como estes grupos sãohierarquizados entre si, percebe-se que as hi-erarquias sociais determinam as hierarquias cul-turais, o que não significa que a cultura dogrupo dominante determine o caráter das cultu-ras dos grupos socialmente dominados. As cul-turas das classes populares não são desprovidasde autonomia nem de capacidade de resistência(capítulo V).

A ..defesa da autononi ia cultural é muito li-gada à Dreser^açãp^daJdentida^^leíivâT^COl^

_tura "e "identidade " sãp^conceitos que remetema uma mesma realidade, .vista por dois ângulos.•.i* i i n. j WTTT^jJo»r jBiHj*,--j'aw rs» J; TOI>^_Í; a_r- 4 *^

diferentes. Uma concepção, essencialista daidentidade não resiste mais a um exame do queuma concepção essencialista da cultura, A iden-tidade cultural de um gn^Qrsó^ad&-secj:pjn;.

""preelidida ao^se^estudaj" suas relações com oggrupos vizinhos (capítulo VI).

"-"^yjj^jisg^u^,^ conserva, atualmente,toda a sua pertinência e se revela sempre apta adar conta das lógicas simbólicas em jogo nomundo contemporâneo, desde que não se negli-genciem os ensinamentos das ciências sociais.

JVão basta tomar emprestado destas ciências a

pnr^dade,que esconde freqüentemente uma tentati-va íteJniPí Çls^ÍmfeÓÍÍ£íUSeJa n° campo polí-tico ou religioso, na empresa ou em relação aosimigrantes, a cultura não se decreta; ela nãopode ser manipulada como um instrumento vul-gar, pois ela está relacionada a processos extre-mamente complexos e, na maior parte das ve-zes, inconscientes (capítulo VII).

Não seria possível, no contexto desta obra,apresentar todos os usos que foram feitos da no-ção de cultura nas ciências humanas e sociais. Asociologia e a antropologia foram então privile-giadas mas, outras disciplinas recorrem tambémao conceito de cultura: a psicologia e sobretudoa psicologia social, a psicanálise, a lingüística, ahistória, a economia, etc. Além das ciências so-ciais, a noção é igualmente utilizada, em particu-lar pelos filósofos. Por não poder ser exaustivo,pareceu-me legítimo concentrar o estudo sobreum certo número de aquisições fundamentaisda análise cultural.

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Gênese Social da Palavra e daIdéia de Cultura

As palavras"têm"~uma história e, de certamaneira também, as palavras fazem a história. Seisto é verdadeiro para todas as palavras, é parti-cularmente verificável no caso do termo "cultu-ra". O "peso das palavras", para retomar uma ex-pressão da mídia, é grandemente influenciadopor esta relação com a história, a história que asfez e a história para a qual elas contribuem.S^-'

í As palavras aparecem para responder a al-fíumas interrogações, a certos problemas que se

Y colocam em períodos históricos determinadosC_Ê em contextos sociais e políticos específicos.

Nomear é ao mesmo tempo colocar o problemae, de certa maneira, já resolvê-lo.

A invenção da noção de cultura é em simesma reveladora de um aspecto fundamentalda cultura no seio da qual pôde ser feita esta in-venção e que chamaremos, por falta de um ter-mo mais adequado, a cultura ocidental. Inversa-mente, é significativo que a palavra "cultura"nãotenha equivalente,na maior parte das línguasorais das sociedades quedos etnólogos estudamhabitualmentejlsto não implica, evidentemente(ainda que esta evidência não seja universalmen-te compartilhada!) que estas sociedades não te-nham cultura, mas que elas não se colocam a

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questão de saber se têm ou não uma cultura eajnclâ menos de clêhnir suã^áaria cultura,^

Por esta razão, se quisermos compreendero sentido atual do conceito de cultura e seu usonas ciências sociais, é indispensável que se re-constitua sua gênese social, sua genealogia. Istoé, trata-se de examinar como foi formada a pala-vra, e em seguida, o conceito científico que deladepende, logo, localizar sua origem e sua evolu-ção semântica. Não se trata de se entregar aqui auma análise lingüística, mas de evidenciar os la-ços que existem entre a história da palavra "cul-tura" e a história das idéias. A evolução de umapalavra deve-se, de fato, a inúmeros fatores quenão são todos de ordem lingüística. Sua herançasemântica cria uma certa dependência em rela-ção ao passado nos seus usos contemporâneos.

Do itinerário da palavra "cultura" tomare-mos apenas os aspectos que esclareçam a for-mação do conceito tal como é utilizado nasciências sociais. A palavra foi, e continua a ser,aplicada a realidades tão diversas (cultura da ter-ra, cultura microbiana, cultura física...) e comtantos sentidos diferentes que é quase impossí-vel rctraçar-^aqui sua história completa.

Evolução da palavra na língua francesada Idade Mgjlia^ aoseculo X1X_

É legítimo analisarmos particularmente oexemplo francês do uso de "cultura", pois pare-ce que a evolução semântica decisiva da palavra

i

- que permitirá em seguida a invenção do con-ceito - sejjroduziu na língua francesa do séculodas Luzes, antes de se difundir por empréstimolingüístico em outras línguas vizinhas (inglês,alemão).

Se o século XVIII pode ser consideradocomo o período de formação do sentido moder-no dajgalavra, cm 1700. no entanto, "culturã"jáé uma palavra antiga no vocabulário francês. \

jo latim cultura que ^dispensado ao campo ou ao agp^cla aparecenos fins do século XIII para designar uma parcc-la_dg_terra cultivada (sobre este ponto e os se-guintes, ver Bénéton, [1975]).

No começo do século XVI, ela não signifi-ca mais um estado (da coisa cultivada), mas umaação, ou seja o fato de cultivar a terra. Somenteno meio do século XVI se forma o_ sentido fígu-

:-radg e_"cultura" pode designar então a culturade uma faculdade, isto é, o fato de trabalhar para

..desenvolvê-la., Mas este sentido figurado serápouco conhecido até a metade do século XVII,obtendo pouco reconhecimento acadêmico enão figurando na maior parte dos dicionáriosda época.

Até o século XVIILa evolução do conte-údo semântico da palavra se deve principalmen-te, movimento natural da língua e não ao mo-vjmentQ das idéias, taue procede, por um lado

a cultura como estado à cul-tura como ação), por outro ladoCda cultura da terra à cultura do espírito'), imi-

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tando nisso seu modelt Cultura, consa-grado pelo latim clásgiçpjlQ-gentido figurado^

O termo "cultura" no sentido figuradomeça a se imporjiojéculo XVIII. Ele faz sua en-trada com-este sentido no Dicionário da Acade-mia Frahcesa (edição de 1718) e é então quasesempre seguido de um complemento: fala-se da"cultura das artes" , da "cultura das letras" , da "cul-tura das ciências", como se fosse preciso que acoisa cultivada estivesse explicitada.

A palavra faz parte do vocabulário dajm-gua do L-Duminismo^ sern^ser, no entanto, muitoutUJzada_Rglos fílósofos^A Enciclopédia, que re-serva um longo artigo para a "cultura das terras",não dedica nenhum artigo específico ao sentidofigurado de "cultura". Entretanto, ela não o igno-ra, pois o utiliza em outros artigos ("Educação","Espírito", "Letras", "Filosofia", "Ciências") .

Progressivamente, "cultura" se libera dejeus complementos e acaba por ser empregadasó. para designar a "formação ", a. " educação " do

^espírito. fòepois, em um movimento inverso aoobservado anteriormente; pjagsa-se de "cultura"

_ como ação (ação dejnstruir) a"cultura" comc^es-tadojestado do espírito^ cultivado ggbjnstru-cão^estado do indivíduo "que tem cultura^ Esteuso é consagrado, no fim do século, pelo Dici-onário da Academia (edição de 1798) que estig-matiza "umnhando com esta expressão a oposição concei-tuai entre "natureza" e "cultura.". Esta oposição é

rfundamental para ojsjjensadores do Iluminismo"

20

jque concebem a cultura como um Caráter distin-1 tiro da espécieihumana. A_cultura, para eles, é a

J soma dos saberes acumulados e transmitidos| pela humanidade, considerada como totalidade,

ão, longo de sua história.Nojréculo XVHI." cultura" é sempre empre-

gada no singular, o que reflete o universalismo eo humanismo dos filósofos: a cultura é própriado Homem (com maiúscula), além de toda_dis-tinção de povos ou de classes. "CultunTse ins-creve então plenamente na ideologia do Ilumi-nismo: aj)a^waéa^s^aad^àsjdéias de progres-so, de evolução, de educação, de razão que estãono centro_doj?ensamento da érjoça. gg_Q_movi-mento Uurainista nasceu na Inglaterra, ele j?n-controu sua língua e seu vocabulário^ na Francai,ele terá uma grande repercussão em toda a Eu-ropa Ocidental, sobretudo nas grandes metró-poles como Amsterdam, Berlim, Milão, Madri,Lisboa e até São Petersburgo.A idéia de culturaparticipa do otimismo do momento, baseado naconfiança no futuro perfeito do ser humano. O^progrejSj^aacc^ajnstmcãG.isto ê. da cultura,cada vezm^s_abrangente.

"£ü!íjjra^_jgstá então muito gróxima deuma palavra que vai ter um grande sucesso (atémaior que o de "cultura") no vocabuláríojran-cês do século XVIII: "civilização"4As duas pala-vras pertencem ao mesmo campo semântico^reifletem osjTiesmas cgn^epcõgsjiindamentaisj Àsvezes associadas, elas não são, no entanto, equi-valentes. "Cultura" evoca príncipalmcntejjs pró

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gressos individuais, "civilização", osprogressoscoletivos. Como sua homóloga "cultura c pelasmesmas razões, "civilização" é um conceito uni-tário .e só é usado então no singular. Ela sejibc-rajapidamente, junto aos filósofos reformistas,de seu sentido original recente (a palavra apare-ce somente no século XVlII)^quedes^gna^^afl.-namento^dos costumes, e sjgnjflãrpara elesjxprocessocia" e da irracionalidade. preconizando esta novaacepção de "civilização", os pensadores burgue-ses reformadores, utilizando-se de sua influênciapolítica, impõem seu conceito de governo dasociedade quê, segundo eles, deve se apoiar narazão e nos conhecimentos.

A civilização é então definida_çQrnp umprocesso de melhoria das, instituições, dajegis-

"Jação, da educação. A civilização é ummovimen-to longe de j^star_acabadp^q.ue_e.preciso apoiare que afeta a socidade comojum todo, começan>

* ___ -^ * ~ - " " - •— n---— __ i l "

do pelo Estado, que deve se liberaf_dc tudo oj]ue é áínclâ" irracional em seu funcionamentOjFinalmente, a civilização r>odc c deve se esten-der a todos os povos que compõem a humani-dade. Se alguns povos estão mais avançados-que

Doutros neste movimento, se alguns (a Françaparticularmente) estão tão avançados que já po-dem ser considerados como "civilizados", todosos povos, mesmo os mais "selvagens", têm voca-ção para entrar no mesmo movimento de civili-zação, e os mais avançados têm o dever de aju-dar os mais atrasados a diminuir esta defasagem.

"Civilização" é tão ligada a esta concepção pro-gressista da história que os que se mostram cé-

•tícos^com relação a ela, como Rousseau ouVoltaire, evitarão utilizar este termo por serem

jmnoritâriÕs^fe não estarem em condições de im-por uma outra concepção mais relativista.

OJJSQ de "cultura"c de "civilizaçâo"no sé-culcOCVIII marcanova concepção(^sga^cralizâ3ãida3í>fía-(daJiistQriaj-se-libera._dajeologia (da histó-ria). As idéias otimistas de progresso, inscritasnas noções de "cultura" e "civilização" podem serconsideradas como uma forma deCsucedâneo* deesperança religiosa. A partir de então, o homemestá colocado no centro da reflexão e no centrodo universo. Aparece a idéia da possi5iir3ãgê~aejjma^ciencia do homem"; a expressão é empre-gada pela primeira vez por Diderot ern^l755 (noartigo "Enciclopédia" da Encyclopédié). E, em1 787, Alexandre de Chavannes cria o termo "et-nologia" ,

^estuda a "história dos progressos dos povos cmdireção à

O debate francoaleniíio sobre a culturaou a imtíteseVcultura" - "civilização"(século XIX - início do século XX)

Kulturno sentido figurado aparece na lín-gua alemã no século XVIII e parece ser a trans-posiçãoexãta da palavra francesa.;O prestígioda língua francesa - o uso do francês é então a

23

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marca distintiva das classes superiores na Ale-manha - e a influência do pensamento Iluminis-ta são muito grandes na época e explicam esteempréstimo lingüístico.

No entanto, Kultur vai evoluir muito rapi-damente em um sentido mais restritivo que suahomóloga francesa e vai obter, desde a segundametade do século XVIII, um sucesso de públicoque "cultura" não teria ainda, já que "civilização"era a preferida no vocabulário dos pensadoresfranceses. Conforme explica Norbert Elias[19391, este sucesso c deyjdQ_à_adQcão do ter-mo pela burgucsiaintelectual alemã e ao uso

la faz delc^nasua oposição à aristocracia^dacorte^De'iato, contrariamente à situação fran-cesa, burguesia e aristocracia não têm laços es-treitos na Alemanha. A nobreza é relativamenteisolada em relação às classes médias, as cortesprincipescas são muito fechadas, a burguesia éafastada, em certa medida, da qualquer ação po-lítica. Esta distância social alimenta um certoressentimento, sobretudo entre muitos intelec-tuais que, na segunda metade do século, vãoopor os valores chamados "espirituais", ba-seados na ciência, na arte, na filosofia e tambémna religião, aos valores "corteses" da aristocracia.A seus olhos, somente os primeiros são valoresautênticos, profundos; os outros são superficiaise desprovidos de sinceridade.

Estes intelectuais, freqüentemente saídosdo meio universitário, criticam os príncipes quegovernam os diferentes Estados alemães, por

abandonar as artes e a literatura e consagrar amaior parte de seu tempo ao cerimonial da cor-te, preocupados demais em imitar as maneiras"civilizadas" da corte francesa. Duas palavrasvão lhes pmTiitirLrlffinir esta-ftj^-^ão"cIÕTjnteissistemas de valores: tudo o que é autêntico eque Contribui "pãrao enriquecimento intelec-tual e espiritual será considerado como vindodã~cültUfa; ao contrário, OTjue é somente ãpa"-

TéncJa"brilhante, leviandade, refinamento super-ficial, pertence a civilização* A cultura se opõeentão ã civilização corno a profundidade seopõe à superfícialidade. Para a intelligentsiaburguesa alemã, a nobreza da corte, se ela é ci-vilizada, tem singularmente uma grande falta decultura. Como o povo simples também não temesta cultura, a intelligentsia se considera de cer-ta maneira investida da missão de desenvolver efazer irradiar a cultura alemã.

Por esta tomada de consciência, a ênfaseda antítese cultura"^- "civilizacãõ^se desfocarpouco a pouco da oposição social paraaoposf-ção nacional [Elias, 1939]^Diversos fatos con-vergentes vão permitir este deslocamento. Deum lado, reforça-se a convicção dos laços estrei-tos que unem os costumes civilizados das cor-tes alemãs à vida de corte francesa, e isto serádenunciado como urna forma de alienação. Poroutro lado, aparece cada vez mais a vontade dereabilitar a língua alemã (a vanguarda intelec-tual se expressa somente nesta língua) e de de-finir, no domínio do espírito, o que é especifica-

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mente alemão. Como a unidade nacional alemãnão estava ainda realizada e não parecia possívelentão no plano político, a intelligentsia quetem uma idéia cada vez mais forte de "missão na-cional", vai procurar esta unidade no plano dacultura.

A ascensão progressiva desta camada so-cial anteriormente sem influência que conse-guiu fazer-se reconhecer como porta-voz daconsciência nacional alemã transforma então osdados e a escala do problema da antítese "cultu-ra" - "civilização". Na Alemanha, às vésperas daRevolução Francesa, o leisua conotação aristocrática alemã e passa a evo-car a França e "de uma mãheira~geral, as potên-cias ocidentais .Da mesma maneira, a "cultura",de marca distintiva da burguesia intelectual ale-mã no século XVIII, vai jscr" convertida, no sécu-lo XIX, ejfrTinarca distintiva da nação alemã intei-

"rãTNps traços carãcterístSõT da classe intelêc-^-<j s

tual, que manifestavam sua cultura, como a sin-ceridade, a profundidade, a espiritualidade, vãoser a partir de então considerados como especi-ficamente alemães.

Atrás desta evolução se esconde, segundoElias, um mesmo mecanismÕ^ícõloglco~Kgadoa um sentimento de inferioridade ffiinHalilelmhde cultura é criada pela classe média que duvi-dajiela mesma, que se sente maisTm menos aff-

jada_do pòdèr^_das honras e que procura parajsi_umaoutra^rrnT3è~lSglHmíarãdie social'.-^Êsten-dida à "nação" alemã, ela participa da mesma in-

X,f"-.

certeza, ela é a expressão de uma consciêncianacional que se questiona sobre o caráter espe-cífico do povo alemão que não conseguiu aindasua unificação política. Diante do poder dos Es-tados vizinhos, a França e a Inglaterra em parti-cular, a "nação"alemã, enfraquecida pelas divi-sões políticas, esfacelada em múltiplos principa-dos, procura afirmar sua existência glorificandosua cultura.

Estaca razão pela qual a noção alemã deKultur^yaLtender, cada yezmais, a partir do"gé-culo XIX, para a delimitação e a consolidaçãodas diferenças nacionajs^rata-se então de umanoção particularista que_s_e opõe à noção fran-cesa universalista de "civilização", que é a ex-pressão de uma nação cuja unidade nacionalaparece como conquistada há muito tempo.

Já em 1774, mas de maneira ainda relativa-mente isolada, Johann Gottfried Herder, em umtexto polêmico fundamental, em nome do "gê-nio nacional" de cada povo(yolksgeisf), tomavapãTtidó pelã~dÍversKlãdc dê~culturas, riqueza dlThumãniSãde e contra o universalismo uniformi-

^zante do Iluminismotque ele considerava empo-brecedor. Diante do que ele via como um impe-rialismo intelectual da filosofia

Tninismo, Herder pretendia devolver a cadapovo seu orgulho, começando pelo povo ale-mão. Para Herder, na realidade, çada,GQvo, atra-yès de sua cultuia.própria, tem um destino^espe-cífico ajgalizar. Pois cada cultura exprime à suamaneira um aspecto da humanidade .^ua coh-

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T

cepção de cultura caracterizada pela desconti-nmdade^que não cxcluíaT^oentantõ, iimjTpõs^sível__c_omunicação_entre-Qsw£ovos, era baseadaem Uma outra filosofia da história (título deseu livro de 1774). dife_rent_e,da_filpsofía. do Ilu-minismoyigpr isso,Herder pode ser considerà3õ7comj ustiça, prccursõTdõ conceito relatívistai de"cultura"; "Foi Herder quem nos abriu os olhossobre as culturas" [Dumont, 1986,p. 134].

Depois da derrota na batalha de lena, em1806, e a ocupação das tropas de Napoleão, aconsciência alemã vai conhecer uma renovaçãodo nacionalismo que se expressará através deuma acentuação da jnterpretação particularista-da cjuitucLalerfla.jp esforço para definir o "cará-ter alemão"se intensifica. Não_é_somente a origi-nalidade, na_singularidade absoluta, da culturaalemã que é afirmada, mas também sua supe-

_ L*___ __ „ '— '— . - . _*_

rioridadex Desta afirmação, certos ideólogosconcluem que existe uma missão específica dopovo alemão com relação à humanidade.

A idéia alemã de cultura evolui então pou-co no século XEK sob a influência do nacionalis-mo. Ela se liga cada vez mais ao conceito de "na-

_ção". A cultura vem da alma, do gênio de umpovo. A nação cultural precede e chama a naçãopolítica. A-^eultura. aparece como unLcontuntode^conquistas Artísticas, intelectuais e moraisque^ constituem o patrimônio" de uma .nação,considerado coriífi^dquirido definitivamente efundador de sua unmacle. "X

Estas conquistas do espírito não devem serconfundidas com as realizações técnicas, ligadasao progresso industrial e emanadas de um raci-onalismo sem alma. De maneira cada vez maismarcada ao longo do século XIX, os autores ro-mânticos alemães opõem a cultura, expressãoda alma profunda de um povo, à civilização de-finida a partir de então pelo progresso materialligado ao desenvolvimento econômico e técni-co. Esta idéia essencialista e particularista dacultura está em perfeita adequação com o con-ceito étnico-racial de nação - comunidade de in-divíduos de mesma origem - que se desenvolveno mesmo momento na Alemanha e que serviráde fundamento à constituição do Estado-naçãoalemão [Dumont, 1991].

-—~ Na França, a evolução da palavra no sécu-lo XDÍ e um pouco diferente. Um certo interes-se nos círculos cultos pela filosofia e as letrasalemãsÃêm pleno desenvolvimento contfíEüílitalvez para ampliar a acepção da palavra france-sa. "Cultura" se enriqueceu com uma dimensãocolejtivacnã^ej;eferiajnais^somente aocíesen-

jTOtvimgnto intelectual do ^indivíduo. Passou adesignar também um conjunto decaracterespróprios de um'ã~cl>mumdade, mas em um sen-tidoj»ej*almente vasto e impreciso. Encontra-seexpressões como "cultura francesa" (ou alemã)ou "cultura da humanidade". ^Cultura" está mui-to próxima da palavra "civilização' e às vezes ésubstituível por ela. ' " ~" --'

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O conceito francês continua marcado pela-B«HSa335S™S?' -— — — ~ ---— a., i .

idéia d e d f e dogênero humano,, Entre osséculos XVin e XIX na França, há a cpntinuida-de do pensamento universalista.iA cultura, nosentido coletivo, é antes de tudo a "cultura dahumanidade". Apesar da influência alemã, aidéia de unidade suplantada consciência_da_di-versidade: além das diferenças que sepodeobT

" ™ ^ - """"""jiervar entr^cultura alemã" e "cultura francesa^,^há a unidade da "cultura humana".Em uma céle-bre conferência ]pro1runciã!3ãnnãsorbonne em1882, O que é uma nação?, Ernest Renan afir-mava sua convicção: "Antes da cultura francesa,da cultura alemã, da cultura italiana, existe a cul-tura humana."

Os particularismos culturais são minimiza-dos. Oslntelectuais nãp^^m^nr^cõncepçãodefuma cultura nacional antes de tudo, assimcomo recusam aenjr£^cujtura[^eji^ ___ __tá francj^^da-cultura-acompanha a concepção

,jelejtiva^de_naçãqí surgida na Revolução: perten-cem à nação francesa, explicará Renan, todos osque se reconhecem nela, quaisquer que sejamsuas origens.

No sécuÍQ_-XX,AJivalÍdade dos nacionalis-_mos francês^e alemão^e^seujenfrentament^Bru^talna gi^rlfS^delpl^^-S vão exacerbar o de-bate ideológico £ntre as duas~íõlíÕêpcoêT^è

^ ,_., ._~n!-C'"~-í »~ ... , f * _

"cultura. As palavras tornam-se^slògãns_utili?ados_i*--—~ —t—-— ~—*como armas. Aos alemães, que dizem defender acultura (no sentido em que eles a entendem), os

franceses replicam pretendendo ser os cam-explica' ò ^ "

clínio, no iníciõ^dõséculo XX, na França, do usode "cultura" na sua acepção coletiva, pois a ide-ologia nacionalista francesa deveria se diferen-ciar claramente, até em seu vocabulário, de suarival alemã. No entanto, o conflito das palavrasse prolongará até depois do fim do conflito dasarmas, revelando uma oposição ideológica pro-funda que não se pode reduzir a uma simplespropaganda de guerra.

O debate íranco-alemão do século XVIIIao século XX é /arquetípicoNdas duas concep-ções de cultura, uma^parfJtTtfarista, a outra uni-versalista^que estão na base das duas maneirasde definir o conceito de cultura nas ciências so-ciais contemporâneas.

Page 18: A nocao de cultura nas ciencias sociais

A Invenção do ConceitoCientífico de Cultura

Ao longo do século XIX, a adoção de umprocedimento positivo na reflexão sobre o ho-mem e a sociedade resulta na criação da soci-ologia e da etnologia como disciplinas científi-cas. TetnÕíõiaí por sua vez, vai tentar dar uma

ensar a especifícfflã3ê"hllmanaovos e dos"costuffi"esa'?To-

Iham ummesmo nosjA.jla.do: ojjostulado da uni-dade do homgrn, hermcj.^^dji^^^os^íj^donimii-nismoj Para eles, a dificuldade será então pensara diversidade na unidade

Mas com a questão colocada desta manei-ra, eles não podem se contentar com uma res-posta biológica. Se eles reivindicam uma novaciência, é para dar uma outra explicação à diver-sidade humana, diferente da existência de "ra-ças" diferentes. Dois caminhos vão ser explora-dosjjirnultânea e CQ^correntemelTte^pcI^gtTró-logos: oqucrpYivjl^ía a unjdad^ jmmmizaj._di-versidade, reduzindo a uma diversidade "tempo-

«^^^BÈttKaeEHÍ^ l • !!•• •" •' "l l •.,11.. lm..t . --||||,,,*_

rária", segundo um esquema evolucionista; e oDoutro caminho que, ao contrário, dãTtõda a inT"portância à diversidade, preocup ando-se "enTcÍer.. ^_^~^«or-ri^wi Mí_.-r—íi—E-*»,.. — -T-í

Page 19: A nocao de cultura nas ciencias sociais

monstrarque ela não é contraditória com a uni-

Um conceito vai emergir como instrumen-to privilegiado para pensar jgste_rjrpblema e ex-plorar as diferentes respostas j^ossiveisceito de "cultura". A palavra está em voga, mas éutlfizãcia, ria maior parte dos casos, tanto naFrança quanto na Alemanha, com um sentido

jiQrjnatiyo. Os Jundadores^ da .,gtngjoj^a_yjojhedar um j:onteúdoj3urjmiente descritivcr^Nãojigtrata, para eles,jgsim com^pjraos fílósoíbs, dedizer o aue deve ser a cultura, mas de descrever

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oj^ue ela, é, t alcomo arweccjias_sociedad.es,humanas .

No entanto, a etnologia iniciante não esca-pará completamente às ambigüidades e não se

^livrará facilmente de Julgament!3,^de_yalor ou deimplicaçõesjdgslégiças^ Mas por se tratar deuma disciplina que começava a se constituir epor isso mesmo não poderia exercer uma in-fluência determinante no campo intelectual daépoca, permitiu que uma reflexão sobre a ques-tão da^cultura escapasse, em parte, à pròblemá-ticado debate passional que opunha "cultura" e"civilização" e conservou uma relativa^ autono-

^mia epistemológica.»A introdução do conceito de cultura se

fará com desigual sucesso nos diferentes paísesonde nasce a etnologia. Porjxitro lado, riãojia-verájejntendimento entre as diferentes "escolas"sobre a questão de saber se é preciso utilizar oconceito no singular (a Cultura) ou no plural,

(as culturas), ern^pãHícüfacístãT-

JVIor c a concepção universalistada cultura

rã é devida ao antropólogo britânico Edward,BurnettTylorI1832- ^ ™ ™

Cultura e civilização, tomadus em seu sentidoetnológico mais vasto, são um conjunto comple-xo que inclui o conhecimento, as crenças, aarte, a moral, o direito, os costumes e as outrascapacidades ou hábitos adquiridos pelo homemenquanto membro da sociedade [1871, p- 1].

Esta definição, clara e simples, exige, no en-tanto, alguns comentários. Pode-se ver que ela

IÍ£^OT^&J^^Sn^^^^SÍJ^^--Q^ÍFt'va e

ao normativa/Por outro lado, ela rompe com asdefinições restritivas indmduatistas de cultür

arpãraTyTolffit^ totalida-de da vida social do homem/ Ela se caracteriza

^Tri-iinM-nrnr-" - nu ,tl i M inn -- —"m— — •tC-pjLjmi» n «H hi^i

por sua dimensão coletiva. Enfim, a cultura é ad-'"iiirii LJIIII »«iinin"TrT— T— ™' ^^y.-..~- ir.'- ••**—>,

cjuirida e não depende da hereditariedade bioló-gica. No entanto, se a culturaorigem ej>eu caráter são,conscientes.

SeTylor é o primeiro a propor uma defini-ção conceituai de cultura, ele não foi exatamen-te o primeiro a utilizar o termo em etnologia.

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Ele mesmo, no uso que faz desta palavra, foi in-fluenciado diretamente por etnólogos alemãesque lera e, sobretudo por Gustave Klemm que,de acordo com a tradição romântica germânica,utilizava Kultur com um sentido objetivo, prin-cipalmente por se referir à cultura material.

Para Tylor, a hesitação entre "cultura" e "ci-vilização" é característica do contexto da época.Se ele privilegia finalmente "cultura", é por com-preender que "civilização", mesmo se tomadaem um sentido puramente descritivo, perde seucaráter de conceito operatório desde o momen-to em que é aplicado às sociedades"primitivas".A etimologia da palavra civilização remete àconstituição das cidades e o sentido que a pala-vra tomou nas ciências históricas designa prin-cipalmente as realizações materiais, pouco de-senvolvidas nessas sociedades. "Cultura", paraTylor, na nova definição dada, tem a vantagemde ser uma palavra neutra que permite pensartoda a humanidade e romper com uma certaabordagem dos "primitivos11 que os transforma-va em seres à parte.

Não é surpreendente que a invenção doconceito deva-se a Edward Tylor, livre pensador,para quem sua condição minoritária de quakerfechara as portas da universidade inglesa. Ele ti-nha fé na capacidade do homem de progredir epartilhava dos postulados evolucionistas de seutempo. Ele não duvidava tampouco da unidadepsíquica da humanidade, que explicava as simi-litudes observadas em sociedades muito dife-

rentes: segundo ele, em condições idênticas, oespírito humano operava em toda a parte demaneira semelhante. Herdeiro do Iluminismo,ele aderiu igualmente à concepção universalistada cultura dos filósofos do século XVIII.

Ele tentava conciliar em uma mesma expli-cação a evolução da cultura e sua universalida-de. Em seu livro Cultura Primitiva, lançado em1871 e logo em seguida traduzido em francês(em 1876), obra considerada como o momentoem que é fundada a etnologia enquanto ciênciaautônoma, Tylor examina as "origens da cultura"(título do primeiro tomo) e os mecanismos desua evolução. Ele foi o primeiro etnólogo a abor-dar efetivamente os fatos culturais sob uma óti-ca geral e sistemática. Ele foi também o primei-ro a se dedicar ao estudo da cultura em todos ostipos de sociedade e sob todos os aspectos, ma-teriais, simbólicos e até corporais.

Após um temporada passada no México,Tylor elaborou seu método de estudos da evolu-ção da cultura pelo exame das "sobrevivèncias"culturais. No México, ele pudera observar a coe-xistência de costumes ancestrais e traços cultu-rais recentes. Pelo estudo das "sobrevivèncias",ele pensava que deveria ser possível retornar aoconjunto cultural original e reconstituí-lo. Gene-ralizando este princípio metodológico, chegouà conclusão de que a cultura dos povos primiti-vos contemporâneos representava globalmentea cultura original da humanidade: ela era umasobrevivência das primeiras fases da evolução

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cultural, fases pelas quais a cultura dos povos ci-vilizados teria passado necessariamente.

O método de exame das sobrevivências le-vava logicamente à adoção do método compara-tivo que lyior introduziu então na etnologia.Para ele, o estudo das culturas singulares nãopoderia ser feito sem a comparação entre elas,pois estavam ligadas umas às outras em um mo-vimento de progresso cultural. Pelo métodocomparativo, ele tinha como objetivo estabele-cer ao menos uma escala grosseira dos estágiosda evolução da cultura.Tylor desejava provar acontinuidade entre a cultura primitiva e a cultu-ra mais avançada. Contra os que estabeleciamuma ruptura entre o homem selvagem e pagãoe o homem civilizado e monoteísta, ele se esfor-çava para demonstrar o elo essencial que osunia e a inevitável caminhada do selvagem emdireção ao civilizado. Entre primitivos e civiliza-dos, não há uma diferença de natureza mas sim-plesmente de grau de avanço no caminho dacultura. Tylor combateu com ardor a teoria dadegenerescência dos primitivos, inspirada porteólogos que não podiam imaginar que Deus ti-vesse criado seres tão "selvagens", teoria quepermitia não reconhecer nos primitivos, sereshumanos como os outros. Para ele, ao contrário,todos os humanos eram totalmente seres de cul-tura, e a contribuição de cada povo para o pro-gresso em digna de estima.

Pode-se perceber que o evolucionismo deTylor não excluía um certo sentido da relativida-

de cultural, rara na sua época. Além do mais, suaconcepção do evolucionismo não era nada rígi-da: ele não estava totalmente persuadido quehouvesse um paralelismo absoluto na evoluçãocultural das diferentes sociedades. Por isso, eleconsiderava também, em certos casos, a hipóte-se difusionista.Uma simples similitude entre tra-ços culturais de duas culturas diferentes não erasuficiente, segundo ele, para provar que elas es-tivessem situadas no mesmo nível da escala dedesenvolvimento cultural: poderia ter havidouma difusão de uma em direção à outra. De umamaneira geral, fiel a seu desejo de objetividadecientífica, ele se mostrava prudente em suas in-terpretações.

Devido a sua obra e suas preocupações me-todológicas, Edward Tylor é considerado, comjustiça, o fundador da antropologia britânica. Éaliás a ele que se deve o reconhecimento destaciência como disciplina universitária: eíe se tor-naria em 1883, na Universidade de Oxford, o pri-meiro titular de uma cátedra de antropologia naGrã Bretanha.

Franz Boas e a concepção particuiaristade cultura

Se Tylor é o "inventor" do conceito científi-co de cultura, Boas será o primeiro antropólogoa fazer pesquisas in situ para observação diretae prolongada das culturas primitivas. Neste sen-tido, é ele o inventor da etnografía.

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Franz Boas (1858 - 1942) era oriundo deuma família judia alemã de espírito liberal. Sen-sível à questão do racismo, ele mesmo fora víti-ma do anti-semitismo de alguns de seus colegasde universidade. Estudou em diversas universi-dades da Alemanha, primeiramente cursando fí-sica, depois matemática e finalmente geografia(física e humana). Esta última disciplina o levouà antropologia. Em 1883 - 1884, ele participoude uma expedição entre aos Esquimós da terrade Baffín. Ele partiu como geógrafo, com pre-ocupações de geógrafo (estudar o efeito domeio físico sobre a sociedade esquimó) e perce-beu que a organização social era determinadamais pela cultura do que pelo ambiente físico.Retornou à Alemanha decidido a se consagrar, apartir de então, principalmente à antropologia.

Em 1886, Boas partiu novamente para aAmérica do Norte, desta vez para realizar pes-quisas etnográficas de campo sobre os índios dacosta noroeste, na Colúmbia Britânica. De 1886a 1889, passou longas temporadas entre osKwakiutl, os Chinook e os Tsimshian. Em 1887,decidiu estabelecer-se nos Estados Unidos eadotar a nacionalidade americana.

Toda a obra de Boas é uma tentativa depensar a diferença. Para ele, a diferença funda-mental entre os grupos humanos é de ordemcultural e não racial. Formado em antropologiafísica, manifestou um certo interesse por estadisciplina, mas dedicou-se a desmontar o queconstituía, na época, sua conceito central: a no-

ção de "raça". Em um estudo de grande reper-cussão, feito sobre uma população de imigran-tes chegados aos Estados Unidos entre 1908 e1910 (no total 17 821 pessoas), demonstrou, re-correndo ao método estatístico, a extrema rapi-dez (o espaço de uma geração apenas) da varia-ção dos traços morfológicos (em particular aforma do crânio) sob a pressão de um ambientenovo. Segundo ele, o conceito pseudocientíficode "raça humana", concebida como um conjun-to permanente de traços físicos específicos deum grupo humano, não resiste a um exame rigo-roso. As pretensas "raças" não são estáveis, nãohá caracteres raciais imutáveis. É então impossí-vel definir uma "raça" com precisão, mesmo re-correndo ao chamado método das médias. A ca-racterística dos grupos humanos no plano físicoé a sua plasticidade, sua instabilidade, sua mesti-çagem. Por suas conclusões, ele antecipava asdescobertas posteriores da genética das popula-ções humanas.

Por outro lado, Boas também se dedicou amostrar o absurdo da idéia de uma ligação entretraços físicos e traços mentais, dominante naépoca e implícita na noção de "raça". Para ele, eraevidente que os dois aspectos dependiam deanálises completamente diferentes. E, precisa-mente por se opor a esta idéia, ele adotou o con-ceito de cultura que lhe parecia o mais apropria-do para dar conta da diversidade humana. Paraele, não há diferença de "natureza" (biológica)entre primitivos e civilizados, somente diferen-

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ças de cultura, adquiridas e logo, não inatas. É cla-ro que para Boas, contrariamente à idéia de mui-tos, o conceito de cultura não funciona comoum eufemismo do conceito de "raça", pois eleo construiu precisamente para opor-se a estaidéia. Ele foi um dos primeiros cientistas sociaisa abandonar o conceito de "raça" na explicaçãodos comportamentos humanos.

Ao contrário de Tylor, de quem ele haviano entanto tomado a definição de cultura, Boastinha como objetivo o estudo "das culturas"enão "da Cultura". Muito reticente em relação àsgrandes sínteses especulativas, em particular àteoria evolucionista unilinear então dominanteno campo intelectual, apresentou em uma co-municação de 1896,o que considerava os "limi-tes do método comparativo em antropologia".Ele recusa o comparatismo imprudente damaioria dos autores evolucionistas. Para ele, ha-via pouca esperança de descobrir leis universaisde funcionamento das sociedades e das culturashumanas e ainda menos chance de encontrarleis gerais da evolução das culturas. Ele fez umacrítica radical do chamado método de "periodi-zação" que consiste em reconstituir os diferen-tes estágios de evolução da cultura a partir depretensas origens.

Boas duvidava também, e pelas mesmasratões, das teses difusionistas baseadas em re-construções pseudo-históricas. De maneira ge-ral, ele rejeitava qualquer teoria que pretendes-se poder explicar tudo. Preocupando-se com o

rigor científico, ele recusava qualquer generali-zação que não pudesse ser demonstrada empi-ricamente. Cético, mais analista do que teórico,ele nunca teve a ambição de fundar uma esco-la de pensamento. \

Pelo contrário, ele ficará na história da an-tropologia como fundador do método indutivoe intensivo de campo. Boas concebia a etnolo-gia como uma ciência de observação direta: se-gundo ele, no estudo de uma cultura particular,tudo deve ser anotado, até o detalhe do detalhe.Na sua preocupação de contato com a realida-de, não apreciava muito o recurso a informan-tes. O etnólogo, se ele quer conhecer e com-preender uma cultura, deve aprender a línguaem uso. E, ao invés de apenas realizar entrevis-tas formais em maior ou menor grau - a situaçãode entrevista pode modificar as respostas -, deveestar atento principalmente a tudo o que se diznas conversas "espontâneas", e acrescenta, até"escutar atrás das portas".Tudo isso supõe quese permaneça por longo tempo junto ã popula-ção cuja cultura está sendo estudada.

Em certos aspectos, Boas é o inventor dométodo monográfico em antropologia. Mas,como ele levava ao extremo sua preocupaçãocom o detalhe e exigia um conhecimentoexaustivo da cultura estudada antes de qualquerconclusão geral, não realizou nenhuma mono-grafia no sentido pleno do termo. Ele chegavamesmo a pensar que toda descrição sistemáticade uma cultura comporta necessariamente uma

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dose de especulação. E era precisamente issoque ele não se permitia fazer, apesar de ter ade-rido à idéia de que cada cultura forma um todocoerente e funcional.

Devemos a Boas a concepção antropológi-ca do "relativismo cultural", mesmo que não te-nha sido ele o primeiro a pensar a relatividadecultural nem o criador desta expressão que apa-recerá apenas mais tarde. Para ele, o relativismocultural é antes de tudo um princípio metodoló-gico. A fim de escapar de qualquer forma de et-nocentrismo no estudo de uma cultura particu-lar, recomendava abordá-la sem a prtori, semaplicar suas próprias categorias para interpretá-la, sem compará-la prematuramente a outras cul-turas. Ele aconselhava a prudência, a paciência,os "pequenos passos" na pesquisa. Tinha cons-ciência da complexidade da cada sistema cultu-ral e julgava que somente o exame metódico deum sistema cultural em si mesmo poderia che-gar ao fundo de sua complexidade.

Além do princípio metodológico, o relati-vismo cultural de Boas implicava também umaconcepção relativista da cultura. De origem ale-mã, formado em diversas universidades alemãs,ele não poderia não ter sido influenciado pelanoção partícularista alemã de cultura. Para ele,cada cultura é única, específica. Sua atenção eraespontaneamente voltada para o que fazia a ori-ginalidade de uma cultura. Quase nunca, antesdele, as culturas particulares tinham sido objetode tal tratamento autônomo por parte dos pes-

quisadores. Para ele, cada cultura representavauma totalidade singular e todo seu esforço con-sistia em pesquisar o que fazia sua unidade. Daísua preocupação de não somente descrever osfatos culturais, mas de compreendê-los juntan-do-os a um conjunto ao qual eles estavam liga-dos. Um costume particular só pode ser explica-do se relacionado ao seu contexto cultural.Tra-ta-se assim de compreender como se formou asíntese original que representa cada cultura eque faz a sua coerência.

Cada cultura é dotada de um "estilo" parti-cular que se exprime através da língua, das cren-ças, dos costumes, também da arte, mas não ape-nas desta maneira. Este estilo, este "espírito" pró-prio a cada cultura influi sobre o comportamen-to dos indivíduos. Boas pensava que a tarefa doetnólogo era também elucidar o vínculo queliga o indivíduo à sua cultura.

Sem dúvida há um vínculo estreito entre orelativismo cultural como princípio metodológi-co e como princípio epistemológico levando auma concepção relativista da cultura. A escolhado método de observação sem preconceito,prolongada e sistemática, de uma entidade cul-tural determinada leva progressivamente a con-siderar esta entidade como autônoma. A trans-formação de uma etnografia de viajantes "queapenas passam" em uma etnografia de estada delonga duração modificou completamente aapreensão das culturas particulares.

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No fim da sua vida, Boas insistia em outroaspecto do relativismo cultural. Um aspecto quepoderia talvez ser um princípio ético que afirmaa dignidade de cada cultura e exalta o respeitoe a tolerância em relação a culturas diferentes.Na medida em que cada cultura exprime ummodo único de ser homem, ela tem o direito àestima e à proteção, se estiver ameaçada.

Considerando a obra de Boas em sua ricadiversidade e nas inúmeras hipóteses sobre osfatos culturais que ela propõe, descobre-se nelao anúncio de toda a antropologia cultural norte-americana que virá a ser desenvolvida.

Ftnoeentiismo

A palavra foi criada pelo sociólogo americanoWillian G. Summer e apareceu pela primeiravez em 1906 em seu livro Folkways. Segundosua definição "o etnoccntrismo é o termo técni-co para esta visão das coisas segundo a qualnosso próprio grupo é o centro de todas as coi-sas e todos os outros grupos são medidos e ava-liados em relação a ele [...]. Cada grupo alimen-ta seu próprio orgulho e vaidade, considera-sesuperior, exalta suas próprias divindades e olhacom desprezo as estrangeiras. Cada grupo pen-sa que seus próprios costumes (Folkways) sãoos únicos válidos e se ele observa que outrosgrupos têm outros costumes, encara-os comdesdém." (citado por Simon [1993, p. 57])

A atitude assim descrita parece bem universal,sob formas diversas segundo as sociedades.Como escreveu Lévi-Strauss, os homens temsempre dificuldade de encarar a diversidadedas culturas como um "fenômeno natural, resul-tante das relações diretas ou indiretas entre associedades" [1952] .A maiocia-dos povos chama-dos de "primitivos" considera que a humanida-de acaba em suas fronteiras cínicas ou lingüís-ticas e é por isso que eles se denominam fre-qüentemente usando um etnônimo que signifi-ca, segundo o caso, ''os homens", "os excelen-tes" ou ainda "os verdadeiros", em oposição aosestrangeiros que não são reconhecidos comoseres humanos completos.Quanto às sociedades chamadas "históricas",elas têm a mesma dificuldade para conceber aidéia da unidade da humanidade na diversidadecultural.O mundo greco-romano antigo qualificava de

"bárbaros "todos os que não participavam dacultura greco-romana. Em seguida, na EuropaOcidental, o termo "selvagem" será utilizado nomesmo sentido, para jogar para fora da culturae, em outras palavras, da natureza, os que nãopertenciam à civilização ocidental. Com estaatitude, os "civilizados" se comportam entãoexatamente como os "bárbaros" ou os "selva-gens". No final das contas, não estaríamos nodireito de pensar, como Lévi-Strauss que "o bár-baro é primeiramente o homem que acreditana barbárie" [1952]?

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O etnocentrismo pode tomar formas extremasde intolerância cultural, religiosa c até política.Pode também assumir formas sutis e racionais.No domínio das ciências sociais, pode-se agircomo se houvesse o reconhecimento do fenô-meno da diversidade cultural e ao mesmo tem-po conceber a variedade das culturas comouma simples expressão das diferentes etapas deum único processo de civilização. Deste modo,o evolucionismo do século XIX, ao imaginar os"estágios" de um desenvolvimento social uniii-near, permitia a classificação das culturas parti-culares em uma mesma escala de civilização. Adiferença cultural, nesta perspectiva, era so-mente uma aparência: ela estaria condenada adesaparecer, cedo ou tarde.Em ruptura total com esta concepção, a antro-pologia cultural introduz a idéia de relatividadedas culturas e de sua impossível hierarquizaçãoa priori . E ela recomenda, para escapar a qual-quer etnocentrismo na pesquisa, a aplicação dométodo de observação participante.

A idéia de cultura entre os fundadoresda etnologia francesa

Em relação a seus vizinhos, a França mani-festa uma originalidade no desenvolvimento dasciências sociais. É na França que nasce a socio-logia como disciplina científica. Mas, paradoxal-

mente, este pioneirismo vai provocar um atrasona fundação da etnologia francesa. Em um pri-meiro momento, pode-se dizer que a sociologiaocupa todo o espaço da pesquisa-sobre as soci-edades humanas. A etnologia - seria mais corre-to dizer a etnografía - está então reduzida ao sta-tus de ramo anexo da sociologia. A "questão so-cial" domina e oblitera a "questão cultural".

Uma constatação: a ausência doconceito cientifico de cultura noinício da pesquisa francesa

Na França, no século XIX e no começo doséculo XX, nas ciências sociais, os pesquisado-res se conformavam com o uso lingüístico en-tão dominante e usavam correntemente o ter-mo "civilização", já consagrado pelos historia-dores e praticamente nunca o termo "cultura"num sentido coletivo e descritivo. Apesar de es-tarem informados sobre os trabalhos científicosalemães, eles recusavam geralmente a traduçãode Kultur por sua homóloga francesa e prefe-riam "civilização". Do mesmo modo, a obra deTylor, Primitive Culture teve uma certa reper-cussão na comunidade científica na França, maso título da versão francesa foi: La CivttisationPrimitive (A Civilização Primitiva).

O termo "cultura" para os pesquisadoresfranceses continuava geralmente ligado a suaacepção tradicional no campo intelectual naci-onal: ele se referia unicamente ao campo do es-

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pírito e só era compreendido em um sentido eli-tista restrito e em um sentido individualista (acultura de uma pessoa "culta").

É evidente que o contexto ideológico pró-prio da França do século XIX bloqueou o surgi-mento do conceito descritivo de cultura. So-ciólogos e etnólogos estavam eles mesmos mui-to impregnados do universalismo abstrato doIluminismo para pensar a pluralidade culturalnas sociedades humanas dissociada da referên-cia à "civilização". É certo que o contexto histó-rico não levava a uma interrogação sobre estaquestão. A epopéia colonial se fazia em nome damissão"civüizatória" da França. A rivalidade e osconflitos com a Alemanha opunham dois na-cionalismos que se serviam das noções deKultur e de "civilização" como armas de propa-ganda. Enfim, o Estado-nação francês, confronta-do ao rápido desenvolvimento da imigração es-trangeira no último terço do século XIX, adota-va uma política cultural claramente assimila-cionista destas populações, de acordo com omodelo centralista que já havia produzido seusefeitos sobre as culturas regionais do país.

Na etnologia francesa iniciante, o que cha-ma a atenção é a ausência de conceito de cultu-ra. Seria necessário atingir o desenvolvimentode uma etnologia de campo, nos anos trinta,para que seu uso começasse a aparecer, espe-cialmente entre os pesquisadores africanistas,como Mareei Griaule ou Michel Leiris.A etnolo-gia adquire naqueles anos uma certa autonomia

em relação à sociologia e constrói seus própriosinstrumentos conceituais.A confrontação diretae prolongada com a alteridade e a pluralidadedas culturas favorece o surgimento do conceitode cultura através da introdução de um certo re-lativismo cultural.

Mas este surgimento do conceito se dáapenas progressivamente na França e, inclusivena literatura etnológica, "civilização" resistirá echegará, às vezes, a ser utilizada indistintamentecom o termo cultura, até os anos sessenta. Aobra clássica de Ruth Benedict, Pattems ofCulture seria traduzido em 1950 com o título(infeliz sob qualquer ponto de vista) de Amos-tras de civilizações.

Durkheim e a abordagem imitamdos fatos de cultura

Emile Durkheim (1858 - 1917), por umacuriosa coincidência, nasceu no mesmo anoque Franz Boas. Como Boas na antropologiaamericana, Durkheim ocupará uma posição"fundadora" na antropologia francesa. Mais so-ciólogo do que etnólogo, Durkheim não deixa-va, no entanto, de desenvolver uma sociologiacom orientação antropológica. De fato, tinhacomo ambição compreender o social em todasas suas dimensões e sob todos os seus aspectos,inclusive na dimensão cultural, através de todasas formas de sociedade.

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Com a criação em 1897 da revista O AnoSociológico, Durkheim contribuiu para fundar aetnologia francesa e assegurar seu reconheci-mento nacional e internacional. A revista publi-cou» em suas sucessivas edições, numerosas mo-nografias etnográficas e diversas resenhas deobras etnológicas, em geral estrangeiras.

Durkheim não utilizava quase nunca oconceito de cultura. Em sua própria revista,"cul-tura" em língua estrangeira era quase sempretraduzida por "civilização71. Mas, se ele recorriaapenas excepcionalmente ao conceito de cultu-ra, não era por se desinteressar pelos fenôme-nos culturais. Para ele, os fenômenos sociais têmnecessariamente uma dimensão cultural poissão também fenômenos simbólicos.

Durkheim contribuiu muito para extrairdo conceito de civilização os pressupostosideológicos implícitos em maior ou menor grau.Em uma "Nota sobre a noção de civilização", re-digida conjuntamente com Mareei Mauss e lan-çada em 1913, ele se esforçava para propor umaconcepção objetiva e não normativa da civiliza-ção que incluía a idéia da pluralidade das civili-zações sem enfraquecer, com isso, a unidade dohomem. Para ele, não havia dúvida de que a hu-manidade é uma, que todas as civilizações parti-culares contribuem para a civilização humana.Ele não concebia diferenças de natureza entreprimitivos e civilizados. Mauss, que partilhavado pensamento de Durkheim com quem manti-

nha uma estreita colaboração, era ainda mais ex-plícito desde 1901:

A civilização de um povo não c nada além deum conjunto de seus fenômenos sociais; e falarde povos incultos, "sem civilização", de povos"naturais" (Naturvõlker), é falar de coisas quenão existem (O Ano Sociológico, tomo IV,1901,p. 141).

O famoso artigo, escrito por Durkheim eMauss em 1902, Algumas formas primitivas declassificação, pretendia demonstrar que os pri-mitivos são perfeitamente aptos para o pensa-mento lógico. Durkheim não mudara a respeitodeste ponto. Mais tarde, em As Formas elemen-tares da vida religiosa, ele confirmará sua posi-ção inicial, recorrendo pela primeira vez à no-ção de cultura:

[...], o pensamento conceituai é contemporâ-neo da humanidade. Nós nos recusamos entãoa vê-lo como um produto de uma cultura tardiaem maior ou menor grau [1912].

Se Durkheim partilhava de certos aspectosda teoria evolucionista, ele recusava, no entan-to, suas teses mais redutoras e sobretudo a tesedo esquema unilinear de evolução que seria co-mum a todas as sociedades. Em uma resenha deum livro alemão que tratava da "psicologia dospovos", ciência então muito em voga na Alema-

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nha, Durkheim escreveria, em desacordo com atese central da obra que apresentava a idéia deum futuro idêntico para toda a humanidade:

Nada nos autoriza a acreditar que os diferentestipos de povos vão todos no mesmo sentido; al-guns seguem caminhos muito diversos. O de-senvolvimento humano deve ser ilustrado nãosob a forma de uma linha em que as sociedadesviriam se colocar umas depois das outras comose as mais avançadas não fossem senão a conti-nuação e a seqüência das mais rudimentares,mas como uma árvore com ramos múltiplos edivergentes. Nada nos diz que a civilização deamanhã será apenas o prolongamento da exis-tente atualmente para uma mais elevada; talvez,ao contrário, ela terá como agentes povos quenós julgamos inferiores como a China, porexemplo, e que lhe darão uma direção nova einesperada (OAno Sociológico, tomo XII, 1913,p. 60-61).

O pensamento de Durkheim era então im-pregnado de uma grande sensibilidade em rela-ção à relatividade cultural, que provinha de suaconcepção geral da sociedade e da normalidadesocial. Ele abordava esta questão adotando umaatitude relativista: a normalidade é relativa a cadasociedade e ao seu nível de desenvolvimento.Sua concepção da normalidade pretendia ser pu-ramente descritiva e baseada em uma espécie de"média" própria a cada tipo de sociedade.

Anos mais tarde, em 1929, em um estilomais polêmico e mais explícito, Mauss prolonga-ria o pensamento de Durkheim, em uma confe-rência sobre "as civilizações":

Os homens de Estado, os filósofos, o público, esobretudo os jornalistas, falam da civilização.Em período nacionalista, a civilização, é sem-pre a sua cultura, a de sua nação, pois eles ig-noram geralmente a civilização dos outros. Emperíodo racionalista e geralmente universalistae cosmopolita [...] a Civilização constitui umaespécie de estado de coisas ideal e real ao mes-mo tempo, racionai e natural simultaneamente,causai e final num mesmo momento, que serialiberado aos poucos por um progresso indubi-tável [...].Esta perfeita essência nunca foi nada além deum mito, de uma representação coletiva. Estacrença universalista e nacionalista ao mesmotempo é um traço de nossas civilizações inter-nacionais e nacionais do Ocidente Europeu eda América não indígena [1930, p. 103 - 104].

Para manter sua própria lógica, Durkheimchegou a privilegiar um uso flexível da noçãode civilização que ele fazia funcionar como umconceito "de geometria variável". Na Nota sobrea noção de civilização, escrita com Mauss, elese dedicava a tirar a noção da generalidade im-precisa que a caracterizava então e a dar-lheuma conteúdo conceituai operatório:"a" civiliza-

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cão não se confunde com a humanidade e seufuturo, tampouco com uma nação em particu-lar; o que existe, o que se pode observar e estu-dar, são diferentes civilizações. E é preciso en-tender "civilização" como um conjunto de

fenômenos sociais que não estão ligados a umorganismo social particular; estes fenômenos seestendem sobre áreas que ultrapassam um ter-ritório nacional, ou ainda se desenvolvem emperíodos de tempo que ultrapassam a históriade uma só sociedade [1913, p. 47].

Esta definição levava à teoria difusionista anoção de "área"e ao mesmo tempo, introduzia nateoria evolucionista a noção de "período", mes-mo que Durkheim se opusesse às reconstítuiçõeshistóricas imprecisas das duas escolas. Preocupa-do em fundar um método rigoroso de estudo dosfatos sociais, ele apenas reconhecia como válidoo procedimento empírico e recusava qualquerforma de comparatismo especulativo.

Não se deve procurar junto a Durkheimuma teoria sistemática da cultura. Sua reflexãosobre a cultura não forma um conjunto unifica-do.A preocupação central de sua obra era deter-minar a natureza do vínculo social. No entanto,sua concepção da sociedade como totalidadeorgânica determinava sua concepção de culturaou de civilização: para ele, as civilizações consti-tuem "sistemas complexos e solidários".

Contra as teses individualistas que ele refu-tava por serem dominadas pelo psicologismo,Durkheim afirmava a prioridade da sociedadesobre o indivíduo. Sua concepção dos fenôme-nos era feita, no entanto, do mesmo holismo me-todológico. Em As Formas Elementares da VidaReligiosa, sobretudo, mas desde O Suicídio(1897), ele desenvolvia uma teoria da "consciên-cia coletiva" que é uma forma de teoria cultural.Para ele, existe em todas as sociedades uma"consciência coletiva", feita das representaçõescoletivas, dos ideais, dos valores e dos sentimen-tos comuns a todos os seus indivíduos. Estaconsciência coletiva precede o indivíduo, im-põe-se a ele, é exterior e transcendente a ele: hádescontinuidade entre a consciência coletiva ea consciência individual, e a primeira é "supe-rior" à segunda, por ser mais complexa e inde-terminada. É a consciência coletiva que realiza aunidade e a coesão de uma sociedade.

As hipóteses de Durkheim sobre a cons-ciência coletiva seguramente exerceram umainfluência sobre a teoria da cultura como "superorganismo" de Alfred Kroeber [1917]. Pode-setambém fazer uma aproximação entre a noçãode consciência coletiva - à qual Durkheim atri-buía características espirituais - e as noções depattern cultural e de "personalidade básica" pró-prias aos antropólogos culturalistas americanos.O próprio Durkheim utilizava às vezes a expres-são "personalidade coletiva", em um sentidomuito próximo da "consciência coletiva".

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Se o conceito de cultura é praticamenteausente da antropologia de Durkheim, isto nãoo impediu de propor interpretações dos fenô-menos freqüentemente chamados de "culturais"pelas ciências sociais.

Lévy-Bruhl e a abordagemdiferencial

Ainda que a obra de Lucien Lévy-Bruhl(1857 - 1939) não tenha tido a mesma repercus-são ou exercido a mesma influência que a obrade Durkheim, pode-se observar que na seu iní-cio, através de dois de seus fundadores, a etno-logia francesa hesitava entre duas concepçõesde cultura, uma unitária, a outra, diferencial. Aconfrontação destas duas concepções em umdebate científico às vezes acirrado, contribuiriamuito para o desenvolvimento da etnologiafrancesa. É legítimo considerar Lévy-Bruhl comoum dos fundadores da disciplina etnológica naFrança. De fato, ele foi um dos primeiros pesqui-sadores a consagrar uma grande parte de seustrabalhos ao estudo das culturas primitivas.Além do mais, no plano institucional, é a ele quedevemos a criação, em 1925, do Instituto de Et-nologia da Universidade de Paris, onde será for-mada a primeira geração de etnólogos de cam-po sob a responsabilidade de Mareei Mauss e dePaul Rivet, a quem ele confiou o secretariado ge-ral do Instituto.

Desde 1910, com o livro As Funções Men-tais nas Sociedades Inferiores, Lévy-Bruhl colo-ca a diferença cultural no centro de sua refle-xão. Ele se interroga sobre as diferenças de"mentalidade" que podem existir entre os po-vos. Esta noção de "mentalidade" não era muitodistante da acepção etnológica de "cultura", ter-mo que ele praticamente não utilizava.

Todo esforço de Lévy-Bruhl consistia emrefutar a teoria do evolucionismo unilinear e atese do progresso mental. De uma maneira ge-ral, ele se opunha à própria idéia de "primiti-vos", ainda que ele mesmo tivesse utilizado estetermo várias vezes, devido ao contexto da épo-ca. Para ele, os indivíduos das sociedades de cul-tura oral não eram "crianças grandes" que teriamo mesmo tipo de interrogações que os "civiliza-dos", vistos como adultos, dando a estas ques-tões respostas ingênuas, "infantis". Na Mentali-dade Primitiva, ele afirmava:

[Sc] a atividade mental dos primitivos [não formaisj interpretada a priori como uma forma ru-dimentar da nossa, como infantil e quase pato-lógica. [...] ela aparecera ao contrário, comonormal nas condições em que é exercida, comocomplexa e desenvolvida à sua maneira [1922,p.15-16].

Lévy-Bruhl contestava também uma certaconcepção de unidade do psiquismo humano

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que implicava um modo único de funcionamen-to. Ele não partilhava das teses de Tylor sobre oanimismo dos primitivos (paraTylor, o animismoconstituía a forma mais antiga de crença religio-sa, isto é, a crença na existência e na imortalida-de da alma e, logo, em seres espirituais, baseadana interpretação dos sonhos): ele criticava suainsistência excessiva para demonstrar o caráter"razoável" desta crença. Pelas mesmas razões, elediscordava de Durkheim, criticando-o por que-rer provar que os homens têm, em todas as so-ciedades, uma mentalidade "lógica" que obede-ceria necessariamente às mesmas leis da razão.

Por outro lado, Durkheim não admitia adistinção que Lévy-Bruhl estabelecia entre"mentalidade primitiva" e "mentalidade civiliza-da". Mas a crítica que ele fazia em 1912, em suaresenha, para O Ano Sociológico, do primeiro li-vro de Lévy-Bruhl sobre esta questão, foi marca-da por um evolucionismo bastante redutor:

Estas duas formas de mentalidade humana, pormais diferentes que sejam, ao invés de derivarde origens diferentes, nasceram uma da outra esão dois momentos de uma mesma evolução.

Estas discordáncias entre Lévy-Bruhl eseus pares eram apenas a expressão de um de-bate científico muito animado sobre a questãoda alteridade e da identidade culturais.A este de-bate, Lévy-Bruhl trouxe uma importante contri-

buição. Pode-se então perguntar as razões quelevaram esta contribuição a ser mal compreen-dida, deturpada, rejeitada e finalmente esqueci-da em sua maior parte.

Dominique Merllié [1993] responde a es-ta pergunta e propõe uma nova leitura, sem oa príori, deste autor. Contrariamente à apresen-tação que é comumente feita de sua obra, elanão é etnocentrista. Foi assim qualificada paraser mais desacreditada enquanto todo o esforçode Lévy-Bruhl consistia justamente em uma ten-tativa de pensar a diferença a partir de catego-rias adequadas. Mas esta tentativa entrava emcontradição com o universalismo (abstrato) doIluminismo e seus princípios éticos que serviamde referência à maioria dos intelectuais france-ses do início do século.

O que chamamos de tese de Lévy-Bruhlera apresentada por ele mesmo como uma "hi-pótese de trabalho", como nos lembra Merllié.Se ele tentava dar conta da diferença das menta-lidades, isto não o impedia de afirmar a unidadepsíquica humana. Para ele, a unidade da humani-dade era mais fundamental que a diversidade. Oconceito de "mentalidade primitiva" ("pré-lógi-ca") não era nada além de um instrumento parapensar a diferença. Seu procedimento, que seservia explicitamente das pesquisas de campo,era tudo, exceto dogmático.

Aliás, segundo este autor, a diferença nãoexclui a comunicação entre os grupos huma-

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nos, que continua possível devido ao fato depertencerem a uma humanidade comum. Nãohá então um corte absoluto entre as diferentes"mentalidades", que não são feitas de lógicascontraditórias. O que difere entre os grupos sãoos modos de exercício do pensamento e nãosuas estruturas psíquicas profundas .

Lévy-Bruhl pensava também que "mentali-dade pré-lógica" e "mentalidade lógica" não sãoincompatíveis e coexistem em todas as socieda-des; mas a preeminência de uma sobre a outrapode variar segundo os casos, o que explica a di-versidade de culturas. Recorrendo ao conceitode "mentalidade", ele não afirmava que os siste-mas de representações e os modos de raciocí-nio no interior de uma mesma cultura formamum conjunto perfeitamente estável e homogê-neo. Mas pensava indicar assim a orientação ge-ral de uma dada cultura.

O conceito de "mentalidade" não chegará ase impor entre os etnólogos, talvez por causa dascríticas injustas contra Lévy-Bmhl que não estãodissociadas das críticas dirigidas mais tarde aosculturalistas, como observa Dominique Merllié:

Há talvez alguma coisa de comparável na for-ma de descrédito um pouco sistemático queatingiu os trabalhos dos "culturalistas". Lévy-Bruhl esboça, aliás, análises muito próximasdas dos antropólogos culturalistas [,..] [1993,nota 26,p.7J-

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Á noção de "mentalidade" terá maior su-cesso junto aos historiadores, sobretudo os daescola conhecida como "desAnnales". É verda-de que esta noção foi utilizada por eles em umaacepção geralmente menos globalizante e me-nos psicologizante, já que em geral, eles estavaminteressados na diferenciação social em umamesma sociedade.

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O Triunfo do Conceitode Cultura

Se o conceito ou ao menos a idéia de cul-tura se impõe, a pesquisa sistemática sobre ofuncionamento da cultura em geral ou das cul-turas em particular não se desenvolve de formaigual em todos os países em que a etnologia co-meça a progredir. O conceito recebe sua melhoracolhida nos Estados Unidos e na antropologiaamericana, ele vai conhecer seu aprofundamen-to teórico mais notável. Neste contexto científi-co particular, a pesquisa sobre a questão da oudas culturas é verdadeiramente cumulativa enão terá nenhum declínio. Isto é tão verdadeiroque falar de antropologia americana ou de "an-tropologia cultural" é praticamente o mesmo. Aconsagração científica de "cultura" é tanta nosEstados Unidos que o termo é adotado rapida-mente em seu sentido antropológico pelasdisciplinas vizinhas, sobretudo a psicologia e asociologia.

As razões do sucesso

A pesquisa científica não é totalmente in-dependente do contexto no qual é produzida.Ora, o contexto nacional americano é bem espe-cífico, comparado aos contextos nacionais euro

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peus. Os Estados Unidos sempre se considera-ram um país de imigrantes de diferentes origensculturais. Nos Estados Unidos a imigração fundae precede então a nação que se reconhece na-ção pluriétnica.

O mito nacional americano, segundo oqual a legitimidade da cidadania é quase ligadaà imigração - o americano é um imigrante ou umdescendente de imigrantes - é a base de um mo-delo de integração nacional original que admitea formação de comunidades étnicas particula-res. A vinculação do indivíduo à nação se dá pa-ralelamente à participação reconhecida em umacomunidade particular; esta é a razão pela quala identidade dos americanos foi chamada por al-guns de "identidade com hífen": pode-se de fatoser "ítalo-americano", "polono-americano", "ju-deu-americano", etc. Daí resulta o que se podechamar de "federalismo cultural" [Schnapper,1974] que permite uma certa continuidade dasculturas de origem dos imigrantes, não semtransformações, devidas ao novo ambiente so-cial. É preciso observar, no entanto, que o mitoamericano leva a considerar os índios, que nãosão, por definição, imigrantes, e os Negros, cujaimigração foi forçada, como não sendo total-mente americanos.

Pelas mesmas razões históricas, a sociolo-gia americana nascente privilegia a pesquisa so-bre o fenômeno da imigração e das relações in-terétnícas. Os sociólogos da Universidade deChicago, primeiro centro de ensino e de divul-

gação da sociologia nos Estados Unidos, colo-cam no centro de suas análises a questão dos es-trangeiros na cidade, contribuindo assim parapromover um campo de estudos essencial paraas sociedades modernas. Este campo só se de-senvolverá e obterá um certo reconhecimentomuito tardio na França na década de setenta. Aocontrário dos Estados Unidos, a França não sevia como um país de imigração, no entanto elase tornou isso, de forma maciça e estrutural des-de a segunda metade do século XIX.A represen-tação unitária de nação, unida à exaltação da ci-vilização francesa, concebida como modelo uni-versal, explica em parte o fraco desenvolvimen-to da reflexão sobre a diversidade cultural nasciências sociais na França durante muito tempo.Ao contrário, o contexto próprio dos EstadosUnidos favoreceu uma interrogação sistemáticadas diferenças culturais e dos contatos entre asculturas.

A antropologia americana será freqüente-mente qualificada, às vezes com uma conotaçãopejorativa,de"culturalista>'.Tomado no singular,o adjetivo parece redutor: na realidade, nãoexiste um culturalismo americano, mas cultura-lismos que, apesar de vinculados uns aos ou-tros, representam, abordagens teóricas diferen-ciadas.É possível agrupá-los em três grandescorrentes.A primeira é herdeira direta do ensi-namento de Boas e encara a cultura sob o ângu-lo da história cultural. A segunda se dedica aelucidar as relações entre cultura (coletiva) e

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personalidade (individual). A terceira consideraa cultura como um sistema de comunicaçõesentre os indivíduos.

A herança de Boas: a história cultural

Entre todos os caminhos abertos por Boas,é a pesquisa sobre a dimensão histórica dos fenô-menos culturais que vai sobretudo ser retomadapor seus sucessores imediatos. Entre eles, espe-cialmente Alfred Kroeber e também Clark Wisslervão se esforçar para explicar o processo de distri-buição dos elementos culturais no espaço. Elestomam emprestados dos etnólogos "difusionis-tas" alemães do início do século uma série de ins-trumentos conceituais que procurarão refinar,principalmente a noção de "área cultural" e de"traço cultural". Esta última noção deve permitir,em princípio, definir os menores componentesde uma cultura. Exercício aparentemente sim-ples, ele se revela bastante difícil e até ilusório,tão difícil se torna isolar e analisar um elementode um conjunto cultural, sobretudo no domíniosimbólico. A idéia é de estudar a repartição espa-cial de um ou de vários traços culturais nas cultu-ras próximas e analisar o processo de sua difu-são. No caso em que aparece uma grande conver-gência de traços semelhantes em um dado espa-ço, fala-se então de "área cultural". No centro daárea cultural se encontram as características fun-damentais de uma cultura; na sua periferia, estascaracterísticas se entrecruzam com os traços pro-venientes das áreas vizinhas.

Como foi mostrado por Kroeber, o concei-to de área cultural "funciona" bem no caso dasculturas indígenas da América do Norte, pois aliáreas culturais e áreas geográficas são mais oumenos coincidentes. Mas, em muitas outras re-giões do mundo, seu caráter operatório é discu-tível, pois as fronteiras são bem menos nítidas eas áreas culturais só podem ser definidas de ma-neira aproximativa, a partir de um número pou-co significativo de traços comuns. No entanto,empregada de maneira flexível, a noção não étotalmente desprovida de utilidade descritiva[Kroeber, 1952].

As críticas foram severas contra os esque-mas teóricos e conceituais dos antropólogosque centralizavam sua reflexão nos fenômenoschamados de "difusão".A difusão seria o resulta-do dos contatos entre as diferentes culturas eda circulação dos traços culturais. Na verdade,devido a alguns pesquisadores "hiperdifusionis-tas" europeus e não americanos, certas recons-tituições históricas foram imprecisas e até aber-rantes. A maioria dos discípulos de Boas, forma-dos pelo seu rigor metodológico empírico,mostraram-se, no entanto, prudentes em suasinterpretações.

Além de um impressionante acúmulo deobservações empíricas, as contribuições teóricasdesta corrente da antropologia americana para acompreensão da formação das culturas são bas-tante importantes. Devemos a ela o conceito fun-damental de "modelo cultural" (cultural patterri)

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que designa o conjunto estruturado dos mecanis-mos pelos quais uma cultura se adapta a seumeio ambiente. Esta noção será retomada e apro-fundada pela escola "cultura e personalidade".

Por outro lado, ao centralizar suas pesqui-sas nos fenômenos de contato cultural e, logo,nos fenômenos de empréstimo, Boas e seus dis-cípulos abrem o caminho para as futuras pes-quisas sobre a aculturação e as trocas culturais.Seus trabalhos revelam a complexidade dos fe-nômenos de empréstimo e mostram que as mo-dalidades de empréstimo dependem ao mesmotempo do grupo que dá e do grupo que recebe.Estes autores formularam também a hipótese,que será teorizada mais tarde, que entre emprés-timo e inovação culturais não há diferenças es-senciais, sendo o empréstimo freqüentementeuma transformação e até a recriação do elemen-to emprestado, pois ele deve se adaptar ao mo-delo cultural da cultura receptora.

d;i cultura

Do mesmo modo que as especulações deum certo evolucionismo levaram à reação empi-rista de Boas, os excessos interpretativos de al-guns difusionistas provocaram a reação deBronislaw Malinowski (1884 - 1942), antropólo-go inglês, nascido como súdito austríaco de fa-mília polonesa. Ele se opôs a qualquer tentativa

de escrever a história das culturas de tradiçãooral. Para ele, é preciso se ater à observação di-reta das culturas em seu estado presente, sembuscar a volta às suas origens, o que representa-ria um procedimento ilusório, pois não suscetí-vel de prova científica.

Por outro lado, Malinowski critica a atomi-zação da realidade cultural à qual chegam algu-mas pesquisas da corrente difusionista. Estaspesquisas se caracterizam por uma abordagemmuseográfica dos fatos culturais, reduzidos a tra-ços colecionados e descritos em si mesmos semque haja a compreensão de seu lugar em um sis-tema global. O importante não é que tal traçoesteja presente aqui ou lá, mas que ele exerça,na totalidade de uma dada cultura, uma funçãoprecisa. Como cada cultura forma um sistemacujos elementos são interdependentes, não sepode estudá-los separadamente:

[em toda cultura] cada costume, cada objeto,cada idéia e cada crença exercem uma certafunção vital, têm uma certa tarefa a realizar, re-presentam uma parte insubstituível da totalida-de orgânica [1944].

Qualquer cultura deve ser analisada emuma perspectiva sincrônica, a partir unicamen-te da observação de seus dados contemporâ-neos. Contra o evolucionismo voltado para o fu-turo, contra o difusionismo voltado para o pas-sado, Malinowski propõe então o funcionalismo

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centrado no presente, único intervalo de tempoem que o antropólogo pode estudar objetiva-mente as sociedades humanas.

Como cada cultura constitui um todo co-erente, todos os elementos de um sistema cultu-ral se harmonizam uns aos outros, o que tornatodos os sistemas equilibrados e funcionais e oque explica que todas as culturas tendem a seconservar idênticas a si mesmas. Malinowski su-bestima as tendências à mudança interna pró-prias de cada cultura. Para ele, a mudança cultu-ral vem essencialmente do exterior, por contatocultural.

Para explicar o caráter funcional das dife-rentes culturas, Malinowski elabora uma teoriamuito controvertida, a teoria das "necessida-des", fundamento de Uma Teoria Científica daCultura (título de um de seus livros, editado em1944). Os elementos constitutivos de uma cultu-ra teriam como função satisfazer as necessida-des essenciais do homem. Ele toma emprestadoseu modelo das ciências da natureza, lembrandoque os homens constituem uma espécie animal.O indivíduo tem um certo número de necessi-dades psicológicas (alimentar-se, reproduzir-se,proteger-se, etc.), que determinam imposiçõesfundamentais. A cultura constitui precisamentea resposta fuiicional a estes imperativos natu-rais, Esta resposta se dá pela criação de "institui-ções", conceito central para Malinowski, que de-signa as soluções coletivas (organizadas) às ne-

cessidades individuais.As instituições são os ele-mentos concretos da cultura, as unidades bási-cas de qualquer estudo antropológico, e não os"traços" culturais: nenhum traço tem significa-ção se não estiver relacionado com a instituiçãoà qual ele pertence. O objeto da antropologia éo estudo das instituições (econômicas, políticas,jurídicas, educativas...) e das relações entre elas,ligadas ao sistema cultural no qual estão integra-das e não o estudo de fatos culturais arbitra-riamente isolados

Através desta teoria das necessidadesque coloca a antropologia em um impasse,Malinowski sai da reflexão sobre a culturapropriamente dita para voltar ao estudo danatureza humana cujas necessidades ele tentadeterminar, chegando até a listá-las e classifi-cá-las de maneira pouco convincente. Suaconcepção "biologista" da cultura o leva aprestar atenção unicamente aos fatos que re-forçam sua idéia de estabilidade harmoniosade todas as culturas. O funcionalismo mostraaí as suas limitações: ele se revela pouco aptopara pensar as contradições culturais inter-nas, as disfunções e até os fenômenos cultu-rais patológicos.

O grande mérito de Malinowski será, noentanto, demonstrar que não se pode estudaruma cultura analisando-a do exterior, e aindamenos a distância. Não se satisfazendo com aobservação direta "em campo", ele sistematizou

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w

o uso do método etnográfico chamado de "ob-servação participante" (expressão criada porele), único modo de conhecimento em profun-didade da altericlade cultural que poderia esca-par ao etnocentrismo.Ao longo de uma pesqui-sa intensiva e de longa duração, o etnólogo par-tilha a existência de uma população em cujamentalidade ele se esforça para penetrar, atravésdo aprendizado da língua vernacular e pela ob-servação meticulosa dos fatos da vida cotidiana,inclusive os mais banais e aparentemente insig-nificantes. Trata-se fundamentalmente de com-preender o ponto de vista do autóctone. Somen-te este procedimento paciente pode permitirque apareçam progressivamente as inter-rela-ções que existem entre todos os fatos observa-dos e, a partir daí, definir a cultura do grupoestudado.

A escola "cultura e personalidade"

A antropologia americana, em seu esforçoconstante de interpretação das diferenças cultu-rais entre os grupos humanos, vai progressiva-mente, a partir da década de trinta, orientar-separa um novo caminho. Considerando que o es-tudo da cultura se fez até então de maneira abs-trata demais e que os vínculos que existem en-tre o indivíduo e sua cultura não foram levadosem conta, alguns antropólogos se dedicarão acompreender como os seres humanos incorpo-

ram e vivem sua cultura. Para eles, a cultura nãoexiste enquanto realidade "em si", fora dos indi-víduos, mesmo que todas as culturas tenhamuma relativa independência em relação aos indi-víduos.A questão é então elucidar como sua cul-tura está presente neles, como ela os faz agir,que condutas ela provoca, supondo precisamen-te que cada cultura determina um certo estilode comportamento comum ao conjunto dos in-divíduos que dela participam. Aí estaria o quefaz a unidade de uma cultura e o que a torna es-pecífica em relação às outras. Usando outromodo de explicação, a cultura é então encaradacomo totalidade e a atenção está sempre centra-da nas descontinuidades entre as diferentesculturas.

Edward Sapir (1884 - 1939) será um dosprimeiros a lamentar o empobrecimento darealidade das tentativas de reconstituição da di-fusão dos traços culturais. O que existe, segun-do ele, não são elementos culturais que passa-riam imutáveis de uma cultura a outra, indepen-dentemente dos indivíduos, mas comportamen-tos concretos de indivíduos, característicos decada cultura e que podem explicar cada em-préstimo cultural particular [1949].

Surge uma corrente teórica que vai exer-cer uma influência considerável sobre a antro-pologia americana. Pode-se chamá-la de escolada "cultura e personalidade". O termo é talvezum pouco excessivo, pois a diversidade nas

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orientações e nos métodos dos pesquisadores égrande. Alguns, por exemplo, são mais sensíveisà influência da cultura sobre o indivíduo, outrosprivilegiam as reações do indivíduo à cultura.Eles têm em comum,no entanto, a preocupaçãode considerar as aquisições da psicologia cientí-fica e da psicanálise e são muito abertos à inter-disciplinaridade. Todavia, sua problemática in-verte a perspectiva freudiana: para eles, não é alibído que explica a cultura. Pelo contrário, oscomplexos da libido se explicam por sua ori-gem cultural.

A questão fundamental que os pesquisa-dores desta escola se colocam é a da personali-dade. Sem questionar a unidade da humanida-de, tanto no plano biológico quanto no planopsíquico, estes autores se perguntam por quaismecanismos de transformação, indivíduos denatureza idêntica a princípio, acabam adquirin-do diferentes tipos de personalidade, caracte-rísticos de grupos particulares. Sua hipótesefundamental é que à pluralidade das culturasdeve corresponder uma pluralidade de tipos depersonalidade.

Ruth ficnedict e os "lipos culturais"

A obra de Ruth Benedict (1887 -1948), alu-na e em seguida assistente de Boas, é dedicadaem grande parte ã definição dos "tipos cultu-rais" que se caracterizam por suas orientações

gerais e as escolhas significativas que eles fazementre opções possíveis a priori. Benedict lançaa hipótese da existência de um "arco cultural"que incluiria todas as possibilidades culturaisem todos os âmbitos, cada cultura podendo tor-nar real apenas um segmento particular destearco cultural. As diferentes culturas aparecementão definidas por um certo "tipo" ou estilo. Es-tes tipos de cultura possíveis não são em núme-ro ilimitado devido aos limites do "arco cultu-ral": é possível então classificá-los uma vez quetenham sido identificados. Convencida da espe-cificidade de cada cultura, Benedict afirmava, noentanto, que a variedade de culturas é redutívela um certo número de tipos caracterizados.

Benedict é célebre sobretudo pelo uso sis-temático do conceito de pattern of culture(que dará o título a seu livro mais conhecido,editado em 1934), apesar de não ser prorpriamente a autora deste conceito. A idéia podeser encontrada na obra de Boas e de Sapir. ParaBenedict, cada cultura se caracteriza então porseupattern, isto é, por uma certa configuração,um certo estilo, um certo modelo. O termo im-plica a idéia de uma totalidade homogênea ecoerente.

Toda cultura é coerente, pois está de acor-do com os objetivos por ela buscados, ligados asuas escolhas, no conjunto das escolhas cultu-rais possíveis. Ela busca estes objetivos à reveliados indivíduos, mas através deles, graças às ins-

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tituições (sobretudo as educativas) que vão mol-dar todos os seus comportamentos, conformeos valores dominantes que lhes são próprios. Oque define então uma cultura, não é a presençaou ausência de tal traço ou de tal complexo detraços culturais, mas sua orientação global emcerta direção, "seu pattern mais ou menos co-erente de pensamento e ação". Uma cultura nãoé uma simples justaposição de traços culturais,mas uma maneira coerente de combina-los. Decerta modo, cada cultura oferece aos indivíduosum "esquema" inconsciente para todas as ativi-dades da vida.

Conseqüentemente, a unidade significativade estudo adotada deve ser a "configuração cultu-ral" para apreender sua lógica interna. Benedictilustrará seu método estudando de modo compa-rativo dois modelos culturais contrastados, o dosíndios Pueblo do Novo México, sobretudo osZuni (conformistas, tranqüilos, profundamentesolidários, repeitadores, comedidos na expressãodos sentimentos) e o modelo de seus vizinhos, osíndios das Planícies, entre os quais os Kwakiutl,ambiciosos, individualistas, agressivos e atéviolentos, manifestando uma tendência para oexagero afetivo. Ela chamará o primeiro tipo de"tipo apolínico" e o segundo, de "tipo dionisíaco"(a referência a Nietzsche é clara), considerandoque a estes dois tipos extremos em maior ou emmenor grau se ligavam outras culturas e queentre as duas existiam tipos intermediários[Benedict, 1934].

Margaret Maed e a transmissãocultural

Na mesma época que Benedict, MargaretMead (1901 - 1978) preferiu orientar suas pes-quisas em direção à maneira como um indiví-duo recebe sua cultura e as conseqüências queisto provoca na formação de sua personalidade.Ela coloca no centro de suas reflexões e suaspesquisas o processo de transmissão cultural ede socialização da personalidade. Ela analisaráconseqüentemente, diferentes modelos de edu-cação para compreender o fenômeno de inscri-ção da cultura no indivíduo e para explicar osaspectos dominantes de sua personalidade devi-dos ao processo de inscrição.

Sua pesquisa mais significativa nesta áreafoi feita na Oceania em três sociedades daNova Guiné, os Arapesh, os Mundugomor e osChambuli [Mead, 1935]. Ela mostra, atravésdestes casos, que as pretensas personalidadesmasculina e feminina que consideramos uni-versais, por crermos que são de ordem biológi-ca, não existem, como as imaginamos,em todasas sociedades. E mesmo, algumas sociedadestêm um sistema cultural de educação que nãobusca opor meninos e meninas no plano dapersonalidade.

Entre os Arapesh, tudo parece organizadona infância para que o futuro Arapesh, homemou mulher, seja um ser doce, sensível, servil. En-

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quanto entre os Mundugomor, a conseqüênciado sistema de educação é treinar a rivalidade eaté a agressão, seja entre os homens, entre asmulheres ou entre os dois sexos. Na primeira so-ciedade, as crianças são tratadas com afeição,sem distinção de sexo; na segunda, elas são edu-cadas duramente pois não são desejadas, sejamelas meninos ou meninas. As duas sociedadesproduzem, devido a seus métodos culturais, doistipos de personalidades completamente opos-tos. Entretanto, elas têm um ponto em comum:não fazendo distinção entre "psicologia femini-na" e "psicologia masculina", elas não criam umapersonalidade especificamente masculina ou fe-minina. Segundo a concepção corrente em nos-sa sociedade, o Arapesh, homem ou mulher, pa-rece dotado de uma personalidade mais femini-na e "o" ou "a" Mundugomor tem uma personali-dade mais masculina. No entanto, apresentar as-sim os fatos seria um contra-senso.

Ao contrário, o terceiro grupo, os Chambulipensam como nós que homens e mulheres sãoprofundamente diferentes em sua psicologia.Mas, diferentemente da nossa sociedade, eles têma convicção de que a mulher é, "por natureza",empreendedora, dinâmica, solidária com os mem-bros de seu sexo, extrovertida; e que o homem, aocontrário, é sensível, menos seguro de si, muitopreocupado com sua aparência, facilmente inve-joso de seus semelhantes. Entre os Chambuli, sãoas mulheres que detêm o poder econômico e que

garantem o essencial da subsistência do grupo,enquanto os homens se dedicam principalmenteàs atividades cerimoniais e estéticas, que os colo-cam freqüentemente em competição uns com osoutros.

Baseada nestas análises, Margaret Meadpode afirmar que:

os traços de caráter que nós qualificamos demasculinos ou de femininos são, em grandeparte ou até mesmo na sua totalidade, determi-nados pelo sexo de uma maneira tão superficialquanto o são as roupas, os modos e o penteadoque uma época designa a um ou outro sexo[(1935) 1963, p. 252].

Deste modo, a personalidade individualnão se explica por seus caracteres biológicos(por exemplo, como aqui, o sexo), mas pelo "mo-delo" cultural particular a uma dada sociedadeque determina a educação da criança. Desde osprimeiros instantes da vida, o indivíduo é im-pregnado deste modelo, por todo um sistema deestímulos e de proibições formulados explicita-mente ou não. Isto o leva, quando adulto, a seconformar de maneira inconsciente com osprincípios fundamentais da cultura. Este é o pro-cesso que os antropólogos chamaram de "encul-turaçao".A estrutura da personalidade adulta, re-sultante da transmissão da cultura pela educa-ção, será em princípio adaptada ao modelo dês-

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tá cultura. A anormalidade psicológica, presentee estigmatizada em todas as sociedades, se expli-ca da mesma maneira, não de um modo absolu-to (universal) mas de maneira relativa como sen-do a conseqüência de uma inadaptação do indi-víduo chamado "anormal" à orientação funda-mental de sua cultura (por exemplo, o Arapeshegocêntrico e agressivo ou o Mundugomor docee altruísta). Existe então um vínculo estreito en-tre modelo cultural, método de educação e tipode personalidade dominante.

Línton, Karditier c ü"personalidade básica"

Para os antropólogos que se ligam à esco-la "cultura e personalidade", a cultura só podeser definida através dos homens que a vivem. Oindivíduo e a cultura são vistos como duas reali-dades distintas, mas indissociáveis que agemuma sobre a outra: somente se pode compreen-der uma em sua relação com a outra.

Mas, o antropólogo retém do indivíduoapenas o que, na sua psicologia, é comum a to-dos os membros de um mesmo grupo; o aspec-to estritamente individual da personalidade édo âmbito de uma outra disciplina, a Psicologia.Este aspecto comum da personalidade, é chama-do por Ralph Linton (1893 -1953) de "persona-lidade básica" e é diretamente determinada pelacultura à qual o indivíduo pertence. Linton não

ignora a variedade das psicologias individuais.Ele pensa até que a toda a gama de diferentespsicologias pode ser encontrada em cada cultu-ra. O que varia de uma cultura à outra, é a pre-dominância de um tipo de personalidade. O quelhe interessa, enquanto antropólogo, não são asvariações psicológicas individuais, mas o que osmembros de um mesmo grupo partilham noplano do comportamento e da personalidade.

Prolongando as pesquisas teóricas deBenedict e Mead, Linton procura demonstrar, apartir de pesquisas de campo nas ilhas Marque-sas e em Madagascar, que cada cultura privilegiaentre todos os tipos possíveis, um tipo de perso-nalidade, que se torna então o tipo "normal"(conforme à norma cultural e por isso reconhe-cido socialmente como normal). Este tipo nor-mal, é a "personalidade básica", isto é, o "funda-mento cultural da personalidade" (segundo a ex-pressão que se tornará em 1945 o título de umde seus livros). Cada indivíduo o adquire atravésdo sistema educativo próprio de sua sociedade.

Este aspecto da questão - a aquisição dapersonalidade básica pela educação - será objetode pesquisas específicas por parte de AbramKardiner (1891 -1981), psicanalista que trabalhaem estreita colaboração com Linton. Ele estuda-rá como se forma a personalidade básica no in-divíduo através do que ele chama de "as institui-ções primárias" próprias de cada sociedade (emprimeiro lugar, a família e o sistema educativo); e

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como esta personalidade básica reage sobre acultura do grupo produzindo por uma espéciede mecanismo de projeção, "instituições secun-dárias" (sistemas de valores e de crenças, em par-ticular) que compensam as frustrações provoca-das pelas instituições primárias levando a cultu-ra a evoluir insensivelmente [Kardiner, 1939].

Linton, por sua vez, tentará ultrapassaruma concepção muito rígida da personalidadebásica. Ele critica aliás Benedict pela reduçãoque ela faz ao ligar cada cultura a somente umtipo cultural, correspondente a um tipo domi-nante de comportamento. Ele admite que, emuma mesma cultura, podem existir simulta-neamente vários tipos "normais" de personalida-de, porque em muitas culturas, diversos siste-mas de valores coexistem.

Além disso, segundo Linton, é preciso levarem conta a diversidade de status no interior deuma mesma sociedade. Nenhum indivíduo podesintetizar em si o conjunto de sua cultura de ori-gem. Nenhum indivíduo tem um conhecimentocompleto de sua cultura. Cada indivíduo conhe-ce de sua cultura apenas o que lhe é necessáriopara se conformar a seus diversos status (desexo, de idade, de condição social, etc.) para de-sempenhar os papéis daí decorrentes. A existên-cia de status diferentes cria então modulaçõessignificativas em menor ou maior grau de umamesma personalidade básica que são as "perso-nalidades estatutárias" [Linton, 1945].

Por outro lado, continuando sua reflexão so-bre a interação entre cultura e indivíduo, Linton eKardiner afirmarão que o indivíduo não é o depo-sitário passivo de sua cultura. Kardiner define as-sim a personalidade básica:

Uma configuração psicológica particular pró-pria aos membros de uma dada sociedade eque se manifesta por um certo estilo de com-portamento sobre o qual os indivíduos bordamsuas variantes singulares [19391-

Qualquer indivíduo, pelo simples fato deser um indivíduo singular, com traços de carátersingulares (mesmo que a sua psicologia integreem larga escala a personalidade básica) e comuma aptidão fundamental para a criação e a ino-vação, enquanto ser humano, vai contribuir paramodificar sua cultura, de maneira freqüente-mente imperceptível e, conseqüentemente, mo-dificar a personalidade básica. Em outras pala-vras, cada indivíduo tem seu próprio modo deinteriorizar e viver sua cultura, mesmo sendoprofundamente marcado por ela. O acúmulodas variações individuais (de ínteriorização e devivência) a partir do tema comum que constituia personalidade básica permite explicar a evolu-ção interna de uma cultura que se faz quasesempre em um ritmo lento.

As diferentes considerações que foramapresentadas mostram que não se pode confun-

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dir as conclusões de Linton e Kardiner sobre apersonalidade básica com as teorias românticassobre a"alma"e o "gênio"dos povos. Se os antro-pólogos americanos partiram de um mesmoquestionamento que certos escritores ou filóso-fos, alemães principalmente, sobre o caráter ori-ginal de cada povo, isto não significa que elescheguem às mesmas respostas. Linton e Kardinertêm uma concepção flexível da transmissão cul-tural que deixa espaço para variações individuaise não negligencia a questão da mudança cultural.Sua abordagem da cultura e da personalidade éentão mais dinâmica que estática.

As ííções da antropologia cultural

Os trabalhos da antropologia cultural ame-ricana sofreram inúmeras críticas, o que é per-feitamente legítimo na discussão científica. Oque é menos legítimo é a apresentação freqüen-temente redutora, às vezes quase caricaturalque foi_feita, sobretudo na França, das teses dosculturalistas.

O aspecto mais contestável desta apresen-tação é seu caráter globalizante. Apresenta-se oculturalismo como um sistema teórico unifica-do, enquanto seria mais justo falar "dos"cultura-lismos. Pode-se enumerar toda uma série de crí-ticas ao culturalismo, sem levar em conta quemuitas destas críticas foram primeiramente for-muladas por culturalistas em relação a outros

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culturalistas. Sempre houve uma crítica internana antropologia cultural, As propostas teóricasdo culturalismo foram lançadas progressivamen-te, corrigindo certas propostas anteriores. E, en-tre a maioria dos pesquisadores tomados indivi-dualmente, pode-se observar sensíveis evolu-ções do pensamento ao longo de suas carreiras.

O essencialismo ou substancialismo, queconsiste em conceber a cultura como uma reali-dade em si - crítica freqüentemente dirigida aosculturalistas - é uma crítica que se aplica somen-te a Kroeber, que considerava a cultura como li-gada ao âmbito do "super-orgânico", definindo-acomo um nível autônomo do real, que obedecea suas próprias leis. Kroeber atribuía conse-qüentemente à cultura uma existência própria,independente da ação dos indivíduos e fugindoao seu controle [Kroeber, 1917]. Um certo es-sencialismo é ainda perceptível na obra deBenedict que pensava que todas as culturas bus-cam um objetivo relacionado com a orientaçãode seu pattern, à revelia dos indivíduos. Mas amaioria dos antropólogos da escola "cultura epersonalidade" reagiram contra o risco de reifi-cação da cultura. Margaret Mead afirma clara-mente que a cultura é uma abstração (o quequer dizer uma ilusão). O que existe, segundoela, são indivíduos que criam a cultura, que atransmitem, que a transformam. O antropólogonão pode fazer uma observação de campo deuma cultura; o que ele observa são apenas com-

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portamentos individuais. Todos os esforços dosculturalistas próximos de Mead serão então nosentido de compreender as culturas a partir dascondutas dos indivíduos que "são a cultura", se-gundo uma expressão de Mead.

"O"culturalismo também foi acusado deapresentar uma concepção estática, rígida, dacultura. Já foi mostrado anteriormente que estacrítica é pouco fundamentada. Os culturalistasnão acreditam na estabilidade das culturas e es-tão atentos às evoluções culturais. Ele procuramexplicá-las pelo jogo das variações individuaisna aquisição da cultura. O indivíduo, em funçãode sua história pessoal, que produz uma psico-logia singular, "reínterpreta" sua cultura de umamaneira particular. A soma e a interação de to-das as reinterpretações individuais fazem a cul-tura evoluir.

Margaret Mead insiste que a cultura não éum "dado" que o indivíduo receberia como umtodo, definitivamente, ao longo de sua educa-ção.A cultura não se transmite como os genes.O indivíduo "se apropria" de sua cultura pro-gressivamente no curso de sua vida e, de qual-quer maneira, não poderá nunca adquirir toda acultura de seu grupo.

O debate mais crucial em torno da antro-pologia cultural é o que se refere à abordagemrelativista das culturas, que enfatiza a pluralida-de das culturas ao invés da unidade da cultura.Segundo esta abordagem, as culturas são trata-

das como totalidades específicas, autônomas en-tre si, e, conseqüentemente, cada uma deve serestudada em si mesma, na sua lógica internaprópria.A questão principal é saber se este rela-tivismo cultural é somente uma exigência meto-dológica ou também uma concepção teórica.

Os antropólogos culturalistas são às vezesbastante ambíguos em relação a esta questão. Aprincípio, com Boas, o relativismo cultural éuma reação metodológica contra o evolucionis-mo. Não se pretende que as diferentes culturassejam absolutamente incomparáveis entre si,mas que só se pode pensar em compará-las apóso estudo de cada uma, de maneira exaustiva. Hátalvez aí uma certa ilusão ao se acreditar queseja possível identificar facilmente uma culturaparticular, fixar seus limites e analisá-la comouma entidade irredutível a uma outra. Resta ain-da o fato que, no plano metodológico, é às vezesútil e até necessário se agir "como se" uma cul-tura particular existisse enquanto entidade se-parada com uma real autonomia, mesmo que, narealidade, esta autonomia seja apenas relativaem relação às outras culturas vizinhas.

Os culturalistas, seguramente não conse-guiram definir de uma vez por todas a "naturezada cultura", para usar a expressão de Kroeber[1952].A discussão continua aberta.A antropo-logia cultural americana continuou a contribuirpara esta discussão, prosseguindo com suas pes-quisas de maneira freqüentemente muito inova-

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dora. As lições do(s) culturalismo(s) são, no en-tanto, desde já, pródigas em ensinamentos. Nãoé mais possível hoje ignorar que existem outrasmaneiras de viver e de pensar e que elas não sãoa manifestação de qualquer arcaísmo ou menosainda de "selvageria"ou "barbárie". Deve-se aosculturalistas o fato de terem evidenciado a rela-tiva coerência de todos os sistemas culturais:cada um é uma expressão particular de uma hu-manidade única, mas tão autêntica quanto todasas suas outras expressões.

Os pesquisadores culturalistas contri-buíram muito para eliminar as confusões entreo que se refere à natureza (no homem) e o quese refere à cultura. Eles foram muito atentos aosfenômenos de incorporação da cultura, no sen-tido próprio do termo, mostrando que até o cor-po é trabalhado pela cultura. Eles explicavamque a cultura "interpreta" a natureza e a transfor-ma. Até as funções vitais são "informadas" pelacultura: comer, dormir, copular, dar à luz, mastambém defecar, urinar ou ainda andar, correr,nadar, etc. Cada cultura particular determinaprofundamente todas estas práticas do corpo,aparente e absolutamente naturais. Isto serámostrado por sua vez por Mareei Mauss, em1936, em um estudo sobre as "técnicas do cor-po": não se senta, não se deita ou se anda damesma maneira em todas as culturas. No ser hu-mano pode-se observar a natureza transformadapela cultura.

Deve-se à escola "cultura e personalidade"a ênfase na importância da educação no proces-so de diferenciação cultural. A educação é neces-sária e determinante entre os homens, pois o serhumano quase não tem programa genético queguie o seu comportamento. Os próprios biólo-gos dizem que o único programa (genético) dohomem é o que o leva a imitar e aprender.As di-ferenças culturais entre os grupos humanos sãoentão explicáveis em grande parte por sistemasde educação diferentes que incluem os métodosde criação dos bebês (aleitamento, cuidados docorpo, modo de dormir, desmame, etc.) muitovariados de um grupo a outro.

Três pesquisadores americanos tentaramexplicar a presença de ritos de iniciação dos jo-vens no momento de sua puberdade em certassociedades. Eles acreditaram poder estabeleceruma correlação entre uma estreita dependênciaem relação à mãe na infância e a institucionali-zação destes ritos. Nas sociedades em que a or-ganização da maneira de dormir prevê que amãe e a criança durmam juntas e o pai durmaseparado deles durante vários meses e até al-guns anos, os ritos de iniciação, verdadeiro apo-geu da formação pedagógica, são particularmen-te rigorosos.Tudo se passa, neste caso, como seos pais, no momento da maturidade fisiológicade seus filhos, decidissem separá-los da influên-cia da mãe e afirmar sua autoridade sobre elespara prevenir qualquer revolta, integrando-os no

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mundo masculino (Whiting, Kluckhohn eAnthony,1958].

Vários pesquisadores posteriores, mesmosem reivindicar ligações com o culturalismo enão podendo ser confundidos com ele, inspira-ram-se nos trabalhos dos antropólogos america-nos sobre a educação. Jacqueline Rabain mos-trou que a educação da criança wolof (Senegal)tenta evitar a singularização da criança para fa-vorecer sua integração social. Por isso, não se fa-zem cumprimentos às crianças ou a seus pais anão ser sob uma forma dissimulada e invertida,para os Wolof, o cumprimento poderia trazerazar pois ele particulariza e, logo, marginaliza.As únicas observações admitidas a respeito dascrianças são as que enfatizam, nas suas condutaso que pode ser "interpretado como sinais deuma integração social em vias de realização"[Rabain, 1979, p.141]. A pedagogia wolof é es-sencialmente uma pedagogia da comunicação.A aprendizagem do uso social da palavra é mui-to codificada e é ao mesmo tempo "a aprendiza-gem de uma gramática das relações sociais"[ibid.,p. 142]. Definitivamente, as aquisições so-ciais são mais importantes que a realização "pes-soal" da criança e que as aquisições técnicas,cuja aprendizagem não é sistematizada.

Com os diferentes culturalismos, o concei-to de cultura foi consideravelmente enriqueci-do. A cultura não aparece mais como uma sim-ples reunião de traços dispersos. Ela é vista

como um conjunto organizado de elementos in-terdependentes. Sua organização é tão impor-tante quanto o seu conteúdo.

Cultura, ]íngua t linguagem

O vínculo estreito entre língua e cultura sem-pre gerou inúmeros comentários. Herder, umdos primeiros a fazer um uso sistemático da pa-lavra "cultura", baseava sua interpretação dapluralidade das culturas em uma análise da di-versidade das línguas [Herder, 1774].Sapir tentará elaborar uma teoria das relaçõesentre cultura e linguagem. O pesquisador devenão apenas considerar a língua como um obje-to privilegiado da antropologia, por ser um fatocultural em si, mas ele deve também estudar acultura como uma língua. Em oposição às con-cepções substancialistas da cultura, ele a defi-nia como um conjunto de significações aplica-das nas interações individuais. Para ele, a cultu-ra é fundamentalmente um sistema de comuni-cação [Sapir, 1921].A hipótese chamada "Sapir-Whorf" (a linguagem como elemento de classi-ficação e organização da experiência sensível),que Sapir relativizou negando que houvesseuma correlação direta entre um modelo cultu-ral e uma estrutura lingüística, orientou todauma série de pesquisas sobre a influência exer-cida pela língua sobre o sistema de representa-

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ções de um povo. Língua e cultura estão emuma relação estreita de interdependência: a lín-gua tem a função, entre outras, de transmitir acultura, mas é, ela mesma, marcada pelacultura.Léví-Strauss, cuja antropologia deve muito aométodo de análise estrutural em lingüística,também sublinhou a complexidade das rela-ções entre linguagem e cultura:"O problema das relações entre linguagem ecultura é um dos mais complicados que exis-tem. Pode-se primeiramente tratar a linguagemcomo um produto da cultura: uma língua emuso em uma sociedade reflete a cultura geral dapopulação. Mas, em outro sentido, a linguagemé \\raa. parte da cultura; ela constitui um de seuselementos, [...]. Mas isto não é tudo: pode-setambém tratar a linguagem como condição dacultura e por duas razões; é uma condiçãodiacrônica, pois é sobretudo por meio da lin-guagem que o indivíduo adquire a cultura deseu grupo; educa-se, instrui-se a criança pela pa-lavra; ela é criticada ou elogiada com palavras.Colocando-se em um ponto de vista mais teóri-co, a linguagem aparece também como condi-ção da cultura, na medida em que a cultura pos-sui uma arquitetura similar à linguagem. Tantouma como outra se edificam por meio de opo-sições e correlações, isto é, por relações lógi-cas. Conseqüentemente, pode-se considerar alinguagem como uma fundação, destinada a re-

ceber as estruturas correspondentes à culturaencarada sob diversos aspectos. Estruturas quesão mais complexas, às vezes, mas de mesmotipo que as suas." [1958, p. 78 -79].

Lévi- Strauss e a analise estrutural dacultura

Na França, a antropologia cultural ana não teve muitos adeptos. No entanto o temada totalidade cultural foi retomado, ainda queem uma nova perspectiva, por Claude Lévi-Strauss, que definiu cultura deste modo:

Toda cultura pode ser considerada como umconjunto de sistemas simbólicos. No primeiroplano destes sistemas colocam-se a linguagem,as regras matrimoniais, as relações econômi-cas, a arte, a ciência, a religião.Todos estes sis-temas buscam exprimir certos aspectos darealidade física e da realidade social, e mais ain-da, as relações que estes dois tipos de realida-de estabelecem entre si e que os próprios sis-temas simbólicos estabelecem uns com os ou-tros. [1950, p. XDÍJ.

Lévi-Strauss conhecia bem os trabalhos deseus colegas americanos. Durante e depois da Se-gunda Guerra Mundial, de 1941 a 1947, ele pas-sara longas temporadas nos Estados Unidos e co-

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nhecera as obras da antropologia cultural, sobre-tudo o trabalho de Boas, Kroeber e Benedict.

Lévi-Strauss tomaria emprestado quatroidéias essenciais de Ruth Benedict. Primeira-mente, as diferenças culturais são definidas porum certo modelo (pattern). Em segundo lugar,os tipos de culturas possíveis existem em núme-ro limitado. Em terceiro lugar, o estudo das so-ciedades "primitivas" é o melhor método paradeterminar as combinações possíveis entre oselementos culturais. Finalmente, estas combina-ções podem ser estudadas em si mesmas, inde-pendentemente dos indivíduos que pertencemao grupo, para quem estas combinações perma-necem inconscientes.

A herança de Benedict aparece claramentenas linhas que se seguem, extraídas de TristesTrópicos:

O conjunto dos costumes de um povo é sem-pre marcado por um estilo; eles formam siste-mas. Estou convencido de que estes sistemasnão são ilimitados e que as sociedades huma-nas, como os indivíduos - em seus jogos, seussonhos ou seus delírios - não criam jamais demaneira absoluta, mas se limitam a escolhercertas combinações em um repertório idealque seria possível reconstituir.Fazendo o inventário de todos os costumes ob-servados, de todos os imaginados nos mitos,dos evocados nos jogos infantis e adultos, os so-nhos dos indivíduos sãos ou doentes e as con-

dutas patológicas, seria possível chegar a cons-tituir uma espécie de tabela periódica como ados elementos químicos, em que todos os cos-tumes reais ou simplesmente possíveis apare-ceriam agrupados em famílias e onde nós pre-cisaríamos apenas reconhecer os costumes queas sociedades efetivamente adotaram [1955,

p. 2031.

No entanto, se. o pensamento de Lévi-Strauss é influenciado pelos antropólogos cultu-rais americanos, ele se diferencia deles ao pro-curar ultrapassar a abordagem particularista dasculturas.Além do estudo das variações culturais,Lévi-Strauss pretende analisar a invariabilidadeda Cultura. Para ele, as culturas particulares nãopodem ser compreendidas sem referência à Cul-tura, "este capital comum" da humanidade doqual elas se alimentam para elaborar seus mode-los específicos. O que ele procura descobrir navariedade das produções humanas são as cate-gorias e as estruturas inconscientes do espíritohumano.

A ambição da antropologia estrutural deLévi-Strauss é localizar e repertoriar aslnvarian-tes",isto é, os materiais culturais sempre idênti-cos de uma cultura a outra, necessariamente emnúmero limitado devido à unidade do psiquis-mo humano. No ponto preciso em que a Cultu-ra substitui a Natureza, isto é, no nível das con-dições muito gerais de funcionamento da vidasocial, é possível encontrar regras universais

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que também são princípios indispensáveis davida em sociedade. Esta na natureza do homema necessidade de viver em sociedade, mas a or-ganização da vida social depende da Cultura eimplica a elaboração de regras sociais. O exem-plo mais característico destas regras universaisque o estruturalismo analisa é a proibição do in-cesto que tem como fundamento a necessidadedas trocas sociais.

A antropologia estrutural assume como ta-refa encontrar o que é necessário para toda avida social, isto é, os elementos universais cultu-rais, ou, em outras palavras, os a prtort de todaa sociedade humana. A partir daí, ela estabeleceas estruturações possíveis dos materiais cultu-rais, ou seja, o que cria a diversidade culturalaparente, que vai além da invariabilidade dosprincípios culturais fundamentais. Para apresen-tar a relação entre a universalidade da Cultura ea particularidade das culturas, Lévi-Strauss utili-za a metáfora do jogo de cartas:

O homem é como um jogador que tem nasmãos, ao se instalar à mesa, cartas que ele nãoinventou, pois o jogo de cartas é um dado dahistória e da civilização [...J. Cada repartiçãodas cartas resulta de uma distinção contingenteentre os jogadores e se faz à sua revelia. Quan-do se dão as cartas, cada sociedade assim comocada jogador as interpreta nos termos de diver-sos sistemas, que podem ser comuns ou parti-culares; regras de um jogo ou regras de uma tá-

tica. E sabe-se bem que com as mesmas cartas,jogadores diferentes farão partidas diferentes,ainda que, limitados pelas regras, não possamfazer qualquer partida com determinadas car-

tas [1958].

A antropologia terá terminado sua missãoquando tiver conseguido descrever todas as par-tidas possíveis, depois de ter identificado as car-tas e enunciado as regras do jogo. Deste modo,a antropologia estrutural pretende retornar aosfundamentos universais da Cultura, ao lugar emque se realiza a ruptura com a Natureza.

Culíuralismo e sociologia: as noções de"subcuitonre de "socialização"

A antropologia cultural vai exercer umagrande influência sobre a sociologia americana. Anoção de cultura será muito utilizada por grandenúmero de sociólogos americanos que se apoiarãonas definições dadas pelos antropólogos.

Antes mesmo da aparição do culturalismopropriamente dito, os sociólogos fundadores doque se denomina a "escola de Chicago" erammuito sensíveis à dimensão cultural das relaçõessociais, o que é facilmente compreensível quan-do se sabe que suas pesquisas tratavam princi-palmente das relações interétnicas. Eles já se in-teressavam pela influência da cultura de origemdos imigrantes na inserção destes imigrantes nasociedade que os acolhia, como no famoso estu-

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do deWilliam I.Thomas sobre O Camponês Po-lonês na Europa e na América, publicado en-tre 1918 e 1920. Ou como Robert E. Park, ti-nham interesse na questão da confrontação si-multânea do indivíduo estrangeiro com dois sis-temas culturais às vezes rivais, o da sua comuni-dade de origem e o da sociedade que o acolhe;desta confrontação nasce o "homem marginal"que, segundo a definição de Park, faz parte maisou menos dos dois sistemas.

O notável desenvolvimento da antropolo-gia cultural americana na década de trinta terágrande impacto sobre uma parte da sociologia.A aproximação entre sociologia e antropologialevou a sociologia a tomar emprestado os méto-dos da antropologia e esta usar os terrenos daprimeira. Deste modo, vão se multiplicar nos Es-tados Unidos os estudos de "comunidades urba-nas". Estas comunidades, em geral cidades pe-quenas ou médias, ou ainda bairros, vão serabordadas pelos pesquisadores da mesma ma-neira que um antropólogo aborda uma comuni-dade de uma aldeia indígena. A hipótese consi-derada é que a comunidade forma um microcos-mo representativo da sociedade inteira à qualela pertence, permitindo apreender a totalidadeda cultura desta sociedade [Herpin, 1973].

Os estudos de comunidades, sobretudocom Robert Lynd, pretendiam, no início, definira cultura americana em sua globalidade, comoRuth Benedict podia definir a cultura dos índiosPueblo ou Margaret Mead a cultura dosArapesh.

Mas os sucessores de Lynd se dedicaram princi-palmente a reconhecer e a estudar a diversidadecultural americana ao invés de procurar as pro-vas da unidade da cultura dos Estados Unidos.

Estes trabalhos resultaram na criação deum conceito que vai obter um grande sucesso:o conceito de "subculturaXsem que o termo im-plique uma interpretação que poderia levar auma confusão entre subcultura e uma culturainferior). Como a sociedade americana é social-mente muito diversificada, cada grupo social fazparte de uma subcultura particular, retoma-seaqui uma idéia já esboçada por Linton atravésda noção de "personalidade estatutária". Os so-ciólogos distinguem então subculturas segundoas classes sociais, mas também segundo os gru-pos étnicos. Certos autores falam até de subcul-tura dos delinqüentes, dos homossexuais, dospobres, dos jovens, etc. Nas sociedades comple-xas, os diferentes grupos podem ter modos depensar e de agir característicos, partilhando acultura global da sociedade que, de qualquermaneira, por causa de sua heterogeneidade, im-põe aos indivíduos modelos mais flexíveis e me-nos limitadores que os modelos das sociedades"primitivas".

Em um outro plano, os fenômenos chama-dos de "contracultura" nas sociedades moder-nas, como por exemplo o movimento "hippie"nas décadas de sessenta e setenta, são apenasuma forma de manipulação da cultura global dereferência à qual eles pretendem se opor: eles

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se utilizam de seu caráter problemático e hete-rogêneo. Longe de enfraquecer o sistema cultu-ral, eles contribuem para renová-lo e para de-senvolver sua dinâmica própria. Um movimen-to de "contracultura" não produz uma culturaalternativa à cultura que ele denuncia. Umacontra-cultura não passa, definitivamente deuma subcultura.

Os sociólogos analisaram também a ques-tão da continuidade através das gerações, dasculturas ou das subculturas específicas dos dife-rentes grupos sociais. Para responder a estaquestão, alguns deles recorreram à noção de "so-cialização", entendida como sendo o processode integração de um indivíduo a uma dada so-ciedade ou a um grupo particular pela interiori-zação dos modos de pensar, de sentir e agir, ouseja, dos modelos culturais próprios a esta socie-dade ou a este grupo. As pesquisas sobre a so-cialização que são feitas geralmente com umaperspectiva comparativa (entre nações, entreclasses sociais, entre sexos, etc.) tratam dos dife-rentes tipos de aprendizagem aos quais o indiví-duo está submetido e pelos quais se opera estainteriorizaçao, assim como os efeitos que elesprovocam no comportamento.

Ainda que a palavra "socialização" seja deuso relativamente recente - ela é correntementeusada a partir do final dos anos trinta - esta pa-lavra remete a uma questão fundamental na so-ciologia: como o indivíduo se torna membro desua sociedade e como é produzida sua identifi-

cação com esta sociedade? Esta questão é cen-tral na obra de Durkheim ainda que ele não uti-lize esta palavra. Para ele, pela educação, cadasociedade transmite aos indivíduos que a com-põem o conjunto das normas sociais e culturaisque garantem a solidariedade entre todos osmembros desta mesma sociedade e que estesmembros são mais ou menos obrigados aadotar.

O sociólogo americano Talcott Parsonstentou, por sua vez, conciliar as análises deDurkheim e de Freud. Segundo ele, no processode socialização, a família, primeiro agente so-cializador, tem um papel preponderante, mas opapel da escola e do grupo dos pares (colegasde classe e de jogos) não é negligenciável. Elepensa que a socialização se termina com a ado-lescência. Ou esta socialização foi bem sucedidae o indivíduo será bem adaptado à sociedade;ou ela foi um fracasso, e o indivíduo deslizarácertamente para a delinqüência. Quanto maiscedo a conformidade às normas e aos valores dasociedade intervierem na existência, mais facil-mente ela conduzirá a uma adaptação adequadaao "sistema social" [Parsons, 1954).

Estas concepções da socialização colocama primazia da sociedade sobre o indivíduo. Elassupõem que a socialização resulta de um cons-trangimento que a sociedade exerce sobre o in-divíduo. Para Parsons, a socialização pode sercompreendida como um verdadeiro condi-cionamento. O indivíduo aparece como um ser

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dependente cujo comportamento é apenas a re-produção dos modelos adquiridos ao longo dainfância. Em última instância, como observaramcertos críticos, a socialização é concebida porParsons como uma espécie de adestramento.

Em ruptura com estas análises, outros so-ciólogos enfatizam a relativa autonomia do indi-víduo que não é determinado de uma vez portodas pela socialização vivida ao longo da infân-cia. Ele tem a capacidade de tirar partido de si-tuações novas para eventualmente modificarsuas atitudes. E, de qualquer maneira, nas socie-dades contemporâneas, os modelos culturaisevoluem constantemente e levam os indivíduosa revisar o' modelo interiorizado na infância.

Peter L. Berger e Thomas Luckmann[(1966) 1986] distinguem "socialização primá-ria" (ao longo da infância) e "socialização secun-dária", à qual o indivíduo está exposto durantetoda a sua vida adulta e que não é a simples re-produção dos mecanismos da primeira. Para es-tes dois autores a socialização nunca é perfeita-mente bem sucedida ou acabada. A socializaçãosecundária pode ser, em certos casos, o prolon-gamento da primeira socialização. Em outros ca-sos, ao contrário, após por exemplo diversos"choques biográficos", a socialização secundáriaopera uma ruptura com a socialização primária.A socialização profissional, evocada diretamentepelos dois pesquisadores, é um dois principaisaspectos desta socialização secundária.A sociali-zação aparece então como um processo sem fim

na vida de um indivíduo que pode conhecer fa-ses de "dessocialização" (ruptura com o modelode integração normativa) e de "ressocialização"(baseada em um outro modelo interiorizado).

Por uma outra abordagem, mas que leva aconclusões bastante semelhantes, a partir da dis-tinção que ele fazia entre "grupo de vinculação"e "grupo de referência", Robert K. Merton con-cebeu a noção de "socialização antecipadora"para designar o processo pelo qual um indiví-duo se apropria e interioriza, antecipadamente,as normas e os valores de um grupo de referên-cia ao qual ele não pertence ainda mas desejaintegrar [Merton, 1950]. Dominique Schnapperdará uma outra ilustração da socialização, mos-trando que as transformações profundas daspráticas culturais dos imigrantes italianos naFrança só podem ser explicadas completamen-te ao considerarmos uma socialização antecipa-dora na Itália, associada a outros fatores de mu-dança [Schnapper, 1974].

A abordagem intcracionista da cuitimi

Sapir foi talvez um dos primeiros a ter con-siderado a cultura como um sistema de comuni-cação interindividual, quando afirmava: "O ver-dadeiro lugar da cultura são as interações indivi-duais.11 Para ele, uma cultura é um conjunto designificações que são comunicadas pelos indiví-duos de um dado grupo através destas intera-ções. Por isso mesmo ele se opunha às concep-

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ções substancialistas da cultura. Mais do que de-finir a cultura por sua suposta essência, ele de-sejava se fixar na análise dos processos de ela-boração da cultura [Sapir, 1949].

Mais tarde, outros autores às vezes chama-dos de "interacionistas", retomando a intuiçãode Sapir mas sistematizando-a, insistirão na pro-dução de sentidos que as interações entre os in-divíduos produzem.

Na década de cinqüenta se desenvolve nosEstados Unidos uma corrente chamada de "an-tropologia da comunicação", que leva em contatanto a comunicação não verbal quanto a comu-nicação verbal entre os indivíduos. Esta corren-te se estabelece junto a Gregory Bateson e juntoà escola de Paio Alto. Para eles, a comunicaçãonão é concebida como uma relação de emissore receptor, mas segundo um modelo orquestral,ou seja, como resultante de um conjunto de in-divíduos reunidos para tocar juntos e que se en-contram em situação de interação durável. To-dos participam solidariamente, mas cada um àsua maneira, da execução de uma partitura invi-sível. A partitura, isto é, a cultura, existe apenasatravés da ação interativa dos indivíduos. Todosos esforços dos antropólogos da comunicaçãoconsistem em analisar os processos de intera-ção que produzem sistemas culturais de troca.

Não basta, no entanto, descrever estas inte-rações e seus efeitos. É preciso considerar o"contexto" das interações. Cada contexto impõeas suas regras e suas convenções, supõe expec-

tativas particulares entre os indivíduos. A plura-lidade dos contextos de interação explica o ca-ráter plural e instável de todas as culturas e tam-bém os comportamentos aparentemente con-traditórios de um mesmo indivíduo que nãoestá necessariamente em contradição (psicoló-gica) consigo mesmo. Por esta abordagem, tor-na-se possível pensar a heterogeneidade de umacultura ao invés de nos esforçarmos para encon-trar uma homogeneidade ilusória.

A abordagem interacionista leva a questio-nar o valor heurístico do conceito de "subcultu-ra'', ou mais exatamente a distinção entre "cultu-ra" e "subcultura". Se a cultura nasce das intera-ções entre os indivíduos e entre grupos de indi-víduos, é errôneo encarar a subcultura comouma variante derivada da cultura global queexistiria antes dela. Os conceitos de cultura e desubcultura foram elaborados segundo uma lógi-ca da subdivisão hierarquizada do universo cul-tural da mesma maneira como os biólogos pen-sam a evolução do mundo em espécies e subes-pécies. Ora, na construção cultural, o que vemprimeiro é a cultura do grupo, a cultura local, acultura que liga os indivíduos em interação ime-diata uns com os outros, e não a cultura globalda coletividade mais ampla. O que se chama"cultura global" é o resultado das relações dosgrupos sociais que estão em contato uns com osoutros e, logo, do relacionamento de suas pró-prias culturas. Nesta perspectiva, a cultura glo-bal se situa de certa maneira, na intersecção das

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pretensas "subculturas" de um mesmo conjuntosocial. Estas "subculturas" funcionariam comoculturas inteiras, isto é, como sistemas de valo-res, de representações e de comportamentosque permitem a cada grupo identificar-se, loca-lizar-se e agir em um espaço social que o cerca.Para os interacionistas, o termo "subcultura" éentão inapropríado.

O Estudo das Relações entreas Culturas e a Renovação doConceito de Cultura

É inegável que a reflexão sobre a noção decultura se aprofundou ao se concentrar no estu-do das culturas singulares e no estudo dos prin-cípios universais da cultura. Mas seria preciso aabertura de um novo campo de pesquisa sobreos processos da chamada "aculturação" para queum novo avanço teórico se produzisse. Aindaque os fatos de contatos culturais não tenhamsido completamente ignorados, curiosamente,até uma data bastante tardia, poucos trabalhosforam dedicados ao processo de mudança cultu-ral ligado a esses contatos culturais. Os antropó-logos difusionistas se interessaram bastante pe-los fenômenos dos empréstimos e da repartiçãodos "traços" culturais a partir de um suposto"lar" cultural. Mas seus trabalhos tratavam do re-sultado da difusão cultural e descreviam somen-te o estado terminal de uma troca concebida emum sentido único. Além disso, a difusão, com-preendida deste modo, não implicava necessa-riamente o contato entre a cultura que recebiae a cultura que dava.

Como foi observado por Melville J.Herskovits, antropólogo americano, pioneiro namatéria, foi preciso esperar os estudos sobre os

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fenômenos da "aculturação" para compreendermelhor os mecanismos da cultura:

Quando as tradições estão em conflito, os re-ajustes no interior de uma cultura mostram amaneira como os elementos da cultura se ligamuns aos outros e como funciona o todo [1937,p. 263].

Um aspecto que provoca interrogações é oatraso entre as pesquisas sobre o entrecruzamen-to das culturas em relação aos trabalhos realiza-dos sobre as culturas tomadas isoladamente.

"A superstição do primitivo"

É provável, como observa Roger Bastide[1968], que a orientação original da etnologia,voltada para as culturas chamadas "primitivas",seja a causa principal deste atraso. Os etnólogoscederam por muito tempo ao que se denominaa "superstição do primitivo" ou ainda o "mito doprimitivo". O importante para eles era estudarprioritariamente as culturas mais"arcaicas",poiseles partiam do postulado que estas culturas for-neciam para a analise as formas elementares davida social e cultural que se tornariam necessa-riamente mais complexas à medida que a socie-dade se desenvolvesse. Se, por definição, o queé simples é mais fácil de aprender do aquilo queé complexo, era preciso começar por aí o estu-do das culturas.

Por outro lado, as culturas primitivas erampercebidas como culturas pouco ou não modifi-cadas pelo contato, supostamente muito limita-do, com as outras culturas. A etnologia não so-mente cultivou a obsessão da busca do aspectooriginal de cada cultura, mas também a da pro-cura do caráter absolutamente original de cadacultura. Nesta perspectiva, toda mestiçagem dasculturas era vista como um fenômeno que alte-rava sua "pufeza" original e que atrapalhava_otrabalho ~do pesquisadorjembaraíhando_as^pis-tas. O pesquisador não deveria, então, privilegiaro estudo deste fenômeno, ao menos em um pri-meiro momento.

Nestas condições, não é surpreendenteque um dos principais "inventores"-do conceitode aculturação seja Herskovits que se desvioudesde 1928 dos estudos sobre os índios, entãoobjeto quase exclusivo da antropologia nos Es-tados Unidos, para se dedicar à análise da cultu-ra das Negros descendentes dos escravos africa-nos. Certamente, como bom discípulo de Boas,Herskovits continuaria muito preocupado embuscar as "origens" africanas das culturas negrasdo continente americano. Mas seu objeto de es-tudo o levaria a colocar no centro de suas pre-ocupações os fenômenos de sincretismo cultu-ral. Criando um novo campo de pesquisa, a afro-americanologia, ele contribuiu para o reconhe-cimento dos fatos da aculturação como fatos"autênticos"e tão dignos de interesse científicoquanto os fatos culturais supostamente "puros".

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Por razões idênticas, Roger Bastide, que de-dicou importantes trabalhos sobre a culturaafro-brasileira, seria o pesquisador que, nos anoscinqüenta, introduziria na França as pesquisassobre o processo de aculturação e, ao mesmotempo, quem abriria a etnologia francesa paraas Américas negras, formidável "laboratório"para o estudo dos fenômenos de interpenetra-ção das culturas. Ele se oporá à abordagem de-Durkheim jsobre a formação e a evolução dasculturas, que teria sido responsável, segundoele, pelo atraso da pesquisa francesa no campoda aculturação (Bastide, 1956].

Apesar de sua preocupação em ultrapassaro organicismo que comparava a sociedade a umorganismo vivo, Emile Durkheim continuou apensar que o desenvolvimento de uma socieda-de humana se faz a partir de si mesma. Segundoele, a mudança social e cultural é essencialmen-te produzida pela evolução interna da socieda-de. O elemento determinante de explicaçãocontinua a ser o meio interno. São as dinâmicasculturais internas que importam então e devem

toda a atenção do pesquisador:

A primeira origem de todo processo social dealguma importância deve ser procurada naconstituição do meto social interno, [...j Poisse o meio social externo, isto é, o que é forma-do pelas sociedades ambientes, é sucetível deter alguma ação, esta ação ocorre apenas nasfunções que têm por objeto o ataque e a defe-

sa e, além disso, sua influência só pode se fazersentir através do meio social interno [(1895)1983, p-111 e p. 115-116].

Além disso, Durkheim considerava que sedois sistemas sociais e culturais são diferentesum do outro, não pode haver interpenetraçãoentre eles. A probabilidade de se produzir umsistema sincrético é fraca:

É verdade que em geral, a distância entre as so-ciedades componentes não poderia ser muitogrande; de outra forma, não poderia haver entreelas nenhuma comunidade moral [(1895)

1983, p. 85]-

As posições teóricas de Durkheim distan-ciaram talvez por longo tempo a pesquisa fran-cesa da questão da confrontação das culturas.Seria necessário o encontro de um RogerBastide com o mundo negro brasileiro ou de umGeorges Balandier com a sociedade colonial naÁfrica, para que esta questão fosse enfim tratadacom a atenção que ela merecia, mas isto se deuapenas depois da Segunda Guerra Mundial.

 invenção do conceito de aculturação

A observação dos fatos de contato entreas culturas evidentemente não data do momen-to da invenção do conceito de aculturação. Masesta observação era feita freqüentemente sem

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teoria explicativa e impregnada de julgamentosde valor quanto aos efeitos destes contatos cul-turais. Um certo número de observadores con-siderava a mestiçagem cultural, a exemplo damestiçagem, biológica, como um fenômeno ne-gativo e até mais ou menos patológico. Aindahoje,xisa-se a expressão "indivíduo (ou socieda-de) aculturado(a)" para exprimir um pesar e de-signar uma perda irreparável. A antropologiapretende se distanciar destas acepções, negati-va ou positiva, de aculturação. Ela dá ao termoum conteúdo puramente descritivo que nãoimplica uma posição de principio sobre ofenômeno.

"O substantivo "aculturação" parece tersido criado desde 1880 por J. W. Powell, antropó-logo americano, que denominava assim a trans-formação dos modos de vida e de pensamentodos imigrantes ao contato com a sociedade ame-ricana. A palavra não designa uma pura e sim-ples "deculturação". Em "aculturação", o prefixo"a"não significa privação; ele vem do etimologi-camente do latim ad e indica um movimento deaproximação. Será, no entanto, necessário espe-rar pelos anos trinta para que uma reflexão sis-temática sobre os fenômenos de encontro dasculturas leve os antropólogos americanos a pro-por uma definição conceituai do termo. A par-tir de então não será mais possível utilizá-lo deuma maneira menos rigorosa. Para a antropolo-gia cultural, evocar um processo de aculturaçãoleva necessariamente a definir o tipo de acultu-

ração de que se está tratando, como ela é produ-zida, que fatores intervieram ,etc.Y"

O memorando paris o estudo daaculturação

Diante do volume dos dados empíricos járecolhidos sobre o tema, o Conselho de pesqui-sa em ciências sociais dos Estados Unidos criouem 1936 um comitê encarregado de organizar apesquisa sobre os fatos de aculturação. O comi-tê, composto por Robert Redfield, Ralph Lintone Melville Herskovits, em seu célebre Memoran-do para o Estudo da Aculturação de 1936, co-meça por fazer um esclarecimento semântico. Adefinição que ele enuncia será a partir de entãoa regra:

A aculturação é o conjunto de fenômenos queresultam de um contato contínuo e direto en-tre grupos de indivíduos de culturas diferentese que provocam mudanças nos modelos(patterns) culturais iniciais de um ou dos doisgrupos.

Segundo o Memorando, a aculturação deveser distinguida da "mudança cultural", expressãoutilizada sobretudo pelos antropólogos britâni-cos, pois esta expressão é apenas um dos aspec-tos da aculturação: de fato, a mudança culturalpode também resultar de causas internas. Utilizaro mesmo termo para designar dois fenômenos, a

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mudança endógena e a mudança exógena, seriapretender que estas duas mudanças obedeçam àsmesmas leis, o que parece pouco provável.

Por outro lado, não se pode confundiraculturação e "assimilação". A assimilação deveser compreendida como a última fase da acultu-ração,fase aliás raramente atingida. Ela implica odesaparecimento total da cultura de origem deum grupo e na interiorização completa da cul-tura do grupo dominante.

Enfim, a aculturação não pode ser confun-dida com a "difusão", pois, por um lado, mesmoque haja sempre difusão quando há acultura-ção, pode haver difusão sem contato "contínuoe direto"; por outro lado, a difusão é apenas umdos aspectos do processo de aculturação, que éum processo bem mais complexo.

O Memorando constitui uma contribui-ção decisiva e preciosa. Ele cria um campo depesquisa específico e se esforça para organizá-lo, dotando-o de instrumentos teóricos adequa-dos. Ele propõe uma classificação dos materiaisdisponíveis devido às pesquisas já efetuadas. Eleelabora uma tipologia dos contatos culturais:

® se os contatos se produzem entre gruposinteiros ou entre uma população inteira e gru-pos particulares de uma outra população (porexemplo, missionários, colonos, imigrantes...);

© se os contatos são amigáveis ou hostis;e se eles se produzem entre grupos de ta-

manhos aproximativamente iguais ou entre gru-pos de tamanhos notavelmente diferentes;

® se eles se produzem entre grupos de cul-turas de mesmo nível de complexidade ou não;

» se os contatos resultam da colonizaçãoou da imigração.

Em seguida são examinadas sucessiva-mente as situações de dominação e de subordi-nação nas quais a aculturação pode se produ-zir; os processos de aculturação, isto é, os mo-dos de "seleção" dos elementos emprestados oude "resistência" ao empréstimo; os mecanismospsicológicos que favorecem ou não a acultura-ção; enfim, os principais efeitos possíveis daaculturação, inclusive as reações negativas quepodem gerar às vezes movimentos de "contra-aculturação".

Herskovits, Linton e Redfield souberammostrar a complexidade dos fenômenos deaculturação. Por seu prefixo e seu sufixo, o ter-mo "aculturação" designa claramente um fenô-meno dinâmico, um processo em vias de realiza-ção. O que deve ser analisado é precisamenteeste processo em andamento e não somente osresultados do contato cultural.

amento teórico

Contra a idéia simplista e etnocentrista deuma aculturação pesando necessariamente "a fa-vor" da cultura ocidental, supostamente maisavançada, os antropólogos americanos introduzi-rão em suas análises a noção de "tendência", to-mada da lingüística por Sapir para explicar que a

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aculturação não é uma pura e simples conversãoa uma outra cultura. A transformação da culturainicial se efetua por "seleção" de elementos cul-turais emprestados e esta seleção se faz por simesma segundo a "tendência" profunda da cultu-ra que recebe. A aculturação não provoca neces-sariamente o desaparecimento da cultura que re-cebe, nem a modificação de sua lógica internaque pode permanecer dominante.

Indo mais longe nesta análise, Herskovitsproporá um novo conceito para dar conta de di-ferentes níveis de aculturação, o conceito de"reinterpretação", definido como sendo

o processo pelo qual antigas significações sãoatribuídas a elementos novos ou pelo qual no-vos valores mudam a significação cultural deformas antigas [1948].

O conceito será amplamente adotado pelaantropologia cultural. No entanto, a maioria dospesquisadores, como o próprio Herskovits, ilus-trarão sobretudo a primeira parte da definiçãopois, como herdeiros do culturalismo, dedica-vam-se a demonstrar a continuidade semânticadas culturas, inclusive na mudança. Pode-se veruma ilustração do conceito na maneira particu-lar dos Gahaku-Kama da Nova Guiné jogaremfutebol. Iniciados neste esporte pelos missioná-rios, eles só aceitam acabar o jogo quando osdois times estão empatados no número de par-tidas ganhas, o que pode levar vários dias. Ao in-

vés de usar o futebol para afirmar um espíritode competição, eles transformam este jogo emum ritual destinado a reforçar a solidariedadeentre eles (K. E. Reach, citado por Lévi-Strauss[1963, p. 10]).

O esforço de teorização da antropologiaamericana permitiu determinar que as mudan-ças culturais ligadas à aculturação não se fazemao acaso. Uma lei geral pode até ser enunciada:os elementos não simbólicos (técnicos e mate-riais) de uma cultura são mais facilmente trans-feríveis que os elementos simbólicos (religi-osos, ideológicos, etc.).

Para dar conta da complexidade do proces-so de aculturação, H. G. Barnett, que cita Bastide[1971, p.51], distinguia a "forma" (a expressãomanifesta), a "função" e a "significação" dos tra-ços culturais.A partir desta distinção, três regula-ridades complementares podem ser enunciadas:

s quanto mais "estranha" for a forma (istoé, mais distante da cultura que recebe), mais di-fícil será sua aceitação;

* as formas são mais facilmente transferí-veis que as funções. Contrariamente ao pensa-mento de Malinovski, Barnett afirma que os su-postos equivalentes funcionais introduzidos emuma cultura raramente podem substituir comeficácia as antigas instituições;

0 um traço cultural, qualquer que seja asua forma, será mais bem aceito e integrado sepuder adotar uma significação de acordo com acultura que recebe. Encontramos aqui a idéia

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de reinterpretação, idéia que Herskovits tantoprezava.

Teoria da aculturação c cultiiralismo

A teoria da aculturação nasceu de certasquestões do cultimilismo americano. Por esta ra-zão não é surpreendente que em sua elaboraçãoreencontremos as mesmas limitações e até osmesmos impasses que no culturalismo. Por isso,às vezes, a análise se concentra demais sobrecertos "traços"culturais tomados isoladamente eparece esquecer o que os antropólogos da esco-la "cultura e personalidade" estabeleceram, ouseja, que uma cultura é um todo, um sistema.Como toda cultura é uma unidade organizada eestruturada, na qual todos os elementos são in-terdependentes, é ilusório pretender selecionaros aspectos supostamente "positivos"de umacultura para combiná-los com os aspectos "posi-tivos" de uma outra com o objetivo de chegar as-sim a um sistema cultural "melhor", como pre-tendia um certo humanismo. Independente-mente dos julgamentos de valor que contém,julgamentos que por si só colocam toda uma sé-rie de problemas, esta proposta mostra-se sim-plesmente irreaüzável.

Por outro lado, uma grande insistência decertos autores, entre eles Herskovits, no queeles chamam de "sobrevivências" culturais, ouseja, nos elementos da antiga cultura conserva-dos idênticos na nova cultura sincrética, pode

levar a uma certa "naturalização" da cultura, portentarem provar a qualquer preço a continuida-de da cultura apesar das mudanças aparentes.

De fato, a cultura parece então ser entendi-da como uma "segunda natureza" do indivíduoda qual ele tinha tão poucas chances de escaparquanto da sua natureza biológica. O maior inte-resse dos estudos posteriores sobre o processode aculturação será precisamente a relativizaçãodesta analogia entre cultura e natureza, fazendoaparecer a importância dos fenômenos de des-continuidade no processo de aculturação.

Além do mais, certos estudos antropológi-cos sobre estes processos apresentam o proble-ma que Bastide chama de "psicologismo". Os an-tropólogos tiveram razão de insistir no fato quesão os indivíduos que entram em contato unscom os outros e não as culturas. Na realidade,não se pode reificar a cultura que é apenas umaabstração. Mas os indivíduos pertencem a gru-pos sociais, grupos de sexo, de idade, de status,etc. Eles não existem nunca e em lugar nenhumde maneira totalmente autônoma. Não se pode,então, compreender sua implicação no proces-so de aculturação referindo-nos unicamente àsua psicologia individual. É preciso levar emconta também as obrigações sociais que pesamsobre eles. E se desejamos a qualquer preço,ater-nos a uma análise em termos de personali-dade, não podemos esquecer o contexto sociale histórico que influi sobre as personalidadesindividuais [Bastide, 1960, p. 318].

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Etnocídio

O termo "etnocídio" apareceu recentemente.Foi criado nos anos sessenta por etnologosamericanistas, entre os quais Robert Jaulin quecontribuiu mais do que qualquer outro para asua divulgação [Jaulin, 1970]. Os pesquisadoresassistiam impotentes à transformação forçada,extremamente rápida, de sociedades amerín-dias da Amazônia confrontadas brutalmentecom uma exploração industrial da floresta queameaçava os próprios fundamentos de seu sis-tema social e econômico. Estas sociedades nãoestavam mais em condições de manter suas cul-turas e pareciam condenadas à assimilação.Construído sobre o modelo da palavra "genocí-dio", que designa a exterminação física de umpovo, o conceito de etnocídio significa a des-truição sistemática da cultura de um grupo, istoé, a eliminação por todos os meios não somen-te de seus modos de vida, mas também de seusmodos de pensamento. O etnocídio é entãouma deculturação deliberada e programada.O contexto das décadas de sessenta e setenta,marcado pela denúncia do imperialismo oci-dental, e, nas sociedades avançadas, sobretudona França, pela exaltação do pluralismo cultu-ral, criou um clima favorável à vulgarização des-te conceito. No entanto, esta vulgarização serealizou com muita ambigüidade, pois a confu-

são semântica entre etnocídio e genocídioeram freqüentes."Etnocídio" remete à realidade de operaçõessistemáticas de erradicação cultural e religiosanas populações indígenas para fins de assimila-ção na cultura e na religião dos conquistadores,realidade atestada pelos historiadores e pelosetnologos. E extensão do uso do termo em ou-tras situações mais complexas de contatos cul-turais assimétricos enfraqueceu o valor heurís-tico do conceito.Confundir, por exemplo "etnocídio" com "acul-turação" ou "assimilação" leva a um contra-sen-so.A aculturação, mesmo forçada ou planejada,não se reduz jamais a uma simples deculturaçãoe não leva necessariamente à assimilação que,de todo modo, quando se produz, não é neces-sariamente a conseqüência de um etnocídio epode resultar de uma escolha voluntária dos "as-similados". Se o etnocídio é um fenômeno limi-tado, não se pode dizer o mesmo da acultura-ção, fenômeno normal da vida das sociedades.Um determinado uso da conceito de etnocídiolimita seu alcance. A denúncia do etnocídio éimpregnado às vezes de um relativismo cultu-ral radical que não concebe que as relações en-tre as culturas sejam freqüentemente relaçõesde força. Este radicalismo mantém a ilusão deque as diferentes culturas poderiam existir in-dependentemente umas das outras em uma es-pécie de "pureza" original.

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Para conferir um valor operatório ao conceitode etnocídío, é preciso então se ater a uma de-finição rigorosa e localizar as situações socio-históricas concretas nas quais foram produzi-dos etnocídios no seu sentido estrito. Somentedesta maneira se poderá progredir no conheci-mento do fenômeno. Este foi o procedimentoadotado por Pierre Clastres tentando elucidarpor que o espírito e a prática "etnocidas" se de-senvolveram particularmente no interior da ci-vilização ocidental. Segundo ele, a emergênciado Estado e mais especificamente do Estado-Nação, no Ocidente estaria na origem do fenô-meno do etnocídio [Clastres, 1973].

Roger Bastide c os quudros sociaisda aculturação

Na França, não é possível se interessar pelosfenômenos da aculturação sem se referir, de ummodo ou de outro, a Roger Bastide (1898 -1974),pesquisador afro-americanista e professor da Sor-bonne. Foi ele, em grande parte, que revelou paraa França a antropologia americana da acultura-ção e contribuiu, mais do que ninguém para queeste campo de pesquisas fosse reconhecidocomo um domínio capital da disciplina. Apesarde enfatizar o grande mérito dos iniciadores ame-ricanos, Bastide tentará nos seus diferentes traba-lhos renovar a abordagem da aculturação.

A relação do social como cultural

Formado em sociologia e em antropolo-gia, Bastide parte da idéia que o cultural nãopode ser estudado independentemente do so-cial. Para ele, o grande limite do culturalismoamericano nos trabalhos sobre a aculturação é aausência de relação do cultural com o social[1960, p.317]. No culturalismo há um risco deredução dos fatos sociais a fatos culturais (inver-samente, pode-se dizer que existe o que se po-deria chamar de "sociologismo", um risco de re-dução dos fatos culturais a fatos sociais).

As relações culturais devem então ser estu-dadas no interior dos diferentes quadros de re-lações sociais que podem favorecer relações deintegração, de competição, de conflito, etc. Osfatos de sincretismo, de mestiçagem cultural eaté de assimilação, devem ser recolocados emseu contexto de estruturação ou de desestrutu-ração sociais.

Bastide critica, no culturalismo, uma certaconfusão entre os diferentes níveis da realidadee um desconhecimento da dialética que vai dassuperestruturas para as infra-estruturas e reci-procamente. Ora, é precisamente esta dialéticaque permite explicar o fenômeno de reaçõesem cadeia, muito conhecido no processo deaculturação.Toda mudança cultural produz efei-tos secundários não previstos que, mesmo quenão sejam simultâneos não podem ser evitados.

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Para tomar apenas um exemplo, com a co-lonização, a introdução da moeda nas socieda-des tradicionais africanas não teve como únicoefeito a transformação dos sistemas econômicosbaseados na reciprocidade e na redistribuição.Ela provocou mudanças em outros planos, emparticular no sistema das trocas matrimoniais.Segundo a regra costumeira, para obter uma es-posa, era necessário pagar à família da noivauma compensação matrimonial (um certo nú-mero de cabeças de gado, por exemplo, em cer-tas sociedades), segundo a lógica que para cadadádiva deve corresponder uma retribuição. Odinheiro, ao substituir a retribuição em natura,vai modificar profundamente a estrutura da tro-ca: a reunião da soma necessária para o "preçoda noiva" não exige mais a colaboração do con-junto do grupo de parentesco (ao contrário doque se passava para a constituição de um reba-nho). O casamento tende então a se tornar umaquestão individual e toma cada vez mais a formade um arranjo exclusivamente econômico e nãomais essencialmente social (tradicionalmente atroca matrimonial tinha como finalidade princi-pal a aliança entre dois grupos de parentesco).Em certos casos, como as próprias esposas ga-nham dinheiro, como comerciantes ou assala-riadas, elas podem deixar mais facilmente seusmaridos, pois estão em condições de reembol-sar a compensação matrimonial. As separaçõestendem, então, a se multiplicar (enquanto uma

das funções da compensação matrimonial tradi-cional era precisamente assegurar a estabilidadeda união). Diante do que eles consideram umduplo atentado aos princípios da moralidade (a"compra da noiva" e a instabilidade conjugai),missionários tentaram suprimir o costume dacompensação matrimonial. O resultado não cor-respondeu à sua expectativa: por um lado, oscônjuges se consideraram casados superficial-mente; por outro lado, as mulheres, liberadas daobrigação de restituir a compensação, tiveramainda mais facilidade para se divorciar e mudarfreqüentemente de parceiros.

Os fatos de aculturação formam um "fenô-meno social total", segundo a expressão deMareei Mauss, que Bastide retoma por sua vez.Eles atingem todos os níveis da realidade social ecultural, por isso, a mudança cultural não podeser limitada a priori, nem horizontalmente nointerior do mesmo nível, nem verticalmente en-tre diferentes níveis. Isto explica certas ilusõesdos missionários, no passado, que desejavamapenas uma culturação parcial dos indígenas ouainda dos agentes de desenvolvimento econômi-co de hoje: encorajar, por exemplo, a transferên-cia das chamadas tecnologias "doces", para "res-peitar" a cultura de um país subdesenvolvidopode ter a longo prazo, efeitos tão desestrutura-dores quanto a transferência de tecnologias "pe-sadas", supostamente mais devastadoras, pois étoda a cadeia operatória tradicional que corre o

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risco de ser modificada e, conseqüentemente, asrelações sociais que a ela estão ligadas.

Uma tipologia das situações elecontatos culturais

Retomando a idéia norte-americana deuma classificação necessária dos diferentes ti-pos de aculturação para evitar a descrição puraou escapar da generalização abusiva, diante deum processo extraordinariamente complexo,Bastide, por sua vez, vai criar uma tipologia. Fielao princípio fixado por ele mesmo, ele integraem sua tipologia os quadros sociais nos quais seefetua a aculturação.

Ele define então diversas "situações" decontato, entre as quais, a "situação colonial", de-finida por Georges Balandier [1955]. Para seopor a Balandier, que afirmava, um pouco preci-pitadamente que a antropologia cultural nãodava conta das situações sociais, Bastide lembraque no Memorando, a questão foi abordada en-quanto tal [1968,p. 106]. Mas esta parte do pro-grama de pesquisa que o Memorando previa,continuaria efetivamente sem grande desenvol-vimento nos Estados Unidos. Levar em conta asdiversas situações possíveis é importante emum plano metodológico, pois a concepção quese faz da aculturação (como fenômeno geral)depende freqüentemente da "situação" particu-lar na qual ela é estudada.

Na análise de toda situação de acultura-ção, é preciso levar em conta tanto o grupo quedá quanto o grupo que recebe. Se respeitarmoseste princípio, descobriremos rapidamente quenão há cultura unicamente "doadora"nem cultu-ra unicamente "receptora", propriamente dita.Aaculturação não se produz jamais em mão úni-ca. Por esta razão, Bastide propõe os termos "in-terpenetraçao"ou 11entrecruzamento"das cultu-ras, em lugar do termo aculturação que não in-dica claramente esta reciprocidade de influên-cia que, no entanto, raramente será simétrica.

Bastide constrói então sua tipologia a par-tir de três critérios fundamentais, um geral, o se-gundo cultural e o terceiro social [19660, p.325]. O primeiro critério é a presença ou ausên-cia de manipulações das realidades culturais esociais. Três situações-tipos podem existir.

s A situação de uma aculturação "espon-tânea", "natural", "livre" (na realidade, jamaiscompletamente). Trata-se de uma aculturaçãonem dirigida nem controlada. Neste caso, a mu-dança decorre do simples jogo do contato e sefaz, para cada uma das duas culturas presentes,segundo sua lógica interna própria.

e A situação de uma aculturação organi-zada, mas forçada, em benefício de um só gru-po, como no caso da escravidão ou da coloniza-ção. Há, então, vontade de modificar em curtoprazo a cultura do grupo dominado para subme-tê-lo aos interesses do grupo dominante. A acul-

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turação é, neste caso, parcial, fragmentária. Fre-qüentemente, ela é um fracasso (do ponto devista dos dominantes), pois há desconhecimen-to dos determinismos culturais. Há freqüente-mente deculturação sem aculturação.

& A situação da aculturação planejada,controlada, que se pretende sistemática e visa olongo prazo. O planejamento se faz a partir dosuposto conhecimento dos determinismos so-ciais e culturais. No regime capitalista, ela podelevar ao "neo-colonialismo". No regime comu-nista, ela pretende construir uma "sociedadeproletária" que ultrapasse e englobe as "culturasnacionais". A aculturação planejada pode resul-tar de uma demanda de um grupo que desejaver evoluir seu modo de vida, por exemplo parafavorecer seu desenvolvemento econômico.

O segundo critério, de ordem cultural, é arelativa homogeneidade ou heterogeneidadedas culturas presentes.

Enfim, o terceiro critério, de ordem social,é a relativa abertura ou o fechamento das socie-dades em contato. As sociedades que têm umcaráter mais comunitário, e são pouco diferen-ciadas socialmente são mais permeáveis às in-fluências culturais externas, ao contrário das so-ciedades mais individualizadas e diferenciadas.

Combinando os três critérios, obtém-sedoze tipos de situações de contatos culturais,cada um apresentando um aspecto geral, quasepolítico, um aspecto cultural e um aspecto so-cial próprios.

Uma tentativa de explicação dosfenômenos de aculturação

Bastide não se restringe à classificação dosfenômenos de aculturação. Ele procura tambémexplicá-los analisando os diferentes fatores quepodem desempenhar um papel no processo deaculturação, sem esquecer os fatores não cultu-rais [1960, p.326]. Os diferentes fatores podemse reforçar mutuamente ou se neutralizar. Aten-do-nos às variáveis mais determinantes, teremoso seguinte:

a O fator demográfico: qual dos gruposem contato é majoritário numericamente e qualdos dois é minoritário? Mas a maioria estatísticanão pode ser confundida com a maioria políti-ca. Na situação colonial, por exemplo, a maioriaestatística é minoritária no plano político.

Um outro aspecto do fator demográfico éa estrutura das populações em contato: sexratio, pirâmide de idades, população compostasobretudo de solteiros (como na conquista dasAméricas ou em certos tipos de imigração) oude famílias já constituídas, etc,

® O fator ecológico: onde se dá o contato?Nas colônias ou na metrópole? No meio ruralou no meio urbano?

* O fator étnico ou "racial", enfim: qual éa estrutura das relações interétnicas? Existemrelações de dominação/subordinação? De quetipo:"paternalista" ou "concorrencial" (os efeitossão opostos)?

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O que importa, no exame dos diversos fa-tores, é considerar o maior número de diferen-tes estruturas possíveis de relações sociais poisé através delas que estes fatores agem.

Situando-se em outro nível de explicaçãomais abstrato, Bastide introduzira anteriormente[1956] a idéia de duas causalidades que entramem relação dialética em todo processo de acul-turação: a causalidade interna e a causalidadeexterna. Ele não foi o primeiro a evocar estasduas causalidades, mas sua contribuição pessoalconsistiu na insistência em provar a interaçãoconstante entre elas. A causalidade interna deuma cultura é seu modo de funcionamento par-ticular, sua lógica própria. Ela pode favorecer ouao contrário, freiar e até impedir as mudançasculturais exógenas. Reciprocamente, a causali-dade externa, ligada à mudança exógena, age so-mente através da causalidade interna.

Esta dupla causalidade explica o fenôme-no das reações em cadeia, citado anteriormente.Uma causa externa provoca uma mudança emum ponto de uma cultura. Esta mudança vai ser"absorvida" por esta cultura em função de sualógica própria e vai provocar uma série dereajustes sucessivos. Em outras palavras, a causa-lidade externa estimula a causalidade interna:todo sistema cultural atingido em um ponto vaireagir para reencontrar uma certa coerência.

Bastide reconhece que Durkheim estavacorreto ao insistir na importância do meio inter-no. Mas ele se distancia dele ao evidenciar o pa-

pel do meio externo e sobretudo sua relaçãodialética com o meio interno. Esta dialética dasdinâmicas internas e externas leva a uma novaestruturação cultural na qual a causalidade in-terna pode predominar quando a mudança é su-perficial, ou na qual a causalidade externa podevencer se houver imitação cultural.

Apesar de ser muito atento aos detertninismossociais, Koger Bastide não negligenciou o pon-to de vista do sujeito. Retomando por sua con-ta a idéia de que são os indivíduos que se en-contram c não as culturas, ele tentava com-preender o que se passava com os indivíduosem um processo de aculturação. Uma parte desua obra é dedicada à explicação, a partir da an-tropologia, da patologia de certos indivíduos vi-vendo em contradições culturais insuperáveis.No entanto, ele tinha sobretudo a preocupaçãode demonstrar que a aculturação não produznecessariamente seres híbridos, inadaptados einfelizes.Para dar conta de um aspecto essencial da per-sonalidade do homem em situação de acultura-ção, Bastide criou o conceito de "princípio decorte" [1955],essencial na sua obra. Na origemdo conceito, há a descoberta do universo reli-gioso afro-brasileiro.Ao longo de suas pesquisas

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na Bahia, ele constatou que os Negros podiamser ao mesmo tempo e com toda a serenidade,fervorosos adeptos do culto do Camdomblc eagentes econômicos perfeitamente adaptados àracionalidade moderna, diferentemente de ou-tros analistas, ele não via nisso a marca de umacontradição fundamental ou de uma condutaincoerente. Segundo ele, os Negros que vivemem uma sociedade pluricultural cortam o uni-verso social em um certo número dc"compar-timentos isolados" nos quais eles têm "partici-pações" de ordem diferente que, por isso mes-mo, não lhes parecem contraditórias.Por esta analise, estendida em seguida a outrassituações, Roger Bastide renovou a abordagemda questão da marginalidade, tal como haviasido colocada pelos sociólogos da Escola deChicago. Para ele, o "homem marginal" não é al-guém que vive entre dois universos sociais eculturais, mas no interior dos dois universos,sem que eles se comuniquem. Não é necessa-riamente um ser ambivalente ou infeliz, diferen-temente do homem psicologicamente margi-nal:"[...] oAfro-brasileiro escapa, pelo princípiodo corte, à desgraça da marginalidade (psíqui-ca). O que se denuncia as vezes como a dupli-cidade do Negro é o sinal de sua maior sinceri-dade; se ele joga em dois campos, é porque eleestá realmente em dois campos" [1955, p. 498].Se a marginalidade cultural não se transformaem marginalidade psicológica, é devido aoprincípio do corte. Não é o indivíduo que é

"cortado cm dois", contra a sua vontade, mas éele que introduz os cortes entre seus diferentesengajamentos.O princípio do corte pode deste modo, agir nonível das "formas" inconscientes do psiquismo,isto é, das estruturas perceptivas, mncmônicas,lógicas e afetivas, podem também aparecer"cortes que tornam a inteligência ocidentaliza-da enquanto a afetividade continua indígena ouvice-versa" [1970a, p.144].Dependendo das situações e particularmentedo tipo de relações entre os grupos de culturasdiferentes, o corte pode ou não se impor. Oprincípio do corte é sobretudo característicode grupos minoritários, para os quais ele cons-titui um mecanismo de defesa da identidadecultural. Pode-se observar atualmente todos ostipos de exemplos no contexto da imigração,na França. Desde os anos setenta, por exemplo,os imigrantes africanos, Soninké e Toucouleur.na maioria, vindos de sociedades muçulmanasrigoristas, trabalham como operários em umdos maiores abatedouros de carne de porco daEuropa, em Collinée, na Bretanha, Apreciadospor suas qualidades profissionais, eles se esta-beleceram no local e trouxeram suas famílias eamigos, constuindo progressivamente uma co-munidade no vilarejo. O contato cotidiano coma carne de porco, para eles, pertence às neces-sidades do trabalho industrial, consideradocomo estritamente instrumental, como um sim-ples ganha-pão e não altera em nada sua identi-

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dade muçulmana, preservada aliás [Renault,1992].Continuando sua reflexão, Bastide chega a oporuma concepção otimista da marginalidade cul-tural à concepção pessimista dominante. Se-gundo ele, os homens em situação de margina-lidade cultural são particularmente criativos,adaptáveis e podem se tornar os líderes da mu-dança social e cultural. Pelo jogo dos cortes,eles tiram partido da complexidade do sistemasocial e cultural [1971, cap. 6].Definitivamente, o conceito tio princípio docorte apresenta a vantagem de permitir que sepense a mutação cultural, a descontinuidade enão somente a mudança na continuidade comotentaram fazer os culturalistas.

As pesquisas sobre o processo de acultura-ção renovaram profundamente a concepçãoque os pesquisadores tinham da cultura. Consi-derar a relação íntercultural e as situações nasquais ela se efetua levou a uma definição dinâ-mica da cultura.

A perspectiva se inverteu: não se partemais da cultura para compreender a acultura-ção, mas da aculturação para compreender a cul-tura. Nenhuma cultura existe em "estado puro",sempre igual a si mesma, sem ter jamais sofrido

a mínima influência externa. O processo de acul-turação é um fenômeno universal, mesmo queele tenha formas e graus muito diversos.

O processo que cada cultura sofre em si-tuação de contato cultural, processo de deses-truturação e depois de reestruturação, é emrealidade o próprio princípio da evolução dequalquer sistema cultural. Toda cultura é umprocesso permanente de construção, descons-trução e reconstrução. O que varia é a importân-cia de cada fase, segundo as situações .Talvez fos-se melhor substituir a palavra "cultura" por "cul-turação" (já contido em "aculturação") para su-blinhar esta dimensão dinâmica da cultura.

Por esta razão, como mostrou Bastide, o es-tudo da fase de desconstrução é tão importantedo ponto de vista científico quanto a fase de re-construção, pois é igualmente rica em ensina-mentos. Ela revela que a deculturacão não é ne-cessariamente um fenômeno negativo que re-sulta na decomposição da cultura. Se por umlado, a deculturacão pode ser o efeito do encon-tro das culturas, ela pode também agir, por ou-tro lado, como causa de reconstrução cultural.Bastide se apoia no caso exemplar (porque ex-tremo) das culturas afro-americanas: apesar outalvez por causa dos séculos de escravidão, ouseja, de desestruturação social e cultural quaseabsoluta, os Negros das Américas criaram cultu-ras originais e dinâmicas.

Assim Bastide se opõe a Lévi-Strauss e suaconcepção da noção de estrutura que ele consi-

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dera estática demais. Ao invés de "estrutura", se-ria preciso falar de "estruturação", "desestrutu-ração"e "reestruturação". A cultura é uma cons-trução "sincrônica"que se elabora a todo instan-te através deste triplo movimento. Lévi-Strauss,de acordo com sua teoria estruturalista, temuma visão muito pessimista dos fenômenos dedeculturação nas sociedades submetidas à colo-nização. Para ele, esta deculturação só pode le-var à "decadência" cultural, "sintoma" de uma"doença que é comum a todas elas" [às socieda-des deculturadas]:

No momento em que se desfazem, todas as so-ciedades convergem, por mais diferentes queelas possam ter sido em seu estado original. Haculturas melasianas, africanas, americanas; masa decadência tem apenas um rosto (citado inBastide 11956, p. 85]).

Em certos casos, os fatores de decultura-ção podem dominar, a ponto de impedir qual-quer reestruturação cultural. Restos fragmentá-rios da cultura de origem podem coexistir comcontribuições fragmentárias da cultura vence-dora, mas não há ligação entre eles e as signifi-cações profundas destes elementos estão perdi-das. Este conjunto heteróclito não constitui umsistema. Esta desestruturação sem reestrutura-ção possível provoca uma desorientação dos in-divíduos, no sentido próprio de perda de rumo,que se traduz em patologias mentais ou em con-

dutas delinqüentes. No entanto, na maior partedo tempo, a desestruturação é somente a pri-meira fase de uma recomposição cultural queserá mais ou menos importante. Às vezes, pode-se assistir a uma verdadeira "mutação" cultural,ou seja, a descontinuidade vence a continuida-de. Neste caso, Bastide fala de "aculturação for-mal" porque ela atinge as próprias "formas" (asGestalt) do psiquismo, isto é, as estruturas do in-consciente "informadas" pela cultura. No outrocaso, a aculturação é chamada de "material", ouseja, atinge apenas os conteúdos da consciênciapsíquica, o que faz a sua "matéria" (por exem-plo, os valores, as representações) e que se ins-creve nos fatos perceptíveis: difusão de um tra-ço cultural, mudança de um ritual, propagaçãode um mito,etc. [Bastide].

Esta distinção permite que se apreendamelhor um certo número de fenômenos, espe-cialmente os chamados da"contra-aculturação",por exemplo os movimentos messiânicos, osmovimentos fundamentalistas e, de uma manei-ra geral, todas as tentativas de "retorno às ori-gens".A análise mostra que a contra-aculturaçãose produz somente quando a deculturação é su-ficientemente profunda para impedir qualquerrecriação pura e simples da cultura original. Eainda, muito freqüentemente, os movimentosde contra-aculturação tomam emprestado, semse dar conta, os modelos de organização e até ossistemas inconscientes de representações dacultura dominante que eles pretendem comba-

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ter. A contra-aculturação é quase sempre umareação desesperada à aculturação formal. Pode-se tentar"africanizar","arabizar>>, voltar à"auten-ticidade" original, mas o que se consegue é so-mente a limitação dos efeitos da aculturaçãomaterial,*A contra-aculturação formal é, por suavez, impossível. Ela não pode ser decretada, elanão vem de uma vontade consciente. A contra-aculturação, longe de ser uma volta às origens -o que ela gostaria de ser - é apenas um tipo, en-tre outros, de uma nova estruturação cultura).Ela não produz o antigo, mas o novo.

O desenvolvimento dos estudos sobre osfatos da aculturação levaram a um reexame doconceito de cultura. A cultura é compreendidaa partir de então como um conjunto dinâmico,mais ou menos homogêneo. Os elementos quecompõem uma cultura não são jamais integra-dos uns aos outros pois provêm de fontes diver-sas no espaço e no tempo. Em outras palavras,ha um "jogo" no sistema, especialmente porquese trata de um sistema extremamente comple-xo. Este jogo esta no interstício no qual a liber-dade dos indivíduos e dos grupos se instala para"manipular" a cultura.

Não existem, conseqüentemente, de umlado as culturas "puras" e de outro, as culturas"mestiças". Todas, devido ao fato universal doscontatos culturais, são, em diferentes graus, cul-turas "mistas", feitas de continuidades e de des-continuidades. Há geralmente mais continuida-de entre duas culturas que estão em contato

prolongado do que entre os diferentes estadosde um mesmo sistema cultural tomado em mo-mentos distintos de sua evolução histórica. Emoutras palavras, como foi mostrado por Bastide,a descontinuidade cultural é talvez mais presen-te na ordem temporal do que na ordem espa-cial.A continuidade afirmada de uma dada cultu-ra depende geralmente bem mais da ideologiado que da realidade. E esta pretensa continuida-de será tão mais afirmada quanto mais a descon-tinuidade aparecer nos fatos: nos momentos deruptura, o discurso da continuidade é uma"ideologia da compensação" [Bastide, 1970c].

Esforçar-se para diferenciar as culturas,considerando-as como entidades separadaspode ser útil metodologicamente e teve umgrande valor heurístico na história da etnologiapara pensar a diversidade cultural. Onde come-ça e onde acaba tal cultura particular? Interro-gar-se sobre esta questão é interrogar-se sobre a"escala" apropriada no estudo e na descriçãodas culturas, responde Lévi-Strauss:

Nós chamamos cultura todo conjunto etnográ-fico que apresenta, em relação a outros, diferen-ças significativas, do ponto de vista da pesqui-sa. Se procurarmos determinar diferenças signi-ficativas entre a América do Norte e a Europa,nós as trataremos como culturas diferentes;mas, supondo que o interesse se volte para asdiferenças significativas entre - digamos - Parise Marselha, estes dois conjuntos urbanos pode-

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rão ser provisoriamente vistos como duas uni-dades culturais. [...]Uma mesma coleção de in-divíduos, desde que ela seja objetivamentedada no tempo e no espaço, depende simulta-neamente de vários sistemas de cultura: univer-sal, continental, nacional, provincial, local, etc. efamiliar, profissional, confessional, político, etc.[1958, p. 325].

Não há verdadeira descontinuidade entreas culturas que, pouco a pouco, estão em comu-nicação umas com as outras, ao menos no inte-rior de um dado espaço social. As culturas par-ticulares não são totalmente estranhas umas àsoutras, mesmo quando elas acentuam suas dife-renças para melhor se afirmar e se distinguir.Esta constatação deve levar o pesquisador aadotar um procedimento "continuísta" que pri-vilegie a dimensão racional interna e externa,dos sistemas culturais em contato [Amselle,1990].

Hierarquias Sociais eHierarquias Culturais

Se a cultura não é um dado, uma herançaque se transmite imutável de geração em gera-çãoré" porque ela é uma produção histórica, istoé, uma construção que se inscreve na história emais precisamente na história das relações dosgrupos sociais entre si. Para analisar um sistemacultural, é então necessário analisar a situação so-ciohistórica que o produz como ele é (Balandier,1955].

O contato vem em primeiro lugar, histori-camente. Em seguida, há o jogo de distinção queproduz as diferenças culturais. Cada coletivida-de, no interior de uma situação dada, pode ter atentação de defender sua especificidade, fazen-do um esforço através de diversos artifícios paraconvencer (e se convencer) que seu modelocultural é original e lhe pertence. O caráter dasituação determinará se o jogo de distinção le-vará a valorizar e a acentuar tal conjunto de di-ferenças culturais mais do que outro.

As culturas nascem de relações sociais quesão sempre relações desiguais. Desde o início,existe então uma hierarquia de fato entre as cul-turas que resulta da hierarquia social. Pensarque não há hierarquia entre as culturas seria su-por que as culturas existem independentemen-

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te umas das outras, sem relação umas com as ou-tras, o que não corresponde à realidade. Se todasas culturas merecem a mesma atenção e o mes-mo interesse por parte do pesquisador, isto nãoleva à conclusão de que todas elas são social-mente reconhecidas como de mesmo valor. Nãose pode passar assim de um princípio metodo-lógico a um julgamento de valor.

É preciso então fazer uma análise "polemo-lógica" das culturas, pois elas revelam conflitos;elas se desenvolvem na tensão, às vezes naviolência. No entanto, neste tipo de análise, é ne-cessário evitar as interpretações redutoras de-mais, como a que supõe que o mais forte estásempre em condições de impor pura e simples-mente sua ordem (cultural) ao mais fraco. Namedida em que a cultura real só existe se produ-zida por indivíduos ou grupos que ocupam po-sições desiguais no campo social, econômico epolítico, as culturas dos diferentes grupos se en-contram em maior ou menor posição de força(ou de fraqueza) em relação às outras. Mas mes-mo o mais fraco não se encontra jamais total-mente desarmado no jogo cultural.

Dizer que mesmo os grupos socialmentedominados não são desprovidos de recursosculturais próprios, c sobretudo da capacidadede reinterpretar as produções culturais que lhessão impostas em maior ou menor grau, não sig-

nifica, no entanto, voltar à afirmação que todosos grupos são iguais e que suas culturas sãoequivalentes.

Em um dado espaço social, existe sempreuma hierarquia cultural. Karl Marx como MaxWeber não se enganaram ao afirmar que a cultu-ra da classe dominante é sempre a cultura domi-nante. Ao dizer isto, eles não pretendem eviden-temente afirmar que a cultura da classe domi-nante seria dotada de uma espécie de superiori-dade intrínseca ou mesmo de uma força de difu-são que viria de sua própria "essência" e que per-mitiria que ela dominasse "naturalmente" as ou-tras culturas. Para Marx assim como para Weber,a força relativa de diferentes culturas em compe-tição depende diretamente da força social relati-va dos grupos que as sustentam. Falar de cultura"dominante"ou de cultura "dominada" é entãorecorrer a metáforas; na realidade o que existesão grupos sociais que estão em relação de do-minação ou de subordinação uns com os outros.jt Nesta perspectiva, uma cultura dominada

não é necessariamente uma cultura alienada, to-talmente dependente. É uma cultura que, emsua evolução, não pode desconsiderar a culturadominante (a recíproca também é verdadeira,ainda que em um grau menor), mas que pode re-sistir em maior ou menor escala à imposiçãocultural dominante. Como Claude Grignon eJean-Claude Passeron explicam [1989], as rela-ções de dominação cultural não se deixamapreender pela análise da mesma maneira que

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as relações de dominação social. Isto se dá por-que as relações entre símbolos não funcionamsegundo a mesma lógica que as relações entregrupos e indivíduos. Pode-se observar freqüen-temente defasagens entre os efeitos (ou contra-efeitos) da dominação cultural e os efeitos dadominação social. Uma cultura dominante nãopode se impor totalmente a uma cultura domi-nada como um grupo pode fazê-lo em relação aum outro grupo mais fraco. A dominação cultu-ral nunca é total e definitivamente garantida epor esta razão, ela deve sempre ser acompanha-da de um trabalho para inculcar esta dominaçãocujos efeitos não são jamais unívocos; eles sãoàs vezes "efeitos perversos", contrários às ex-pectativas dos dominantes, pois sofrer a domi-nação não significa necessariamente aceitá-la.

Como é recomendado pelos dois sociólo-gos, o rigor metodológico impõe o estudo doque as culturas dominadas devem ao fato de se-rem culturas de grupos dominados, e, conse-qüentemente, ao fato de se construírem e se re-construírem em uma situação de dominação;mas isto não impede de estudá-las em si mes-mas, isto é, como sistemas que funcionam se-gundo uma certa coerência própria, sem o quenão faria mais sentido falar em cultura.

As culturas populares

Evocar a questão das culturas dos gruposdominantes é inevitavelmente evocar o debate

em torno da noção de "cultura popular". NaFrança, as ciências sociais intervieram relativa-mente tarde neste debate. Ele foi feito, sobretu-do no início, isto é no século XIX, pelos analis-tas literários, pois estava restrito ao exame da li-teratura chamada de "popular", especialmente aliteratura dos mascates. Em seguida, os folcloris-tas alargaram esta perspectiva ao se interessa-rem pelas tradições camponesas. Apenas recen-temente os antropólogos e sociólogos aborda-ram este campo de estudo.

A noção de cultura popular tem, desde suaorigem, uma ambigüidade semântica, devido àpolissemia de cada um dos dois termos que acompõe. Nem todos os autores que recorrem aesta expressão dão a mesma definição ao termo"cultura" e/ou "popular". O que torna o debateentre eles bastante difícil.

Do ponto de vista das ciências sociais,duas teses unilaterais diametralmente opostasdevem ser evitadas. A primeira, que poderíamosqualificar de minimalista, não reconhece nasculturas populares nenhuma dinâmica, nenhu-ma criatividade próprias.As culturas seriam ape-nas derivadas da cultura dominante que seria aúnica reconhecida como legítima e que corres-ponderia então à cultura central, a cultura de re-ferência. As culturas populares seriam apenasculturas marginais. Seriam então cópias de máqualidade da cultura legítima da qual elas se dis-tinguiriam somente por um processo de empo-brecimento. Elas seriam a expressão da aliena-

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cão social das classes populares, desprovidas dequalquer autonomia. Nesta perspectiva, as dife-renças que opõem as culturas populares à cultu-ra de referência são analisadas como faltas, de-formações, incompreensões. Em outras pala-vras, a única "verdadeira cultura" seria a culturadas elites sociais, e as culturas populares seriamapenas seus subprodutos inacabados.

Em oposição a esta concepção miserabi-lista está a tese maximalista que pretende vernas culturas populares, culturas que deveriamser consideradas como iguais e mesmo supe-riores à cultura das elites. Para os adeptos destatese, as culturas populares seriam culturas au-tênticas, culturas completamente autônomasque não deveriam nada à cultura das classes do-minantes. A maioria deles afirmam que nenhu-ma hierarquia entre as culturas, popular e "letra-da" poderia ser estabelecida. Alguns não se res-tringem a isto e, em uma derivação ideológicapopulista, chegam até a defender que a culturapopular seria superior à cultura das elites, poissua vitalidade viria da criatividade do "povo",superior à criatividade das elites. É claro queneste caso, estamos mais próximos de uma ima-gem mítica da cultura popular do que de um es-tudo rigoroso da realidade.

A realidade é bem mais complexa do queé apresentado por estas duas teses extremas. Asculturas populares revelam-se, na análise, neminteiramente dependentes, nem inteiramenteautônomas, nem pura imitação, nem pura cri-

ação. Por isso, elas apenas confirmam que todacultura particular é uma reunião de elementosoriginais e de elementos importados, de inven-ções próprias e de empréstimos. Como qual-quer cultura, elas não são homogêneas sem ser,por esta razão, incoerentes. As culturas popula-res são, por definição, culturas de grupos sociaissubalternos. Elas são construídas então em umasituação de dominação. Certos sociólogos, con-siderando esta situação, evidenciam tudo o queas culturas populares devem ao esforço de resis-tência das classes populares à dominação cultu-ral. Os dominados reagem à imposição culturalpela ironia, pela provocação, pelo "mau gosto"mostrado voluntariamente. O folclore, especial-mente o folclore operário ou ainda, para tomarum exemplo mais preciso, o folclore "de solda-do raso" no exército, fornece um grande núme-ro de ilustrações destes procedimentos de revi-ravolta ou de manipulação irônicas das imposi-ções culturais. Neste sentido, as culturas popula-res são culturas de contestação.

Este aspecto existe nas culturas populares,não sendo, no entanto, suficiente para defini-las.E se insistirmos demais nesta dimensão "reati-va", correremos maior ou menor risco de cair natese minimalista que nega qualquer criatividadeautônoma das culturas populares. Como é res-saltado por Grignon e Passeron, as culturas po-pulares não estão mobilizadas permanentemen-te em uma atitude de defesa militante. Elas fun-cionam também "em repouso". Nem toda a alte-

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ridade popular se encontra na contestação. Poroutro lado, os valores e as práticas de uma atitu-de de resistência cultural não bastam para criaruma autonomia cultural suficiente para que sur-ja uma cultura original. Ao contrário, elas assu-mem, sem querer, funções integradoras, pois sãofacilmente "cooptáveis" pelo grupo dominante(aqui também o exemplo do folclore "de solda-do raso" é pertinente).

Sem esquecer a situação de dominação, étalvez mais correto considerar a cultura popularcomo um conjunto de "maneiras de viver com"esta dominação, ou, mais ainda como um modode resistência sistemática à dominação. Desen-volvendo esta idéia, Michel de Certeau [1980]define a cultura popular como a cultura "co-mum" das pessoas comuns, isto é, uma culturaque se fabrica na cotidiano, nas atividades aomesmo tempo banais e renovadas a cada dia.Para ele, a criatividade popular não desapare-ceu, mas não está necessariamente onde a bus-camos, nas produções perceptíveis e claramen-te identificáveis, Ela é multiforme e dissemina-da: "Ela foge por mil caminhos".

Para captá-la, é preciso captar a inteligênciaprática da pessoas comuns, principalmente nouso que elas fazem da produção de massa. Parauma produção racionalizada, padronizada, ex-pansionista e ao mesmo tempo centralizada, cor-responde uma outra produção chamada porCerteau de"consumo".Para ele, trata-se realmen-te de uma "produção", pois apesar de não se ca-

racterizar por produtos próprios, ela se distin-gue pelas "maneiras de viver com"estes produ-tos, isto é, pelas maneiras de utilizar os produtosimpostos pela ordem econômica dominante.

Reabilitando a atividade de consumo to-mada em seu sentido mais amplo, Certeau defi-ne então a cultura popular como sendo uma"cultura de consumo". É difícil de identificaresta cultura de consumo, pois ela é caracteriza-da pela astúcia e pela clandestirüdade.Além dis-so, este "consumo - produção cultural" é muitodisperso, insinuando-se em toda a parte, mas demaneira discreta. Em outras palavras, o consumi-dor não poderia ser identificado ou qualificadoa partir dos produtos que ele assimila. É precisoencontrar o "autor" sob o consumidor: entre ele(que usa os produtos) e os produtos (índices daordem cultural que se impõem a ele), há a defa-sagem do uso que ele dá aos produtos. A pes-quisa sobre as culturas populares se situa preci-samente nesta defasagem.

Os usos devem ser analisados em si mes-mos. Eles são autênticas "artes do fazer" que, se-gundo Certeau, dependendo do caso, têm pa-rentesco com o "faça você mesmo", com a bri-colagem, com a improvisação, com o ilícito, istoé, com práticas multiformes e combinatórias,sempre anônimas. Por estas maneiras de fazer,os consumidores dão uma outra função aos pro-dutos padronizados, diferente daquela que haviasido projetada para eles.

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Michel de Certeau chega até a evocar umaanalogia entre esta atividade de consumo dis-pliscente e a atividade de colheita nas socieda-des tradicionais. Consumidores e colhedoresprodu/em pouco materialmente, mas são mui-to engenhosos para tirar proveito do meio queos cerca. Esta engenhosidade é tão criativa cul-turalmente quanto a que resulta em produtosespecíficos. Estes produtos-mercadorias são, decerta maneira, o repertório com o qual os con-sumidores fazem operações culturais que lhessão próprias.

Tal análise tem o mérito de mostrar que seuma cultura popular é obrigada a funcionar, aomenos em parte, como cultura dominada, nosentido em que os indivíduos dominados de-vem sempre "viver com" o que os dominanteslhe impõem ou lhe recusam, isto não impedeque ela seja uma cultura inteira, baseada em va-lores e práticas originais que dão sentido à suaexistência.

Devemos a Lévi-Strauss [1962] a aplicação danoção de bricolagem (colagem, construção,conserto, arranjo feito com materiais diversos)aos fatos culturais. Ele usa a metáfora da brico-lagem no contexto de sua teoria do pensamen-to mítico. Segundo ele, a criação mítica depen-

de da arte da bricolagem, que ele opõe à inven-ção técnica, baseada no conhecimento científi-co: o universo instrumental de quem faz a bri-colagem é fechado, ao contrário do universo doengenheiro: "o pensamento mítico se exprimecom a ajuda de um repertório limitado, cujacomposição é heteróclita; no entanto, ele éobrigado a usar este repertório em qualquerque seja a circunstância, pois não possui maisnada à sua disposição. O pensamento míticoaparece assim como uma espécie de bricola-gem intelectual, o que explica as relações quese pode observar entre os dois" [1962, p. 26].Lévi-Strauss se interessa então pela maneiracomo a criatividade mítica examina os arranjospossíveis a partir de um estoque limitados dematérias desiguais, das mais diversas origens(heranças, empréstimos...). A criação consisteem uma nova disposição de elementos preesta-belecidos cuja natureza não pode ser modifica-da. Estes elementos são resíduos, fragmentos,restos que, pela bricolagem vão constituir umconjunto estruturado original. A inserção des-tes materiais neste novo conjunto, ainda quenão transforme a sua natureza, fará que eles di-gam algo diferente do que eles diziam antes:uma nova significação nasce desta disposição

compósita final.A metáfora da bricolagem obteve rapidamenteum grande sucesso e foi estendida a outras for-mas de criação cultural. Ela foi usada para ca-

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racterizar o modo de criatividade próprio dasculturas populares [Certeau, 1980] e das cultu-ras imigradas [Schnapper, 1986], assim comodos novos cultos sincréticos do terceiro mundoou das sociedades ocidentais. Roger Bastidetambém contribuiu de maneira decisiva para aextensão desta noção. Em um artigo intitulado"Memória coletiva e sociologia da bricolagem"[1970], ele mostrou que esta noção dá contanão somente de processos culturais acabados,mas também de transformações em curso. Lévi-Strauss, através dos mitos ameríndios, estudou"uma matéria composta há muito tempo";Bastide, ao examinar os casos das culturas afro-americanas, observa a "bricolagem se fazendo"[ibid.,<p. 100].Por outro lado, pela analogia que ele estabeleceentre os mecanismos do pensamento mítico eos da memória coletiva, Bastide estende consi-deravelmente o alcance da metáfora, cuja apli-cação não vai ser reservada unicamente aos mi-tos. No caso de culturas negras das Américas, abricolagem permite preencher as lacunas damemória coletiva, profundamente perturbadapela escravidão e pela transferência de local.Neste caso, a bricolagem é restauração: ela fazuma espécie de "colagem", de "remendo", a par-tir de materiais recuperados que podem seremprestados de diferentes culturas, desde quese insiram funcionalmente no conjunto queconstitui a memória coletiva. Esta inserção em

um novo conjunto leva necessariamente a daruma nova significação a estes materiais de acor-do com a significação do conjunto.Atualmente, uma certa inflação do uso da no-ção de bricolagem leva ao risco de enfraquecerseu valor heurístico, como observa André Mary.Querer considerar todas as formas de sincretis-mo, mesmo as mais superficiais e efêmeras,como participantes de uma bricolagem criati-va, no sentido dado por Lévi-Strauss, é um con-tra senso. Um grande número de manifestaçõesda cultura chamada de "pós-moderna" corres-pondem mais a uma"colagem"(briscollage), doque a uma verdadeira bricolagem, segundoMary. [Mary, 1994].

No entanto, esta análise não evidencia su-ficientemente a ambivalência das culturas po-pulares que Grignon e Passeron consideramcomo uma característica essencial. Para eles,uma cultura popular é ao mesmo tempo umacultura de aceitação e uma cultura de negação.O que leva uma mesma prática a ser interpreta-da como participando de suas lógicas opostas.Para dar um exemplo, a atividade de bricolagemnas classes populares foi analisada por certossociólogos como dependente da necessidade,como um prolongamento da alienação do traba-lho, pois o próprio operário seria obrigado arealizar o que ele não tivesse condições de ad-

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quirir ou mesmo, em outras análises, ele realiza-ria por não saber fazer de seu tempo livre outracoisa diferente de um tempo de trabalho, Mas,outros pesquisadores afirmam que a bricolagemé também uma criação livre, em que o indivíduoé o dono da gestão de seu tempo, da organiza-ção de sua atividade, da utilização do produto fi-nal. Este segundo aspecto explica o sucesso dabricolagem como lazer: a bricolagem reintroduzum espaço de autonomia em universo de obri-gações. Na realidade, a bricolagem (como a jar-dínagem ou a costura e o tricô, para as mulheresassalariadas) pode ser feita de tédio, de trabalhoforçado e do prazer da iniciativa, da obrigação eda liberdade.

Ao darmos demasiada atenção ao que asculturas populares devem ao fato de serem cul-turas de grupos dominados, corremos o risco deminimizarmos de maneira excessiva sua relativaautonomia. Heterogêneas, estas culturas são emcertos aspectos mais marcadas pela dependên-cia em relação à cultura dominante e, ao contrá-rio, em outros aspectos, mais independentes. Eisto se dá porque os grupos populares não estãosempre e em toda a parte confrontados ao gru-po dominante. Nos lugares e nos momentos emque eles se encontram "a sós", o esquecimentoda dominação social e simbólica permite umaatividade de simbolização original. De fato, é oesquecimento da dominação e não a resistênciaà dominação que torna possíveis as atividades

culturais autônomas para as classes populares.Os lugares e os momentos subtraídos da con-frontação desigual são múltiplos e variados: é afolga do domingo, a arrumação da casa de acor-do com o gosto do seu proprietário, são os luga-res e os momentos de socialização com seus pa-res (cafés, jogos ...), etc. Grignon e Passeron con-cluem daí que a aptidão para a alteridade cultu-ral dos mais fracos é talvez mais produtiva sim-bolicamente quando eles estão "à distância" dosmais fortes, escapando assim ao confronto. Oisolamento, mesmo quando ele representa mar-ginalização, pode ser fonte de autonomia (relati-va) e de criatividade cultural.

A noção de "cultura de massa"

A noção de "cultura de massa" obteve umgrande sucesso na década de sessenta. Este su-cesso deveu-se, em parte, à sua imprecisão se-mântica e à associação paradoxal, do ponto devista da tradição humana, dos termos "cultura" e"massa". Não é surpreendente que esta noçãotenha sido utilizada para embasar análises deorientação sensivelmente diferentes.

Certos sociólogos, como Edgar Morin[1962] por exemplo, enfatizam o modo de pro-dução desta cultura, que obedece aos esquemasda produção industrial de massa. O desenvolvi-mento dos meios de comunicação de massaacompanha a introdução cada vez mais determi-

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nante dos critérios de rendimento e de rentabili-dade em tudo o que se refere à produção cultu-ral. A "produção" tende a suplantar a "criação".

No entanto, a maioria dos autores dedicamsuas análises essencialmente à questão do con-sumo da cultura produzida pelas mass media.Boa parte destas análises parecem concluir quehá uma certa forma de nivelamento cultural en-tre os grupos sociais sob o efeito da uniformiza-ção cultural que seria ela própria a conseqüên-cia da generalização dos meios de comunicaçãode massa. Nesta perspectiva, supõe-se que as mí-dias provoquem uma alienação cultural, umaaniquilação de qualquer capacidade criativa doindivíduo, que, por sua vez, não teria meios deescapar à influência da mensagem transmitida.

Ora, a noção de massa é imprecisa, pois se-gundo as análises, a palavra "massa"remete tan-to ao conjunto da população como ao seu com-ponente popular. Evocando sobretudo este se-gundo caso, certos pesquisadores chegaram atéa denunciar o que eles consideram um "embru-tecimento"das massas. Estas conclusões vêm deum duplo erro. Por um lado, confunde-se "cultu-ra para as massas"e "cultura das massas". Não éporque certa massa de indivíduos recebe a mes-ma mensagem que esta massa constitui um con-junto homogêneo. É evidente que há uma certauniformização da mensagem midiática mas, istonão nos permite deduzir que haja uniformiza-ção da recepção da mensagem. Por outro lado,é falso pensar que os meios populares seriam

mais vulneráveis à mensagem da mídia. Estudossociológicos mostraram que a penetração da co-municação da mídia é mais profunda nas classesmédias do que nas classes populares.

É essencial que se considerem as condi-ções de recepção. Richard Hoggart mostrou quea receptividade das classes populares à mensa-gem midiática é muito seletiva. Ela depende doque chamamos de "atenção oblíqua", que vemde uma atitude geral de prudência e até de ceti-cismo em relação a tudo o que não emana domeio popular ao qual se pertence:"É preciso sa-ber pegar e largar", e sobretudo não confundir avida "séria" e o divertimento sem conseqüência[Hoggart, 1957].

Um estudo da comunicação de massa nãopode se contentar em analisar os discursos e asimagens difundidos. Um estudo completo deveprestar tanta ou até mais atenção ao que os con-sumidores fazem com o que eles consomem.Eles não assimilam passivamente os programasdivulgados. Eles se apropriam deles, reinterpre-tam-nos segundo suas próprias lógicas culturais.Uma série de televisão americana como Dallas,que obteve um sucesso quase mundial, até nasfavelas de Lima, no Peru, ou nas aldeias saarianasda Argélia, não foi compreendida da mesma ma-neira nem assistida pelas mesmas razões em to-dos os lugares, em todos os meios sociais. Pormais "padronizado" que seja o produto de umaemissão, sua recepção não pode ser uniforme edepende muito das particularidades culturais de

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cada grupo, bem como da situação que cadagrupo vive no momento da recepção.

As culturas de classe

O fraco valor heurístico da noção de cultu-ra de massa e a imprecisão das noções de cultu-ra dominante e de cultura popular, às quais seacrescenta a evidência da relativa autonomiadas culturas das classes subalternas, levaram ospesquisadores a reconsiderar positivamente oconceito de cultura (ou subcultura) de classe,baseando-se, não mais nas deduções filosóficas,como em uma certa tradição marxista, mas empesquisas empíricas.

Numerosos estudos mostraram que os sis-temas de valores, os modelos de comportamen-to e os princípios de educação variam sensivel-mente de uma classe a outra. Estas diferençasculturais podem ser observadas até nas práticascotidianas mais comuns. Deste modo, Claude eChristiane Grignon mostraram que às diversasclasses sociais correspondem estilos de alimen-tação diferentes. O abastecimento num mesmosupermercado, que pode dar a impressão deuma homogeneização dos modos de consumo,dissimula escolhas diferenciadas. No campo daalimentação, os hábitos ligados às tradições dosdiferentes meios sociais são bastante estáveis. Aprincipal razão disto não são as diferenças de po-der de compra.As práticas alimentares estão pro-fundamente ligadas aos gostos que variam pou-

co, pois eles remetem a imagens inconscientes, aaprendizados e a lembranças de infância. As cli-vagens sociais vão se inscrever até na escolhados legumes e das carnes, das frutas e das sobre-mesas. Há carnes "burguesas", como o carneiro ea vitela e carnes "populares"como o porco, acoelho e as salsichas frescas (na França). Há tam-bém uma hierarquia dos legumes frescos, indodos mais sofisticados (as endívias) aos mais cam-poneses (os aipos) e aos mais operários (as bata-tas). O modo de preparo culinário é também re-velador dos gostos de classe. Comer é então ummodo de marcar sua vinculação a uma classe so-cial particular [Grignon, Cl. e Ch., 1980].

Max Weber c o aparecimento daclasse dos empresários capitalistas

Deve-se talvez a Max Weber (1864 -1920)um dos primeiros ensaios que relacionam os fa-tos culturais e as classes sociais, Em seu estudomais conhecido,^ ética protestante e o espíri-to do capitalismo, publicado em 1905, ele ten-ta demonstrar que os comportamentos econô-micos da classe dos empresários capitalistassão compreensíveis somente se levarmos emconsideração a sua concepção de mundo e seusistema de valores. Não é por acaso que estaclasse surgiu inicialmente no Ocidente. ParaWeber, seu surgimento é devido a uma série demudanças culturais ligadas ao nascimento doprotestantismo.

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O que Max Weber pretende estudar nestaobra não é a origem do capitalismo, no sentidomais amplo do termo, mas a formação da cultu-ra - que ele chama de "espírito" - de uma novaclasse de empresários que criou, de certa manei-ra, o capitalismo moderno:

Conseqüentemente, em uma história universalda civilização, o problema central - mesmo doponto de vista puramente econômico - nãoserá. para nós, em última análise, o desenvolvi-mento da atividade capitalista enquanto talf ati-vidade que tem uma forma diferente de acordocom as civilizações [...]; mas, o desenvolvimen-to do capitalismo de empresa burguês comsua organização racional do trabalho livre, ou,para nos exprimirmos cm termos de históriadas civilizações, nosso problema será o do nas-cimento da ciasse burguesa ocidental com seustraços distintivos [(1905) 1964, p. 17 -18).

Mais do que a grande burguesia tradicio-nal, a classe que vai desempenhar um papel de-cisivo no progresso do capitalismo moderno, éa média burguesia./'classe em plena ascensãona qual se recrutavam principalmente os em-presários" \ibid. nota l,p.67] no começo da eraindustrial. É ela que se encontra em maior ade-quação com o sistema de valores do capitalismomoderno e que vai contribuir mais eficazmentepara sua difusão:

[...] no começo dos tempos modernos, os em-presários não foram os únicos portadores ou osprincipais apóstolos do que chamamos aqui deespírito do capitalismo, mas este papel coubeprincipalmente às camadas da classe média in-dustrial que procuravam uma ascensão [(1905)

1964, p. 67j.

O que caracteriza esta classe média, segun-do os próprios termos de Max Weber, é um "es-tilo de vida", um "modo de vida", ou seja, umacultura particular, baseada em um novo ethos(novos costumes), que constitui uma rupturacom os princípios tradicionais. Este ethos é de-finido por Weber como um "ascetismo secular".

O ethos capitalista implica uma ética daconsciência profissional e uma valorização dotrabalho como atividade que tem um fim em simesma. O trabalho não é somente um meiopelo qual se obtêm os recursos necessários paraviver. O trabalho dá sentido à vida. Pelo traba-lho, a partir de agora "livre" devido à introduçãodo salário, o homem moderno se realiza en-quanto pessoa livre e responsável.

O trabalho torna-se um valor central donovo modo de vida, o que supõe que se dediquea ele o essencial da energia e do tempo, isto nãoimplica, no entanto, que o enriquecimento pes-soal seja o objetivo procurado. O enriquecimen-to como fim em si mesmo não é característicodo capitalismo moderno.Ao contrário, busca-seo lucro (medido pela rentabilidade do capital in-

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vestido) e a acumulação do capital. Isto supõe,da parte dos indivíduos, uma certa forma de "as-cese",de comedimento e de discreção,muito di-ferentes da lógica da prodigalidade e da ostenta-ção do sentido tradicional da honra. Os indiví-duos não devem se acomodar com seus ganhosnem se deixar levar por um usufruto estéril deseus bens. Eles devem usar seus lucros de umamaneira socialmente útil, isto é, convertendo-osem investimentos. As novas virtudes secularesreconhecidas são o sentido de poupança, deabstinência, de esforço, que são o fundamentoda disciplina das sociedades industriais.

Quem são estes novos empresários que in-troduzem uma nova forma de comportamentosocial e econômico? Max Weber responde quesão os protestantes puritanos que apenas trans-formam o ascetismo religioso em um ascetismosecular. O espírito do capitalismo só pode sercompreendido ao se revelar sua fonte de inspi-ração: o ascetismo protestante que de uma cer-ta forma lhe garante sua legitimidade. A Refor-ma, e sobretudo o calvinismo, lançaram a idéiaque a "vocação" do cristão se realiza no melhorexercício cotidiano de sua profissão do que navida monástica. Através de seu trabalho, o ho-mem contribui para manifestar a glória de Deus.Ele não tem nenhum meio de obter, por si só, agraça de Deus, e ainda menos por meio de prá-ticas mágicas ou supersticiosas em menor oumaior grau. Ele só pode se submeter a seu desti-no e servir a Deus através de seu comportamen-

to ascético e de seu ardor no trabalho. Nestaperspectiva, o sucesso profissional é interpreta-do como um sinal de eleição divina. Só diantede Deus, liberado da tutela da Igreja, o indivíduotorna-se uma pessoa totalmente responsãvel.

Weber constata então uma congruênciaentre a ética da Reforma protestante e o espíri-to do capitalismo moderno. Tudo se passoucomo se o purítanismo calvinista tivesse criadoum ambiente cultural favorável ao desenvolvi-mento do capitalismo pela difusão dos valoresascéticos secularizados. Isto explica porque sãoos indivíduos culturalmente marcados pelo pro-testantismo que formam inicialmente a classedos novos empresários. O ethos protestante per-mite compreender a lógica comum de compor-tamentos que poderiam parecer contraditórios:o desejo do capitalista de acumular riquezas esua recusa em usufruí-las.

Através de "um longo, um perseveranteprocesso de educação" [íbtd. p. 63], o ethos ca-pitalista ganha progressivamente outros grupossociais, inclusive os operários, até se estendersobre o conjunto da sociedade. Esta extensão éacompanhada de uma "racionalização" da vidasocial e da vida econômica, submetidas a umaorganização cada vez mais metódica e até cien-tífica, que tenta ultrapassar a ordem do afetivo edo emocional.

Contrariamente ao que escreveram algunsde seus detratores, o projeto de Weber não eraexplicar o capitalismo pelo protestantismo. Ele

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pretendia somente observar e compreenderuma certa "afinidade eletiva" entre a ética puri-tana e o espírito do capitalismo. Ele queria tam-bém demonstrar que os problemas simbólicos eideológicos são dotados de uma relativa autono-mia e podem exercer uma real influência sobrea evolução dos fenômenos sociais e econômi-cos. Fazendo isto, ele se opunha à tese do "mate-rialismo histórico" que ele considerava "simplis-ta". Segundo esta tese, as idéias, os valores e asrepresentações seriam apenas o reflexo ou a su-perestrutura, de situações econômicas dadas[ibid.,p. 52].

A cultura operária

Na França, as pesquisas sobre as culturasde classe trataram principalmente da culturaoperária. Para Michel Bozon,

é talvez a fraca visibilidade social da classe[operária], junto à sua grande acessibilidade,quê atraem os pesquisadores de ciências so-ciais para o que eles pensam ser uma terra in-cógnita [l 985, p. 46}.

A análise da cultura operária deve muito aostrabalhos precursores de Maurice Halbwachs, emparticular à sua tese intitulada A Classe Operáriae os Níveis de Vida, publicada em 1913. Para ele,as necessidades que orientam as práticas culturaisdos indivíduos são determinadas pelas relações

de produção. Analisando a estrutura de uma sériede orçamentos de famílias operárias, ele estabele-ceu um vínculo entre a natureza do trabalho ope-rário e as formas do consumo operário.

Richard Hoggart, um pesquisador inglêsde origem operária, produziu uma das mais mi-nuciosas descrições da cultura operária e umadas mais finas análises de sua relação com a cul-tura "letrada" burguesa. Em seu livro publicadoem 1957 e que se tornou um clássico,^! Cultu-ra do Pobre; Estudo sobre o estilo de vida dasclasses populares na Inglaterra, Hoggart se de-dica a uma etnografia da vida cotidiana até seusdetalhes mais íntimos, fazendo aparecer a espe-cificidade sempre atual da cultura operária,apesar das mudanças importantes ocorridasdesde o começo do século nas condições mate-riais de vida dos operários e no desenvolvimen-to da comunicação de massa. O sentimento fre-qüente de vinculação a uma comunidade devida e de destino provoca uma bipartição fun-damental do mundo social entre "eles" e "nós".Esta bipartição se traduz por um grande confor-mismo cultural e, de maneira muito concreta,pelas escolhas orçamentárias que dão priorida-de aos bens que se prestam a uma utilização co-letiva e, por isso mesmo, ao reforço da solida-riedade familiar.

Praticamente não existem mais, nos diasde hoje, comunidades operárias no sentido es-trito, agrupadas em um mesmo bairro, desenvol-vendo uma sociabilidade intensa de vizinhança

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e reunindo toda a população em intervalos re-gulares nas festas coletivas. O particularismocultural operário, seja na linguagem, nas roupas,nas casas, etc. tornou-se menos visível sem, noentanto, ter desaparecido. A "privatização" dosmodos de vida operária se acentuou, com umforte recuo para o espaço familiar. No entanto,esta evolução, estudada particularmente porOHvier Schwartz, não representa o declíniopuro e simples dos espaços sociais em benefí-cio dos espaços privados, mas significa que osespaços privados fazem atualmente uma con-corrência muito mais fortes aos espaços sociais.Por outro lado, o próprio espaço privado operá-rio é organizado segundo normas específicas: avida familiar cotidiana é especialmente marcadapor uma estrita divisão sexual dos papéis[Schwartz, 1990]. De uma maneira geral, comoobserva Jean-Pierre Terrail, as evoluções cultu-rais que acompanham a entrada dos operáriosno que ele chama de "a era da abundância" sãomais uma adaptação das antigas normas do quea adoção de novas normas tomadas do exterior[Terrail, 1990].

As pesquisas sobre a cultura burguesa, nosentido etnológico do termo, são bem mais re-centes. Este atraso deve-se a vários fatores, prin-cipalmente os fatores metodológicos.Ao contrá-rio do mundo operário, a burguesia produz inú-

meras representações de si mesma, representa-ções literárias, cinematográficas, jornalísticas.No entanto, pretendendo conservar o domíniode sua própria representação, ela se defendecuidadosamente contra a curiosidade dos pes-quisadores e de sms análises. Por outro lado,uma das características dos burgueses enquantoindivíduos, é o fato de não se reconheceremcomo tais, de recusarem que os qualifiquem poreste termo.A cultura burguesa é raramente umacultura que as pessoas reivindicam e da qual seorgulham. Daí a dificuldade de estudá-la de ma-neira empírica.

Devemos a Beatrix Lê Wita uma das pri-meiras abordagens etnográficas da cultura bur-guesa, ao fazer uma pesquisa principalmente so-bre os colégios particulares católicos Sainte-Marie de Paris e de Neuilly, e sobre as mulheressaídas destas instituições. Para analisar a culturaburguesa, ela toma três elementos fundamen-tais: a atenção dada aos detalhes e, em particularao detalhe vestimentar, estas "pequenas coisas"que mudam tudo e fazem a "distinção"; o con-trole de si mesmo, que vem do ascetismo e queMax Weber considerava como uma propriedadeessencial da burguesia capitalista; enfim, a ri-tnalização das práticas da vida cotidiana, entreas quais as boas maneiras à mesa tomaram umagrande importância:

A refeição é, de fato, vivida conscientementecomo um momento privilegiado de socializa-

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çao em torno do qual se concentra e se trans-mite o conjunto dos signos distintivos do gru-po familiar burguês [LeWita, 1988, p. 84].

A estes três elementos ela acrescenta umoutro, igualmente característico: a manutençãoe o uso constante de uma memória familiar, pro-funda e precisa.

Outras pesquisas realizadas nos anosoitenta, completam e especificam este quadroda cultura burguesa e evidenciam a função pri-mordial da socialização das instituições priva-das, freqüentemente as escolas católicas, cujomodelo histórico é o colégio jesuíta, comple-mento muito eficaz da educação familiar [Saint-Martin, 1990;Faguer, 1991].

.Bourdieu e u noção de "habiíus"

Nas suas análises sobre as diferenças cultu-rais que opõem os grupos sociais, sejam as sóciedades industrializadas ou as chamadas socie-dades tradicionais, como a sociedade kabyla,por exemplo, à qual Pierre Bourdieu dedica vá-rios trabalhos, ele usa raramente o conceito an-tropológico de cultura. Em seus textos, a palavra"cultura" é tomada geralmente em um sentidomais restrito e mais clássico, que remete às"obras culturais", isto é, aos produtos simbólicossocialmente valorizados ligados ao domínio dasartes e das letras. Bourdieu é considerado comoum dos principais representantes da sociologia

da cultura (que adota a acepção restrita do ter-mo), porque se dedica à elucidação dos meca-nismos sociais que dão origem à criação artísti-ca e dos que explicam os diferentes modos deconsumo da cultura (no sentido restrito), segun-do os grupos sociais. Para suas análises, as práti-cas culturais estão estreitamente ligadas à estra-tificação social.

Bourdieu trata da cultura no sentido antro-pológico, recorrendo a um outro conceito, o"habitus". Ele não foi propriamente seu criador(ver Héran [1987]), mas o pesquisador que ousou de maneira mais sistemática. Em sua obraO Sentido Pratico ele explica mais detalhada-mente sua concepção do "habitus":

[os habitus] são sistemas de disposições durá-veis e transponíveis, estruturas estruturadaspredispostas a funcionar como estruturas es-truturantes, isto é, a funcionar como princípiosgeradores e organizadores de práticas e de re-presentações que podem ser objetivamenteadaptadas a seu objetivo sem supor que se te-nham em mira conscientemente estes fins e ocontrole das operações necessárias para obtê-los[...] [1980a, p. 88].

As disposições tratadas aqui são adquiridaspor uma série de condicionamentos próprios acertos modos de vida particulares. O habitus é oque caracteriza uma classe ou um grupo socialem relação aos outros que não partilham das

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mesmas condições sociais. Às diferentes posi-ções em um espaço social dado correspondemestilos de vida que são a expressão simbólicadas diferenças inscritas objetivamente nas con-dições de existência.

Bourdieu afirma que o "habitus funcionacomo a material! zação da memória coletiva quereproduz para os sucessores as aquisições dosprecursores" [1980a, nota 4, p. 91]- Ele permiteao grupo "perseverar em seu ser" \lbid. ]. O habi-tus é profundamente interiorizado e não impli-ca consciência dos indivíduos para ser eficaz.Ele é "capaz de inventar meios novos de desem-penhar as antigas funções diante de situa-çõesnovas" \ibid.~\. Ele explica porque os membrosde uma mesma classe agem freqüentemente demaneira semelhante sem ter necessidade de en-trar em acordo para isso.

O habitus é então o que permite aos indi-víduos se orientarem em seu espaço social eadotarem praticas que estão de acordo com suavinculação social. Ele torna possível para o indi-víduo a elaboração de estratégias antecipadorasque são guiadas por esquemas inconscientes,"esquemas de percepção, de pensamento e deação" \ibld. p. 91] que resultam do trabalho deeducação e de socialização ao qual o indivíduoestá submetido e de "experiências primitivas"que a ele estão ligadas e que têm um "peso des-mesurado" [ibid.,p. 90] em relação às experiên-cias posteriores.

O habitus é também incorporação da me-mória coletiva, em seu sentido próprio. As dis-posições duráveis que caracterizam o habitussão também disposições corporais que consti-tuem a"hexis corporal" (a palavra latina habitusé a tradução do grego bexis), Estas disposiçõesformam uma relação com o corpo que dá a cadagrupo um estilo particular. Mas Bourdieu obser-va que a hexis corporal é muito mais que um es-tilo próprio. Ela é uma concepção de mundo so-cial "incorporada", uma moral incorporada.Cada pessoa, por seus gestos e suas posturas, re-vela o habitus profundo que o habita, sem se darconta e sem que os outros tenham necessa-riamente consciência disso. Pela hexis corporal,as características sociais são de certa forma "na-turalizadas" : o que parece e o que é vivido como"natural" depende, na realidade de um habitus.Esta "naturalização" do social é um dos mecanis-mos que garantem mais eficazmente a perenida-de do habitus.

A homogeneidade dos habitus de grupoou de classe, que garante a homogeneização dosgostos, é o que torna imediatamente inteligíveise previsíveis as preferências e as práticas, "con-sideradas como evidentes" [1980a, p. 97]. Reco-nhecer a homogeneidade dos habitus de classenão implica negação da diversidade dos "estilospessoais". No entanto, estas variantes indi-viduais devem ser compreendidas, segundoBourdieu, como "variantes estruturais" pelas

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quais se revela"a singularidade da posição no in-terior da classe e da trajetória" [íbid.,p. 101].

A noção de "trajetória social" permite queBourdieu escape de uma concepção fixista dohabitus. Para ele, o habitus não é um sistema rí-gido de disposições que determinariam de ma-neira mecânica as representações e as ações dosindivíduos e que garantiria a reprodução socialpura e simpIes.As condições sociais do momen-to não explicam totalmente o habitus, que é su-cetível de modificações. A trajetória social dogrupo ou do indivíduo, ou seja, a experiência demobilidade social (ascensão ou queda de nívelsocial, ou ainda a estagnação) acumulada por vá-rias gerações e interiorizada, deve ser levada emconta para analisar as variações do habitus.

Cultura e Identidade

O conceito de cultura obteve, há algumtempo, um, grande sucesso fora do círculo es-treito das ciências sociais, há, no entanto, um ou-tro termo que é freqüentemente associado a ele- a "identidade" - cujo uso é cada vez mais fre-qüente, levando certos analistas a verem nesteuso o efeito de uma verdadeira moda [Galissot,1987]. Resta saber o que se entende por "identi-dade" e que significa esta "moda" das identida-des, alias, em grande parte alheia ao desenvolvi-mento da pesquisa científica.

Atualmente, as grandes interrogações so-bre a identidade remetem freqüentemente àquestão da cultura. Há o desejo de se ver cultu-ra em tudo, de encontrar identidade para todos.Vêem-se as crises culturais como crises de iden-tidade. Chega-se a situar o desenvolvimento des-ta problemática no contexto do enfraquecimen-to do modelo de Estado-nação, da extensão daintegração política supranacional e de certa for-ma da globalização da economia. De maneiramais precisa, a recente moda da identidade é oprolongamento do fenômeno da exaltação dadiferença que surgiu nos anos setenta e que le-vou tendências ideológicas muito diversas e atéopostas a fazer a apologia da sociedade multi-cultural, por um lado, ou, por outro lado, a exal-

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tação da idéia de "cada um por si para mantersua identidade".

Não se pode, pura e simplesmente confun-dir as noções de cultura e de identidade culturalainda que as duas tenham uma grande ligação.Em última instância, a cultura pode existir semconsciência de identidade, ao passo que as es-tratégias de identidade podem manipular e atémodificar uma cultura que não terá então quasenada em comum com o que ela era anterior-mente. A cultura depende em grande parte deprocessos inconscientes. A identidade remete auma norma de vinculação, necessariamenteconsciente, baseada em oposições simbólicas.

No âmbito das ciências sociais, o conceitode identidade cultural se caracteriza por sua po-lissemia e sua fluidez. Apesar de seu surgimentorecente, este conceito teve diversas definições ereinterpretações. Nos Estados Unidos, na décadade cinqüenta, conceituou-se a idéia de identida-de cultural. Equipes de pesquisa em psicologiasocial buscavam então um instrumento adequa-do para analisar os problemas de integração dosimigrantes. Esta abordagem que concebia a iden-tidade cultural como praticamente imutável edeterminando a conduta dos indivíduos, seriaem seguida ultrapassada por concepções maisdinâmicas que não vêem a identidade como umdado independente do contexto relacionai.

A questão da identidade cultural remete,em um primeiro momento, à questão maisabrangente da identidade social, da qual ela é um

dos componentes. Para a psicologia social, aidentidade é um instrumento que permite pen-sar a articulação do psicológico e do social emum indivíduo. Ela exprime a resultante das diver-sas interações entre o indivíduo e seu ambientesocial, próximo ou distante. A identidade socialde um indivíduo se caracteriza pelo conjunto desuas vinculações em um sistema social: vincula-ção a uma classe sexual, a uma classe de idade, auma classe social, a uma nação, etc. A identidadepermite que o indivíduo se localize em um siste-ma social e seja localizado socialmente.

Mas a identidade social não diz respeitounicamente aos indivíduos. Todo grupo é dota-do de uma identidade que corresponde à suadefinição social, definição que permite situá-lono conjunto sociaLA identidade social é ao mes-mo tempo inclusão e exclusão: ela identifica ogrupo (são membros do grupo os que são idên-ticos sob um certo ponto de vista) e o distinguedos outros grupos (cujos membros são diferen-tes dos primeiros sob o mesmo ponto de vista).Nesta perspectiva, a identidade cultural aparececomo uma modalidade de categorização da dis-tinção nós/eles, baseada na diferença cultural.

As concepções objetivistus esubjetivistas da identidade cultural

Há uma estreita relação entre a concepçãoque se faz de cultura e a concepção que se temde identidade cultural. Aqueles que integram a

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cultura a uma "segunda natureza", que recebe-mos como herança e da qual não podemos esca-par, concebem a identidade como um dado quedefiniria de uma vez por todas o indivíduo eque o marcaria de maneira quase indelével. Nes-ta perspectiva, a identidade cultural remeterianecessariamente ao grupo original de vincula-ção do indivíduo. Á origem, as "raízes" segundoa imagem comum, seriam o fundamento de todaidentidade cultural, isto é, aquilo que definiria oindivíduo de maneira autêntica. Esta representa-ção quase genética da identidade que serve deapoio para ideologias do enraizamento, leva à"naturalização77 da vinculação cultural. Em ou-tras palavras, a identidade seria preexistente aoindivíduo que não teria alternativa senão aderira ela, sob o risco de se tornar um marginal, umMesenraizado". Vista desta maneira, a identida-de é uma essência impossibilitada de evoluir esobre a qual o indivíduo ou o grupo não tem ne-nhuma influência.

Em última instância, a problemática da ori-gem aplicada à identidade cultural pode levar auma racialização dos indivíduos e dos grupos,pois para algumas teses radicais, a identidadeestá praticamente inscrita no patrimônio genéti-co (ver, sobretudo, Van den Berghe [1981J). Oindivíduo, devido a sua hereditariedade biológi-ca, nasce com os elementos constitutivos daidentidade étnica e cultural, entre os quais os ca-racteres fenotípicos e as qualidades psicológi-cas que dependem da "mentalidade", do "gênio"

próprio do povo ao qual ele pertence. A identi-dade repousa então em um sentimento de "fazerparte" de certa forma inato. A identidade é vistacomo uma condição imanente do indivíduo, de-finindo-o de maneira estável e definitiva.

Em uma abordagem culturalista, a ênfasenão é colocada sobre a herança biológica, nãomais considerada como determinante, mas, naherança cultural, ligada à socialização do indiví-duo no interior de seu grupo cultural. Entretan-to, o resultado é quase o mesmo, pois segundoesta abordagem, o indivíduo é levado a interiori-zar os modelos culturais que lhe são impostos,até o ponto de se identificar com seu grupo deorigem. Ainda assim a identidade é definidacomo preexistente ao indivíduo. Toda identida-de cultural é vista como consubstanciai comuma cultura particular. Os pesquisadores tenta-rão então fazer a lista dos atributos culturais quedeveriam servir de base à identidade coletiva,Procurarão determinar as invariantes culturaisque permitem definir a essência do grupo, ouseja, sua identidade "essencial", praticamenteinvariável.

Outras teorias de identidade cultural, cha-madas de "primordialistas", consideram que aidentidade etno-cultural é primordial porquea vinculação ao grupo étnico é a primeira e amais fundamental de dotas as vinculaçÕes so-ciais. É onde se estabelecem os vínculos maisdeterminantes porque se trata de vínculos ba-seados em uma genealogia comum (ver, sobre-

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tudo Geetz [1963]). É no grupo étnico que separtilham as emoções e as solidariedades maisprofundas e mais estruturantes. Definida destemodo, a identidade cultural é vista como umapropriedade essencial inerente ao grupo por-que é transmitida por ele e no seu interior, semreferências aos outros grupos. A identificação éautomática, pois tudo está definido desde seucomeço.

O que une estas duas teorias é uma mesmaconcepção objetivista da identidade cultural.Trata-se em todos os casos da definição e da des-crição da identidade a partir de um certo núme-ro de critérios determinantes, consideradoscomo "objetivos", como a origem comum (a he-reditariedade, a genealogia), a língua, a cultura, areligião, a psicologia coletiva (a "personalidadebásica"), o vínculo com um território, etc. Paraos objetivistas, um grupo sem língua própria,sem cultura própria, sem território próprio, emesmo, sem fenótipo próprio, não pode preten-der constituir um grupo etno-cultural. Não podereivindicar uma identidade cultural autêntica.

Estas definições são muito criticadas pelosque defendem uma concepção subjetivista dofenômeno de identidade. A identidade cultural,segundo eles, não pode ser reduzida à sua di-mensão atributíva: não é uma identidade recebi-da definitivamente. Encarar o fenômeno destaforma é considerá-lo como um fenômeno estáti-co, que remete a uma coletividade definida demaneira invariável, ela também quase imutável.

Ora, para os "subjetivístas", a identidade etno-cultural não é nada além de um sentimento devinculaçao ou uma identificação a uma coletivi-dade imaginária em maior ou menor grau. Paraestes analistas, o importante são então as repre-sentações que os indivíduos fazem da realidadesocial e de suas divisões.

Mas o ponto de vista subjetivista levado aoextremo leva à redução da identidade a umaquestão de escolha individual arbitrária, em quecada um seria livre para escolher suas identifica-ções. Em última instância, segundo este pontode vista, tal identidade particular poderia seranalisada como uma elaboração puramente fan-tasiosa, nascida da imaginação de alguns ideólo-gos que manipulam as massas crédulas, buscan-do objetivos nem sempre confessãveis. A abor-dagem subjetivista tem o mérito de considerar ocaráter variável da identidade, apesar de ter atendência a enfatizar excessivamente o aspectoefêmero da identidade. Não é raro, no entanto,que as identidades sejam relativamente estáveis.

A concepção relacionai e situacional

Adotar uma abordagem puramente objetivaou puramente subjetiva para abordar a questãoda identidade seria se colocar em um impasse. Se-ria raciocinar fazendo a abstração do contexto re-lacionai. Somente este contexto poderia explicarporque, por exemplo, em dado momento talidentidade é afirmada ou, ao contrário, reprimida.

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Se a identidade é uma construção social enão um dado, se ela é do âmbito da representa-ção, isto não significa que ela seja uma ilusãoque dependeria da subjetividade dos agentes so-ciais. A construção da identidade se faz no inte-rior de contextos sociais que determinam a po-sição dos agentes e por isso mesmo orientamsuas representações e suas escolhas. Além dis-so, a construção da identidade não é uma ilusão,pois é dotada de eficácia social, produzindo efei-tos sociais reais.

A identidade é uma construção que se ela-bora em uma relação que opõe um grupo aosoutros grupos com os quais está em contato.Deve-se esta concepção de identidade como ma-nifestação relacionai à obra pioneira de FrederikBarth [19691- Esta concepção permite ultrapas-sar a alternativa objetivismo/subjetivismo. ParaBarth, deve-se tentar entender o fenômeno daidentidade através da ordem das relações entreos grupos sociais. Para ele, a identidade é ummodo de categorização utilizado pelos grupospara organizar suas trocas.Também, para definira identidade de um grupo, o importante não é in-ventariar seus traços culturais distintivos, mas lo-calizar aqueles que são utilizados pelos mem-bros do grupo para afirmar e manter uma distin-ção cultural. Uma cultura particular não produzpor si só uma identidade diferenciada: esta iden-tidade resulta unicamente das interações entreos grupos e os procedimentos de diferenciaçãoque eles utilizam em suas relações.

Em conseqüência disto, para Barth, osmembros de um grupo não são vistos como de-finitivamente determinados por sua vinculaçãoetno-cultural, pois eles são os próprios atoresque atribuem uma significação a esta vincula-ção, em função da situação relacionai em queeles se encontram. Deve-se considerar que aidentidade se constrói e se reconstrói constan-temente no interior das trocas sociais. Esta con-cepção dinâmica se opõe àquela que vê a iden-tidade como um atributo original e permanenteque não poderia evoluir. Trata-se então de umamudança radical de problemática que coloca oestudo da relação no centro da análise e nãomais a pesquisa de uma suposta essência quedefiniria a identidade.

Não há identidade em si, nem mesmo uni-camente para si.A identidade existe sempre emrelação a uma outra. Ou seja, identidade e alteri-dade são ligadas e estão em uma relação dialéti-ca. A identificação acompanha a diferenciação.Na medida em que a identidade é sempre a re-sultante de um processo de identificação no in-terior de uma situação relacionai, na medidatambém em que ela é relativa, pois pode evoluirse a situação relacionai mudar, seria talvez prefe-rível adotar como conceito operatório para aanálise o conceito de "identificação" do que a"identidade" [Galissot, 1987].

A identificação pode funcionar como afir-mação ou como imposição de identidade. Aidentidade é sempre uma concessão, uma nego-

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ciação entre uma "auto-identidade" definida porsi mesmo e uma "hetero-identidade" ou uma"exo-ídentidade" definida pelos outros [Simon,1979, p. 24]. A "hetero-identidade" pode levar aidentificações paradoxais: por exemplo, na Amé-rica Latina, no fim do século XIX e no começodo século XX, os imigrantes sírio-libaneses, emgeral cristãos, que fugiam do Império Otomano,foram chamados (e continuam a sê-lo) de Tur-cos, porque chegavam com um passaporte tur-co, ao passo que eles não desejavam justamentese reconhecer como turcos. O mesmo aconte-ceu com os Judeus orientais que emigrarampara a América Latina na mesma época.

A auto-identídade terá maior ou menor le-gitimidade que a hetero-identidade, dependendoda situação relacionai, isto é, em particular da re-lação de força entre os grupos de contato - quepode ser uma relação de forças simbólicas . Emuma situação de dominação caracterizada, a he-tero-identidade se traduz pela estigmatizaçãodos grupos minoritários. Ela leva freqüentemen-te neste caso ao que chamamos uma "identidadenegativa". Definidos como diferentes em relaçãoà referência que os majoritários constituem, osminoritários reconhecem para si apenas uma di-ferença negativa. Também pode-se ver o desen-volvimento entre eles dos fenômenos de despre-zo por si mesmos. Estes fenômenos são freqüen-tes entre os dominados e são ligados à aceitaçãoe à interiorização de uma imagem de si mesmosconstruída pelos outros. A identidade negativa

aparece então como uma identidade vergonhosae rejeitada em maior ou menor grau, o que se tra-duzirá muitas vezes como uma tentativa para eli-minar, na medida do possível, os sinais exteri-ores da diferença negativa.

No entanto, uma mudança da situação derelações interétnicas pode modificar profunda-mente a imagem negativa de um grupo. Istoaconteceu com os Hmong, refugiados do Laosna França nos anos setenta. No Laos, onde elesconstituíam uma minoria étnica muito margina-lizada, eram conhecidos pela denominação de"Méo", que lhes fora atribuída pelos Lao, grupomajoritário. Para eles, o termo era sinônimo de"selvagem", de "retardado". Na França, eles pu-deram impor seu próprio etnônimo, "Hmong",que significa simplesmente "homem" em sua lín-gua. Impuseram sobretudo uma representaçãomuito mais positiva de si mesmos, participando,como a maioria dos refugiados do SudesteAsiático, da imagem do "bom estrangeiro", adap-tável e trabalhador. Outro benefício simbólicodeste exílio que é uma realidade, no entanto,fundamentalmente dolorosa: os Hmong gozamde um nivelamento interétnico no interior doconjunto dos refugiados do Laos e se encon-tram, na França, classificados socialmente nomesmo nível que os Lao e os Sino-Laosensesque os desprezavam no Laos [Hassoun, 1988].

A identidade é então o que está em jogonas lutas sociais. Nem todos os grupos têm omesmo "poder de identificação", pois esse

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poder depende da posição que se ocupa no sis-tema de relações que liga os grupos. Nem todosos grupos têm o poder de nomear e de se no-mear. Bourdieu explica no clássico artigo "Aidentidade e a representação" [1980] que so-mente os que dispõem de autoridade legítima,ou seja, de autoridade conferida pelo poder, po-dem impor suas próprias definições de si mes-mos e dos outros. O conjunto das definições deidentidade funciona como um sistema de classi-ficação que fixa as respectivas posições de cadagrupo. A autoridade legítima tem o poder sim-bólico de fazer reconhecer como fundamenta-das as suas categorias de representação da reali-dade social e seus próprios princípios de divi-são do mundo social. Por isso mesmo, esta auto-ridade pode fazer e desfazer os grupos.

Deste modo, nos Estados Unidos, o grupo do-minante WASP (White Anglo-Saxon Protestanf)classifica os outros americanos na categoria de"grupos étnicos" ou na categoria de "grupos ra-ciais". Ao primeiro grupo pertencem os descen-dentes de imigrantes europeus não WASP; ao se-gundo grupo, os americanos chamados "de cor"(Negros, Chineses Japoneses, Portoriquenhos, Me-xicanos. ..). Segundo esta definição, os "étnicos" sãoos outros, os que se afastam de uma maneira ou deoutra da referência de identidade americana. OsWASP escapam por um passe de mágica social aesta identificação étnica e racial. Eles estão fora dequalquer classificação, por estarem evidentementemuito "acima" dos classificados.

O poder de classificar leva à "etnicização"dos grupos subalternos. Eles são identificados apartir de características culturais exteriores quesão consideradas como sendo consubstanciais aeles e logo, quase imutáveis. O argumento desua marginalização e até de sua transformaçãoem minoria vem do fato de que eles são muitodiferentes para serem plenamente associados àdireção da sociedade. Pode-se ver que a imposi-ção de diferenças significa mais a afirmação daúnica identidade legítima, a do grupo dominan-te, do que o reconhecimento das especificida-des culturais. Ela pode se prolongar em uma po-lítica de segregação dos grupos minoritários,obrigados de certa maneira a ficar em seu lugar,no lugar que lhes foi destinado em função desua classificação.

Compreendida deste modo, como um mo-tivo de lutas, a identidade parece problemática.Não se pode então esperar das ciências sociaisuma definição justa e irrefutável de tal ou talidentidade cultural. Não é a sociologia ou a an-tropologia, nem a história ou outra disciplinaque deverá dizer qual seria a definição exata daidentidade bretã ou da identidade kabyla, porexemplo. Não é a sociologia que deve se pro-nunciar sobre o caráter autêntico ou abusivo detal identidade particular (em nome de que prin-cípio ela faria isto?). Não é o cientista que devefazer"controles de identidade". O papel do cien-tista é outro: ele tem o dever de explicar os pro-cessos de identificação sem julgá-los. Ele deve

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elucidar as lógicas sociais que levam os indiví-duos e os grupos a identificar, a rotular, a catego-rizar, a classificar e a fazê-lo de uma certa manei-ra ao invés de outra.

A identidade, um assunto de Estado

Com a edificação dos Estados-Nações mo-dernos, a identidade tornou-se um assunto deEstado. O Estado torna-se o gerente da identida-de para a qual ele instaura regulamentos e con-troles. A lógica do modelo do Estado-Nação oleva a ser cada vez mais rígido em matéria deidentidade. O Estado moderno tende à mono-identificação, seja por reconhecer apenas umaidentidade cultural para definir a identidade na-cional (é o caso da França), seja por definir umaidentidade de referência, a única verdadei-ramente legítima (como no caso dos EstadosUnidos), apesar de admitir um certo pluralismocultural no interior de sua nação.A ideologia na-cionalista é uma ideologia de exclusão das dife-renças culturais. Sua lógica radical é a da "purifi-cação étnica".

Nas sociedades modernas, o Estado regis-tra de maneira cada vez mais minuciosa a iden-tidade dos cidadãos, chegando em certos casosa fabricar carteiras de identidade "infalsifícá-veis". Os indivíduos e os grupos são cada vezmenos livres para definir suas próprias identida-des. Alguns Estados pluriétnicos impõem aosseus cidadãos a menção de uma identidade

etno-cultural ou confessional em sua carteira deidentidade, mesmo que alguns deles não sç re-conheçam nesta identificação. Em caso de con-flito entre diferentes componentes da nação,esta rotulação pode ter conseqüências dramáti-cas, como se viram no conflito libanês ou noconflito em Ruanda.

A tendência à mono-identificação, à identi-dade exclusiva, ganha terreno em muitas socie-dades contemporâneas. A identidade coletiva éapresentada no singular, seja para si ou para osoutros. Quando se trata dos outros, isto permitetodas as generalizações abusivas. O artigo defini-do identificador permite reduzir um conjuntocoletivo a uma pesonalidade cultural única,apresentada geralmente de forma depreciativa:"O Árabe é assim...""Os Africanos são assiru...".

O Estado-Nação moderno se mostra infi-nitamente mais rígido em sua concepção e emseu controle da identidade que as sociedadestradicionais. Ao contrário da idéia preconcebi-da, as identidades elno-culturais nestas socie-dades não eram definidas de uma vez por to-das. Deste modo, pode-se chamá-las de "socie-dades com identidade flexível" [Amselle,1990], Estas sociedades deixam um grande es-paço para a novidade e para a inovação social.Nelas, os fenômenos de fusão ou cisão étnicassão comuns e não implicam necessariarnenteconflitos agudos.

Não se pode, no entanto acreditar que aação do Estado não provoque nenhuma

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por parte dos grupos minoritários cuja identida-de é negada ou desvalorizada. O aumento dasreivindicações de identidade que se pode obser-var em muitos Estados contemporâneos é a con-seqüência da centralização e da burocratizaçãodo poder. A exaltação da identidade nacionalpode levar somente a uma tentativa de subver-são simbólica contra a afimaçao da identidade.Segundo o enunciado de Pierre Bourdieu:

[...] os indivíduos e os grupos investem nas lu-tas de classificação todo o seu ser social, tudoo que define a idéia que eles fazem de si mes-mos, tudo o que os constitui como "nós" emoposição a "eles"e aos "outros"e tudo ao queeles têm um apreço e uma adesão quase cor-poral. O que explica a força mobilizadora ex-cepcional de tudo o que toca a identidade[1980b,p.69,nota20]

Todo o esforço das minorias consiste emse reapropriar dos meios de definir sua identida-de, segundo seus próprios critérios, e não ape-nas em se reapropriar de uma identidade, emmuitos casos, concedida pelo grupo dominante.Trata-se então da transformação da hetero-iden-tidade que é freqüentemente uma identidadenegativa em uma identidade positiva. Em umprimeiro momento, a revolta contra a estigmati-zação se traduzirá pela reviravolta do estigma,como no caso exemplar do black is beautilful.Em um segundo momento, o esforço consistirá

em impor uma definição tão autônoma quantopossível de identidade (para retomar o exemplodos negros americanos, pode-se observar o sur-gimento da reivindicação de uma identidade"afro-americana" ou de Black Muslims ou aindade Black Hebrews).

O sentimento de uma injustiça coletiva-mente sofrida provoca nos membros do grupovítima de uma discriminação um forte senti-mento de vinculação à coletividade. Quantomaior for a necessidade da solidariedade de to-dos na luta pelo reconhecimento, maior será aidentificação com a coletividade. O risco é noentanto, de sair de uma identidade negada oudesacreditada para cair, por sua vez, em umaidentidade que seria exclusiva, análoga à identi-dade dos que pertencem ao grupo dominante, ena qual todo indivíduo considerado como mem-bro do grupo minoritário deveria se reconhe-cer, sob pena de ser tratado como traidor. Estefechamento em uma identidade etno-cultural,que em certos casos apaga todas as outras iden-tidades sociais de um indivíduo, será mutilantepara ele, na medida em que ela leva à negaçãode sua individualidade, como foi explicado porGeorges Devereux:

[...] quando uma identidade étnica biperinves-tida oblitera todas as outras identidades declasse, ela deixa de ser uma ferramenta ou umacaixa de ferramentas; ela se torna [...] uma ca-misa de força. Na realidade, a realização de uma

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diferenciahüidade coletiva por meio de umaidentidade hiperinvestida e hiperatualizadapode [...] levar a uma obliteração da diferen-ciabilidaáe individual. [...]Atualizando sua identidade étnica hiperinvesti-da, tende-se cada vez mais a minimizar e até anegar sua própria identidade individual. E noentanto, é a dissimilaridade, funcionalmentepertinente, de um homem em relação a todosos outros que o torna humano: semelhante aosoutros precisamente pelo seu alto grau de dife-renciação. É isto que lhe permite atribuir a simesmo"uma identidade humana"e,conseqüen-temente, também uma identidade pessoal[1972, p.162-1631.

A identidade multidimensional

Na medida em que a identidade resulta deuma construção social, ela faz parte da comple-xidade do social. Querer reduzir cada identida-de cultural a uma definição simples^pura", serianão levar em conta a heterogeneidade de todogrupo social. Nenhum grupo, nenhum indivíduoestá fechado a priori em uma identidade unidi-mensiònal. O caráter flutuante que se presta adiversas interpretações ou manipulações é ca-racterístico da identidade. É isto que dificulta adefinição desta identidade.

Querer considerar a identidade como mo-nolítica impede a compreensão dos fenômenosde identidade mista que são freqüentes em toda

sociedade. A pretensa "dupla identidade" dos jo-vens de origem imigrante está ligada, na realida-de, a uma identidade mista [Giraud, 1987). Aocontrário do que afirmam certas análises, estesjovens não têm duas identidades opostas entreas quais eles se sentiriam divididos, o que expli-caria sua perturbação de identidade e sua insta-bilidade psicológica e/ou social. Esta representa-ção nitidamente desqualificante vem da incapa-cidade de pensar o misto cultural. Ela é explica-da também pelo medo obsessivo de uma duplalealdade que é veiculada pela ideologia nacio-nal. Na realidade, como cada um faz a partir desuas diversas vinculações sociais (de sexo, deidade.de classe social,de grupo cultural.,.),o in-divíduo que faz parte de várias culturas fabricasua própria identidade fazendo uma síntese ori-ginal a partir destes diferentes materiais. O re-sultado é, então, uma identidade sincrética enão dupla, se entendermos por isso uma adiçãode duas identidades para uma só pessoa. Comojá foi dito, esta "fabricação" se faz somente emfunção de um contexto de relação específico auma situação particular.

O recurso à noção de "dupla identidade"está ligado às lutas de classificação evocadas an-teriormente. A concepção negativa da "duplaidentidade" permite que se desqualifiquem so-cialmente certos grupos, principalmente as po-pulações vindas da imigração. Num sentido in-verso, será elaborado um discurso para reabili-tar estes grupos, fazendo a apologia da "dupla

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identidade" como algo que representa um enri-quecimento . Mas qualquer que seja a represen-tação da suposta "dupla identidade", positiva ounegativa, ambas estão ligadas ao mesmo erroanalítico.

Os encontros dos povos, as migrações in-ternacionais multiplicaram estes fenômenos deidentidade sincrética cujo resultado desafia asexpectativas, sobretudo quando elas são base-adas em uma concepção exclusiva da identida-de. Para tomar um exemplo, no Maghreb (norteda África) tradicional não é raro que os mem-bros das velhas famílias judias presentes há sé-culos sejam chamados de "Judeus árabes", doistermos que parecem hoje pouco conciliáveisdesde o crescimento dos nacionalismos.

Em um contexto completamente diferen-te, o cio Peru contemporâneo, existem peruanoschamados de Chinos que se reconhecem comotais. São os descendentes dos imigrantes chine-ses, chegados ao Peru no século XIX, após a abo-lição da escravatura. Eles se sentem hoje total-mente peruanos mas continuam muito ligados asua identidade chinesa. Isto não choca no Peru,país que elegeu e reelegeu recentemente um fi-lho de imigrantes japoneses para a presidênciada República, sem que a maioria dos peruanos(mesmo dos que não votaram nele) considereesta eleição uma ameaça para a identidadenacional.

De fato, cada indivíduo integra, de maneirasintética, a pluralidade das referências identifi-

catórias que estão ligadas à sua história. A iden-tidade cultural remete a grupos culturais de re-ferência cujos limites não são coincidentes.Cada indivíduo tem consciência de ter umaidentidade de forma variável, de acordo com asdimensões do grupo ao qual ele faz referênciaem tal ou tal situação relacionai. Um mesmo in-divíduo, por exemplo, pode se definir, segundoo caso, como natural de Rennes, como bretão,como francês, como europeu e talvez até comoocidental. A identidade funciona, por assim di-zer, como as bonecas russas, encaixadas umasnas outras [Simon, 1979, p. 31]. Mas, apesar deser multidimensional, a identidade não perdesua unidade.

Esta identidade com múltiplas dimensõesem geral não causa problema e é bem aceita. Oque causa problema para alguns é a "dupla iden-tidade"cujos pólos de referência estariam si-tuados no mesmo nível. No entanto, não se sabepor que a capacidade de integrar várias referên-cias identificatórias em uma só identidade nãofuncionaria, a menos que uma autoridade domi-nadora a proibisse em nome da identidadeexclusiva.

É verdade que, mesmo no caso de uma in-tegração de duas referências de mesmo nívelem uma só identidade, os dois níveis raramentesão equivalentes, pois remetem a grupos quenão estão quase nunca em uma posição de equi-valência no contexto de uma dada situação.

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Asuestratégiíis de identidade

A identidade é tão difícil de se delimitar ede se definir, precisamente em razão de seu ca-ráter multidimensional e dinâmico. É isto quelhe confere sua complexidade mas também oque lhe dá sua flexibilidade .A identidade conhe-ce variações, presta-se a reformulações e até amanipulações.

Para sublinhar esta dimensão mutável daidentidade que não chega jamais a uma soluçãodefinitiva, certos autores utilizam o conceito de"estratégia de identidade". Nesta perspectiva, aidentidade é vista como um meio para atingirum objetivo. Logo, a identidade não é absoluta,mas relativa. O conceito de estratégia indicatambém que o indivíduo, enquanto ator social,não é desprovido de uma certa margem de ma-nobra. Em função de sua avaliação da situação,ele utiliza seus recursos de identidade de manei-ra estratégica. Na medida em que ela é um mo-tivo de lutas sociais de classificação que buscama reprodução ou a reviravolta das relações dedominação, a identidade se constrói através dasestratégias dos atores sociais.

No entanto, recorrer ao conceito de estraté-gia não deve levar a pensar que os atores sociaissão totalmente livres para definir sua identidadesegundo interesses materiais e simbólicos do mo-mento. As estratégias devem necessariamente le-var em conta a situação social, a relação de forçaentre os grupos, as manobras dos outros, etc. Mes-

mo que a identidade se preste à instrumentaliza-ção por sua plasticidade - segundo Devereux elaseria uma "ferramenta" e até uma "caixa de ferra-mentas" - não é possível aos grupos e aos indiví-duos fazer o que quer que desejem em matériade identidade: a identidade é sempre a resultanteda identificação imposta pelos outros e da que ogrupo ou o indivíduo afirma por si mesmo.

Um tipo extremo de estratégia de identifi-cação consiste em ocultar a identidade preten-dida para escapar à discriminação, ao exílio ouaté ao massacre. Um caso histórico exemplardesta estratégia é o dos Marranos. Os Marranossão os judeus da Península Ibérica que se con-verteram exteriormente ao catolicismo no sécu-lo XV para escapar à perseguição e à expulsão,continuando fiéis à sua fé ancestral e mantendosecretamente um certo número de ritos tradi-cionais. A identidade judaica pôde assim sertransmitida clandestinamente no seio de cadafamília durante séculos, de geração em geração,até poder se afirmar novamente em público.

Emblema ou estigma, a identidade podeentão ser instrumentalizada nas relações entreos grupos sociais.A identidade não existe em simesma, independentemente das estratégias deafirmação dos atores sociais que são ao mesmotempo o produto e o suporte das lutas sociais epolíticas '[Bell, 19751-Ao se enfatizar o caráterestratégico da identidade, pode-se ultrapassar ofalso problema da veracidade científica das afir-mações de identidade.

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Segundo Bourdieu, o caráter estratégico daidentidade não implica necessariamente umaperfeita consciência dos objetivos buscados pe-los indivíduos e tem a vantagem de dar contados fenômenos de eclipse ou de despertar deidentidade. Esses fenômenos suscitam muitoscomentários contestáveis, pois são marcados namaior parte das vezes por um certo essencialis-mo. Por exemplo, o que foi chamado nos anossetenta, na América do Norte e na América doSul, de "despertar índio" não pode ser considera-do como a ressurreição pura e simples de umaidentidade que teria conhecido um eclipse eque teria se mantido invariável (certos autoresevocam de maneira inapropriada um "estado dehibernação" para descrever tal fenômeno).Trata-se na realidade da retnvencão estratégica de umaidentidade coletiva em um contexto completa-mente novo: o contexto do aumento dos movi-mentos de reivindicação das minorias étnicasnos Estados-nações contemporâneas.

De uma maneira mais geral, o conceito deestratégia pode explicar as variações de identi-dade, que poderiam ser chamadas de desloca-mentos de identidade: Ele faz aparecer a relativi-dade dos fenômenos de identificação. A identi-dade se constrói, se desconstrói e se reconstróisegundo as situações. Ela está sem cessar emmovimento; cada mudança social leva-a a se re-formular de modo diferente.

Em um estudo sugestivo, Françoise Morin[1990] analisa as recomposições da identidade

dos haitianos imigrados para Nova York. A pri-meira geração da primeira grande onda migrató-ria (década de sessenta), vinda da elite mulatado Haiti, optará pela assimilação à nação ameri-cana, mas acentuando tudo o que pudesse evo-car uma certa "brancura"e a "distinção" para sediferenciar dos Negros americanos e escapar darelegação social.A segunda onda migratória (dé-cada de setenta), composta essencialmente defamílias da classe média (de cor negra), diantedas dificuldades de integração, escolherá umaoutra estratégia, a da afirmação da identidadehaitiana, para evitar qualquer risco de confusãocom os negros dos Estados Unidos; a utilizaçãosistemática da língua francesa, inclusive em pú-blico, e o esforço para se fazer reconhecercomo grupo étnico específico serão os instru-mentos privilegiados desta estratégia. Quantoaos jovens haitianos, sobretudo os da "segundageração", sensíveis à desvalorização social cadavez maior da identidade haitiana nos anos oiten-ta nos Estados Unidos, devido ao drama dosboat people naufragados na costa da Flórida eda classificação de sua comunidade como "gru-po de risco" no desenvolvimento da Aids, elesrejeitam esta identidade e reivindicam umaidentidade transnacional caribenha, aproveitan-do o fato de Nova York ter se transformado, de-vido à imigração, na primeira cidade caribenhado mundo.

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As "fronteiras" tia identidade

O exemplo anterior mostra claramenteque toda identificação é ao mesmo tempo dife-renciação. Para Barth [1969J, no processo deidentificação o principal é a vontade de marcaros limites entre "eles" e "nós" e logo, de estabele-cer e manter o que chamamos de "fronteira".Mais precisamente, a fronteira estabelecida re-sulta de um compromisso entre a que o grupopretende marcar e a que os outros querem lhedesignar. Trata-se, evidentemente de uma fron-teira social, simbólica. Ela pode, em certos ca-sos, ter compensações territoriais, mas isto nãoé o essencial.

O que separa dois grupos etno-culturaisnão é em princípio a diferença cultural, comoimaginam erroneamente os culturalistas. Umacoletividade pode perfeitamente funcionar ad-mitindo em seu seio uma certa pluralidade cul-tural. O que cria a separação, a "fronteira", é avontade de se diferenciar e o uso de certos tra-ços culturais como marcadores de sua identida-de específica. Grupos muito próximos cultural-mente podem se considerar completamente es-tranhos uns em relação aos outros e até total-mente hostis, opondo-se sobre um elementoisolado do conjuto cultural.

A análise de Barth permite escapar à con-fusão tão freqüente entre "cultura" e "identida-de". Participar de certa cultura particular nãoimplica automaticamente ter certa identidade

particular.A identidade etno-cultural usa a cultu-ra, mas raramente toda a cultura. Uma mesmacultura pode ser instrumentalizada de modo di-ferente e até oposto nas diversas estratégias deidentificação.

Segundo Barth, a etnicidade que é o pro-duto do processo de identificação, pode ser de-finida como a organização social da diferençacultural. Para explicar a etnicidade o importantenão é estudar o conteúdo cultural da identidademas os mecanismos de interação que, utilizandoa cultura de maneira estratégica e seletiva man-têm ou questionam as "fronteiras" coletivas.

Contrariamente a uma convicção larga-mente difundida, as relações contínuas de longaduração entre grupos étnicos não levam neces-sariamente ao desaparecimento progressivo dasdiferenças culturais. Freqüentemente, ao contrá-rio, estas relações são organizadas para manter adiferença cultural. Às vezes, elas provocam atéuma acentuação desta diferença através do jogoda defesa (simbólica) das fronteiras de identida-de. Entretanto, as "fronteiras" não são imutáveis.

[pUra Barth, todas as fronteiras são concebidascomo uma demarcação social suscetível de serconstantemente renovada pelas trocas. Qual-quer mudança na situação social, econômica oupolítica pode provocar deslocamentos de fron-teiras. O estudo destes deslocamentos é neces-sário se quisermos explicar as variações deidentidade. A análise da identidade não podeentão se contentar com uma abordagem sincró-

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nica e deve ser feita também em um planodiacrônico.

Logo, não existe identidade cultural em simesma, definível de uma vez por todas. A análi-se científica não deve pretender achar a verda-deira definição das identidades particulares queela estuda. A questão não é saber, por exemplo,quem são "verdadeiramente" os Corsos, mas oque significa recorrer à identificação "corsa1'. Seadmitirmos que a identidade é uma construçãosocial, a única questão pertinente é: "Como, porque e por quem, em que momento e em quecontexto é produzida, mantida ou questionadacerta identidade particular?"

Conteúdos e Usos Sociais daNoção da Cultura

Há algumas décadas, a noção de culturaobtém um sucesso crescente. A palavra tende asuplantar outros termos que haviam sido maisusados anteriormente, como "mentalidade", "es-pírito", "tradiçao"e até "ideologia". Este sucessoé devido em parte a uma certa vulgarização daantropologia cultural, vulgarização que nãoacontece sem certas interpretações errôneas ousem simplificação excessiva; desta disciplina re-tomam-se, freqüentemente as teses mais discutí-veis de seu início, já abandonadas pela maiorparte dos antropólogos.

"Cultura" foi introduzida recentemente emcampos semânticos que ela não freqüentava an-teriormente. A palavra é correntemente utiliza-da nos dias de hoje pelo vocabulário político:evoca-se assim a "cultura de governo" à qual secompara a "cultura de oposição". Um dirigentedo partido socialista se referia, em outubro de1995, no jornal Lê Monde, à "cultura de decen-tralizacão" (que se opõe implicitamente à "cultu-ra de centralização"). Outro exemplo: durante ojornal radiofônico das 13 horas da emissoraFrance Inter do dia 11 de setembro de 1995, foicitada a seguinte declaração cie um alto funcio-nário da ONU a respeito do conflito militar na

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Bósnia: "Não esta na cultura da ONU colocar sa-cos de areia diante dos postos dos CapacetesAzuis."Assiste-se, há algum tempo, a uma prolife-ração do uso de "cultura" nos círculos do poder.

O próprio vocabulário religioso não esca-pa ao que parece ser um fenômeno lingüísticocaracterístico da época atual. Após o Conciliodo Vaticano II, nos anos sessenta, os teólogos ca-tólicos criaram a noção de "inculturação" (a par-tir do modelo de "aculturação") que designa aintegração da mensagem evangélica a cada umadas culturas dos povos que formam a humanida-de e não, como se poderia pensar, o desenvolvi-mento da incultura (no sentido de ignorância).A partir de então, adeptos do relativismo cultu-ral, eles pretendiam que esta noção significasseo dever da Igreja de respeitar as culturasautóctones.

Em abril de 1995, o Papa João Paulo II pu-blicou a encíclica Evagelium Vitae sobre "o va-lor e a inviolabilidade da vida humana". Ele de-nuncia aí, em um vocabulário que se pretendemoderno, o que chama de "cultura da morte",ou seja,"a cultura que leva ao aborto". Indepen-dentemente do fato, surpreendente por si mes-mo, que o Papa use a expressão "cultura da mor-te" somente para se referir ao aborto e não a ou-tros casos (como por exemplo a pena de mor-te), pode-se observar que se trata de um abusode linguagem que leva a um absurdo. De fato,toda cultura, no sentido antropológico do ter-mo, é globalmente orientada para a reprodução

da vida. Por esta razão, aliás, cada cultura preten-de ser uma resposta à questão da morte. Cadauma delas define uma certa relação dos vivoscom a morte e com os mortos e procura dar umsentido às diferentes formas que a morte podetomar, porque ao dar um sentido à morte, dá-seum sentido à vida.A expressão criada pelo Papaé então uma contradição nos termos. E se devês-semos dar-lhe razão, todas as culturas humanasdeveriam ser chamadas de "culturas da morte",pois raras sociedades humanas não admitiramou praticaram uma forma ou outra de abortoe/ou infanticídio.

Os exemplos que acabam de ser citadossão suficientes para mostrar que o uso sem con-trole da noção de cultura provoca uma confu-são conceituai. Evidentemente, não se trata aquide passar em revista todos os usos atuais destapalavra. No entanto, o exame de alguns casos re-centes e significativos da aplicação do conceitode cultura a um campo particular pode mostrara defasagem que se produz cada vez mais entreo uso social, isto é, ideológico e o uso científicodo conceito.

À noção cie "cultura política'*

Como foi dito anteriormente, a palavra"cultura" invadiu recentemente a cena política.Ela se tornou um termo corrente do vocabulá-rio político contemporâneo, sendo usada a talponto pelos atores políticos que passou a pare-

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cer uma mania. Talvez, usando um termo "no-bre", eles pretendam dar uma cerca legitimidadea suas declarações, pois "cultura" não é desacre-ditada como a palavra "ideologia".

Este uso abusivo do termo não deve levarà renúncia de seu uso na sociologia política oua ocultar o interesse das relações entre fenôme-nos culturais e fenômenos políticos. Questõesessenciais para as sociedades contemporâneaslevam a questionar estas relações, como porexemplo a questão da universalidade dos "direi-tos humanos" [Abou, 1992]. Para apreender a di-mensão cultural em política, os pesquisadoresrecorrem à noção de "cultura política". Esta no-ção foi elaborada no contexto da independên-cia dos países colonizados.A formação de novosEstados no Terceiro Mundo revelou que a im-portação de instituições democráticas não erasuficiente para garantir o funcionamento da de-mocracia. A sociologia foi levada então a se in-terrogar sobre os fundamentos culturais da de-mocracia. Todo sistema político surge ligado aum sistema de valores e representações ou seja,a uma cultura, característica de uma dada socie-dade. Neste primeiro nível de reflexão, a noçãode cultura política está muito ligada ao que sechamava "caráter nacional".

O que fez o sucesso da noção de culturafoi a sua orientação comparatista. Ela deveriapermitir que se compreendesse o que favoreciaa eficiente implantação das instituições moder-nas. Dois pesquisadores americanos, Gabriel

Almond e Sidney Verba, submeteram cincopaíses à comparação (Estados Unidos, Grã-Bretanha, Alemanha, Itália e México) a partir daanálise de diversas formas de comportamentospolíticos. Eles chegaram a uma tipologia das cul-turas e das estruturas políticas funcionalmenteadaptadas a estas culturas: à cultura "paroquial",baseada nos interesses locais, corresponde umaestrutura política tradicional e decentralizada; àcultura "de sujeição", que cultiva a passividadedos indivíduos, corresponde uma estrutura au-toritária; enfim, a cultura "da participação" éacompanhada da estrutura democrática. Todacultura política concreta é mista e os três mode-los de cultura podem coexistir. Mas a maior oumenor adequação do modelo dominante e daestrutura explica o funcionamento satisfatório,em maior ou menor grau, do sistema político eem particular, das instituições democráticas[Almond e Verba, 1963].

A análise foi sendo progressivamente afi-nada. Ao invés de procurar caracterizar, de ma-neira necessariamente esquemãtica, as culturaspolíticas nacionais, os sociólogos passaram a seinteressar cada vê/ mais pelas diversas subcultu-ras políticas que existem no interior de umamesma sociedade, pois todas as nações contem-porâneas possuem uma pluralidade de modelosde valores que orientam as atitudes e os com-portamentos políticos. No caso da França, ospesquisadores procuram elucidar os modelosculturais que estão na base das oposições direi-

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ta-esquerda ou de uma maneira ainda mais pre-cisa, das distinções entre as diferentes direitas eesquerdas.

O desenvolvimento da antropologia políti-ca levou, aliás, a reconsiderar a própria idéia doque é político, idéia que não tem o mesmo sen-tido nas diferentes sociedades. As concepçõesdo poder, do direito, da ordem podem mostrar-se profundamente divergentes, pois são deter-minadas pelas relações com os outros elemen-tos dos sistemas culturais considerados. A políti-ca, como categoria autônoma de pensamento ede ação não existe de maneira universal, o quecomplica a análise comparativa. Não há necessa-riamente em todas as sociedades uma culturapolítica reconhecida e transmitida como tal.Procurar compreender as significações dasações políticas em uma dada sociedade é entãoinevitavelmente referir-se ao conjunto do siste-ma de significações que forma a cultura da so-ciedade estudada.

Paralelamente a estes questionamentos, ospesquisadores procuraram elucidar os mecanis-mos de transmissão das opiniões e das atitudespolíticas de geração em geração. O tema da so-cialização política foi objeto de várias pesquisastanto sobre a infância quanto sobre a idade adul-ta. Estes trabalhos mostraram a forte similitudede comportamentos políticos entre as criançase seus pais. No entanto, a socialização políticanão pode ser confundida com os efeitos de umapura e simples educação familiar. Annick

Percheron evidenciou a complexidade da so-cialização política das crianças, que não consis-te em uma série de aprendizados formalizados,mas que está bem mais ligada a"transações7'per-manentes e informais entre as crianças e osagentes socializadores entre os quais se situama família e os professores.A socialização políticatoma a forma de um acordo, de uma concessãoentre as aspirações do indivíduo e os valoresdos diferentes grupos com os quais ele está re-lacionado. Ela não é adquirida de forma definiti-va, mas produzida progressivamente e, na maiorparte dos casos, de maneira não intencional.Como todo processo de socialização, ela partici-pa diretamente da construção da identidade doindivíduo [Percheron, 1974].

A noção de "cultura de empresa"

, "Cultura de empresa" c•v gerenciamento

A noção de "cultura de empresa" não éuma criação das ciências sociais. Ela é origináriado mundo da empresa e obteve rapidamenteum grande sucesso.

Nos Estados Unidos a expressão apareceupela primeira vez na década de setenta. As em-presas americanas buscavam naquele momentoenfrentar uma concorrência japonesa cada vezmais agressiva e encontrar um meio de mobili-zar seus empregados. Pensou-se então que o

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tema da cultura de empresa deveria permitirque se enfatizasse a importância do fator huma-no na produção [Sainsaulieu, 1987, p.206].

Na França, a noção fez sua aparição no co-meço dos anos oitenta nos discursos dos res-ponsáveis pelo gerenciamento. É significativoque o tema da cultura de empresa tenha sidodesenvolvido durante uma crise econômica. Éprovável que o sucesso obtido por este tema sedeva ao fato de ele ter surgido como uma res-posta à crítica que as empresas suscitavam empleno período de crise do emprego e de rees-truturação industrial. Diante da dúvida e das sus-peitas, o uso da noção de cultura representavaentão para os dirigentes de empresa, um meioestratégico para tentar obter dos trabalhadoressua identificação e sua adesão aos objetivos queeles haviam definido.

A idéia de cultura de empresa teve reco-nhecimento, além disso, pelas conseqüênciasdas fusões ou das concentrações que acontece-ram em grande número na fase de crescimentoeconômico, anterior à crise. O choque das "men-talidades" e as dificuldades relacionais dele re-sultantes levaram a refletir em novos termos so-bre o funcionamento da empresa.A imagem queos assalariados tinham de sua empresa comoinstituição forte, destinada a perdurar indefini-damente, se degradou pouco a pouco e desmo-ronou com a irrupção da crise econômica e asreestruturações industriais.

As equipes de direção, nos anos oitentaprocuraram reabilitar a empresa através de umdiscurso humanista, para obter dos assalariadoscomportamentos leais e eficazes. No discursogerencial, tira-se partido da polissemia do termo"cultura", ainda que o sentido antropológicopredomine. Mas o uso antropológico adotadocom maior freqüência é o mais contestado. Esteuso remete a uma concepção de cultura comodependente de um universo fechado, imutável,em maior ou menor grau, caracterizando umacoletividade pretensamente homogênea comcontornos bem definidos. Nesta concepção re-dutora da cultura, supõe-se que ela determine asatitudes e os comportamentos das indivíduos. Acultura de empresa, nesta perspectiva, deveriaimpor seu sistema de representações e de valo-res aos membros da organização.

Pode-se ver claramente o benefício simbó-lico que as direções de empresas obtiveram detal noção. Para elas, a cultura da empresa não de-pende diretamente dos assalariados, ela é, decerta forma, preexistente e se impõe a eles. Nãoaderir à cultura da empresa é, de certo modo ex-cluir-se da organização.

Com o pretexto da cultura e usando a ga-rantia "científica" das ciências sociais, não seesta longe de voltar à idéia ultrapassada do "es-pírito da casa". A exaltação do "espírito da casa"caracterizou por longo tempo o patronato fran-cês, profundamente marcado pelo paternalismoe por uma concepção familiar da autoridade. A

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ideologia subjacente é a da harmonia familiar,do consenso, da supressão das contradições. A"casa" apaga as diferenças (de classes) entre in-divíduos e entre grupos.

A concepção gerencial da cultura adotoudo conceito antropológico de cultura apenas oque podia servir a seus objetivos, isto é, uma in-terpretação culturalista muito empobrecida se-gundo a qual a cultura domina (em todos ossentidos do termo) o indivíduo. Interpretaçãoelaborada para dar conta de realidades muito di-ferentes e de qualquer maneira abandonada hámuito tempo pelos pesquisadores. Em nenhumasituação as empresas podem ser encaradascomo tribos (no entanto esta palavra tambémestá em voga no vocabulário gerencial) ou comfamílias.

Vista por este ângulo, a cultura de empre-sa não é definitivamente uma noção analítica,mas sim uma manipulação ideológica do con-ceito etnológico de cultura, destinada a legiti-mar a organização do trabalho no interior decada empresa. A empresa pretende definir suacultura do mesmo modo que ela define seusempregos: em outras palavras, aceitar o empre-go é aceitar a cultura da empresa (entendidaneste sentido).

Atualmente a expressão "cultura de empre-sa" faz parte do vocabulário das escolas superi-ores de administração de empresas. Na falta deuma formação em ciências sociais, os profis-sionais saídos destas escolas geralmente adotam

do conceito de cultura apenas o que lhes pare-ce aplicável diretamente na gestão das empre-sas, ignorando o desenvolvimento das pesquisasque mostram a complexidade de todo sistemacultural.

Á abordagem .sociológica ciacultura de empresa

Sem recorrer à noção de "cultura de em-presa", os sociólogos já haviam abordado diretaou indiretamente a questão da cultura na em-presa. Suas análises evidenciam um universocultural heterogêneo, relacionado com a hetero-geneidade social das diferentes categorias detrabalhadores. Estes trabalhadores não chegamdesprovidos de cultura na empresa. Eles impor-tam para ela, em certos casos, culturas de profis-são, e às vezes uma cultura de classe (a "culturaoperária"). Alguns estudos mostraram a impor-tância destas culturas na organização dos com-portamentos dos assalariados na empresa. Estasculturas não são fundamentalmente dependen-tes de uma empresa específica.

Para os sociólogos, a noção de cultura deempresa é usada para designar o resultado dasconfrontações culturais entre os diferentes gru-pos sociais que compõem a empresa. A culturade empresa não existe fora dos indivíduos quepertehcem à empresa; ela não pode ser preexis-tente a eles; ela é construída nas suas interações.

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Mesmo nos dias de hoje, em que as cultu-ras de profissão tendem a se enfraquecer e até adesaparecer, os assalariados não são, em ne-nhum caso, dependentes culturalmente da orga-nização. Sua criatividade cultural se manifestade todas as maneiras. Evidentemente ela não éinfinita e depende em parte da posição destesassalariados no sistema social da empresa.

Renaud Sainsaulieu [1977] mostrou assimque, segundo as categorias socio-profissionais,podiam-se definir diferentes esquemas de com-portamento em uma empresa. Ele reduziu estescomportamentos a quatro modelos culturaisprincipais. Uma primeira cultura, que caracteri-za principalmente os operários e trabalhadoresnão qualificados, é marcada pelo caráter fu-sional da relações na qual o coletivo é valoriza-do enquanto refúgio e proteção contra as divi-sões. Uma segunda cultura remete, ao contrário,à aceitação das diferenças e à negociação. Elaexiste principalmente entre os operários profis-sionais, mas podemos encontrá-la também entrecertos técnicos que exercem funções na admi-nistração. A terceira cultura corresponde às si-tuações de mobilidade profissional prolongadaque é vivida geralmente pelos executivos auto-didatas ou pelos técnicos. O modo de funciona-mento relacionai é nestes casos o das afinidadesseletivas e da desconfiança em relação aos gru-pos constituídos na empresa. Enfim, a quartacultura presente nos meios de trabalho se carac-teriza pela dependência e pelo retraimento. Ela

é encontrada principalmente entre os operáriosnão qualificados desprovidos de memória ope-rária: trabalhadores imigrantes, operários agríco-las, mulheres, jovens. Para eles, a empresa é vivi-da sobretudo como um meio de um projetoexterior.

Evidentemente, estas culturas são modelosideais, no sentido weberiano do termo, que nãocorrespondem nunca de maneira perfeita a umacategoria de trabalhadores e que são sujeitas àevolução. O interesse da análise de Sainsaulieuvem do fato de ter demonstrado que no interiorde uma mesma empresa diferentes culturas co-existiam e se cruzavam.

Outro mérito dos trabalhos de Sainsaulieué ter evidenciado que a desqualificaçao não sig-nificava ausência de cultura própria e incapaci-dade de qualquer iniciativa de ordem culturalna empresa. Outras pesquisas mostraram igual-mente que o operário não era totalmente de-pendente da organização, mesmo nas situaçõesmais alienantes. Os sociólogos do trabalho subli-nharam, em um primeiro momento, nos anoscinqüenta e sessenta, o caráter alienante do tra-balho taylorizado. Mas a alienação não é total ea alienação social não se confunde necessaria-mente com a alienação cultural.

Phüippe Bernoux [1981] desenvolveu,por sua vez, uma analise dos comportamentosde apropriação do universo do trabalho pelostrabalhadores menos qualificados e com menosacesso ao poder. Estes comportamentos são

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práticas freqüentemente ilegítimas, às vezes di-ficilmente localizáveis, mas significativas deuma resistência cultural ao despojamento abso-luto feito pela organização. A "apropriação" semanifesta por diversas estratégias que visamsalvaguardar um mínimo de autonomia. Ela nãoé um ato puramente individual nem uma re-ação (abstrata) de classe, mas uma conduta queremete a um grupo de vinculação, isto é, umgrupo de trabalho concreto que compartilhade uma cultura comum, feita de uma linguagemcomum, de um modo de comportamento co-mum, de sinais de reconhecimento de umaidentidade comum, etc.

Ás práticas de apropriação são numerosase diversas. Elas dizem respeito ao trabalho em sie à sua organização, ao espaço e ao tempo detrabalho que os trabalhadores vão tentar recom-por à sua maneira, na medida do possível e tam-bém ao produto do trabalho.Trata-se de opor àlógica taylorista uma outra lógica cultural, ba-seada na independência e no prazer.

Uma" ilustração particularmente significati-va desta vontade de apropriação é dada pelaprática de usar o tempo do empregador paraproduzir para si. Michel de Certeau observouque esta prática não questiona o trabalho em sif

mas uma certa organização do trabalho. Não setrata de subtrair bens (usa-se em geral apenas osrestos), mas de subtrair tempo à empresa paranão se deixar aprisionar no tempo "organiza-do", cronometrado. Significa mostrar através de

sua "obra" uma habilidade própria. É afirmar suaaptidão para criar, para inventar. É opor uma ló-gica do desinteresse, da gratuidade e até da do-ação (guarda-se raramente para si as realizaçõesdeste tempo) à lógica mercante do lucro. Masesta prática somente é possível devido à cumpli-cidade dos outros membros do grupo. Somentequando uma cultura comum une os membrosde um mesmo grupo de trabalho, a prática desubtrair o tempo do empregador torna-se reali-zável. Por isso mesmo, ela é uma expressão dacultura do grupo [de Certeau, 1980, p.70 -74].

Talvez fosse mais correto falar de uma "mi-crocultura" de grupo. É difícil definir a cultura delima empresa e seria talvez mais plausível para opesquisador identificar microculturas no inte-rior da empresa. As microculturas que são "in-ventadas" pelos empregados mostram que a cul-tura da empresa não é um dado prévio que ostrabalhadores deveriam necessariamente adotar.Se a própria empresa pode ser produtora de sis-temas culturais, isto não significa que a culturaseja uma pura e simples emanação da adminis-tração. Quem "fabrica" a cultura da empresa? Evi-dentemente, todos os atores sociais que perten-cem à empresa. Como se "fabrica" a cultura daempresa? Certamente não por decisão autoritá-ria, mas por todo um complexo jogo de intera-ções entre os grupos que compõem a empresa.

Para chegar a definir a cultura de uma em-presa, é preciso então partir das microculturasdos grupos que dela fazem parte.Tanto estas mi-

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croculturas como a própria organização, garan-tem o funcionamento cotidiano dos ateliês, dosescritórios, delimitam territórios, definem rit-mos de trabalho, organizam as relações entretrabalhadores, imaginam soluções para os pro-blemas técnicos da produção. Evidentemente,estas microculturas são criadas considerando ocontexto próprio da empresa, especialmentedas limitações da organização formal do traba-lho e da tecnologia utilizada. Mas elas não sãodeterminadas por estes dois elementos; elas de-pendem também dos indivíduos que consti-tuem o grupo de trabalho. Uma mesma organi-zação formal, acompanhada de uma mesma tec-nologia não leva necessariamente a uma micro-cultura idêntica: as características do grupo detrabalho desempenham um papel fundamentalna produção cultural. Estas microculturas infor-mais, produzidas pelos próprios assalariados,são ao mesmo tempo criadoras e reguladorasdas microcomunidades de trabalho [Liu, 1981].

Definitivamente, a "cultura de empresa" sesitua na interseção das diferentes microculturaspresentes no interior da empresa. Estas micro-culturas não estão necessariamente em harmo-nia umas com as outras. Seu contato não se fazobrigatoriamente sem choque. Relações de for-ça culturais surgem e se traduzem tanto aquicomo em outros lugares, pelos conteúdos so-ciais. Em outras palavras, a noção de "cultura deempresa" tem uma pertinência sociológica masnão para designar um sistema cultural de onde

teriam sido excluídos todas as contradições etodos os conflitos.

Além disso, não se pode estudar a culturade empresa independentemente do ambienteque a cerca.A empresa não constitui um univer-so fechado que poderia produzir uma culturaperfeitamente autônoma.Ao contrário, a empre-sa moderna é muito dependente de seu ambien-te, tanto no plano econômico quanto no planosocial e cultural. Atualmente, uma análise so-ciológica da empresa não pode mais abstrair ocontexto. Em outras palavras, a cultura de em-presa não pode ser reduzida a uma simples cul-tura organizacional.

Uma série de pesquisas evidenciaram oimpacto das culturas nacionais sobre as culturasde empresa [Iribarne, 19891-A partir de pesqui-sas comparativas, pôde-se demonstrar que em-presas idênticas instaladas em países diferentesfuncionavam segundo sistemas culturais dife-rentes. Michel Crozier [1963] foi um dos primei-ros a colocar em evidência a existência de ummodelo cultural francês de organização de em-presa, marcado pelo formalismo burocrático epela extrema centralização das estruturas e cor-respondendo a uma tendência profunda da so-ciedade francesa.

Durante a década de setenta escreveu-semuito sobre o "modelo japonês" de empresa. Osespecialistas do gerenciamento, fascinados pelosucesso industrial e comercial do Japão, pensa-ram ter descoberto nele um novo modelo uni-

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versai de organização de resultados particular-mente eficientes. Mas eles mudaram rapidamen-te de idéia, O modelo japonês não era facilmen-te transponível para outros países, como foiconstatado com a implantação de empresas ja-ponesas nos Estados Unidos e na Europa. O mo-delo era totalmente japonês, no sentido estritodo termo, isto é, diretamente inspirado nos as-pectos fundamentais da cultura japonesa e deacordo com as estruturas sociais do Japão.

Ao dizer isto, não é necessário cair em umaexplicação "culturalista" simplista. Por um lado,as culturas nacionais não são imóveis, imutáveis,e, por outro lado, elas não determinam de manei-ra absoluta as culturas de empresa.A relação en-tre as duas é também função das circunstânciashistóricas da situação social e política. Estudosrecentes mostraram precisamente que, no perío-do de crise econômica e, logo, social, dos anosoitenta, o modelo japonês que parecia sem fa-lhas não funcionava mais tão bem quanto antes.

As pesquisas sociológicas e etnológicasmostram então a complexidade do que chama-mos de "cultura de empresa". Ela não é, em ne-nhum caso, a pura e simples emanação do siste-ma organizacional. Ela é, ao mesmo tempo, o re-flexo da cultura ambiente e uma produção novaelaborada no interior da empresa através de umasérie de interações existentes em todos os níveisentre os que pertencem à mesma organização. Ointeresse em se falar em cultura de empresa, nosentido antropológico do termo "cultura", está

na designação da resultante complexa em umdado momento, de um processo de construçãocultural que nunca está acabado. Este processocoloca em jogo grupos de atores e de fatoresmuito diversos sem que nenhum grupo possaser considerado como único dono do jogo.

As grandes escolas e ;i cultura

Por serem muito ligadas ao inundo empresarial,as grandes escolas francesas seguiram rapida-mente o movimento de renovação do vocabu-lário introduzido pelas empresas. Passou-se as-sim de um discurso sobre o "espírito" a um dis-curso sobre a "cultura". Anteriormente, cadagrande escola afirmava sua diferença não so-mente apresentando a especificidade da forma-ção profissional que ela ministrava a seus alu-nos, mas também, e sobretudo, enfatizando o"espírito" que lhe era próprio e que seria co-mum a todos os alunos saídos desta mesma es-cola: o "espírito X" (Politécnico), atendendo ainteresses, não podia ser confundido com o"espírito das Minas"; o "espírito Gadg'arts" nãotinha nada em comum com o "espíritoCentral", etc.No entanto, quando se tratava de definir as ca-racterísticas do "espírito" que se defendia, as de-finições eram extremamente imprecisas e pou-co diferenciãveis umas das outras. Pouco im-portava, na realidade, que fosse impossível de-

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monstrar a existência e a especificidade desteespírito. O que contava para cada escola era acrença em um espírito comum imaginário, fre-qüentemente ritualizado, capaz de criar o espí-rito de corpo dos seus antigos alunos.Considerando o caráter inalcançável e extrema-mente abstrato do espírito da escola, a noçãode cultura, compreendida no sentido dado pe-las empresas pareceu muito mais adaptado àpromoção interna c externa de uma imagempositiva da instituição, A partir de então, boaparte das escolas reivindicou o reconhecimen-to de sua própria cultura. A polissemia da pala-vra "cultura" permite que se jogue, ao mesmotempo, com o sentido nobre do termo e comseu sentido etnológico partícularista. Em seudiscurso promocional, cada uma apresenta suacultura como profundamente original. Devidoa uma vulgarização superficial do conceitocientífico de cultura, a escola reproduz os errosde certas análises, em sua definição de cultura.A cultura da escola é supostamente homogê-nea, e é apresentada como uma espécie de es-sência (o que é coerente com a idéia anteriorde espírito de escola) que estaria necessa-riamente impregnada em todos os alunos. Cadacultura é pretensamente única, consideradacomo insubstituível e mesmo indispensável.Nesta lógica, que retoma o raciocínio do relati-vismo cultural radical, cada um conclui que suacultura de escola não pode ser comparada aqualquer outra e é até incompreensível para os

que não fazem parte dela. Isto permite que serecuse a priori qualquer analise desta culturavinda do seu exterior.Ao apresentarmos as grandes escolas e suas cul-turas como unidades singulares, independentesumas das outras, não pretendemos que elasexistam em um estado isolado, perfeitamenteautônomas. Cada uma delas deseja afirmar suadiferença precisamente porque elas estão emconcorrência umas com as outras. Como de-monstrou Bourdieu [1989], todas elas perten-cem a um mesmo sistema das grandes escolas,no interior do qual estão unidas por relaçõesobjetivas. Em outras palavras, não são tanto ascaraterísticas intrínsecas de uma escola comoinstituição singular que explicam o seu discur-so sobre sua própria cultura, mas a posição queela ocupa em relação às outras no sistema ge-ral. A cultura de cada escola é, ao mesmo tem-po, uma forma de racionalização da posiçãoocupada e um meio para se distinguir das ou-tras escolas. Uma mudança de posição de umaescola provoca conseqüentemente uma mu-dança da definição que esta escola dá de suacultura.No nível de análise microssocíológico, conside-rando que as grandes escolas funcionam como"instituições totais"- isto é,"lugares de residên-cia e de trabalho", "isolados do mundo exte-rior", em que a organização da vida coletiva é"minuciosamente regrada" [Goffman, 1961] - opesquisador poderá descrever, como na etno-

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grafia, as microcvüturas que ligam entre si osalunos de cada escola.Estas microculturas são transmitidas pelos anti-gos alunos aos novos por meio de uma doutri-nação sistemática, desde sua chegada à escola eem particular através dos ritos de trote que sãoapenas a parte mais visível do aprendizado cul-tural. Certos ritos são objeto de uma codifica-ção extremamente minuciosa. Um dos casosmais significativos é talvez o das "tradições" daEscola d'Arts et Métiers, transcritas em um Ca-derno de tradições com mais de 150 páginasque todo aluno novo deve copiar e aprenderquase de cor [Cuche, 1985]. A doutrinação co-tidiana no espaço isolado que constitui a esco-la, as maneiras de fazer e de dizer adequadas àstradições de cada escola produzem uma cultu-ra do grupo de pares que sustenta sua cumpli-cidade. Segundo a análise de Bourdieu:"Mais doque as referências à cultura ensinada - vistapelo grupo como ostentatórias ou medíocres -são os elementos imponderáveis, as expressõestípicas da gíria da escola, cheia de valores cris-talizados, as brincadeiras, a expressão corporal,a voz, o riso, o modo de se relacionar com osoutros e em particular com os seus iguais queconstituem a base da cumplicidade imediataentre colegas. Esta cumplicidade é geralmenteinconsciente das suas determinações e de to-dos os efeitos atribuídos à "maçonaria" ou à"máfia"das grandes escolas" [1981b, p. 143).

A. "cultura dos imifiraníes"

A expressão "cultura dos imigrantes" surgena França nos anos setenta e encontra rapida-mente muitos adeptos. Devemos nos perguntarpor que esta noção não foi utilizada antes e porque obteve, naquele momento, um certo suces-so. O contexto da época permite responder aesta interrogação (sobre este ponto e os seguin-tes, ver Sayad [1978]).

Enquanto se considerava que a imigraçãoera temporária, pois estava ligada a um déficitde mão de obra, os imigrantes eram definidosessencialmente como trabalhadores, "trabalha-dores estrangeiros". As questões colocadas so-bre este tema giravam em torno do trabalho, desua adaptação ao trabalho "racionalizado", desuas condições de trabalho, etc. Com o fim ofi-cial da imigração, em 1974, descobre-se o as-pecto durável da imigração, pois os imigrantesnão voltam para casa apesar da crise de empre-go que os atinge particularmente .Toma-se cons-ciência que a imigração de trabalho se transfor-mou em imigração de população e a "reuniãodas famílias" (vinda das esposas e filhos para sereunirem aos maridos) acentuou este movi-mento. Desde então, não é mais possível consi-derar os imigrantes como uma simples "forcade trabalho" suplementar. A partir do momentoem que eles se fixam com suas famílias no paísque os recebe, impõe-se que se considerem to-das as dimensões de sua existência. E como em

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suas práticas cotidianas (da vida familiar, doconsumo, do lazer, das práticas religiosas), aspopulações imigrantes manifestam certas parti-cularidades, os poderes públicos, preocupadoscom a inserção destas populações na vida locale nacional, vão ser levados a se interessar porestas particularidades. Durante a presidência deGiscard d'Estaing, foi criado uma Agência na-cional para a promoção cultural dos imigrantes.Segundo um documento do secretário de Esta-do encarregado dos trabalhadores imigrantesintitulados A Nova Política da imigração,/'estapromoção deve permitir que os imigrantes to-mem consciência de sua própria cultura aomesmo tempo em que descubram a culturafrancesa; ela procurará também mostrar à po-pulação francesa a cultura dos países de origemdestes imigrantes".

Da gestão da mão de obra estrangeira, pas-sa-se então à gestão da diferença cultural. A pazsocial supõe a paz cultural. A política de promo-ção das culturas imigrantes é eminentementeconjuntural e diretamente ligada ao estado daimigração na França nos anos setenta.

Gerir a diferença é, de cena maneira, recu-sar a assimilação total dos imigrantes na naçãofrancesa. Chega-se mesmo a pretender que osimigrantes não europeus são "inassimiláveis",por serem muito diferentes culturalmente dosfranceses.Ao "promover" a cultura dos imigran-tes, os sucessivos governos deste período tenta-rão, através de todo o tipo de medidas de incen-

tivo, provocar o regresso dos imigrantes a seuspaíses. Não se deve ver nenhuma contradiçãonesta atitude: "fechar" os imigrantes na sua dife-rença, reativar a "consciência" de sua cultura deorigem faz parte também da incitação ao regres-so. Contra todas as evidências, esperava-se queeste regresso se desse mais cedo ou mais tarde.

Mas não é somente devido à política go-vernamental que a noção de "cultura dos imi-grantes" encontra uma certa ressonância na dé-cada de setenta. O contexto ideológico francêsdaquele momento teve grande influência naaceitação desta noção. Na realidade, os anos se-tenta são marcados pelo ressurgimento dos mo-vimentos regionalistas (bretão, corso, etc.) quereivindicam o reconhecimento de uma identida-de cultural própria e que denunciam o centralis-mo cultural do Estado francês. A diferença cul-tural é exaltada em si mesma e inúmeros mili-tantes ou intelectuais tornam-se os arautos dopluralismo cultural e os defensores de todas asminorias culturais presentes na França. O direi-to à diferença (cultural) é afirmado como umdos direitos fundamentais do homem. O discur-so pluralista une-se assim, de maneira inespera-da, ao discurso centralista para promover as cul-turas imigrantes, ainda que a visão da diferençaseja diametralmente oposta nos dois casos.

Esta noção obteve um certo sucesso porse prestar a usos ideológicos condizentes comuma certa conjuntura política. A noção se pres-tava ainda mais a estes usos por veicular uma ré-

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presentação específica destas culturas. Em pri-meiro lugar, o emprego da expressão "culturados imigrantes" remete quase sempre à "culturade origem" dos imigrantes, isto é, à cultura deseu país de origem. Esta é uma maneira sutil denegar a particularidade cultural dos imigrantesem relação a seus compatriotas que ficaram emseu país. Uma forma também de fechá-los emuma identidade imutável.

No uso desta noção, a cultura em questãoé concebida como uma cultura reificada, umaespécie de dado preexistente a qualquer formade relação social. O indivíduo não poderia esca-par à sua cultura (de origem) da mesma formaque ele não pode escapar de seus caracteres ge-néticos. Nesta acepção, a noção de cultura fun-ciona geralmente como um eufemismo de"raça" ("Faz parte da sua cultura", subentende-se"Ele não pode nada contra isso"). O indivíduoseria inteiramente determinado por sua cultura(de origem). Isto permite afirmar que os imi-grantes "muito" diferentes culturalmente sãoinassimilãveis.

Identificar as culturas imigrantes com suas"culturas de origem" é um erro baseado em umasérie de confusões. Inicialmente, confunde-se"cultura de origem" com cultura nacional. Ra-ciocina-se como se a cultura do país de origemfosse única, ao passo que as nações de hoje nãosão culturalmente homogêneas. Não se analisa aespecificidade cultural de cada grupo de emi-grantes de um mesmo país, nem a relação de

cada um com a cultura nacional de seu país, an-tes de sua instalação no país que o recebe.

Em seguida, a cultura nacional "de origem"é definida implicitamente como uma culturaimutável ou, ao menos, fracamente evoluídaOra, os países de onde vêm os imigrantes sãoem geral países que passam por profundas mu-danças econômicas, sociais e, logo, culturais. Oimigrante não pode ser então o representanteda cultura de seu país nem mesmo de sua comu-nidade particular original pois se encontra forada evolução (sobretudo cultural) do país e desua comunidade. Apesar de seus esforços paracontinuarem fiéis a sua cultura, os imigrantes es-tão sempre defasados da cultura que se estabe-lece depois de sua partida. Esta é, aliás, um dosmaiores problemas no regresso dos imigrantes aseu país: eles não o reconhecem mais, devido asuas mudanças, geralmente mais no aspecto cul-tural do que material.

A cultura chamada "dos imigrantes" é en-tão na realidade uma cultura definida pelos ou-tros, em função dos interesses dos outros, a par-tir de critérios etnocentristas. A "cultura dos imi-grantes" é tudo o que os faz parecerem diferen-tes, e apenas isto. É uma cultura constituída emoposição ao sistema cultural francês. Na repre-sentação social dominante na França, ser imi-grante é por si só ser diferente, ser estrangeiro(estranho). Quanto mais um indivíduo for enca-rado como diferente, mais ele será consideradocomo "imigrante".

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Apenas o que reforça a representação do-minante de suas culturas será observado nos sis-temas culturais próprios dos imigrantes. Isto é,os aspectos mais visíveis e mais surpreendentes.Serão destacadas as "tradições", os "costumes",os "traços culturais" mais "exóticos" (como porexemplo, no que se refere aos norte-afrícanos, aproibição de comer carne de porco, o sacrifíciodo carneiro, a circuncisao, etc.). A "cultura dosimigrantes" é definida a partir de toda uma sériede sinais exteriores (práticas alimentares, reli-giosas, sociais, etc.) cujo significado profundoou coerência não são compreendidos, mas quepermitem situar o imigrante enquanto imigran-te, lembrar suas origens e, segundo a expressãode Sayad, "lembrá-lo de suas origens" o que éuma maneira de "colocá-lo em seu lugar".

A definição dada geralmente da "culturados imigrantes" é completamente parcial.A polí-tica da "promoção das culturas imigrantes" foiapenas uma promoção dos aspectos mais folcló-ricos destas culturas. A "cultura dos imigrantes"está então instalada no "cultural", no sentidomais estreito do termo, ligado à esfera do lazer.Encoraja-se a criação de "associações culturais"que são até ajudadas financeiramente por estapolítica: elas serão o local de prática da línguamaterna, das artes tradicionais (música, canto,danças, ...), da cozinha tradicional, etc. Em ou-tras esferas da vida social, longe de ser valoriza-da, a "cultura dos imigrantes" é apresentadacomo um problema, fonte de dificuldades e dis-

sabores para a população francesa. Fora dos lo-cais e dos momentos de expressão cultural con-cedidos, os imigrantes serão então chamados a"descobrir a cultura francesa" e a renunciar aosaspectos mais "chocantes" de suas própriasculturas.

Ao abstrairmos o discurso ideológico so-bre a "cultura dos imigrantes" e nos colocarmosno plano da análise antropológica, seremos obri-gados a constatar que as culturas dos imigrantessão culturas depreciadas, culturas dominadas noconjunto da sociedade que os recebe. E alémdisso, para boa parte dos imigrantes propria-mente ditos, isto é, os da primeira geração, a cul-tura de origem que eles tentam preservar portodos os meios é apenas uma "cultura em miga-lhas", uma cultura fragmentária, reduzida a al-guns elementos de si mesma. É somente umacultura desintegrada, desestruturada que nãoforma mais um sistema coerente. Em outras pa-lavras, uma cultura qxie não é mais plenamenteuma cultura.

Por outro lado, estes fragmentos disso-ciados de seu meio de produção, importadospara a sociedade de imigração, estão descontex-tualizados e por isso mesmo perdem seu caráterfuncional. Eles se tornam anacrônicos e são aexpressão de um "tradicionalismo do desespe-ro". Esta cultura"expatriada", empobrecida, é so-mente uma cultura imobilizada, pouco suscetí-vel à evolução e dificilmente transmissível à ge-ração seguinte. Os imigrantes se apegam a estes

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fragmentos de cultura, pois isto lhes permiteafirmar uma identidade específica e provar suafidelidade à comunidade de origem. Permitetambém manter um mínimo de coesão no gru-po dos imigrantes que reconhece assim umaorigem comum.

Sayad observa ainda que por estas mesmasrazões os imigrantes entram no jogo da políticaestatal de revalorização de suas culturas. Partici-par das manifestações culturais subvencionadaspor esta política não é um "luxo supérfluo", masuma tentativa de salvaguardar o que ainda podeser salvo da cultura de origem e reforçar a soli-dariedade no grupo dos compatriotas pelo sen-timento partilhado de existir coletivamente.

Os imigrantes fazem uma resistência cultu-ral na medida de suas possibilidades. No entan-to, queiram ou não, seu sistema cultural evolui.Mesmo quando eles se consideram totalmentefiéis à sua tradição, mudanças são produzidasnas suas referências culturais. É impossível queeles se mantenham completamente imperme-áveis à influência cultural da sociedade que oscerca. Quanto mais longa for sua estada nestasociedade, mas decisiva será a sua influência. Asculturas dos imigrantes não podem então serconfundidas de maneira redutora com suas cul-turas de origem. São culturas vivas e dinâmicasque animam os grupos de imigrantes, compos-tos de várias gerações. Os que são chamados de"imigrantes de segunda geração "(expressão ina-dequada, pois eles próprios não "imigraram")

contribuem muito para a transformação da cul-tura de seu grupo, considerando sua dupla so-cialização, no interior da família, por um lado, ena escola e no contato com os jovens franceses,por outro lado.

As culturas das diferentes coletividades deimigrantes não são um dado acabado, comoqualquer outra cultura. Elas são a resultante deinúmeras interações no interior de cada coleti-vidade, bem como das interações entre cada co-letividade e as outras coletividades de seu am-biente social.Tomadas globalmente, como siste-mas, as culturas dos imigrantes não param deevoluir, mesmo que certos elementos particula-res possam ser conservados em um estado qua-se inalterado.

São culturas sincréticas, mestiças, que al-guns autores vêem como culturas constituídasatravés da "bricolagem" como geralmente é ocaso das culturas surgidas dos contatos culturaisprofundamente assimétricos. Sua criatividade semanifesta na sua capacidade para integrar emum mesmo sistema elementos emprestados deculturas supostamente muito distantes e fazercoexistirem de maneira coerente esquemas cul-turais aparentemente pouco compatíveis. Porseu aspecto construído a partir de materiais he-terogêneos e de origens diversas, estas culturassão autênticas criações, na medida em que oempréstimo não existe sem reinterpretação, istoé, sem a reinvenção, para poder ser inserido emum novo conjunto.

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A"bricolagem"cultural não é contraditóriacom a vontade de fidelidade à cultura de ori-gem. Em muitos casos, segundo DominiqueSchnapper [1986], a bricolagem a partir de ele-mentos emprestados se efetua em torno do queela chama de "cerne" da cultura de origem, ouseja, dos valores, normas e práticas que pare-ciam essenciais aos interessados para a preser-vação de sua representação de identidade cole-tiva e de honra.Tudo o que constitui o "cerne" étransmitido desde a infância, como por exem-plo a concepção dos papéis sexuais ou ainda asprescrições alimentares. Entretanto, DomimiqueSchnapper adverte que:

A distinção entre o cerne e a periferia do siste-ma cultural não é dada de forma definitiva, eladepende das culturas de origem e das circuns-tâncias históricas que levam o grupo a tomarconsciência de si mesmo e, conseqüentemente,de seus limites. [1986, p. 1551

Somente os estudos etnográficos minu-ciosos podem revelar definitivamente o que sãoconcretamente as culturas imigrantes. Há narealidade diferentes tipos de cultura de imigran-tes porque há diferentes tipos de imigrantes.Para construir uma tipologia pertinente é preci-so considerar toda uma série de variáveis: esta-tuto social e estruturas familiares de origem dosmigrantes, caráter do projeto migratório, mode-lo de integração próprio do Estado que o acolhe

("individualista" ou "comunitarista", por exem-plo), concentração ou dispersão dos imigrantes(sobre o território nacional, nas cidades, nosbairros), quão recente ou antiga é a corrente mi-gratória, presença ou ausência das famílias dosmigrantes, etc.

Não se pode traçar um quadro único dasculturas dos imigrantes, pois elas existem so-mente no plural, na diversidade das situações edos modos de relações interétnicas. Estas cultu-ras são sistemas complexos e evolutivos na me-dida em que são reinterpretados em permanên-cia pelos indivíduos cujos interesses de catego-ria podem ser divergentes, segundo o sexo, a ge-ração, o lugar na estrutura social, etc.

A representação simplista da pretensa cul-tura dos imigrantes (no singular) provocou umaabundância de estudos e de discursos de orien-tação muito discutíveis e pouco científicos. Ofato de considerar a complexidade das diferen-ças culturais dos imigrantes não deve levar ospesquisadores a negligenciar a dimensão cultu-ral do fenômeno migratório. O exame da condi-ção social dos imigrantes não é suficiente parauma boa compreensão de suas práticas. A análi-se cultural é necessária para compreender acoerência simbólica do conjunto destas prati-cas, o sentido que os imigrantes tentam dar asua existência. Através de sua criatividade cultu-ral, eles afirmam sua humanidade.

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Conclusão em Forma de Paradoxo:Um Bom Uso do Relativísmo Culturale do Etnocentrismo

Encontramo-nos atualmente diante de um"paradoxo: enquanto o conceito de cultura é re-examinado de maneira crítica nas ciências so-ciais - a ponto de levar certos pesquisadores apensar até que este conceito provoca mais per-guntas do que respostas e a propor o seu aban-dono e a volta ao sentido restrito da palavra quese refere exclusivamente às produções intelec-tuais e artísticas -, este mesmo conceito conhe-ce uma difusão notável nos mais diversos meiossociais e profissionais. Como esta difusão se dácom certo desprezo pela definição científica dapalavra, aqueles, que já eram reservados quantoao seu uso, consideram que os riscos de confu-são (em todos os sentidos do termo) ligados aoeste uso comum reforçam sua intenção de nãomais recorrer a este conceito.

Outros mostram-se igualmente reticentesem utilizar o conceito de cultura pois, em umcerto uso comum e sobretudo ideológico, fun-ciona cada vez mais como um eufemismo da pa-lavra "raça". Alguns chegam até a afirmar queesta sinonímia (contestável) dos dois termos jáestava inscrita na idéia de cultura desenvolvidapelos pensadores românticos alemães do século

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XIX e influenciou a elaboração do conceito an-tropológico. O conceito de cultura estaria entãomanchado de maneira quase indelével pela mar-ca do pecado original do pensamento. No en-tanto, raciocinar assim é ignorar todo o trabalhode crítica conceituai no interior da própriaantropologia que permitiu um constante enri-quecimento do conceito e o fim das principaisambigüidades que ele poderia ter tido em seuinício.

Contra estas posições um tanto extremas,pode-se objetar também que, se o vocabuláriocientífico devesse abandonar todos os conceitosque se vulgarizaram e caíram no uso comum(com as distorções de sentido que geralmenteisto provoca), ele seria obrigado a se renovarconstantemente, freiando e até aniquilando qual-quer forma de acumulação de conhecimento.

O conceito de cultura conserva atualmen-te toda a sua utilidade para as ciências sociais.Adesconstrução da idéia de cultura subjacenteaos primeiros usos do conceito, marcada porum certo essencialismo e pelo "mito das ori-gens", supostamente puras, de toda cultura, foiuma etapa necessária e permitiu um avançoepistemológico.Á dimensão relacionai de todasas culturas pôde assim ser evidenciada.

No entanto, considerar a situação relaci-onai na qual é elaborada uma cultura, não develevar a negligenciar o interesse pelo conteúdodesta cultura, o interesse pelo que ela significaem si mesma. Reconhecer que toda cultura é

em maior ou menor grau motivo de lutas sociaisnão deve levar o pesquisador a estudar unica-mente as lutas sociais. Mesmo que os elementosde uma dada cultura sejam usados como signifi-cantes da distinção social ou da diferenciaçãoétnica, eles não deixam de estar ligados uns aosoutros por uma mesma estrutura simbólica querequer a análise. Não há cultura que não tenhasignificação para aqueles que nela se reconhe-cem. Os significados como os significantesdevem então ser examinados com a maioratenção.

Admitir esta proposição leva a reconside-rar a questão do relativismo cultural. Não se tra-ta de voltar atrás na sua crítica, totalmente justi-ficada, do relativismo cultural compreendidocomo um princípio absoluto. Mas, se ele mesmofor relativizado, o relativismo cultural continua aser uma ferramenta indispensável para as ciên-cias sociais.

Na realidade, há três concepções diferen-tes do relativismo cultural que podem se con-fundir eventualmente, o que cria uma certa am-bigüidade . O relativismo cultural designa, inicial-mente, uma teoria segunda a qual as diferentesculturas formam entidades separadas, com limi-tes facilmente identificáveis, logo, entidades cla-ramente distintas umas das outras, incompará-veis e incomensuráveis entre si. Já foi mostradoanteriormente que esta concepção de relativis-mo cultural não resiste a uma análise científica.

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O relativismo cultural é em seguida com-preendido como um princípio ético, que pre-coniza a neutralidade em relação às diferentesculturas. Em virtude deste princípio éticoHerskovits, que foi aliás o primeiro a utilizar,nos anos trinta, a expressão "relativismo cultu-ral", submeteu à ONU em 1974, em nome daAmerican Anthropological Association umarecomendação para exigir o respeito absolutode cada cultura particular. Mas um deslize daneutralidade ética para o julgamento de valorse faz imperceptivelmente: "Todas as culturastêm o mesmo valor".

O relativismo ético pode corresponder àsvezes à atitude reivindicadora dos defensoresdas culturas minoritárias que, contestando ashierarquias de fato, defendem a igualdade de va-lor das culturas minoritárias e da cultura domi-nante. Mas, geralmente, ele aparece como a ati-tude elegante do forte em relação ao fraco. Ati-tude daquele que, assegurado da legitimidadeda sua própria cultura, pode se dar ao luxode uma certa abertura condescendente para aalteridade.

Uma pretensa neutralidade ética, que seapresenta como um reconhecimento da diferen-ça, pode até ser, em última instância, somenteuma máscara do desprezo como foi evidenciadopor Geza Roheum: "Vocês são completamentediferentes de mim, mas eu os perdôo." Ela podetambém servir de garantia a uma posição ide-ológica oposta a qualquer definição universal

dos direitos do homem. A exaltação da diferen-ça leva até, em sua forma mais perniciosa, à jus-tificação dos regimes segregacionistas. O direitoà diferença é então transformado em obrigaçãode diferença.

Relativizar o relativismo cultural é algoque se impõe. É preciso retornar a seu uso ori-ginal, o único aceitável cientificamente, que fa-zia do relativismo um princípio metodológico,princípio que continua a ser operacional. Nestaperspectiva, recorrer ao relativismo cultural épostular que todo o conjunto cultural tem umatendência para a coerência e uma certa autono-mia simbólica que lhe confere seu caráter origi-nal singular; e que não se pode analisar um tra-ço cultural independentemente do sistema cul-tural ao qual ele pertence e que lhe dá sentido.Isto quer dizer estudar todas as culturas, quais-quer que sejam a priori, sem compará-las e ou"medi-las" prematuramente em relação às ou-tras culturas. Privilegiar a abordagem compreen-siva e, definitivamente, adotar a hipótese que,mesmo no caso das culturas dominadas, umacultura funciona sempre como uma cultura, ja-mais totalmente dependente, jamais totalmenteautônoma [Grignon e Passeron, 1989]-É precisosaber considerar a dependência ou ainda a in-terdependência. E, através de uma justa aplica-ção do princípio metodológico, é preciso tam-bém saber localizar a autonomia (relativa) quecaracteriza cada sistema cultural.

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O aprofundamento da idéia antropológicade cultura leva igualmente a reexaminar a no-ção de etnocentrismo. Um distorção de sentidose produziu quando a palavra, até então utiliza-da somente nas ciências sociais, caiu no uso co-mum. Cada vez mais, pelo abuso de linguagem,etnocentrismo se tornou sinônimo de racismo.O etnocentrismo então passou a ser condena-do com o mesmo vigor que o racismo. Ora, o ra-cismo, mais do que uma atitude é uma ideolo-gia, baseada em pressupostos pseudocientíficoscuja origem pode ser datada historicamente[Simon, 1970] e que está longe de ser universal.O etnocentrismo, ao contrario, pode ser encon-trado tanto nas sociedades "primitivas", queconsideram geralmente os seus vizinhos comoinferiores em humanidade, quanto nas socieda-des mais "modernas" que se julgam mais "civili-zadas". Se o racismo é uma forma de perversãosocial, o etnocentrismo, compreendido no sen-tido original do conceito, é um fenômeno so-ciologicamente normal, como explica Pierre-Jean Simon:

O etnocentrismo deve ser encarado como umfenômeno plenamente normal, constitutivo, narealidade de qualquer coletividade étnica en-quanto tal. Ele assegura uma função positiva depreservação da própria existência desta coleti-vidade, constituindo uma espécie de mecanis-mo de defesa do in-group diante do exterior.Neste sentido, um certo grau de etnocentrismo

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é necessário para a sobrevivência de qualquercoletividade étnica, pois parece que ela vai ne-cessariamente se desagregar e desaparecer semo sentimento de excelência e superioridade,largamente partilhado pelos indivíduos que aconstituem. Este sentimento de superioridadeaparece ao menos em algum aspecto de sua lín-gua, de suas maneiras de viver, de sentir ou depensar, de seus valores e de sua religião. A per-da de todo o etnocentrismo leva à assimilaçãopor adoção da língua, da cultura e dos valoresde uma coletividade considerada como supe-rior [1993, p- 61].

Evidentemente, admitir o caráter inevitá-vel e mesmo necessário do etnocentrismocomo fenômeno social não diminui a validadeda regra metodológica que impõe que pesquisa-dor se desprenda de todo etnocentrismo. Estaregra é necessária, ao menos em uma primeirafase da pesquisa. No entanto, se quisermos con-siderar que não há diferença essencial entre oshomens e as culturas, ou seja, que o outro não énunca absolutamente outro e que ha semprealgo de nós nos outros, porque a humanidade éuma só e a Cultura está no centro das culturasou, segundo a expressão consagrada que "o uni-versal está no interior do particular", então po-deremos aceitar, como Bourdieu, em certos mo-mentos da pesquisa, o interesse do uso metodo-lógico do etnocentrismo:

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Na realidade, o etnólogo deve afirmar a identi-dade (supondo por exemplo que as pessoasnão fazem nada gratuitamente, que elas têm in-tenções, latentes ou ocultas, interesses, talvezmuito diferentes, que elas dão golpes, etc.) paraencontrar as verdadeiras diferenças. Estou con-vencido de que uma certa forma de eínocen-trismo pode ser a condição para uma verda-deira compreensão, se designarmos assim a re-ferência à sua própria experiência, à sua pró-pria prática e desde que, evidentemente, estareferência seja consciente e controlada. Nósgostamos de nos identificar com um aíter egoentusiasmado [...]. É mais difícil reconhecernos outros, tão diferentes na aparência, um euque não queremos conhecer. Deixando entãode ser projeções complacentes em maior oumenor grau, a etnologia e a sociologia levam auma descoberta de si mesmo através da objeti-vação de si exigida pelo conhecimento do ou-tro [1985, p.59]

Tomados como princípios metodológicos,o relativismo cultural e o etnocentrismo não sãoentão contraditórios, mas, ao contrário, comple-mentares. Sua utilização combinada permite aopesquisador apreender a dialética do igual e dooutro, da identidade e da diferença, ou seja, daCultura e das culturas, que é o fundamento dadinâmica social.

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Sobre o livro

Formato: 12 x 19 cmMancha: 17 x 32.5 paicasTipologia: Garamond Book (texto)Papel: Ripasa - Dunas 75g/m2 (miolo)cartão supremo 250g/mJ (capa)Impressão: Document Gemer/D(K'iiTech 135 (miolo)Acabamento: Document Center/Perfeet BindcrImpressão capa: Ciráfica São JoãoTiragem: 1000

Equipe de Realização

Assistente de Produção Gr.itieaLuzia Bianchi

RevisãoMariza Inês Mortari RendaJosé Romão

Projeto Gráfico c Oweíio di CapaCássia Letícia Garrara Domiciano

Valéria Maria Campaneri

DiítgrarnaeiíoAneels rins Sflntns l.niz_ _^

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A noção de cultura nas ciência2S6 s sociais

316.722/C963n. DEVOLVER NOME LEIT.(182159/02)

C u c h e * Denny

A n c j ç ã o de cs s o c i a i s

310. 722/C963TJ

nasceu em 1947 e reside emParis. É doutor em Etnologiapela Sorbonne, sob aorientação de Roger Bastide{1976}. Trabalhou comoprofessor nas universidades deStrasburgo, Renn.es e Algéria.

Desde 1992 é professor epesquisador do Laboratóriode Etnologia da Universidadede Paris V.

B especialista na questão dasrelações interétnicas emigrações internacionais.