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Marilena Chauí _______________________________ Introdução Para que Filosofia? As evidências do cotidiano Em nossa vida cotidiana, afirmamos, negamos, desejamos, aceitamos ou recusamos coisas, pessoas, situações. Fazemos perguntas como “que horas são?”, ou “que dia é hoje?”. Dizemos frases como “ele está sonhando ”, ou “ela ficou maluca”. Fazemos afirmações como “onde há fumaça, há fogo ”, ou “não saia na chuva para não se resfriar”. Avaliamos coisas e pessoas, dizendo, por exemplo, “esta casa é mais bonita do que a outra” e “Maria está mais jovem do que Glorinha”. Numa disputa, quando os ânimos estão exaltados, um dos contendores pode gritar ao outro: “Mentiroso! Eu estava lá e não foi isso o que aconteceu”, e alguém, querendo acalmar a briga, pode dizer: “Vamos ser objetivos, cada um diga o que viu e vamos nos entender”. Também é comum ouvirmos os pais e amigos dizerem que somos muito subjetivos quando o assunto é o namorado ou a namorada. Freqüentemente, quando aprovamos uma pessoa, o que ela diz, como ela age, dizemos que essa pessoa “é legal ”. – 5 – Convite à Filosofia _______________________________ Vejamos um pouco mais de perto o que dizemos em nosso cotidiano. Quando pergunto “que horas são?” ou “que dia é hoje?”, minha expectativa é a de que alguém, tendo um relógio ou um calendário, me dê a resposta exata. Em que acredito quando faço a pergunta e aceito a resposta? Acredito que o tempo existe, que ele

Marilena Chauí(9~30)

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Marilena Chau_______________________________IntroduoPara que Filosofia?As evidncias do cotidianoEm nossa vida cotidiana, afirmamos, negamos, desejamos, aceitamos ourecusamos coisas, pessoas, situaes. Fazemos perguntas como que horas so?, ou que dia hoje?. Dizemos frases como ele est sonhando , ou ela ficou maluca. Fazemos afirmaescomo onde h fumaa, h fogo , ou no saia na chuva para no se resfriar. Avaliamoscoisas e pessoas, dizendo, por exemplo,esta casa mais bonita do que a outra e Maria est mais jovem do queGlorinha.Numa disputa, quando os nimos esto exaltados, um dos contendores podegritar ao outro: Mentiroso! Eu estava l e no foi isso o que aconteceu, e algum, querendoacalmar a briga, pode dizer: Vamos ser objetivos, cada umdiga o que viu e vamos nos entender.Tambm comum ouvirmos os pais e amigos dizerem que somos muitosubjetivos quando o assunto o namorado ou a namorada. Freqentemente,quando aprovamos uma pessoa, o que ela diz, como ela age, dizemos que essapessoa legal . 5

Convite Filosofia_______________________________Vejamos um pouco mais de perto o que dizemos em nosso cotidiano.Quando pergunto que horas so? ou que dia hoje?, minha expectativa a de que algum,tendo um relgio ou um calendrio, me d a resposta exata. Emque acredito quando fao a pergunta e aceito a resposta? Acredito que o tempo existe, que elepassa, pode ser medido em horas e dias, que o que j passou diferente de agora e o que virtambm h de ser diferente deste momento, que o passado pode ser lembrado ou esquecido, e ofuturo, desejado ou temido. Assim, uma simples pergunta contm, silenciosamente, vriascrenas no questionadas por ns.Quando digo ele est sonhando , referindo-me a algum que diz ou pensaalguma coisa que julgo impossvel ou improvvel, tenho igualmente muitascrenas silenciosas: acredito que sonhar diferente de estar acordado, que, no sonho, oimpossvel e o improvvel se apresentam como possvel e provvel, etambm que o sonho se relaciona com o irreal, enquanto a viglia se relaciona com o que existerealmente.Acredito, portanto, que a realidade existe fora de mim, posso perceb-la econhec-la tal como , sei diferenciar realidade de iluso.A frase ela ficou maluca contm essas mesmas crenas e mais uma: a de quesabemos diferenciar razo de loucura e maluca a pessoa que inventa umarealidade existente s para ela. Assim, ao acreditar que sei distinguir razo de loucura, acreditotambm que a razo se refere a uma realidade que a mesmapara todos, ainda que no gostemos das mesmas coisas.Quando algum diz onde h fumaa, h fogo ou no saia na chuva para no se resfriar,afirma silenciosamente muitas crenas: acredita que existem relaes de causa e efeito entre ascoisas, que onde houver uma coisa certamente houve uma causa para ela, ou que essa coisa causa de alguma outra (o fogo causa a fumaa como efeito, a chuva causa o resfriado comoefeito). Acreditamos, assim, que a realidade feita de causalidades, que as coisas, os fatos, assituaes seencadeiam em relaes causais que podemos conhecer e, at mesmo, controlarpara o uso de nossa vida.Quando avaliamos que uma casa mais bonita do que a outra, ou que Maria est mais jovem doque Glorinha, acreditamos que as coisas, as pessoas, as situaes, os fatos podem ser comparadose avaliados, julgados pela qualidade (bonito, feio, bom, ruim) ou pela quantidade (mais, menos,maior, menor). Julgamos, assim,que a qualidade e a quantidade existem, que podemos conhec-las e us-las emnossa vida.Se, por exemplo, dissermos que o sol maior do que o vemos, tambmestamos acreditando que nossa percepo alcana as coisas de modos diferentes, ora tais comoso em si mesmas, ora tais como nos aparecem, dependendo da 6

Marilena Chau_______________________________distncia, de nossas condies de visibilidade ou da localizao e do movimento dos objetos.Acreditamos, portanto, que o espao existe, possui qualidades (perto, longe, alto, baixo) equantidades, podendo ser medido (comprimento, largura, altura). Noexemplo do sol, tambm se nota que acreditamos que nossa viso pode ver ascoisas diferentemente do que elas so, mas nem por isso diremos que estamossonhando ou que ficamos malucos.Na briga, quando algum chama o outro de mentiroso porque no estaria dizendo os fatosexatamente como aconteceram, est presente a nossa crena de que hdiferena entre verdade e mentira. A primeira diz as coisas tais como so,enquanto a segunda faz exatamente o contrrio, distorcendo a realidade.No entanto, consideramos a mentira diferente do sonho, da loucura e do erroporque o sonhador, o louco e o que erra se iludem involuntariamente, enquanto o mentirosodecide voluntariamente deformar a realidade e os fatos.Com isso, acreditamos que o erro e a mentira so falsidades, mas diferentesporque somente na mentira h a deciso de falsear.Ao diferenciarmos erro de mentira, considerando o primeiro uma iluso ou umengano involuntrios e a segunda uma deciso voluntria, manifestamossilenciosamente a crena de que somos seres dotados de vontade e que deladepende dizer a verdade ou a mentira.Ao mesmo tempo, porm, nem sempre avaliamos a mentira como alguma coisaruim: no gostamos tanto de ler romances, ver novelas, assistir a filmes? E no so mentira? que tambm acreditamos que quando algum nos avisa que estmentindo, a mentira aceitvel, no seria uma mentira no duro, pra valer.Quando distinguimos entre verdade e mentira e distinguimos mentirasinaceitveis de mentiras aceitveis, no estamos apenas nos referindo aoconhecimento ou desconhecimento da realidade, mas tambm ao carter dapessoa, sua moral. Acreditamos, portanto, que as pessoas, porque possuemvontade, podem ser morais ou imorais, pois cremos que a vontade livre para o bem ou para omal.Na briga, quando uma terceira pessoa pede s outras duas para que sejamobjetivas ou quando falamos dos namorados como sendo muito subjetivos,tambm estamos cheios de crenas silenciosas. Acreditamos que quando algumquer defender muito intensamente um ponto de vista, uma preferncia, umaopinio, at brigando por isso, ou quando sente um grande afeto por outra pessoa, esse algumperde a objetividade, ficando muito subjetivo .Com isso, acreditamos que a objetividade uma atitude imparcial que alcana as coisas taiscomo so verdadeiramente, enquanto a subjetividade uma atitudeparcial, pessoal, ditada por sentimentos variados (amor, dio, medo, desejo).Assim, no s acreditamos que a objetividade e a subjetividade existem, como 7

Convite Filosofia_______________________________ainda acreditamos que so diferentes e que a primeira no deforma a realidade, enquanto asegunda, voluntria ou involuntariamente, a deforma.Ao dizermos que algum legal porque tem os mesmos gostos, as mesmasidias, respeita ou despreza as mesmas coisas que ns e tem atitudes, hbitos e costumes muitoparecidos com os nossos, estamos, silenciosamente, acreditando que a vida com as outras pessoas- famlia, amigos, escola, trabalho, sociedade, poltica - nos faz semelhantes ou diferentes emdecorrncia de normas e valores morais, polticos, religiosos e artsticos, regras de conduta,finalidades de vida.Achando bvio que todos os seres humanos seguem regras e normas de conduta,possuem valores morais, religiosos, polticos, artsticos, vivem na companhia de seus semelhantese procuram distanciar-se dos diferentes dos quais discordam e com os quais entram em conflito,acreditamos que somos seres sociais, morais e racionais, pois regras, normas, valores, finalidadess podem ser estabelecidos por seres conscientes e dotados de raciocnio.Como se pode notar, nossa vida cotidiana toda feita de crenas silenciosas, da aceitao tcitade evidncias que nunca questionamos porque nos parecemnaturais, bvias. Cremos no espao, no tempo, na realidade, na qualidade, naquantidade, na verdade, na diferena entre realidade e sonho ou loucura, entre verdade ementira; cremos tambm na objetividade e na diferena entre ela e a subjetividade, naexistncia da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da sociedade.A atitude filosficaImaginemos, agora, algum que tomasse uma deciso muito estranha ecomeasse a fazer perguntas inesperadas. Em vez de que horas so? ou que dia hoje?,perguntasse: O que o tempo? Em vez de dizer est sonhando ouficou maluca, quisesse saber: O que o sonho? A loucura? A razo?Se essa pessoa fosse substituindo sucessivamente suas perguntas, suasafirmaes por outras: Onde h fumaa, h fogo , ou no saia na chuva para no ficarresfriado, por: O que causa? O que efeito? ; seja objetivo , oueles so muito subjetivos, por: O que a objetividade? O que asubjetividade? ; Esta casa mais bonita do que a outra, por: O que mais? Oque menos? O que o belo?Em vez de gritar mentiroso!, questionasse: O que a verdade? O que o falso?O que o erro? O que a mentira? Quando existe verdade e por qu? Quandoexiste iluso e por qu?Se, em vez de falar na subjetividade dos namorados, inquirisse: O que o amor?O que o desejo? O que so os sentimentos?Se, em lugar de discorrer tranqilamente sobre maior e menor ou claro eescuro, resolvesse investigar: O que a quantidade? O que a qualidade? 8

Marilena Chau_______________________________E se, em vez de afirmar que gosta de algum porque possui as mesmas idias, os mesmos gostos,as mesmas preferncias e os mesmos valores, preferisse analisar: O que um valor? O que umvalor moral? O que um valor artstico? O que a moral? O que a vontade? O que aliberdade?Algum que tomasse essa deciso, estaria tomando distncia da vida cotidiana e de si mesmo,teria passado a indagar o que so as crenas e os sentimentos que alimentam, silenciosamente,nossa existncia.Ao tomar essa distncia, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremosno que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que so nossascrenas e nossos sentimentos. Esse algum estaria comeando a adotar o quechamamos de atitude filosfica.Assim, uma primeira resposta pergunta O que Filosofia? poderia ser: Adeciso de no aceitar como bvias e evidentes as coisas, as idias, os fatos, as situaes, osvalores, os comportamentos de nossa existncia cotidiana; jamais aceit-los sem antes hav-losinvestigado e compreendido.Perguntaram, certa vez, a um filsofo: Para que Filosofia?. E ele respondeu:Para no darmos nossa aceitao imediata s coisas, sem maioresconsideraes.A atitude crticaA primeira caracterstica da atitude filosfica negativa, isto , um dizer no ao senso comum,aos pr-conceitos, aos pr-juzos, aos fatos e s idias daexperincia cotidiana, ao que todo mundo diz e pensa, ao estabelecido.A segunda caracterstica da atitude filosfica positiva, isto , uma interrogao sobre o que soas coisas, as idias, os fatos, as situaes, os comportamentos, os valores, ns mesmos. tambmuma interrogao sobre o porqu disso tudo e de ns, e uma interrogao sobre como tudo isso assim e no de outra maneira. Oque ? Por que ? Como ? Essas so as indagaes fundamentais da atitudefilosfica.A face negativa e a face positiva da atitude filosfica constituem o quechamamos de atitude crtica e pensamento crtico.A Filosofia comea dizendo no s crenas e aos preconceitos do senso comume, portanto, comea dizendo que no sabemos o que imaginvamos saber; porisso, o patrono da Filosofia, o grego Scrates, afirmava que a primeira efundamental verdade filosfica dizer: Sei que nada sei. Para o discpulo de Scrates, ofilsofo grego Plato, a Filosofia comea com a admirao; j odiscpulo de Plato, o filsofo Aristteles, acreditava que a Filosofia comea com o espanto.Admirao e espanto significam: tomamos distncia do nosso mundo costumeiro,atravs de nosso pensamento, olhando-o como se nunca o tivssemos visto antes, 9

Convite Filosofia_______________________________como se no tivssemos tido famlia, amigos, professores, livros e outros meios de comunicaoque nos tivessem dito o que o mundo ; como se estivssemosacabando de nascer para o mundo e para ns mesmos e precisssemos perguntaro que , por que e como o mundo, e precisssemos perguntar tambm o quesomos, por que somos e como somos.Para que Filosofia?Ora, muitos fazem uma outra pergunta: afinal, para que Filosofia? uma pergunta interessante. No vemos nem ouvimos ningum perguntar, porexemplo, para que matemtica ou fsica? Para que geografia ou geologia? Paraque histria ou sociologia? Para que biologia ou psicologia? Para que astronomia ou qumica?Para que pintura, literatura, msica ou dana? Mas todo mundo acha muito natural perguntar:Para que Filosofia?Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irnica, conhecida dosestudantes de Filosofia: A Filosofia uma cincia com a qual e sem a qual o mundo permanecetal e qual. Ou seja, a Filosofia no serve para nada. Por isso, se costuma chamar de filsofoalgum sempre distrado, com a cabea nomundo da lua, pensando e dizendo coisas que ningum entende e que soperfeitamente inteis.Essa pergunta, Para que Filosofia?, tem a sua razo de ser.Em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que algumacoisa s tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prtica, muito visvel e de utilidadeimediata.Por isso, ningum pergunta para que as cincias, pois todo mundo imagina ver a utilidade dascincias nos produtos da tcnica, isto , na aplicao cientfica realidade.Todo mundo tambm imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa dacompra e venda das obras de arte, quanto porque nossa cultura v os artistascomo gnios que merecem ser valorizados para o elogio da humanidade.Ningum, todavia, consegue ver para que serviria a Filosofia, donde dizer-se: no serve paracoisa alguma.Parece, porm, que o senso comum no enxerga algo que os cientistas sabemmuito bem. As cincias pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graas aprocedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade,atravs de instrumentos e objetos tcnicos; pretendem fazer progressos nosconhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os.Ora, todas essas pretenses das cincias pressupem que elas acreditam naexistncia da verdade, de procedimentos corretos para bem usar o pensamento,na tecnologia como aplicao prtica de teorias, na racionalidade dosconhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeioados. 10

Marilena Chau_______________________________Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relao entre teoria eprtica, correo e acmulo de saberes: tudo isso no cincia, so questes filosficas. Ocientista parte delas como questes j respondidas, mas a Filosofia quem as formula e buscarespostas para elas.Assim, o trabalho das cincias pressupe, como condio, o trabalho daFilosofia, mesmo que o cientista no seja filsofo. No entanto, como apenas os cientistas efilsofos sabem disso, o senso comum continua afirmando que aFilosofia no serve para nada.Para dar alguma utilidade Filosofia, muitos consideram que, de fato, a Filosofia no serviriapara nada, se servir fosse entendido como a possibilidade de fazer usos tcnicos dos produtosfilosficos ou dar-lhes utilidade econmica, obtendo lucros com eles; consideram tambm que aFilosofia nada teria a ver com acincia e a tcnica.Para quem pensa dessa forma, o principal para a Filosofia no seriam osconhecimentos (que ficam por conta da cincia), nem as aplicaes de teorias(que ficam por conta da tecnologia), mas o ensinamento moral ou tico. AFilosofia seria a arte do bem viver. Estudando as paixes e os vcios humanos, a liberdade e avontade, analisando a capacidade de nossa razo para impor limites aos nossos desejos e paixes,ensinando-nos a viver de modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos, aFilosofia teria como finalidade ensinar-nos a virtude, que o princpio do bem-viver.Essa definio da Filosofia, porm, no nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma artemoral ou tica, ou uma arte do bem-viver, a Filosofia continua fazendo suas perguntasdesconcertantes e embaraosas: O que o homem? O que avontade? O que a paixo? O que a razo? O que o vcio? O que a virtude?O que a liberdade? Como nos tornamos livres, racionais e virtuosos? Por que a liberdade e avirtude so valores para os seres humanos? O que um valor? Por que avaliamos os sentimentose as aes humanas?Assim, mesmo se dissssemos que o objeto da Filosofia no o conhecimento da realidade, nemo conhecimento da nossa capacidade para conhecer, mesmo sedissssemos que o objeto da Filosofia apenas a vida moral ou tica, aindaassim, o estilo filosfico e a atitude filosfica permaneceriam os mesmos, pois as perguntasfilosficas - o que, por que e como - permanecem.Atitude filosfica: indagarSe, portanto, deixarmos de lado, por enquanto, os objetos com os quais aFilosofia se ocupa, veremos que a atitude filosfica possui algumascaractersticas que so as mesmas, independentemente do contedo investigado.Essas caractersticas so:- perguntar o que a coisa, ou o valor, ou a idia, . A Filosofia pergunta qual a realidade ounatureza e qual a significao de alguma coisa, no importa qual; 11 Convite Filosofia_______________________________- perguntar como a coisa, a idia ou o valor, . A Filosofia indaga qual a estrutura e quais so asrelaes que constituem uma coisa, uma idia ou umvalor;- perguntar por que a coisa, a idia ou o valor, existe e como . A Filosofia pergunta pelaorigem ou pela causa de uma coisa, de uma idia, de um valor.A atitude filosfica inicia-se dirigindo essas indagaes ao mundo que nos rodeia e s relaesque mantemos com ele. Pouco a pouco, porm, descobre que essasquestes se referem, afinal, nossa capacidade de conhecer, nossa capacidade de pensar.Por isso, pouco a pouco, as perguntas da Filosofia se dirigem ao prpriopensamento: o que pensar, como pensar, por que h o pensar? A Filosofiatorna-se, ento, o pensamento interrogando-se a si mesmo. Por ser uma volta que o pensamentorealiza sobre si mesmo, a Filosofia se realiza como reflexo.A reflexo filosficaReflexo significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si mesmo. Areflexo o movimento pelo qual o pensamento volta-se para simesmo, interrogando a si mesmo.A reflexo filosfica radical porque um movimento de volta do pensame nto sobre si mesmopara conhecer-se a si mesmo, para indagar como possvel oprprio pensamento.No somos, porm, somente seres pensantes. Somos tambm seres que agem nomundo, que se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, asplantas, as coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relaes tanto por meio dalinguagem quanto por meio de gestos e aes.A reflexo filosfica tambm se volta para essas relaes que mantemos com arealidade circundante, para o que dizemos e para as aes que realizamos nessas relaes.A reflexo filosfica organiza-se em torno de trs grandes conjuntos de perguntas ou questes:1. Por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o quefazemos? Isto , quais os motivos, as razes e as causas para pensarmos o que pensamos,dizermos o que dizemos, fazermos o que fazemos?2. O que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quandofalamos, o que queremos fazer quando agimos? Isto , qual o contedo ou o sentido do quepensamos, dizemos ou fazemos?3. Para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o quefazemos? Isto , qual a inteno ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos? 12 Marilena Chau_______________________________Essas trs questes podem ser resumidas em: O que pensar, falar e agir? E elas pressupem aseguinte pergunta: Nossas crenas cotidianas so ou no um saber verdadeiro, um conhecimento?Como vimos, a atitude filosfica inicia-se indagando: O que ? Como ? Por que ?, dirigindo-seao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam. Soperguntas sobre a essncia, a significao ou a estrutura e a origem de todas as coisas.J a reflexo filosfica indaga: Por qu?, O qu?, Para qu?, dirigindo-se ao pensamento, aosseres humanos no ato da reflexo. So perguntas sobre acapacidade e a finalidade humanas para conhecer e agir.Filosofia: um pensamento sistemticoEssas indagaes fundamentais no se realizam ao acaso, segundo preferncias e opinies decada um de ns. A Filosofia no um eu acho que ou um eugosto de. No pesquisa de opinio maneira dos meios de comunicao demassa. No pesquisa de mercado para conhecer preferncias dos consumidorese montar uma propaganda.As indagaes filosficas se realizam de modo sistemtico.Que significa isso?Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentoslgicos entre os enunciados, opera com conceitos ou idiasobtidos por procedimentos de demonstrao e prova, exige a fundamentaoracional do que enunciado e pensado. Somente assim a reflexo filosfica pode fazer com quenossa experincia cotidiana, nossas crenas e opinies alcancem uma viso crtica de si mesmas.No se trata de dizer eu acho que , mas de poder afirmar eu penso que.O conhecimento filosfico um trabalho intelectual. sistemtico porque no se contenta emobter respostas para as questes colocadas, mas exige que asprprias questes sejam vlidas e, em segundo lugar, que as respostas sejamverdadeiras, estejam relacionadas entre si, esclaream umas s outras, formem conjuntoscoerentes de idias e significaes, sejam provadas e demonstradasracionalmente.Quando o senso comum diz esta minha filosofia ou isso a filosofia de fulana ou de fulano,engana-se e no se engana.Engana-se porque imagina que para ter uma filosofia basta algum possuir um conjunto deidias mais ou menos coerentes sobre todas as coisas e pessoas, bem como ter um conjunto deprincpios mais ou menos coerentes para julgar ascoisas e as pessoas. Minha filosofia ou a filosofia de fulano ficam no plano de um eu achocoerente. 13

Convite Filosofia_______________________________Mas o senso comum no se engana ao usar essas expresses porque percebe,ainda que muito confusamente, que h uma caracterstica nas idias e nosprincpios que nos leva a dizer que so uma filosofia: a coerncia, as relaes entre as idias eentre os princpios. Ou seja, o senso comum pressente que a Filosofia opera sistematicamente,com coerncia e lgica, que a Filosofia tem uma vocao para formar um todo daquilo queaparece de modo fragmentado emnossa experincia cotidiana.Em busca de uma definio da FilosofiaQuando comeamos a estudar Filosofia, somos logo levados a buscar o que ela .Nossa primeira surpresa surge ao descobrirmos que no h apenas uma definio da Filosofia,mas vrias. A segunda surpresa vem ao percebermos que, alm devrias, as definies parecem contradizer-se. Eis porque muitos, cheios deperplexidade, indagam: afinal, o que a Filosofia que sequer consegue dizer o que ela ?Uma primeira aproximao nos mostra pelo menos quatro definies gerais doque seria a Filosofia:1. Viso de mundo de um povo, de uma civilizao ou de uma cultura. Filosofia corresponde, demodo vago e geral, ao conjunto de idias, valores e prticaspelos quais uma sociedade apreende e compreende o mundo e a si mesma,definindo para si o tempo e o espao, o sagrado e o profano, o bom e o mau, o justo e o injusto, obelo e o feio, o verdadeiro e o falso, o possvel e o impossvel, o contingente e o necessrio.Qual o problema dessa definio? Ela to genrica e to ampla que nopermite, por exemplo, distinguir a Filosofia e religio, Filosofia e arte, Filosofia e cincia. Naverdade, essa definio identifica Filosofia e Cultura, pois esta uma viso de mundo coletivaque se exprime em idias, valores e prticas de umasociedade.A definio, portanto, no consegue acercar-se da especificidade do trabalhofilosfico e por isso no podemos aceit-la.2. Sabedoria de vida. Aqui, a Filosofia identificada com a definio e a ao de algumaspessoas que pensam sobre a vida moral, dedicando-se contemplao do mundo para aprender com ele a controlar e dirigir suas vidas de modo tico esbio.A Filosofia seria uma contemplao do mundo e dos homens para nos conduzir auma vida justa, sbia e feliz, ensinando-nos o domnio sobre ns mesmos, sobre nossos impulsos,desejos e paixes. nesse sentido que se fala, por exemplo, numa filosofia do budismo.Esta definio, porm, nos diz, de modo vago, o que se espera da Filosofia (a sabedoria interior),mas no o que e o que faz a Filosofia e, por isso, tambm no podemos aceit-la. 14

Marilena Chau_______________________________3. Esforo racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenadae dotada de sentido. Nesse caso, comea-se distinguindo entre Filosofia e religio e at mesmoopondo uma outra, pois ambas possuem o mesmo objeto(compreender o Universo), mas a primeira o faz atravs do esforo racional,enquanto a segunda, por confiana (f) numa revelao divina.Ou seja, a Filosofia procura discutir at o fim o sentido e o fundamento darealidade, enquanto a conscincia religiosa se baseia num dado primeiro einquestionvel, que a revelao divina indemonstrvel.Pela f, a religio aceita princpios indemonstrveis e at mesmo aqueles que podem serconsiderados irracionais pelo pensamento, enquanto a Filosofia noadmite indemonstrabilidade e irracionalidade. Pelo contrrio, a conscinciafilosfica procura explicar e compreender o que parece ser irracional einquestionvel.No entanto, esta definio tambm problemtica, porque d Filosofia a tarefa de ofereceruma explicao e uma compreenso totais sobre o Universo,elaborando um sistema universal ou um sistema do mundo, mas sabemos, hoje,que essa tarefa impossvel.H pelo menos duas limitaes principais a esta pretenso totalizadora: emprimeiro lugar, porque a explicao sobre a realidade tambm oferecida pelas cincias e pelasartes, cada uma das quais definindo um aspecto e um campo da realidade para estudo (no casodas cincias) e para a expresso (no caso dasartes), j no sendo pensvel uma nica disciplina que pudesse abranger sozinha a totalidade dosconhecimentos; em segundo lugar, porque a prpria Filosofia j no admite que seja possvel umsistema de pensamento nico que oferea umanica explicao para o todo da realidade. Por isso, esta definio tambm no pode ser aceita.4. Fundamentao terica e crtica dos conhecimentos e das prticas. A Filosofia, cada vezmais, ocupa-se com as condies e os princpios doconhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro; com a origem, a forma e o contedo dosvalores ticos, polticos, artsticos e culturais; com a compreenso das causas e das formas dailuso e do preconceito no plano individual e coletivo; com as transformaes histricas dosconceitos, das idias e dos valores.A Filosofia volta-se, tambm, para o estudo da conscincia em suas vriasmodalidades: percepo, imaginao, memria, linguagem, inteligncia,experincia, reflexo, comportamento, vontade, desejo e paixes, procurandodescrever as formas e os contedos dessas modalidades de relao entre o serhumano e o mundo, do ser humano consigo mesmo e com os outros. Finalmente,a Filosofia visa ao estudo e interpretao de idias ou significaes gerais como: realidade,mundo, natureza, cultura, histria, subjetividade, objetividade, diferena, repetio, semelhana,conflito, contradio, mudana, etc. 15

Convite Filosofia_______________________________Sem abandonar as questes sobre a essncia da realidade, a Filosofia procuradiferenciar-se das cincias e das artes, dirigindo a investigao sobre o mundo natural e o mundohistrico (ou humano) num momento muito preciso: quandoperdemos nossas certezas cotidianas e quando as cincias e as artes ainda no ofereceram outrascertezas para substituir as que perdemos.Em outras palavras, a Filosofia se interessa por aquele instante em que arealidade natural (o mundo das coisas) e a histrica (o mundo dos homens)tornam-se estranhas, espantosas, incompreensveis e enigmticas, quando o senso comum j nosabe o que pensar e dizer e as cincias e as artes ainda no sabem o que pensar e dizer.Esta ltima descrio da atividade filosfica capta a Filosofia como anlise (das condies dacincia, da religio, da arte, da moral), como reflexo (isto , volta da conscincia para simesma para conhecer-se enquanto capacidade para oconhecimento, o sentimento e a ao) e como crtica (das iluses e dos preconceitos individuaise coletivos, das teorias e prticas cientficas, polticas e artsticas), essas trs atividades (anlise,reflexo e crtica) estando orientadas pela elaborao filosfica de significaes gerais sobre arealidade e os seres humanos. Alm de anlise, reflexo e crtica, a Filosofia a busca dofundamento e do sentido da realidade em suas mltiplas formas indagando o que so, qual suapermanncia e qual a necessidade interna que as transforma em outras. O que o ser e oaparecer-desaparecer dos seres?A Filosofia no cincia: uma reflexo crtica sobre os procedimentos econceitos cientficos. No religio: uma reflexo crtica sobre as origens e formas dascrenas religiosas. No arte: uma interpretao crtica doscontedos, das formas, das significaes das obras de arte e do trabalho artstico.No sociologia nem psicologia, mas a interpretao e avaliao crtica dosconceitos e mtodos da sociologia e da psicologia. No poltica, masinterpretao, compreenso e reflexo sobre a origem, a natureza e as formas do poder. No histria, mas interpretao do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo ecompreenso do que seja o prprio tempo. Conhecimentodo conhecimento e da ao humanos, conhecimento da transformao temporaldos princpios do saber e do agir, conhecimento da mudana das formas do real ou dos seres, aFilosofia sabe que est na Histria e que possui uma histria.Intil? til?O primeiro ensinamento filosfico perguntar: O que o til? Para que e para quem algo til?O que o intil? Por que e para quem algo intil?O senso comum de nossa sociedade considera til o que d prestgio, poder, fama e riqueza. Julgao til pelos resultados visveis das coisas e das aes,identificando utilidade e a famosa expresso levar vantagem em tudo. Desse ponto de vista, aFilosofia inteiramente intil e defende o di reito de ser intil. 16

Marilena Chau_______________________________No poderamos, porm, definir o til de outra maneira?Plato definia a Filosofia como um saber verdadeiro que deve ser usado embenefcio dos seres humanos.Descartes dizia que a Filosofia o estudo da sabedoria, conhecimento perfeito de todas as coisasque os humanos podem alcanar para o uso da vida, aconservao da sade e a inveno das tcnicas e das artes.Kant afirmou que a Filosofia o conhecimento que a razo adquire de si mesma para saber oque pode conhecer e o que pode fazer, tendo como finalidade afelicidade humana.Marx declarou que a Filosofia havia passado muito tempo apenas contemplandoo mundo e que se tratava, agora, de conhec-lo para transform-lo, transformao que trariajustia, abundncia e felicidade para todos.Merleau-Ponty escreveu que a Filosofia um despertar para ver e mudar nossomundo.Espinosa afirmou que a Filosofia um caminho rduo e difcil, mas que pode ser percorrido portodos, se desejarem a liberdade e a felicidade.Qual seria, ento, a utilidade da Filosofia?Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for til; se no se deixar guiarpela submisso s idias dominantes e aos poderes estabelecidos for til; se buscar compreendera significao do mundo, da cultura, da histria for til; se conhecer o sentido das criaeshumanas nas artes, nas cincias e na poltica for til; se dar a cada um de ns e nossa sociedadeos meios para serem conscientes de si e de suas aes numa prtica que deseja a liberdade e afelicidade para todos for til, ento podemos dizer que a Filosofia o mais til de todos os saberesde que os seres humanos so capazes. 17

Convite Filosofia_______________________________Unidade 1A Filosofia 18

Marilena Chau_______________________________Captulo 1A origem da FilosofiaA palavra filosofiaA palavra filosofia grega. composta por duas outras: philo e sophia. Philo deriva-se de philia,que significa amizade, amor fraterno, respeito entre os iguais.Sophia quer dizer sabedoria e dela vem a palavra sophos, sbio.Filosofia significa, portanto, amizade pela sabedoria, amor e respeito pelo saber.Filsofo: o que ama a sabedoria, tem amizade pelo saber, deseja saber.Assim, filosofia indica um estado de esprito, o da pessoa que ama, isto , deseja o conhecimento,o estima, o procura e o respeita.Atribui-se ao filsofo grego Pitgoras de Samos (que viveu no sculo V antes de Cristo) ainveno da palavra filosofia. Pitgoras teria afirmado que a sabedoria plena e completa pertenceaos deuses, mas que os homens podem desej-la ouam-la, tornando-se filsofos.Dizia Pitgoras que trs tipos de pessoas compareciam aos jogos olmpicos (a festa maisimportante da Grcia): as que iam para comerciar durante os jogos, ali estando apenas paraservir aos seus prprios interesses e sem preocupao com as disputas e os torneios; as que iampara competir, isto , os atletas e artistas (pois, durante os jogos tambm havia competiesartsticas: dana, poesia, msica,teatro); e as que iam para contemplar os jogos e torneios, para avaliar odesempenho e julgar o valor dos que ali se apresentavam. Esse terceiro tipo de pessoa, diziaPitgoras, como o filsofo.Com isso, Pitgoras queria dizer que o filsofo no movido por interessescomerciais - no coloca o saber como propriedade sua, como uma coisa para ser comprada evendida no mercado; tambm no movido pelo desejo de competir- no faz das idias e dos conhecimentos uma habilidade para vencercompetidores ou atletas intelectuais; mas movido pelo desejo de observar, contemplar, julgare avaliar as coisas, as aes, a vida: em resumo, pelo desejo de 19

Convite Filosofia_______________________________saber. A verdade no pertence a ningum, ela o que buscamos e que est diante de ns para sercontemplada e vista, se tivermos olhos (do esprito) para v -la.A Filosofia gregaA Filosofia, entendida como aspirao ao conhecimento racional, lgico esistemtico da realidade natural e humana, da origem e causas do mundo e desuas transformaes, da origem e causas das aes humanas e do prpriopensamento, um fato tipicamente grego.Evidentemente, isso no quer dizer, de modo algum, que outros povos, toantigos quanto os gregos, como os chineses, os hindus, os japoneses, os rabes, os persas, oshebreus, os africanos ou os ndios da Amrica no possuamsabedoria, pois possuam e possuem. Tambm no quer dizer que todos essespovos no tivessem desenvolvido o pensamento e formas de conhecimento daNatureza e dos seres humanos, pois desenvolveram e desenvolvem.Quando se diz que a Filosofia um fato grego, o que se quer dizer que elapossui certas caractersticas, apresenta certas formas de pensar e de exprimir os pensamentos,estabelece certas concepes sobre o que sejam a realidade, opensamento, a ao, as tcnicas, que so completamente diferentes dascaractersticas desenvolvidas por outros povos e outras culturas.Vejamos um exemplo. Os chineses desenvolveram um pensamento muitoprofundo sobre a existncia de coisas, seres e aes contrrios ou opostos, que formam arealidade. Deram s oposies o nome de dois princpios: Yin e Yang.Yin o princpio feminino passivo na Natureza, representado pela escurido, o frio e a umidade;Yang o princpio masculino ativo na Natureza, representado pela luz, o calor e o seco. Os doisprincpios se combinam e formam todas ascoisas, que, por isso, so feitas de contrrios ou de oposies. O mundo, portanto, feito daatividade masculina e da passividade feminina.Tomemos agora um filsofo grego, por exemplo, o prprio Pitgoras. Que dizele? Que a Natureza feita de um sistema de relaes ou de proporesmatemticas produzidas a partir da unidade (o nmero 1 e o ponto), da oposio entre osnmeros pares e mpares, e da combinao entre as superfcies e osvolumes (as figuras geomtricas), de tal modo que essas propores ecombinaes aparecem para nossos rgos dos sentidos sob a forma dequalidades contrrias: quente-frio, seco-mido, spero-liso, claro-escuro, grande-pequeno, doceamargo,duro-mole, etc. Para Pitgoras, o pensamento alcana arealidade em sua estrutura matemtica, enquanto nossos sentidos ou nossapercepo alcanam o modo como a estrutura matemtica da Natureza aparecepara ns, isto , sob a forma de qualidades opostas.Qual a diferena entre o pensamento chins e o do filsofo grego?O pensamento chins toma duas caractersticas (masculino e feminino) existentes em algunsseres (os animais e os humanos) e considera que o Universo inteiro 20

Marilena Chau_______________________________feito da oposio entre qualidades atribudas a dois sexos diferentes, de sorte que o mundo organizado pelo princpio da sexualidade animal ou humana.O pensamento de Pitgoras apanha a Natureza numa generalidade muito maisampla do que a sexualidade prpria a alguns seres da Natureza, e faz distino entre asqualidades sensoriais que nos aparecem e a estrutura invisvel daNatureza, que, para ele, de tipo matemtico e alcanada apenas pelo intelecto, ou inteligncia.So diferenas desse tipo, alm de muitas outras, que nos levam a dizer queexiste uma sabedoria chinesa, uma sabedoria hindu, uma sabedoria dos ndios,mas no h filosofia chinesa, filosofia hindu ou filosofia indgena.Em outras palavras, Filosofia um modo de pensar e exprimir os pensamentosque surgiu especificamente com os gregos e que, por razes histricas e polticas, tornou-se,depois, o modo de pensar e de se exprimir predominante da chamadacultura europia ocidental da qual, em decorrncia da colonizao portuguesa do Brasil, nstambm participamos.Atravs da Filosofia, os gregos instituram para o Ocidente europeu as bases e os princpiosfundamentais do que chamamos razo, racionalidade, cincia, tica, poltica, tcnica, arte.Alis, basta observarmos que palavras como lgica, tcnica, tica, poltica,monarquia, anarquia, democracia, fsica, dilogo, biologia, cronologia, gnese, genealogia,cirurgia, ortopedia, pedagogia, farmcia, entre muitas outras, so palavras gregas, parapercebermos a influncia decisiva e predominante daFilosofia grega sobre a formao do pensamento e das instituies das sociedades europiasocidentais. por isso que, em decorrncia do predomnio da economia capitalista criadapelo Ocidente e que impe um certo tipo de desenvolvimento das cincias e das tcnicas,falamos, por exemplo, em ocidentalizao dos chineses,ocidentalizao dos rabes, etc. Com isso queremos significar que modos depensar e de agir, criados no Ocidente pela Filosofia grega, foram incorporados at mesmo porculturas e sociedades muito diferentes daquela onde nasceu aFilosofia. pelo mesmo motivo que falamos em orientalismos e orientalistas paraindicar pessoas que buscam no budismo, no confucionismo, no Yin e no Yang,nos mantras, nas pirmides, nas auras, nas pedras e cristais maneiras de pensar e de explicar arealidade, a Natureza, a vida e as aes humanas que no soprprias ou especficas do Ocidente, isto , so diferentes do padro depensamento e de explicao que foram criados pelos gregos a partir do sculoVII antes de Cristo, poca em que nasce a Filosofia. 21

Convite Filosofia_______________________________O legado da Filosofia grega para o Ocidente europeuPor causa da colonizao europia das Amricas, ns tambm fazemos parte -ainda que de modo inferiorizado e colonizado - do Ocidente europeu e assimtambm somos herdeiros do legado que a Filosofia grega deixou para opensamento ocidental europeu.Desse legado, podemos destacar como principais contribuies as seguintes:? A idia de que a Natureza opera obedecendo a leis e princpios necessrios e universais, isto ,os mesmos em toda a parte e em todos os tempos. Assim, por exemplo, graas aos gregos, nosculo XVII da nossa era, o filsofo ingls Isaac Newton estabeleceu a lei da gravitaouniversal de todos os corpos da Natureza.A lei da gravitao afirma que todo corpo, quando sofre a ao de um outro,produz uma reao igual e contrria, que pode ser calculada usando comoelementos do clculo a massa do corpo afetado, a velocidade e o tempo com que a ao e areao se deram.Essa lei necessria, isto , nenhum corpo do Universo escapa dela e pode funcionar de outramaneira que no desta; e esta lei universal , isto , vlida para todos os corpos em todos ostempos e lugares.Um outro exemplo: as leis geomtricas do tringulo ou do crculo, conformedemonstraram os filsofos gregos, so universais e necessrias, isto , seja em Tquio em 1993,em Copenhague em 1970, em Lisboa em 1810, em So Pauloem 1792, em Moambique em 1661, ou em Nova York em 1975, as leis dotringulo ou do crculo so necessariamente as mesmas.? A idia de que as leis necessrias e universais da Natureza podem serplenamente conhecidas pelo nosso pensamento, isto , no so conhecimentosmisteriosos e secretos, que precisariam ser revelados por divindades, mas so conhecimentos queo pensamento humano, por sua prpria fora e capacidade,pode alcanar.? A idia de que nosso pensamento tambm opera obedecendo a leis, regras enormas universais e necessrias, segundo as quais podemos distinguir overdadeiro do falso. Em outras palavras, a idia de que o nosso pensamento lgico ou segue leis lgicas de funcionamento.Nosso pensamento diferencia uma afirmao de uma negao porque, naafirmao, atribumos alguma coisa a outra coisa (quando afirmamos queScrates um ser humano , atribumos humanidade a Scrates) e, na negao, retiramosalguma coisa de outra (quando dizemos este caderno no verde,estamos retirando do caderno a cor verde).Nosso pensamento distingue quando uma afirmao verdadeira ou falsa. Sealgum apresentar o seguinte raciocnio: Todos os homens so mortais. Scrates homem.Logo, Scrates mortal , diremos que a afirmao Scrates mortal 22

Marilena Chau_______________________________ verdadeira, porque foi concluda de outras afirmaes que j sabemos seremverdadeiras.? A idia de que as prticas humanas, isto , a a o moral, a poltica, as tcnicas e as artesdependem da vontade livre, da deliberao e da discusso, da nossa escolha passional (ouemocional) ou racional, de nossas preferncias, segundo certos valores e padres, que foramestabelecidos pelos prprios seres humanos e no por imposies misteriosas e incompreensveis,que lhes teriam sido feitas por foras secretas, invisveis, sejam elas divinas ou naturais, eimpossveis de serem conhecidas.? A idia de que os acontecimentos naturais e humanos so necessrios, porque obedecem a leisnaturais ou da natureza humana, mas tambm podem sercontingentes ou acidentais, quando dependem das escolhas e deliberaes doshomens, em condies determinadas.Dessa forma, uma pedra cai porque seu peso, por uma lei natural, exige que ela caia natural enecessariamente; um ser humano anda porque as leis anatmicas e fisiolgicas que regem o seucorpo fazem com que ele tenha os meios necessrios para a locomoo.No entanto, se uma pedra, ao cair, atingir a cabea de um passante, esseacontecimento contingente ou acidental. Por qu? Porque, se o passante noestivesse andando por ali naquela hora, a pedra no o atingiria. Assim, a queda da pedra necessria e o andar de um ser humano necessrio, mas que uma pedra caia sobre minhacabea quando ando inteiramente contingente ou acidental.Todavia, muito diferente a situao das aes humanas. verdade que poruma necessidade natural ou por uma lei da Natureza que ando. Mas pordeliberao voluntria que ando para ir escola em vez de andar para ir aocinema, por exemplo. verdade que por uma lei necessria da Natureza que os corpos pesadoscaem, mas por uma deliberao humana e por uma escolhavoluntria que fabrico uma bomba, a coloco num avio e a fao despencar sobre Hiroshima.Um dos legados mais importantes da Filosofia grega , portanto, essa diferena entre onecessrio e o contingente, pois ela nos permite evitar o fatalismo - tudo necessrio, temos quenos conformar e nos resignar -, mas tambm evitar a iluso de que podemos tudo quantoquisermos, se alguma fora extranatural ousobrenatural nos ajudar, pois a Natureza segue leis necessrias que podemosconhecer e nem tudo possvel por mais que o queiramos.? A idia de que os seres humanos, por Natureza, aspiram ao conhecimentoverdadeiro, felicidade, justia, isto , que os seres humanos no vivem nem agemcegamente, mas criam valores pelo quais do sentido s suas vidas e ssuas aes. 23

Convite Filosofia_______________________________A Filosofia surge, portanto, quando alguns gregos, admirados e espantados com a realidade,insatisfeitos com as explicaes que a tradio lhes dera, comearam a fazer perguntas e buscarrespostas para elas, demonstrando que o mundo e osseres humanos, os acontecimentos e as coisas da Natureza, os acontecimentos e as aeshumanas podem ser conhecidos pela razo humana, e que a prpriarazo capaz de conhecer-se a si mesma.Em suma, a Filosofia surge quando se descobriu que a verdade do mundo e doshumanos no era algo secreto e misterioso, que precisasse ser revelado pordivindades a alguns escolhidos, mas que, ao contrrio, podia ser conhecida por todos, atravs darazo, que a mesma em todos; quando se descobriu que talconhecimento depende do uso correto da razo ou do pensamento e que, alm daverdade poder ser conhecida por todos, podia, pelo mesmo motivo, ser ensinada ou transmitida atodos. 24

Marilena Chau_______________________________Captulo 2O nascimento da FilosofiaOuvindo a voz dos poetasEscutemos, por um instante, a voz dos poetas, porque ela costuma exprimir o que chamamos desentimento do mundo , o sentimento da velhice e da juventudeperene do mundo, da grandeza e da pequeneza dos humanos ou dos mortais.Assim, o poeta grego Arquloco escreveu:E no te esqueas, meu corao,que as coisas humanas apenasmudanas incertas so.Outro poeta grego, Tegnis, cantando sobre a brevidade da vida, dizia:Choremos a juventude e a velhice tambm,pois a primeira foge e a segunda sempre vem.Tambm o poeta grego Pndaro falava do sentimento das coisas humanas comopassageiras:A glria dos mortais num s dia cresce,Mas basta um s dia, contrrio e funesto,para que o destino, impiedoso, num gestoa lance por terra e ela, sbito, fenece.Mas no s a vida e os feitos dos humanos so breves e frgeis. Os poetastambm exprimem o sentimento de que o mundo tecido por mudanas erepeties interminveis. A esse respeito, a poetisa brasileira Orides Fontela escreveu:O vento, a chuva, o sol, o frioTudo vai e vem, tudo vem e vai.E o poeta brasileiro, Carlos Drummond, por sua vez, lamentou:Como a vida muda.Como a vida muda.Como a vida nuda.Como a vida nada.Como a vida tudo....Como a vida senha 25

Convite Filosofia_______________________________de outra vida nova...Como a vida vidaainda quando morte...Como a vida forteem suas algemas....Como a vida bela...Como a vida valemais que a prpria vidasempre renascida.O sentimento de renovao e beleza do mundo, da vida, dos seres humanos oque transparece nos versos do poeta brasileiro Mrio Quintana, nos seguintesversos:Quando abro a cada manh a janela do meu quarto como se abrisse o mesmo livroNuma pgina nova...E, por isso, em outros versos seus, lemos:O encantosobrenaturalque hnas coisas da Natureza!...se nela algo te dencanto ou medo,no me digas que seja feiaou m,, acaso, singular...Numa das obras poticas mais importantes da cultura do Ocidente europeu, asMetamorfoses, o poeta romano Ovdio exprimiu todos esses sentimentos que experimentamosdiante da mudana, da renovao e da repetio, do nascimentoe da morte das coisas e dos seres humanos. Na parte final de sua obra, lemos: No h coisaalguma que persista em todo o Universo. Tudo flui, e tudo sapresenta uma imagem passageira. O prprio tempo passa com ummovimento contnuo, como um rio... O que foi antes j no , o que notinha sido , e todo instante uma coisa nova. Vs a noite, prxima dofim, caminhar para o dia, e claridade do dia suceder a escurido danoite... No vs as estaes do ano se sucederem, imitando as idades denossa vida? Com efeito, a primavera, quando surge, semelhante 26

Marilena Chau_______________________________criana nova... A planta nova, pouco vigorosa, rebenta em brotos e enchede esperana o agricultor. Tudo floresce. O frtil campo resplandece como colorido das flores, mas ainda falta vigor s folhas. Entra, ento, aquadra mais forte e vigorosa, o vero: a robusta mocidade, fecunda eardente. Chega, por sua vez, o outono: passou o fervor da mocidade, aquadra da maturidade, o meio-termo entre o jovem e o velho; as tmporasembranquecem. Vem, depois, o tristonho inverno: o velho trpego, cujoscabelos ou caram como as folhas das rvores, ou, os que restaram, estobrancos como a neve dos caminhos. Tambm nossos corpos mudamsempre e sem descanso... E tambm a Natureza no descansa e,renovadora, encontra outras formas nas formas das coisas. Nada morre novasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e variados... Todos os serestm sua origem noutros seres. Existe uma ave a que os fencios do onome de fnix. No se alimenta de gros ou ervas, mas das lgrimas doincenso e do suco da amnia. Quando completa cinco sculos de vida,constri um ninho no alto de uma grande palmeira, feito de folhas decanela, do aromtico nardo e da mirra avermelhada. Ali se acomoda etermina a vida entre perfumes. De suas cinzas, renasce uma pequena fnix,que viver outros cinco sculos... Assim tambm a Natureza e tudo oque nela existe e persiste.O que perguntavam os primeiros filsofosPor que os seres nascem e morrem? Por que os semelhantes do origem aossemelhantes, de uma rvore nasce outra rvore, de um co nasce outro co, deuma mulher nasce uma criana? Por que os diferentes tambm parecem fazersurgir os diferentes: o dia parece fazer nascer a noite, o inverno parece fazer surgir a primavera,um objeto escuro clareia com o passar do tempo, um objeto claro escurece com o passar dotempo?Por que tudo muda? A criana se torna adulta, amadurece, envelhece edesaparece. A paisagem, cheia de flores na primavera, vai perdendo o verde e as cores nooutono, at ressecar-se e retorcer-se no inverno. Por que um dialuminoso e ensolarado, de cu azul e brisa suave, repentinamente, se tornasombrio, coberto de nuvens, varrido por ventos furiosos, tomado pelatempestade, pelos raios e troves?Por que a doena invade os corpos, rouba-lhes a cor, a fora? Por que o alimento que antes meagradava, agora, que estou doente, me causa repugnncia? Por que o som da msica que antesme embalava, agora, que estou doente, parece umrudo insuportvel?Por que o que parecia uno se multiplica em tantos outros? De uma s rvore,quantas flores e quantos frutos nascem! De uma s gata, quantos gatinhosnascem! 27

Convite Filosofia_______________________________Por que as coisas se tornam opostas ao que eram? A gua do copo, totransparente e de boa temperatura, torna-se uma barra dura e gelada, deixa de ser lquida etransparente para tornar-se slida e acinzentada. O dia, que comea frio e gelado, pouco a pouco,se torna quente e cheio de calor.Por que nada permanece idntico a si mesmo? De onde vm os seres? Para ondevo, quando desaparecem? Por que se transformam? Por que se diferenciam unsdos outros? Mas tambm, por que tudo parece repetir-se? Depois do dia, a noite; depois da noite, odia. Depois do inverno, a primavera, depois da primavera, o vero, depois deste, o outono edepois deste, novamente o inverno. De dia, o sol; noite, a lua e as estrelas. Na primavera, o mar tranqilo e propcio navegao; no inverno, tempestuoso e inimigo dos homens. O calor leva as guas para o cu e astraz de volta pelas chuvas. Ningum nasce adulto ou velho, mas sempre criana, que se tornaadulto e velho.Foram perguntas como essas que os primeiros filsofos fizeram e para elasbuscaram respostas.Sem dvida, a religio, as tradies e os mitos explicavam todas essas coisas, mas suasexplicaes j no satisfaziam aos que interrogavam sobre as causas da mudana, dapermanncia, da repetio, da desapario e do ressurgimento detodos os seres. Haviam perdido fora explicativa, no convenciam nemsatisfaziam a quem desejava conhecer a verdade sobre o mundo.O nascimento da FilosofiaOs historiadores da Filosofia dizem que ela possui data e local de nascimento: final do sculo VIIe incio do sculo VI antes de Cristo, nas colnias gregas da sia Menor (particularmente as queformavam uma regio denominada Jnia),na cidade de Mileto. E o primeiro filsofo foi Tales de Mileto.Alm de possuir data e local de nascimento e de possuir seu primeiro autor, a Filosofia tambmpossui um contedo preciso ao nascer: uma cosmologia. A palavra cosmologia composta deduas outras: cosmos, que significa mundo ordenado e organizado, e logia, que vem da palavralogos, que significa pensamento racional, discurso racional, conhecimento. Assim, a Filosofianasce como conhecimento racional da ordem do mundo ou da Natureza, donde,cosmologia.Apesar da segurana desses dados, existe um problema que, durante sculos, vem ocupando oshistoriadores da Filosofia: o de saber se a Filosofia - que um fato especificamente grego -nasceu por si mesma ou dependeu de contribuies dasabedoria oriental (egpcios, assrios, persas, caldeus, babilnios) e da sabedoria de civilizaesque antecederam grega, na regio que, antes de ser a Grcia ou a Hlade, abrigara ascivilizaes de Creta, Minos, Tirento e Micenas.Durante muito tempo, considerou-se que a Filosofia nascera por transformaes que os gregosoperaram na sabedoria oriental (egpcia, persa, caldia e 28

Marilena Chau_______________________________babilnica). Assim, filsofos como Plato e Aristteles afirmavam a origemoriental da Filosofia. Os gregos, diziam eles, povo comerciante e navegante,descobriram, atravs das viagens, a agrimensura dos egpcios (usada para medir as terras, apsas cheias do Nilo), a astrologia dos caldeus e dos babilnios (usada para prever grandes guerras,subida e queda de reis, catstrofes como peste, fome, furaces), as genealogias dos persas(usadas para dar continuidade s linhagens e dinastias dos governantes), os mistrios religiososorientaisreferentes aos rituais de purificao da alma (para livr-la da reencarnaocontnua e garantir-lhe o descanso eterno), etc. A Filosofia teria nascido pelas transformaesque os gregos impuseram a esses conhecimentos.Dessa forma, da agrimensura, os gregos fizeram nascer duas cincias: aaritmtica e a geometria; da astrologia, fizeram surgir tambm duas cincias: a astronomia e ameteorologia; das genealogias, fizeram surgir mais uma outracincia: a histria; dos mistrios religiosos de purificao da alma, fizeram surgir as teoriasfilosficas sobre a natureza e o destino da alma humana.Todos esses conhecimentos teriam propiciado o aparecimento da Filosofia, isto , da cosmologia,de sorte que a Filosofia s teria podido nascer graas as saber oriental.Essa idia de uma filiao oriental da Filosofia foi muito defendida oito sculos depois de seunascimento (durante os sculos II e III depois de Cristo), noperodo do Imprio Romano. Quem a defendia? Os pensadores judaicos, comoFilo de Alexandria, e os Padres da Igreja, como Eusbio de Cesaria e Clemente de Alexandria.Por que defendiam a origem oriental da Filosofia grega? Pelo seguinte motivo: a Filosofia gregatornara-se, em toda a Antigidade clssica, e para os poderosos da poca, os romanos, a formasuperior ou mais elevada do pensamento e damoral.Os judeus, para valorizar seu pensamento, desejavam que a Filosofia tivesse uma origemoriental, dizendo que o pensamento de filsofos importantes, comoPlato, tinha surgido no Egito, onde se originara o pensamento de Moiss, demodo que havia uma ligao entre a Filosofia grega e a Bblia.Os Padres da Igreja, por sua vez, queriam mostrar que os ensinamentos de Jesus eram elevadose perfeitos, no eram superstio, nem primitivos e incultos, e por isso mostravam que osfilsofos gregos estavam filiados a correntes depensamento mstico e oriental e, dessa maneira, estariam prximos docristianismo, que uma religio oriental.No entanto, nem todos aceitaram a tese chamada orientalista, e muitos,sobretudo no sculo XIX da nossa era, passaram a falar na Filosofia como sendo o milagregrego.Com a palavra milagre queriam dizer vrias coisas: 29

Convite Filosofia_______________________________? que a Filosofia surgiu inesperada e espantosamente na Grcia, sem que nadaanterior a preparasse;? que a Filosofia grega foi um acontecimento espontneo, nico e sem par, como prprio de ummilagre;? que os gregos foram um povo excepcional, sem nenhum outro semelhante aeles, nem antes e nem depois deles, e por isso somente eles poderiam ter sido capazes de criar aFilosofia, como foram os nicos a criar as cincias e a dar s artes uma elevao que nenhumoutro povo conseguiu, nem antes e nem depoisdeles.Nem oriental, nem milagreDesde o final do sculo XIX da nossa era e durante o sculo XX, estudoshistricos, arqueolgicos, lingsticos, literrios e artsticos corrigiram os exageros das duas teses,isto , tanto a reduo da Filosofia sua origem oriental, quanto o milagre grego .Retirados os exageros do orientalismo, percebe-se que, de fato, a Filosofia tem dvidas com asabedoria dos orientais, no s porque as viagens colocaram osgregos em contato com os conhecimentos produzidos por outros povos(sobretudo os egpcios, persas, babilnios, assrios e caldeus), mas tambmporque os dois maiores formadores da cultura grega antiga, os poetas Homero e Hesodo,encontraram nos mitos e nas religies dos povos orientais, bem comonas culturas que precederam a grega, os elementos para elaborar a mitologiagrega, que, depois, seria transformada racionalmente pelos filsofos.Assim, os estudos recentes mostraram que mitos, cultos religiosos, instrumentos musicais, dana,msica, poesia, utenslios domsticos e de trabalho, formas de habitao, formas de parentesco eformas de organizao tribal dos gregos foram resultado de contatos profundos com as culturasmais avanadas do Oriente ecom a herana deixada pelas culturas que antecederam a grega, nas regies onde ela seimplantou.Esses mesmos estudos apontaram, porm, que, se nos afastarmos dos exageros da idia de ummilagre grego, podemos perceber o que havia de verdadeiro nessa tese. De fato, os gregosimprimiram mudanas de qualidade to profundas no que receberam do Oriente e das culturasprecedentes, que at pareceria terem criado sua prpria cultura a partir de si mesmos. Dessasmudanas, podemos mencionar quatro que nos daro uma idia da originalidade grega:1. Com relao aos mitos: quando comparamos os mitos orientais, cretenses, micnicos,minicos e os que aparecem nos poetas Homero e Hesodo, vemosque eles retiraram os aspectos apavorantes e monstruosos dos deuses e do incio do mundo;humanizaram os deuses, divinizaram os homens; deram racionalidadea narrativas sobre as origens das coisas, dos homens, das instituies humanas (como o trabalho,as leis, a moral); 30