Marilena Chauí - Cultura Política e Política Cultural

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/28/2019 Marilena Chau - Cultura Poltica e Poltica Cultural

    1/14

    Cultura polticae poltica culturalM A R I L E N A C H A U

    E N T R E 1989 E 1992, na cidade de So Paulo, o Partido dos Trabalhadores(PT) esteve no governo municipal que, pela primeira vez nos cinco scu-los da histria do pas e da cidade, viu no poder um partido de esquerdade origem fortemente popular e que, nascido de movimentos sociais e sindicais,tem sido responsvel por grande parte da democratizao do Brasil.O desafio

    O desafio imposto pelas condies histricas (sociais e econmicas) e peloimaginrio poltico (fortemente conservador, na cidade de So Paulo), exigia queem cada campo de atividade governamental fossem realizados trs trabalhos si-multneos: a mudana na mentalidade dos servidores pblicos municipais, a de-finio de prioridades voltadas para as carnciase demandas das classes popularese a inveno de uma nova cultura poltica.

    Do ponto devista administrativo, tratava-sede fazer com que os servidorespblicos se considerassem cidados a servio de outros cidados, em lugar defuncionrios do aparelho estatal. Em outras palavras, tratava-se de quebrar o po-derio burocrtico, fundado na hierarquia,no segredo do cargo e na rotina, isto ,em prticas antidemocrticas, uma vez que a democracia funda-se na igualdade(contra a hierarquia), no direito informao (contra o segredo) e na invenode novos direitos segundo novas circunstncias (contra a rotina).Do ponto de vista das prioridades, tratava-se de definir polticas pblicaspara as reas de sade, moradia, educao, transporte, alimentao, cultura e di-reitos das minorias, numa cidadeque recebe anualmentecerca de 150 mil migrantespobres e, alm de sofrer os efeitos da recesso reinante no pas, est passando porum a mudana profunda, pois comea a deixar de ser um centro industrial paratornar-se um centro de servios.Do ponto de vista da cultura poltica, tratava-se de estimular formas de

    auto-organizao da sociedade e sobretudo das camadas populares, criando osentimento e a prtica da cidadania participativa.

  • 7/28/2019 Marilena Chau - Cultura Poltica e Poltica Cultural

    2/14

    Foi sob o imperativo dessas trs exigncias que a Secretaria Municipal deCultura desenvolveu um projeto cuja diretriz fundamental foi a Cidadania Cultu-ral. Pode parecer estranho (dado o modo como correntemente seentende acultu-ra como lazer e entretenimento) que a natureza poltica do trabalho se exprimissede maneira to explcita e direta num projeto cultural. Para que a estranheza nopermanea, preciso considerar ascondies (e pr-condies) para propor umapoltica cultural no Brasil e, particularmente, em So Paulo, a mais capitalista dascidades brasileiras, na qual a lgica do mercado funciona plenamente.

  • 7/28/2019 Marilena Chau - Cultura Poltica e Poltica Cultural

    3/14

    O desafio apresentou-se como enfrentamento de trs poderosos mecanis-mos que determinam as operaes, funcionamentos e reprodues do imaginriosocial e poltico no Brasil: o mecanismo mitolgico, o ideolgico e o poltico.A mquina mitolgicaO grande mito que sustenta a imaginao social brasileira o da no-vio-lncia. Nossa auto-imagem a de um povo ordeiro e pacfico, alegre e cordial,mestio e incapaz de discriminaes tnicas, religiosas ou sociais, acolhedor paraos estrangeiros, generoso para com os carentes, orgulhoso das diferenas regio-nais e destinado a um grande futuro.Muitos indagaro como o mito da no-violncia brasileira pode persistirsob o impacto daviolncia real, cotidiana, conhecida de todos e que, nos ltimos

    tempos, tambm ampliada por sua divulgao e difuso pelos meios de comu-nicao de massa. Ora, justamenteno modo de interpretao daviolncia que omito encontra meios para conservar-se.De fato, o primeiro mecanismo empregado para interpretar aviolncia oda excluso: afirma-se que a nao brasileira no-violenta e que, se houver vio-lncia, esta praticada por gente que no faz parte da nao (mesmo que tenhanascido e viva no Brasil). O mecanismo da excluso produz a diferena entre umns-brasileiros-no violentos e um eles-no-brasileiros-violentos. Eles no fazem parte

    do ns.O segundo mecanismo o dadistino: distingue-se o essencial e o aciden-tal, isto , por essncia, os brasileiros no so violentos e, portanto, a violncia acidental, um acontecimento efmero, passageiro, um a epidemia ou um surtolocalizado na superfcie de um tempo e de um espao definidos, supervele quedeixa intacta nossa essncia no-violenta.O terceiro mecanismo de tipo jurdico: a violncia fica circunscrita ao

    campo da delinqncia e da criminalidade, o crime sendo definido como ataque propriedade privada (furto, roubo e latrocnio, ou seja, roubo seguido de assas-sinato). Esse mecanismo permite, por um lado, determinar quem so os agentesviolentos (de modo geral, os pobres) e legitimar a ao (esta sim, violenta) dapolcia contra a populao pobre, os negros, as crianas de rua e os favelados. Aao policial pode ser, s vezes, considerada violenta, recebendo o nome dechaci-na ou massacre quando, de uma s vez e sem motivo, o nmero deassassinados muito elevado. No restante dasvezes, porm, o assassinato policial considera-do normal e natural, uma vez que se trata de proteger o ns contra o ele.

    O quarto mecanismo de tipo s o c i o l g i c o : atribui-se a epidemia de violncia

  • 7/28/2019 Marilena Chau - Cultura Poltica e Poltica Cultural

    4/14

    a um momento definido do tempo, aquele no qual se realiza a transio p ara amodernidade das populaes que migraram do campo para a cidade e das regiesmais pobres (norte e nordeste) para as mais ricas (sul e sudeste). A migraocausaria o fenmeno temporrio da anomia, no qual a perda das formas antigasde sociabilidade ainda no foram substitudas por novas, fazendo com que osmigrantes pobres tendam a praticar atos isolados de violncia que desapareceroquando estiver completada a transio. Aqui, no s a violncia atribuda aospobres e desadaptados, como ainda consagrada como algo temporrio ouepisdico.

    Finalmente, o ltimo mecanismo o da inverso d o real, graas produode mscaras que permitem dissimular comportamentos, idias e valores violentoscomo sefossem no-violentos.Assim,por exemplo, o machismo colocado comoproteo natural natural fragilidade feminina; o paternalismo branco vistocomo proteo para auxiliaranatural inferioridade dosnegros; a represso contraos homossexuais considerada proteo natural aos valores sagrados da famlia; adestruio do meio ambiente orgulhosamente vista como sinal de progresso ecivilizao etc.

    Em resumo, a violncia no percebida como toda prtica e toda idia quereduza um sujeito condio de coisa, que viole interior e exteriormente o ser dealgum, que perpetue relaes sociaisde profunda desigualdade econmica, sociale cultural. O mito da no-violncia permanece porque admite-se a existnciaemprica da violncia, mas fabricam-se explicaes para deneg-la no instantemesmo em que admitida. Mais do que isso, a sociedade no percebe que asprprias explicaes oferecidas so violentas. Dessa maneira, a violncia que es-trutura e organiza as relaes sociais brasileiras, por no ser percebida, natura-lizada e essa naturalizao conserva a mitologia da no-violncia.

    A mquina ideolgicaA mitologia dano-violncia o solo sobre o qual seergue a ideologia, soba forma das relaes sociais.Afirma-se que no Brasil, infelizmente, atravessamos periodicamente fasesde autoritarismo, visto como um acontecimento referido ao regime poltico e aomodo de funcionamento do Estado ditatorial. Dessa maneira, dissimula-seo fun-damental, isto , que o autoritarismo no simplesmente a forma do governo,mas a estrutura da prpria sociedade brasileira. Esta visceralmente autoritria.Conservando as marcasda sociedade colonial escravocrata,a sociedade bra-sileira fortemente hierarquizada: nela, as relaes sociais e intersubjetivas so

  • 7/28/2019 Marilena Chau - Cultura Poltica e Poltica Cultural

    5/14

    sempre realizadas como relao entre um superior, que manda, e um inferior, queobedece. As diferenas e assimetrias so sempre transformadasem desigualdadesque reforam a relao mando-obedincia. O outro jamais reconhecido comosujeito nem como sujeito de direitos, jamais reconhecido como subjetividadenem como alteridade. As relaes, entre os que se julgam iguais, so de cumplici-dade; e, entre os que so vistos como desiguais, o relacionamento toma a formado favor, do clientelismo, da tutela ou da cooptao, e, quando a desigualdade muito marcada, assume a forma da opresso. Em suma: micropoderes capitali-zam o autoritarismo em toda a sociedade: na famlia, na escola, nas relaes amo-rosas, no trabalho, na mass midia, no comportamento social nas ruas, no trata-mento dado aos cidados pela burocracia estatal, no desprezo do mercado pelosdireitos do consumidor, na naturalidade da violncia policial etc.

    Podemos resumir, simplificadamente, os principais traos de nossoautoritarismo social considerando que a sociedade brasileira se caracteriza pelosseguintes aspectos: incapacidade para operar o princpio liberal da igualdade formal e para lutarpelo princpio socialista da igualdade real: asdiferenas so postas como desi-gualdades e, estas, como inferioridade (no caso das mulheres, dos trabalhado-res, dos negros, ndios, migrantes, idosos) ou como monstruosidade (no casodos homossexuais); incapacidade para operar com o princpio liberal da igualdade jurdica e paralutar contra formas de opresso social e econmica; para os grandes, a lei privilgio; para ascamadas populares, represso. A lei no consegue figurar oplo pblico do poder e da regulao dos conflitos, nunca definindo direitos edeveres dos cidados. Por este motivo, as leis aparecem como incuas, inteisou incompreensveis, feitas para serem transgredidas e no para serem trans-formadas. O poder judicirio surge como distante, secreto, representante dosprivilgios das oligarquias e no dos direitos da generalidade social; indistino entre o pblico e o privado: no apenas os governantes e parla-mentares praticam a corrupo sobre os fundos pblicos, mas no h a percep-o social de uma esfera pblica das opinies, da sociabilidade coletiva, da ruacomo espao comum, assim como no h a percepo dos direitos privacidadee intimidade. Do ponto de vista dos direitos sociais, h um encolhimentopblico; do ponto de vista dos interesses econmicos, um alargamentodo pri-vado, tornando a sociedadepresafcil do neoliberalismo e por ele fascinada;

    incapacidade para trabalhar conflitos e contradies sociais, econmicas e po-lticas. Conflitos e contradies so sempre considerados perigo, crise, desor-dem e a eles se oferece uma nica resposta: a represso policial e militar;

  • 7/28/2019 Marilena Chau - Cultura Poltica e Poltica Cultural

    6/14

    incapacidade para criar a esfera pblica da opinio como expresso dos inte-resses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados e/ou antagnicos.A mass mdia monopoliza a informao e o consenso confundido com aunanimidade, de sorte que a discordncia posta como ignorncia, atraso ouignorncia; incapacidade para tolerar e fortalecer movimentos populares e sociais: a so-ciedade civil auto-organizada vista como perigosa para o Estado e para ofuncionamento selvagem do mercado; anaturalizao dasdesigualdades econmicas e sociais (o salrio mnimo osci-la entre 20 e 60 dlares por ms, sendo considerado natural que os trabalhado-res tenham dificuldades at mesmo para reproduzir-se como fora de traba-lho), do mesmo modo que h naturalizao das diferenas tnicas como desi-

    gualdades raciais entre superiores e inferiores, das diferenas religiosas e degnero, bem como naturalizao de todas as formas visveis e invisveis deviolncia; fascnio pelos signos de prestgio e de poder: uso de ttulos honorficos semqualquer relao com a possvel pertinncia de sua atribuio, o caso maiscorrente sendo o uso dedoutor quando, na relao social, o outro sesente ou visto como superior, doutor o substituto imaginrio para os antigos ttulosde nobreza do perodo colonial e da monarquia; manuteno de criadagemdomstica, cujo nmero indica aumento de prestgio, de status etc.

    O autoritarismo est de tal modo interiorizado nos coraes e nas mentesque algum pode usar a frase "um negro muito bom porque tem a alma branca"e no ser considerado racista. Pode referir-se aos serviais domsticos nos termos"uma criada muito boa porque conhece seu lugar" e considerar-se isento depreconceito de classe. Pode referir-se a um assalariado como "um empregado detoda confiana porque nunca rouba coisa alguma" e considerar que no existeluta de classes e que dela no participa. Pode dizer "uma mulher perfeita, pois notrocou o lar pela indignidade de trabalhar fora" e no ser considerado machista.

    A desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos e negros, aexplorao do trabalho infantil e dos idosos soconsideradas normais. Aexistn-cia dos sem-terra, dos sem-teto, dos desempregados atribuda ignorncia, preguia e incompetncia dos miserveis. A existncia de crianasde rua vistacomo "tendncia natural dos pobres criminalidade". Os acidentes de trabalhoso imputados incompetncia e ignorncia dos trabalhadores. As mulheresque trabalham (se no forem professorasou assistentes sociais) so consideradasprostitutas em potencial e as prostitutas, degeneradas, perversas e criminosas,embora, infelizmente, indispensveis para conservar a santidade da famlia.

  • 7/28/2019 Marilena Chau - Cultura Poltica e Poltica Cultural

    7/14

    O Brasil ocupa o segundo lugar mundial nos ndices de concentrao darenda e de m distribuio da riqueza, mas ocupa o oitavo lugar em termos doProduto Interno Bruto. Essa desigualdade-2%possuem 92% da renda nacional,enquanto 98% possuem 8% dessa renda - no percebida como socialmenteinaceitvel, mas natural e normal. Conseqentemente, a sociedade b rasileira oligrquica e est polarizada entre a carncia absoluta das camadas populares e oprivilgio absoluto das camadas dominantes e dirigentes.

    A ideologia autoritria, que naturaliza as desigualdades e excluses socio-econmicas, vem exprimir-se no modo de funcionamento da poltica.A mquina polticaPode-se imaginar a configurao do campo poltico e de suas prticas quando

    seu solo a mitologia da no-violncia e a ideologia autoritria.Os partidos polticos s o clubsprivs das oligarquias regionais, arrebanhandoa classe mdia em torno do imaginrio autoritrio (a ordem ) e mantendo com oseleitores quatro tipos principais de relaes: a de cooptao, a de favor e clientela,

    a de tutela e a da promessa salvacionista ou messinica. Do lado da classe domi-nante, a poltica praticada numa perspectiva naturalista-teocrtica, isto , osdirigentes so detentores do poder por direito natural e por escolha divina. Dolado das camadas populares, o imaginrio poltico messinico-milenarista,correspondendo auto-imagem dos dirigentes. Como conseqncia, a polticano consegue configurar -se como campo social de lutas, mas tende a passar parao plano da representao teolgica, oscilando entre a sacralizao e adorao dobom-governante e a satanizao e execrao do mau-governante.

    O Estado percebido apenas sob a face do poder executivo, os podereslegislativo e judicirio ficando reduzidos ao sentimento de que o primeiro cor-rupto e o segundo, injusto. Ne nhum a dasfunes estatais, portan to, conhecida.A identificao entre o Estado e o executivo, a ausncia de um legislativo confivele o medo do judicirio, somados ideologia do autoritarismo social e ao imagi-nrio teolgico-poltico levam ao desejo perm anente de um Estado f o r t e para asalvao nacional. Por seu turno, o Estado percebe a sociedade civil como inimigae perigosa, bloqueando as iniciativas dos movimentos sociais, sindicais e populares.

    Nestas condies, possvel compreender a dificuldade gigantesca para ainstituio da democracia. Dentre as dificuldades, destacamos, aqui, as que nosparecem mais fortes: a estrutura oligrquica dospartidos polticos e seu funcionamento, impedindoa idia e a prtica da representao e da participao;

  • 7/28/2019 Marilena Chau - Cultura Poltica e Poltica Cultural

    8/14

    a estrutura fortem ente burocratizada do Estado e, portanto, como observa-mos no incio, a existncia de um poder burocrtico cuja natureza essencial-mente antidemocrtica; a estrutura da sociedade, fundada na polarizao extrema entre a carncia e o

    privilgio. Uma carncia, por definio, sempre particular e especfica, noconseguindo se generalizar num interesse nem , muito m enos, se universalizarnum direito. U m privilgio, por definio, no pode se generalizar num inte-resse comum nem se universalizar num direito, sob a pena de desfazer-se comoprivilgio. Ora, a democracia a criao, reconhecimento e garantia de direi-tos, de sorte que a estrutura da sociedade brasileira impede sua emergncia.Acrescentamos a essas trs dificuldades, a presena crescente do neolibe-ralismo com suas duas marcas principais: do lado da economia, uma acumulao

    do capital que no necessita incorporar mais pessoas ao mercado de trabalho e deconsumo, operando com o desemprego estrutural; do lado da poltica, aprivatizao do pblico, isto , o abandono das polticas sociais por parte doEstado. No caso do Brasil, o neoliberalismo significa levar ao extrem o a polariza-o carncia-privilgio, a excluso scio-poltica das camadas populares, a desor-ganizao da sociedade civil como massa dos desempregados, a natureza oligrquicae teolgica da poltica, o autoritarismo social e o bloqueio democracia. Um dosefeitos mais terrveis do neoliberalismo brasileiro tem sido o esfacelamento dosmovim entos sociais e populares que foram os grandes sujeitos histricos e polti-cos dos anos 70 e 80.

    O mito fundadorOs traos que esboamos acima so determinados na estrutura econmicae social do Brasil. Todavia, par a alm (ou, talvez, aqum ) dessas condies m ate-riais, dando-lhes sustentao imaginria, encontra-se algo prximo e remoto,perm anentemente reatualizado sob a variao contnua da mitologia da no-vio-lncia e da ideologia autoritria. Trata-se do mito fundador.Fundador, no sentido da antiga idia romana da fundatio, ou seja, da cons-truo da origem e de sua ligao perptua com o presente, dando-lhe forma esentido. Mito em duas acepes: na antropolgica (soluo imaginria de tensese conflitos que no podem ser resolvidos no real) e na psicanaltica (construoimaginria que recalca os conflitos para poder repeti-los incessantemente sob aforma de sintomas).De Cristvo Colombo, Vespcio, Pero Vaz de Caminha ao Padre Vieira(no sculo XV II), dos Inconfidentes M ineiros (sculo XVIII) s revoltas popula-res do sculo XIX (Canudos, Pedra Bon ita), do Estado Novo (ditadura fascista

  • 7/28/2019 Marilena Chau - Cultura Poltica e Poltica Cultural

    9/14

    dos anos 30 e 40) Nova Repbca (1985) e Fernando Collor de Mello (1990),o mito fundador no cessou de repor-se em vestes novas.Quando lemos os dirios de viagem e as cartas de Colombo ou Vaz deCaminha ou as obras polticas do Padre Vieira, um trao lhes comum: a Am-

    rica, primeiro, e o Brasil, depois, no so propriamente descobertos, mas encon-trados. J estavam l e j estavam acabados na mente de navegantes e evange-lizadores. De que modo j estava, l? Como livro ou texto? Os textos antigos deVirglio e Plnio, o Jovem, os do cardeal medieval Pierre d'Ailly, as lendas e or-culos celtas, as profecias de Isaas e Daniel e as obras proftico-milenaristas doabade Joaquim de Fiori j haviam descrito, com profuso de detalhes o ParasoTerrestre, situado, pelo livro da Gnese, no Oriente. Essa literatura, constitudapor um conjunto de lugares-comuns clssicos e bblicos, produz a imagem doJardim do den: cortado por quatro rios que atravessam a Terra, pelos quaiscorrem leite e mel e cujos leitos esto recobertos de ouro, prata, prolas, safiras erubis; cercado por altssimas montanhas, cobertas de esmeraldas e turmalinas;vegetao luxuriante, flora e fauna exuberantes e exticas, mares serenos, cus depuro anil e com estrelas desconhecidas, temperatura sempre amena (nem muitoquente, nem muito frio, repete a literatura), habitado por gente bela, indmita einocente como no dia da criao; primavera eterna, renovao csmica perptua. assim que navegantes e missionrios descrevem a Amrica e o Brasil. Nopodem v-los, mas j os conhecem: o olhar busca apenas comprovao empricapara o j sabido, porque escrito. No descrevem: realizam exegeses.

    Se navegantes e missionrios insistem em que esto no Oriente e no mun-do novo porque essas duas marcas desenham o Paraso Terrestree confirmam asprofecias bblicas. Alm disso, Joaquim de Fiori profetizara que da Espanha sairiao Imperador dos ltimos Dias, quevenceriao Anti-Cristo (osmouros) eprepa-raria o caminho para a Segunda Vinda de Cristo, dando incio ao Reino de MilAnos de felicidade e abundncia, antes da ressurreio dos mortos e do JuzoFinal, de modo que Colombo escrever aos reis assegurando-lhes que "foramcumpridas asprofeciasde Daniel e Isaas, tal como profetizara o abadeJoaquim".Na Histria do Futuro, o mesmo t o p o s repetido por Vieira, mas, agora, oImperador dosltimos Dias o Encoberto e o Encantado do trovador Bandarra,isto , El Rei Don Sebastio, com quem comear o Quinto Imprio do mundo,a Jerusalm Celeste. O signo proftico decisivo para Vieira o norte do Brasil: ojesuta o decifra a partir das profecias de Isaas, lidas como descrio minuciosa edetalhada do Brasil.

    As razes de nosso mito fundador encontram-se fincadas nos primeirostextos dosviajantes e evangelizadores, dando-lhe contedo proftico-milenarista.Ora, a literatura antiga e medieval que serve de base aos descobridores refere-seao Paraso Terrestre como jardim e, dessa maneira, os novos textos colocam a

  • 7/28/2019 Marilena Chau - Cultura Poltica e Poltica Cultural

    10/14

    nova terra sob o signo daNatureza e no sob o da Historia e da Cultura. Quandoo tempo aparece, surge sob o signo da histria providencial do plano divino e domilnio, portanto, como teofania, epifania e histria sagrada. Esta, faz do tempoinstrumento da eternidade e, portanto, deixa-nos to fora da histria quanto anaturezaparadisaca.Essa matriz mtica decisiva para a elaborao do imaginrio brasileiro eda auto-imagem do Brasil. Antes de mais nada, como todos sabem, "o Brasil um dom deDeus aos homens",demonstrado pela ausncia deviolncia natural -no temos vulces, terremotos, maremotos, tufes nem desertos (h 500 anosisso repetido) - epela clemncia primaveril danatureza- nosso Hino Nacional

    refere-se ao pas como "floro daAmrica" cujos cus "tem mais estrelas" e cujos"bosques tem mais flores". Nas escolas, as crianas aprendem o significado dasquatro cores de nossa bandeira: o verde, nossas luxuriantes florestas; o amarelo,nossas inesgotveis riquezas minerais; o azul, nosso cu de anil onde brilha osmbolo de nossa eleio divina, o Cruzeiro do Sul; o branco, a paz e a ordem(com progresso) de um povo varonil, justo, generoso, cordial, pacfico e ordeiro.Somos o bom-selvagem, por natureza e por divina providncia, pois, somos her-deiros da inocncia dos nativos do Paraso (ainda que os tenhamos dizimadonum genocdio sistemtico).

    Estamos, profeticamente, destinados grandeza do futuro, pois, nascidosob o signo do milnio, "o Brasil o pas do futuro", pelo qual no precisamoslutar porque nos est prometido desde o comeo do mundo.

    Eisporque violncia e autoritarismo no encontram meios para serem per-cebidos e superados: no existemporque n o p o d e m existir.Eis tambm porque apoltica se realiza sob o signo da teofania e da teologia poltica, uma vez que otempo nacional epifnico e milenarista. Do lado dos dominantes, a teologiapoltica manifesta-se numa viso populista-teocrtica do poder - o governanterepresenta a vontade divina e no os governados que so usados, atravs do voto,como instrumentos de Deus na escolha dos dirigentes. Do lado dos dominados,a religio torna-se o nico meio de acesso ao poltico que, por isso, interpretadosob a forma messinica - sacralizando o poder - ou sob a forma doflagelo-satanizando o poder.

    Cidadania CulturalEsperamos ter oferecido alguns elementos para esclarecer porque, no Bra-sil, uma poltica cultural torna-se inseparvel da inveno de uma cultura poltica

    nova e que assinalem as dificuldadesou o desafio para implant-la. Como suscitarnos indivduos, grupos e classes a percepo de que so sujeitos sociais e polti-

  • 7/28/2019 Marilena Chau - Cultura Poltica e Poltica Cultural

    11/14

    cos? Como tornar evidente que carncias, privilgios, excluses e opresso noso naturais nem impostas pela Providncia divina?No caso especfico da poltica cultural, no possvel deixar na sombra omodo como a tradio oligrquica autoritria opera com a cultura, a partir do

    Estado, se se quiser inventar urna nova poltica.Quatro tem sido as principais modalidades de relao do Estado com acultura, no Brasil.

    A liberal, que identifica cultura e belas-artes, estas ltimas consideradas a par-tir da diferena clssica entre artes liberais e servis. Na qualidade de artes libe-ris, as belas-artesso vistas como privilgio de uma elite escolarizada e consu-midora de produtos culturais. A do Estado autoritrio, na qual o Estado se apresenta como produtor oficialde cultura e censor da produo cultural da sociedade civil. A populista, que manipula uma abstrao genericamente denominada cultura

    popular , entendida como produo cultural do povo e identificada com o pe-queno artesanato e o folclore, isto , com a verso popular das belas-artese daindstria cultural. A neoliberal, que identifica cultura e evento de massa, consagra todas as mani-festaes do narcisismo desenvolvidas pela mass midia, e tende a privatizar asinstituies pblicas de cultura deixando-as sob a responsabilidade de empre-srios culturais.

    Do lado dos produtores e agentes culturais, o modo tradicional de relaocom os rgos pblicos de cultura o clientelismo individual ou das corporaesartsticas que encaram o Estado sob a perspectiva do grande balco de subsdiose patrocniosfinanceiros.

    Face a esse conjunto de prticas, nossa experincia realizou-se na contra-corrente, como crtica do estabelecido e proposta de inovao.Contra a viso liberal, propusemos alagar o conceito de cultura para almdo campo das belas-artes, tomando-o no sentido antropolgico mais amplo deinveno coletiva de smbolos, valores, idias e comportamentos, de modo a afir-

    mar que todos os indivduos e grupos so seres culturais e sujeitos culturais.

  • 7/28/2019 Marilena Chau - Cultura Poltica e Poltica Cultural

    12/14

    Contra avisoautoritria, negamosqueo Estado deva serprodutor decultu-ra, procurando, para isso, diferenciar entre estadismo cultural (cultura oficial) edimenso pblica da cultura (o Estado estimula a criao cultural da sociedade).Contra a viso populista, recusamos a reduo da cultura polaridade entre

    popu la r e deelite , enfatizandoque a diferena na criao cultural passa por outrolugar, qual seja, entre a experimentao inovadora e crtica e a repetio conserva-dora, pois tanto uma quanto outra podem estar presentes tanto na produo ditade elite quanto nachamadapopular.

    Contra a viso neoliberal, procuramosenfatizar o carter pblico da ao cul-tural do Estado, a abertura de campos de atividade no submetidos ao poderio dospadres fixados pela mass midia recusando,portanto, afashioncul ture , e definir opapel do poder pblico na prestao de servios culturais (como bibliotecas e escolasde arte) e no financiamento de produes culturais propostas pela sociedade.

    Alm da face negativa ou crtica, nossas propostas possuam uma face posi-tiva: a cultura foi pensada como direito dos cidados e a poltica cultural comocidadania cultural. Em outras palavras, procuramos marcar, desde o incio, que apoltica cultural visava tambm a uma cultura poltica nova.Que direitos procurvamos afirmar?

    Direito de acesso e de fruio dos bens culturais por meio dos servios pbli-cos de cultura (bibliotecas, arquivos histricos, escolas de arte, cursos, ofici-nas, seminrios, gratuidade dos espetculos teatrais e cinematogrficos,gratuidade das exposies de artes plsticas, publicao de livros e revistasetc.), enfatizando o direito informao,sem a qual no h vida democrtica; Direito criao cultural, entendendo a cultura como trabalho da sensibilida-de e da imaginao na criao das obras de arte e como trabalho da intelign-cia e da reflexo na criao das obras de pensamento; como trabalho da me-

    mria individual e social na criao de temporalidades diferenciadas nas quaisindivduos, grupos e classes sociais possam reconhecer-se como sujeitos de suaprpria histria e, portanto, como sujeitos culturais. Direito a reconhecer-se como sujeito cultural, graas ampliao do sentidoda cultura, criando para isso espaos informais de encontro para discusses,troca de experincias, apropriao de conhecimentos artsticos e tcnicos paraassegurar a autonomia dos sujeitos culturais, exposio de trabalhos ligadosaos movimentos sociais e populares.

  • 7/28/2019 Marilena Chau - Cultura Poltica e Poltica Cultural

    13/14

    Direito participao nas decises pblicas sobre a cultura, por meio de con-selhos e fruns deliberativos nos quais as associaes artsticas e intelectuais,os grupos criadores de cultura e os movimentos sociais, atravs de represen-tantes eleitos, pudessem garantir uma poltica cultural distanciada dos padresdo clientelismo e da tutela.

    O projeto cultural colocou-se, portanto, na perspectiva da democratizaoda cultura como direito fruio, experimentao, informao, memria e

  • 7/28/2019 Marilena Chau - Cultura Poltica e Poltica Cultural

    14/14

    participao. Contra a violncia visvel e invisvel dissimuladas pela mitologia dano-violncia, demos prioridade a programas de compreenso crtica da socieda-de e da histria brasileiras. Contra o universo da mass midia, demos nfase aocarter expressivo, experimental e diversificado da criao cultural como traba-lho. Contra o populismo, procuramos expandir a rede de servios culturais quegarantisse s camadas populares o acesso informao e s formas mais avana-das daproduo cultural. Contra o elitismo oligrquico,procuramos desenvolverno s projetos de memria social, mas sobretudo tornar visvelque somos todossujeitos culturais, mesmo que no sejamos todos criadores de obras de arte e depensamento. Os programas visavam formao (escolas e oficinas, seminrios ecursos), informao (bibliotecas, discotecas, arquivos histricos, videotecas,acesso a teatros, museus e cinemas), reflexo crtica (memria oral, memriasocial e poltica), ao lazer e solidariedade social (grandes eventos de msica edana ao ar livre), garantia de acesso aos bens culturais e criao cultural(ampliao e extenso para a periferia mais pobre da cidade da rede de bibliote-cas, videotecas, discotecas, escolas de arte, teatros, centros culturais e casas decultura, museus e casas histricas).

    Recusamos a prtica da animao cultural, substituindo-a pela ao cultu-ral das comunidades, dos movimentos sociais e populares. Recusamos a celebra-o oficial, substituindo-a pela comemorao scio-poltica, isto , pela memriasocial como elemento crtico do presente e do passado da sociedade brasileira.Recusamos o clientelismo, graas discusso pblica (em conselhos e fruns decultura) dos oramentos pblicos decultura e das prioridades dapoltica cultural.

    A cidadania cultural teve em seu centro a desmontagem crtica da mitolo-gia e da ideologia: tomar a cultura como um direito foi criar condies paratornar visvel a diferena entre carncia, privilgio e direito, a dissimulao dasformas da violncia, a manipulao efetuada pela mass midia e o paternalismopopulista; foi a possibilidade de tornar visvel um novo sujeito social e polticoque se reconhea como sujeito cultural. Mas foi, sobretudo, a tentativa para rom-per com a passividade perante a cultura - o consumo de bens culturais - e aresignao ao estabelecido, pois essa passividade e essa resignao bloqueiam abusca da democracia, alimentam a viso messinica-mineralista da poltica e opoderio das oligarquias brasileiras.

    Em suma, fizemos um esforopoltico para desenraizar as fundas razes domito fundador. Alguns dizem, pejorativaou positivamente, que fomos... radicais.Marilena, C h a u professora do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia,Letras e Cincias Humanas da USEConferncia do ms do IEA-USP feita pela autora em 6 de dezembro de 1994.