9
A CRÍTICA DA TRADIÇÃO A PARTIR DA OBRA DE ARTE SEGUNDO MERLEAU-PONTY Plínio Santos Fontenelle' RESUMO o presente artigo é uma tentativa de mostrar a crítica da tradição realizada pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) à filosofia moderna iniciada com Descartes, que afirmou que o sujeito atinge a plena evidência do mundo a partir de operações mentais. A crítica da tradição é retomada com maior precisão na fase de uma ontologia de Merleau-Ponty, compreendendo-se a pintura como reconstrução da interrogação filosófica e do habitar as coisas do mundo, esquecidas pela ciência, que sempre tratou delas sem habitá- Ias, e pela própria filosofia, que as considerou como res extensa do pensamento puro do sujeito. Para isso, a obra O olho e o Espírito do referido filósofo, escrita em 1960, aborda este momento da tradição filosófico-científica como o abandono do mundo. Palavras-chave: Merleau-Ponty, fenomenologia, ontologia, pintura. SUMMARY The present article is an attempt of showing the critic of the tradition accomplished by the french philosopher Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) to the modern philosophy begun with you Descartes, that aftirmed that the subject reaches the full evidence ofthe world starting from mental operations. The critic ofthe tradition is retaked with larger precision in the phase of an ontology of Merleau-Ponty, being understood the painting as reconstruction ofthe philosophical interrogation and of inhabiting the things of the world, forgotten by the science, that was always about them without inhabiting them, and for the own philosophy, that considered them as extensive cattles of the subject's pure thought. For that, the work The Eye and the Spirit of the referred philosopher, written in 1960, approach this moment of the scientific philosophical tradition as the abandonrnent ofthe world. Key-word: Merleau-Ponty - phenomenonlogy - ontology ~ painting. o pensamento que abre O Olho eo Espírito através .da frase "A ciên- cia manipula as coisas e renuncia a habitá-Ias", é a primeira declaração feita por Merleau-Ponty, nesta obra, sobre a tradição. Também a compre- * Professor Especialista do Departamento de Filosofia da UFMA. Cad. Pesq., São Luís, v. 10, n. I, p. 29-37, jan.rjun. 1999. 29

A CRÍTICA DA TRADIÇÃO A PARTIR DA OBRA DE ARTE … 3(12).pdf · (CHAUÍ, 1994, p.470). Neste sentido, o desligamento da tradição filosófica ... afirma Marilena Chauí: "Rumar

  • Upload
    dinhdan

  • View
    218

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A CRÍTICA DA TRADIÇÃO A PARTIR DA OBRA DE ARTE … 3(12).pdf · (CHAUÍ, 1994, p.470). Neste sentido, o desligamento da tradição filosófica ... afirma Marilena Chauí: "Rumar

A CRÍTICA DA TRADIÇÃO A PARTIR DA OBRA DE ARTE SEGUNDOMERLEAU-PONTY

Plínio Santos Fontenelle'

RESUMO

o presente artigo é uma tentativa de mostrar a crítica da tradiçãorealizada pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) àfilosofia moderna iniciada com Descartes, que afirmou que o sujeitoatinge a plena evidência do mundo a partir de operações mentais. Acrítica da tradição é retomada com maior precisão na fase de umaontologia de Merleau-Ponty, compreendendo-se a pintura comoreconstrução da interrogação filosófica e do habitar as coisas domundo, esquecidas pela ciência, que sempre tratou delas sem habitá-Ias, e pela própria filosofia, que as considerou como res extensa dopensamento puro do sujeito. Para isso, a obra O olho e o Espírito doreferido filósofo, escrita em 1960, aborda este momento da tradiçãofilosófico-científica como o abandono do mundo.

Palavras-chave: Merleau-Ponty, fenomenologia, ontologia, pintura.

SUMMARY

The present article is an attempt of showing the critic of the traditionaccomplished by the french philosopher Maurice Merleau-Ponty(1908-1961) to the modern philosophy begun with you Descartes,that aftirmed that the subject reaches the full evidence ofthe worldstarting from mental operations. The critic ofthe tradition is retakedwith larger precision in the phase of an ontology of Merleau-Ponty,being understood the painting as reconstruction ofthe philosophicalinterrogation and of inhabiting the things of the world, forgotten bythe science, that was always about them without inhabiting them,and for the own philosophy, that considered them as extensive cattlesof the subject's pure thought. For that, the work The Eye and theSpirit of the referred philosopher, written in 1960, approach thismoment of the scientific philosophical tradition as the abandonrnentofthe world.

Key-word: Merleau-Ponty - phenomenonlogy - ontology ~ painting.

o pensamento que abre O Olhoe o Espírito através .da frase "A ciên-cia manipula as coisas e renuncia a

habitá-Ias", é a primeira declaraçãofeita por Merleau-Ponty, nesta obra,sobre a tradição. Também a compre-

* Professor Especialista do Departamento de Filosofia da UFMA.

Cad. Pesq., São Luís, v. 10, n. I, p. 29-37, jan.rjun. 1999. 29

Page 2: A CRÍTICA DA TRADIÇÃO A PARTIR DA OBRA DE ARTE … 3(12).pdf · (CHAUÍ, 1994, p.470). Neste sentido, o desligamento da tradição filosófica ... afirma Marilena Chauí: "Rumar

ensão do Ser Selvagem é uma formade questionamento sobre as realizaçõesda ciência e da filosofia. A renúncia ao"habitar as coisas" é o que se podeentender por pensamento de sobrevôo.O mundo é o objeto que a ciência pen-sa ter construído. E na filosofia, surge.tradicionalmente, um sujeito.desencarnado do mundo, tentando '.dominá-Io através de operações inte-lectuais com seu olhar puro. "Nãoporacaso, diz Merleau-Ponty, filosofiae ciência, desde Platão, erigiram a ma-temática como paradigma do conheci-mento e do pensamento verdadeiro, istoé, elegeram como ideal do saber o tamáthema, aquele modo de pensar quedomina intelectualmente seus objetosporque os constrói inteiramente"(CHAUÍ, 1994, p.470). Neste sentido,o desligamento da tradição filosóficanada mais é do que a recusa do modeloclássico de Espírito como consciênciapura, encerrando os "entendimentosclaros e distintos". "Trata-se, agora, derenunciar à idéia do Ser como' ser pos-to' pela consciência enquanto poderabsoluto de posição, derivado de seupoderio como reflexão completa"(CHAUÍ, 1994, p.471). Ou ainda cornoafirma Marilena Chauí:

"Rum ar para o EspíritoSelvagem é abandonar adefinição do espírito comoconsciência de si, a daconsciência como reflexãoe da reflexão como posseintelectual de si e domundo" (CHAUÍ, 1994,p.471).

A obra de arte será, então, a pos-sibilidade de reconstrução da interroga-ção filosófica por parecer, de fato,habitar as coisas do mundo. Elaboraruma crítica à tradição pela pintura é,para Merleau-Ponty, uma refutação aopensamento de Descartes. Esta idéiase concretiza precipuamente na afirma-ção ontológica da Carne do mundo. Seo corpo, de início, é a condição de umaprimeira organização do mundo, pois"nós vivemos o mundo através de nos-so corpo antes de o conhecer e de orefletir intelectualmente" (DIRAISON& ZERNIK, 1993, p.222), o homem eo mundo passam a manter relaçõescarnais e de cumplicidade. "O homemse projeta no mundo, e o mundo encon-tra no homem o órgão de sua expres-são" (DIRAISON & ZERNIK, 1993,p.223). Esta correlação corpo-mundo,o mundo como correlativo do própriocorpo, nasce do engajamento carnal nomundo, pois o corpo não impõe nenhumsentido ao mundo, nem este impõe aocorpo um sentido também.

Para melhor ilustrar, pode-se verem Descartes, os materiais que com-põem o sensível como as cores, os odo-res, as impressões táteis, que são inertese subjetivos, contrários então à expres-são de coexistência do corpo com ascoisas (mundo). O sensível no seu maiscompleto grau de significação não sesitua no sujeito que percebe, nem noobjeto percebido, mas no vínculo queos liga. É neste sentido que o mundo eo corpo não são separáveis um do ou-tro. Sendo assim, a pintura como artedo sensível, encontra uma oposição nafilosofia cartes iana, ou seja, aracionalidade se opõe à sensibilidade.

30 Cad. Pesq.. São Luís, v. 10, n. l , p.29-37, jan./jun. 1999.

Page 3: A CRÍTICA DA TRADIÇÃO A PARTIR DA OBRA DE ARTE … 3(12).pdf · (CHAUÍ, 1994, p.470). Neste sentido, o desligamento da tradição filosófica ... afirma Marilena Chauí: "Rumar

Descartes só considera a cor como or-namento. O espaço deve conservar aforma e o conteúdo pode ser algo iso-lado. Sobre isto, completa Merleau-Ponty:

"A pintura não é para ele(Descartes) uma operaçãocentral que contribua paradefinir o nosso acesso aoser; é um modo ou umavariante do pensamentocanonicamente definidopela posse intelectual e pe-la evidência" (MERLEAU-PONTY, 1975,p.285).

É assim que a filosofia tradicio-nal nunca quis aceitar que a experiên-cia se tomasse ato selvagem do "euquero", "eu posso", como ligação doser no mundo. Mas mesmo assim, asnoções de Ser-sujeito e de Ser-objetovistos como contraditórias, passam aestar misturadas na concepção de umanova ontologia. Como Merleau-Pontyse refere a uma espessura (épaisseur)do corpo e suas variadas formas comosenciente-sensível, vidente-visível, amistura supracitada remete a uma dascategorias mais importantes deste filó-sofo, a reversibilidade. Mas tanto esteconceito, como o de Carne do mundoserão melhor explicitados em outromomento. É necessário, ainda, analisara crítica que Merleau-Ponty faz da tra-dição, como reabilitação da visão e vis-ta na terceira parte de O Olho e oEspírito.

O pensamento conforme a tra-dição cartesiana é pura atividadeesclarecedora daquilo que aparece a elecomo pura presença a si. É uma forma

de instituir uma idéia clara e distinta doinstante presente. Pensar, neste senti-do, é querer impor o instante presente.Merleau-Ponty afirma, ao contrário, quea filosofia de sobrevôo foi um episódio,mas que agora terminou. Ele absorve aatividade de pensar como sucessiva esimultânea (empiétement), e que nãopodem ser contraditórias, pois mistu-ram-se uma sobre a outra. Neste sen-tido, acrescenta Merleau-Ponty:

"Se penso, não é porquesalto para fora do temponum mundo inteligível, nemporque recrio toda vez asignificação a partir denada; é porque a flecha dotempo arrasta tudo consi-go, faz com que os meuspensamentos sucessivos se-iam, num sentido secundá-rio, simultâneos, ou pelomenos que invadam legiti-mamente um ao outro"(MERLEAU-PONTY, 1991,p. 14).

O pensamento é o momento emque se pode estar atado ao sensível,mesmo que seja no sentido de isolamen-to para que este se realize; mas mes-mo assim os outros, na condição desimultaneidade, devem encontrar-seimplicados. O pensamento "é o estofodo mundo que surge quando tento apre-ender-me, e aos outros que são capta-dos nele" (MERLEAU-PONTY, 1991,p.15). O que só confirma que pensarnão é deixar o sensível para passar aointeligível. É, portanto, refletir confor-me as estruturas simultâneas deste sen-sível, como o vidente-visível para

Cad. Pesq., São Luís, v. 10, n. 1, p. 29-37, jan./jun. 1999. 31

Page 4: A CRÍTICA DA TRADIÇÃO A PARTIR DA OBRA DE ARTE … 3(12).pdf · (CHAUÍ, 1994, p.470). Neste sentido, o desligamento da tradição filosófica ... afirma Marilena Chauí: "Rumar

melhor ilustrar. Aliás, esta análise feitapor Merleau-Ponty, foi colocada desdeA Fenomenologia da Percepção: atendência de considerar momentanea-mente a percepção do mundo com um"aqui", como que percebendo somenteum "adiante" percebido. Mas, ao con-trário, a coisa que se percebe, pode-sever como sendo já "aí", antes que "meu"olhar se coloque sobre ela. Como afir-mou Merleau-Ponty em Signes, nãopode estar o mundo deitado aos pés dopensamento de sobrevôo.

A filosofia é, por outro lado, oaprofundamento das questões esque-cidas pela tradição -les empiétements,le chiasme. O visível é o momento dequerer ver mais do que se vê. E o invi-sível é o "relevo da profundidade dovisível, e, assim como ele, o visívelnão comporta positividade pura"(MERLEAU-PONTY, 1991, p. 21).Para Descartes, aquele que pensa deveencontrar-se presente e perto das coi-sas pensadas. Não é permitido o serinatual, pois é necessário encontrar sem-pre uma articulação direta com o serdas coisas e das idéias. "A palavra deDescartes é o gesto que mostra em cadaum de nós esse pensamento pensantepor descobrir, o 'abre-te Sésamo' dopensamento fundamental. Fundamen-tal porque não é veiculado por nada"(MERLEAU-PONTY, 1991, p. 21).Esta filosofia analisada por Merleau-Ponty e contrária à tradição, tem comofundamento, encontrar os truísmos re-alizados pelo pensamento deste filóso-fo, isto é, o pensar que pensa, o olharque olha; existe neles uma lacuna que,evidentemente, a tradição ajudou asepará-los. A filosofia quer, agora, o

aprofundamento do Ser, sair desta su-perficialidade e juntar tais truísmos aum mesmo Ser. "A filosofia é arememoração deste ser, com a qual aciência não se ocupa, porque esta con-cebe as relações entre o ser e o conhe-cimento como as relações entre ogeometral e suas projeções, e esqueceo ser de envolvimento, esse a que sepoderia chamar a topologia do ser"(MERLEAU-PONTY, 1991, p.22).

Todavia, não se pode negar quea crítica realizada por Merleau-Pontyà tradição, encontra-se, como foi dito,na Fenomenologia da Percepção.Criticando a tradição nesta obra, eleprocurou anular a pura exterioridadeobjetiva para fazer do mundo um cam-po intencional do sujeito perceptivo. Osujeito e o mundo não estão mais numarelação de exterioridade. O sujeito nãoé o observador absoluto que alça umsobrevôo a fim de contemplar o mundode forma integral. O sobrevôo é impos-sível para este tipo de reflexão, poiscomo já foi indicado, "o mundo está aíantes de toda análise que eu possa fa-zer dele" (MERLEAU-PONTY, 1945,p.IV).

Existe um entrelaçamento(quiasm) entre o sujeito que pensa e omundo que por sua vez é pensado, nãosendo um mundo em-si, quer dizer, arelação sujeito-pensante e mundo-pen-sado neste entrelaçamento é a possibi-lidade verdadeira de se ter o mundoreal, pois conceber o mundo como pen-sado, puramente, seria recair em umanoção idealista. O mundo é aquilo quese pode ver: tudo aquilo que se vê eque está ao alcance do olhar, que estátambém no modo do "eu posso". E o

32 Cad. Pesq .. São Luís. v. 10. n. 1. p.29-37. jan.rjun. 1999.

Page 5: A CRÍTICA DA TRADIÇÃO A PARTIR DA OBRA DE ARTE … 3(12).pdf · (CHAUÍ, 1994, p.470). Neste sentido, o desligamento da tradição filosófica ... afirma Marilena Chauí: "Rumar

que permite o vínculo entre o sujeito eo mundo é a noção de corpo presentena Fenomenologia da Percepção,sendo também a consciência uma no-ção que não está separada do mundo,logo a idéia intelectualista de que aconsciência é pura interioridade seráprontamente contestada. Segundo Joséde Anchieta Correia "a 'fé perceptiva'instala por intermédio do corpo 'umaabertura ao mundo' que não impede suaocultação. É isto que a filosofia devecompreender" (CORREIA, 1972,p.l 03). A visão de corpo presente nes-ta obra e na maioria das obras deMerleau-Ponty, é a de um corpo quehabita o mundo e não "uma massa iner-te, instrumento exterior" (CORREIA,1972, p.2l8). A Fenomenologia en-quanto método permite, desta forma,que a consciência seja compreendidacomo sujeito encarnado no mundo.

Mas o sujeito em Merleau-Pontycom seu sentido de corpo, consciênciae mundo até agora descritos, absorveuma dimensão de Ser bruto e selvagemna fase da ontologia original. O que sepode perceber é que a crítica à tradi-ção irá tomar uma análise mais profun-da nesta fase, quando abordada a idéiadesta ontologia pré-reflexiva do mundobruto e selvagem, marcando decidida-mente toda essa discussão. A críticaao pensamento de sobrevôo é a críticaao pensamento ocidental, que sempreprocurou dominar e controlar a reali-dade exterior. A filosofia rnerleau-pontyana procura revelar a dicotomiasujeito-objeto, que foi originada porDescartes (TAMlNIAUX, 1991, p.42)e sua metafísica idealista, criando oespaço no qual é possível definir e de-

terminar o ato do conhecimento e o con-teúdo desse ato. Todas as dicotomiaspassam a ser um engano originário ecomum da filosofia ocidental. "É por-que na tradição cartesiana o sujeito sedefine essencialmente como presençaa si: ser e aparecer devem coincidir"(DIRAISON & ZERNIK, 1993,p.227).

Toda esta crítica tem como pon-to de apoio a arte da pintura. Este temaé muito bem descrito em O Olho e oEspírito fundamentando a investiga-ção ontológica, que serviu como cami-nho à região bruta e selvagem do Ser;é uma nova leitura da Filosofia ou o seuretorno às origens da verdadeira refle-xão (CRAUÍ, 1981, p.195), onde de-verá descobrir o solo anterior à atividadereflexiva: é a região do "logos do mun-do estético", da unidade sensível eindivisa do corpo e das coisas; é a nãoexistência de uma ruptura reflexiva en-tre sujeito e objeto. Esboça-se, aqui,uma crítica à Filosofia especulativa datradição, a crítica ao pensamento desobrevôo. A partir da descoberta entãodo "logos do mundo estético" ou docorpo e mundo "encarnados" é queMerleau- Ponty passará à crítica do pen-samento de sobrevôo. E é neste exatomomento que a arte se torna uma dasexperiências preponderantes em relaçãoà transcendentalidade do real.

A esse respeito, pode-se inserirPaul Cézanne como o grande inspiradorde Merleau-Ponty a criticar o "pensa-mento de sobrevôo", típico da filosofiatradicional. Cézanne procurou fixar os"instantes do mundo" através de suastelas. O Monte de Sainte- Victoire(1904) foi a obra de arte de Cézanne a

33Cad. Pesq .. São Luís. v. 10. n. 1. p. 29-37. jan./jun. 1999.

Page 6: A CRÍTICA DA TRADIÇÃO A PARTIR DA OBRA DE ARTE … 3(12).pdf · (CHAUÍ, 1994, p.470). Neste sentido, o desligamento da tradição filosófica ... afirma Marilena Chauí: "Rumar

que Merleau-Ponty se refere ao tratardo "pensamento de sobrevôo". Diz ofilósofo referindo-se ao pintor: "eu soua consciência da paisagem que se pen-sa em mim" (MERLEAU-PONTYapud NOVAES, 1988, p.13). Assim,Merleau-Ponty se dirige à tradição que"elege a idéia ou o Espírito absolutocomo fonte do conhecimento e indire-tamente a Descartes que pretendia adominação das paixões pela consciên-cia, e a cisão entre espírito e corpo"(NOVAES, 1988, p.13). A arte é entãoessa possibilidade de pintar o "EspíritoSelvagem" do sujeito que não diz maiso "eu penso", e sim o "eu quero", "euposso". É o ser bruto também, queindiviso no mundo, desconhece a cisãosujeito-objeto, consciência-mundo.Como afirma Marilena Chauí, "as ar-tes ensinam à filosofia a deiscência daCarne do mundo e do corpo" (CHAUÍ,1980, p.X), A pintura é a que poderá,então, figurar os traços (épures) do Ser,seu fluxo e refluxo, seu entrecru-zamento. "Se a pintura tem um lugarprivilegiado na pesquisa de Merleau-Ponty, é porque seu trabalho opera cadavez uma percepção nascendo"(THIERRY, 1991, p.9-10).

A partir dessa abordagem, nãoé difícil perceber que neste momento afilosofia e a pintura partilham tanto dotema da encarnação do mundo quantodo dualismo tradicional sujeito-objeto.A pintura é o enigma da expressão doSer no mundo, sem se notar quem é ovidente e quem é o visível. E o tempotodo, o enigma da visão, o "olhar" fun-damentado na arte deste pintor, serviucomo metáfora ao entendimento que se

pode ter da percepção em Merleau-Ponty, desde A Fenomenologia daPercepção.

A idéia central de Merleau- .Ponty sobre a pintura, e em particularna obra O Olho e o Espírito, é o res-gate que a própria pintura faz dos pro-blemas do pensamento como atividadesimultânea e não mais esclarecedora.Atividade como fixar os instantes domundo. Parece então trivial, num pri-meiro momento, que a frase queMerleau-Ponty tomou de Valéry, "o pin-tor emprega seu corpo", seja uma sim-ples obviedade na criação deste emrelação à sua obra de arte. Ela é, numsentido contrário, a confmnação daque-le que emprega sobre sua tela, as rela-ções de simultaneidade, de truísmos,que o visível mantém com o corpo. Oquadro não é, a partir daí, uma simplescópia, nem fragmentos ou dados visu-ais emprestados ao mundo dito real,"para visá-lo em sua falta, como pen-savam Platão e os gregos, ou Descar-tes, e também Pascal, no início damodernidade" (TAMINIAUX, 1991,p.44). O pintor não pinta diretamente ovisível, mas a simultaneidade(l'empiétement) do visível sobre o vi-dente. É neste termo que se delineiaessa ambigüidade, encontrada no pen-samento de Merleau-Ponty da seguin-te maneira:

"O visível em torno de nósparece repousar nelemesmo. É como se nossavisão se formasse em seucoração, ou como sehouvesse entre ele e nósuma familiaridade tão

34 Cad. Pesq.. São Luís, v. 10, n. 1, p.29-37, jan./jun. 1999.

Page 7: A CRÍTICA DA TRADIÇÃO A PARTIR DA OBRA DE ARTE … 3(12).pdf · (CHAUÍ, 1994, p.470). Neste sentido, o desligamento da tradição filosófica ... afirma Marilena Chauí: "Rumar

estreita quanto a do mar eda praia" (MERLEAU-PONTY apud DlRAISON.& ZERNIK, 1993, p.230).

A relação da filosofia com a pin-tura, é este momento da visão, quandoo pintor que empresta seu corpo aomundo, transforma-o em pintura. Ocorpo não é uma res extensa ou um"pedaço de espaço" encontrados nomundo; é portanto, um entrelaçamentode visão e movimento. Através do olhar '.o corpo está aberto para o mundo. Eisa reabilitação da visão, anunciada emO Olho e o Espírito:

"O enigma reside nisto:meu corpo é ao mesmotempo vidente e visível. Eleque olha todas as coisas,também pode olhar a si ereconhecer no que estávendo então o 'outro lado'do seu poder vidente. Elese vê vidente, toca-setateante, é visível e sensívelpor si mesmo" (MERLEAU-PONTY. 1975, p.278).

Este enigma da reabilitação davisão permite ao pintor, a existência deum mundo lançando-lhe sempre umapelo que ele jamais terá condições determinar de responder (CAVALLIER,1998, p.34): a pintura pode manifestara visibilidade das coisas mesmo nãoencontrando-se, de início, perceptíveis,porque, como diria Cézanne, "a natu-reza está no interior". Pois é nisso queconsiste o enigma da visibilidade e, as-sim, o retrato do mundo nem sempreencontra-se na natureza presente nosquadros (TAMINlAUX, 1991,p.43-44),

e quanto ao pintor, é necessário pulsarnele mesmo, em seu interior, aquilo quedeseja pintar. "Qualidade, luz, cor, pro-fundidade, que estão aí diante de nós,aí só estão porque despertam um ecoem nosso corpo, porque este lhes faz .acolhida. Este equivalente interno, estafórmula carnal da sua presença que ascoisas suscitam em mim por que nãohaveriam de, por seu turno, suscitar umtraçado, visível ainda, onde qualqueroutro olhar reencontrará os motivos quesustentam a sua inspeção do mundo?"(MERLEAU-PONTY, 1975, p.279).Completando esta idéia, o quadro ao servisto, não encontra-se como simples.coisa, como se estivesse em superfíciepara ser captado pela visão. Como dizMerleau-Ponty, o olhar vagueia nele,mostrando a diversidade do Ser, segun-do o próprio quadro e com ele. E aocelebrar o enigma da visibilidade, a pin-tura empresta ao mundodo pintor, ummundo visível. Este é um truísmo exatodaquele que ao pintar, "pratica uma te-oria mágica da visão" (MERLEAU-PONTY, 1975, p.281) mas ele deveadmitir que também as coisas entramnele. Elas estão no coração do kósmose da visão. É por isso que Merleau-Ponty fez questão de citar Paul KIee,confirmando este momento: ''Numa flo-resta, repetidas vezes senti que não eraeu que olhava a floresta. Em certos dias,senti que eram as árvores que olhavampara mim, que me falavam"(MERLEAU-PONTY, 1975, p.282).Este outro sentido da visão é a permis-são que o quadro oferece de manifes-tar a existências das coisas. "O 'instantedo mundo' que Cézanne queria pintar,

Cad. Pesq., São Luís, v. 10, n. 1, p. 29-37, jan./jun. 1999. 35

Page 8: A CRÍTICA DA TRADIÇÃO A PARTIR DA OBRA DE ARTE … 3(12).pdf · (CHAUÍ, 1994, p.470). Neste sentido, o desligamento da tradição filosófica ... afirma Marilena Chauí: "Rumar

e que de há muito já passou, suas telascontinuam a no-lo lançar, e sua monta-nha Santa-Vitória faz-se e refaz-se deum extremo a outro do mundo"(MERLEAU-PONTY, 1975, p.283).

É por isso que o pensamentocartesiano fica a querer despedir omundo da sensibilidade. Não há misté-rios neste pensamento e a pintura é le-vada diretamente à consciência onde,comenta Merleau-Ponty, não existemno cérebro, olhos para que se possa vero próprio mundo. A pintura para Des-cartes não permite o acesso ao Ser."Para Descartes, é uma evidência que

não se pode pintar senão coisas exis-tentes, que a existência delas é seremextensas, e que o desenho possibilita apintura ao se tomar possível a repre-sentação da extensão" (MERLEAU-PONTY, 1975, p.286). O enigma queMerleau-Ponty se refere, é a impossi-bilidade de reduzir o pensamento à vi-são, aliás, tal enigma é a devolução do"pensamento de ver" da visão em ato.É a afirmação de um pensamento deespaço, de um espaço que é a "evidên-cia do onde" (MERLEAU-PONTY,1975, p.287), que Descartes e todos osmomentos clássicos rejeitaram.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

CHAUÍ, Marilena. Artepensamento. SãoPaulo: Cia das Letras, 1994.

__ ->, Marilena. Da realidade semmistérios ao mistério do mundo.Espinosa, Voltaire, Merleau-Ponty.São Paulo: Brasiliense, 1981.

___ , Marilena. "Merleau-Ponty: vidae obra". In: Merleau-Ponty. SãoPaulo: Abril Cultural, 1980,p.1O. (OsPensadores).

CORREIA, J. de Anchieta et al."L'évolution de Ia notion de 'corps'à Ia notion de 'chair' chez MauriceMerleau-Ponty". Kriterion, BeloHorizonte, v. 19, n. 66, p.103, 1972.

DIRAISON, S. & ZERNIK, E. Lescorps des philosophes. Paris: P.U.F.,1993.

ESCOUBAS, Eliane (org.). La part deI'oeil. Dossier: art et phénorné-

nologie. Bruxelles: Académie Royaledes Beaux-Arts de Bruxelles, n. 7..1991.

MERLEAU-PONTY. A dúvida deCézanne. São Paulo: Abril Cultural,1975. (Os Pensadores).

___ o O Olho e o espírito. São Pau-lo: Abril Cultural, 1975. (Os Pensa-dores).

___ o Phénoménologie de Iaperception. Paris: Gallimard, 1945.

___ o Signos. São Paulo: MartinsFontes, 1991.

NOVAES, Adalto (org.). O olhar. SãoPaulo: Cia das Letras, 1988.

ROBINET, André. Merleau-Ponty. Pa-ris: P.U.F., 1970.

TAMINIAUX, J. "Le penseur et lepeintre: sur Merleau-Ponty". In:

Cad. Pesq., São Luís, V. 10, n. 1, p.29-37, jan.rjun. 1999.36

Page 9: A CRÍTICA DA TRADIÇÃO A PARTIR DA OBRA DE ARTE … 3(12).pdf · (CHAUÍ, 1994, p.470). Neste sentido, o desligamento da tradição filosófica ... afirma Marilena Chauí: "Rumar

ESCOUBAS, Eliane (org.). La partde I'oeil. Dossier: art etphénoménologie. Bruxelles: Acadé-mie Royale des Beaux-Arts deBruxelles, 1991. Capo 3, p.39-46

THÉVENAZ, Pierre. De Husserl àMerleau-Ponty. Qu'est-ce que Iaphénoménologie?Neuchâtel: Éditionsde Ia Baconniêre, 1966.

THIERRY, Yves. "Du corps parlant, lelangage chez Merleau-Ponty". ln:CAVALLIER, François. Premiéresleçons sur l'Oeil et l'esprit de M.Merleau-Ponty. Paris: P.u.F., 1998.Capo 1, p.3-14.

Cad. Pesq., São Luís, V. 10, n. 1, p. 29-37, jan.rjun. 1999. 37