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Ser: a palavra ser, em por- tuguês, traduz a palavra latina esse e a expressão grega tà ónta. A pàlavra latina esse é o infinitivo de um verbo, o verbo ser. A expressão grega tà ónta quer dizer "as coisas existentes, os entes, os seres' No singular, tàóntase diz tôón, cuja tradução é "o Ser". áto ten nifi cor é, a vlsi o 4 tJ 4 a 7 o , O ri 1! Demócrito de Abdera (c. 460 - C. 370 a.C.) 1 UNIDADE 5 1 O conhecimento . . . . . . . . .I....S. .. . •. . e . e e e e •. e e . . e e e • •ie•s . e e ei e e e e e CAPITULO1 A preocupação com o conhecimento O conhecimento e os primeiros filósofos uando estudamos o nascimento da filosofia na Grécia, vimos que os primeiros filó- sofos - os pré-socráticos - dedicavam-se a um conjunto de indagações principais: "Por que e como as coisas existem?", "O que é o mundo?", "Qual a origem da natureza e quais as causas de sua transformação?' Essas indagações colocavam no centro a pergunta: "O que são as coisas?". Pouco a pouco essa pergunta passou a ser assim formulada: "O que é o?". Os primeiros filósofos ocupavam-se com a origem e a ordem do mundo, o- kósrnos, e a filosofia nascente era uma cosmologia. Pouco a pouco, passou-se a indagar o que era o próprio kósmos, qual era o princípio eterno que ordenava todas as coisas e que permanecia imutável sob a multiplicidade e transformação delas. Esse princípio era concebido como o fundo imperecível presente em todas as coisas, fazendo-as existir tais como são. Esse fundo presente em todas as coisas é o Ser. Assim, passou-se a perguntar qual era e o que era o Ser, to ón, subjacente a todos os seres. Com isso, a filosofia nascente tornou-se ontologia, isto é, conhecimento ou saber sobre o Ser. Por esse mesmo motivo, alguns estudiosos consideram que os primeiros filósofos não tinham uma preocupação principal com o conhecimento como conhecimento, isto é, não indagavam se podemos ou não conhecer o Ser, mas partiam da pressuposição dé iie o po- demos conhecer, pois a verdade, sendo alétheia, isto é, presença e manifestação das coisas para os nossos sentidos e para o nosso pensamento, significa que o Ser está manifesto.e presente para nós e, portanto, nós o podemos conhecer. Todavia, a opinião de que os primeiros filósofos não se preocupavam com nossa capaci- dade e possibilidade de conhecimento não é exata. Para tanto, basta levarmos em conta o fato de afirmarem que a realidade (o Ser, a natureza) é racional e que a podemos conhecer porque também somos racionais; nossa razão é parte da racionalidade do mundo, dela participando. Heráclito, Parmênides e Demócrito . Alguns exemplos indicam a existência da preocupação dos primeiros filósofos com o conhecimento e, aqui, tomaremos três: Heráclito de Èfeso, Parmênides de Eleja e Demócrito de..Ab.de.r.a. Heráclito de Ëfeso considerava a natureza (o mundo, a realidade) um "fluxo perpétuo",. o.escoamento continuo dos seres em múdança. perpétua. Dizia: "Não podemds banhar-nos duas vezes no mesmo rio, porque as águas nunca são as mesmas e nós nunca somos os mes- mos". Comparava ó mundo à chama de uma vela que queima sem cessar, transformando a cera em fogo, o fogo em fumaça ea fumaça em ar. O dia se torna noite, o verão se torna 9utono o novo fica velho o quente esfria o umiLio seca tudo se transforma no seu contrario O mundo é um processo incessante de transformação em que cada ser . é um movimento em direção ao seu contrário. . A realidade, para 11leráclito, é á harmonia dos contrários, que nâo cessam de se transfor - mar uns nos outros. sd tudo não cessa de se transformar perenemente, como explicar que 158

filosofia - O conhecimento- marilena chauí

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material para estudo sobre as teorias do conhecimento segundo os grandes filósofos da humanidade.

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  • Ser: a palavra ser, em por-tugus, traduz a palavra latina esse e a expresso grega t nta. A plavra latina esse o infinitivo de um verbo, o verbo ser. A expresso grega t nta quer dizer "as coisas existentes, os entes, os seres' No singular, tntase diz tn, cuja traduo "o Ser".

    to ten nifi cor

    , a vlsi

    o

    4

    tJ 4 a

    7 o , O

    ri 1! Demcrito de Abdera (c. 460 - C. 370 a.C.)

    1 UNIDADE 5 1 O conhecimento

    . . . . . . . . .I....S. .. . . . e . . e e e e . e e . . e e e ies . e e ei e e e e e

    CAPITULO1

    A preocupao com o conhecimento

    O conhecimento e os primeiros filsofos

    uando estudamos o nascimento da filosofia na Grcia, vimos que os primeiros fil- sofos - os pr-socrticos - dedicavam-se a um conjunto de indagaes principais: "Por que e como as coisas existem?", "O que o mundo?", "Qual a origem da natureza

    e quais as causas de sua transformao?' Essas indagaes colocavam no centro a pergunta: "O que so as coisas?". Pouco a pouco essa pergunta passou a ser assim formulada: "O que o?".

    Os primeiros filsofos ocupavam-se com a origem e a ordem do mundo, o- ksrnos, e a filosofia nascente era uma cosmologia. Pouco a pouco, passou-se a indagar o que era o prprio ksmos, qual era o princpio eterno que ordenava todas as coisas e que permanecia imutvel sob a multiplicidade e transformao delas. Esse princpio era concebido como o fundo imperecvel presente em todas as coisas, fazendo-as existir tais como so. Esse fundo presente em todas as coisas o Ser. Assim, passou-se a perguntar qual era e o que era o Ser, to n, subjacente a todos os seres. Com

    isso, a filosofia nascente tornou-se ontologia, isto , conhecimento ou saber sobre o Ser.

    Por esse mesmo motivo, alguns estudiosos consideram que os primeiros filsofos no tinham uma preocupao principal com o conhecimento como conhecimento, isto , no indagavam se podemos ou no conhecer o Ser, mas partiam da pressuposio d iie o po-demos conhecer, pois a verdade, sendo altheia, isto , presena e manifestao das coisas para os nossos sentidos e para o nosso pensamento, significa que o Ser est manifesto.e presente para ns e, portanto, ns o podemos conhecer.

    Todavia, a opinio de que os primeiros filsofos no se preocupavam com nossa capaci-dade e possibilidade de conhecimento no exata. Para tanto, basta levarmos em conta o fato de afirmarem que a realidade (o Ser, a natureza) racional e que a podemos conhecer porque tambm somos racionais; nossa razo parte da racionalidade do mundo, dela participando.

    Herclito, Parmnides e Demcrito .

    Alguns exemplos indicam a existncia da preocupao dos primeiros filsofos com o conhecimento e, aqui, tomaremos trs: Herclito de feso, Parmnides de Eleja e Demcrito de..Ab.de.r.a.

    Herclito de feso considerava a natureza (o mundo, a realidade) um "fluxo perptuo",. o.escoamento continuo dos seres em mdana. perptua. Dizia: "No podemds banhar-nos duas vezes no mesmo rio, porque as guas nunca so as mesmas e ns nunca somos os mes-mos". Comparava mundo chama de uma vela que queima sem cessar, transformando a cera em fogo, o fogo em fumaa ea fumaa em ar. O dia se torna noite, o vero se torna 9utono o novo fica velho o quente esfria o umiLio seca tudo se transforma no seu contrario O mundo um processo incessante de transformao em que cada ser . um movimento em direo ao seu contrrio. .

    A realidade, para 11lerclito, harmonia dos contrrios, que no cessam de se transfor -mar uns nos outros. sd tudo no cessa de se transformar perenemente, como explicar que

    158

  • tomo: a paIava tomo tem origem grega e sig-nifica "o que no pode ser cortado ou dividido' isto ,a menor partcula indi-visvel de todas as coisas.

    D

    o

    2'. o

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    A preocupao como conhecimento 1 Cuio 1 1

    nossa percepo nos oferea as coisas como se fossem estveis, duradouras o permanentes? Com essa pergunta o filsofo indicava a diferena entre o conhecimento que nossos senti-dos nos oferecem e o conhecimento que nosso pensamento alcana,, pois nossos sentidos nos oferecem a imagem da estabilidade e nosso pensamento alcana Ia verdade como mu-dana contnua.

    Parmnides de Eleja colcava-se na posio m

    oposta de Herclito. Dizia que s podemos pensar, sobre aquilo que permanece sempre i1ntico a si esmo, isto , que o pensamento no pode pensar sobre coisas qtie so e no s, que ora so de um modo e ora so de outro, que so contrrias a si mesmas e contraditrias.

    Conhecer alcanar o idntico, imutvel. Nossos sentidos nos oferecem a imagem de um mundo em incessante mudana,, num fluxo perptuo, onde nada permanece idntico a si mesmo, onde tudo se torna o contrrio de si mesmo: o dia vira noite, o inverno vira pri-mavera, o.dce se torna amargo, o pequeno vira grande, o grande diminui, odoce amarga, o quente esfria, o frio s aquece, o lquido vira vapor ou vira slido.

    Como pensar o, que e no ao mesmo tempo? Como persar o instvel? Como -pensar o que se torna oposto e contrrio a si mesmo? No possvel, dizia Parmnides. Pensar apreende um ser em sua identidade profunda e permanente. Corri isso, afirmava o mesmo que Herclito perceber e pensar so diferentes -, mas o dizia no sentido oposto ao de Hercli-to, isto , percebemos mudanas impensveis e devemos pensar identidades imutveis.

    Demcrito de Abdera desenvolveu uma teoria sobre o Ser ou sobre a, natureza conhe-cida com o nome de atomismo: a realidad constituda por tomos. Os seres surgem por composio dos tomos, transformam-se por novos arranjos dos tomos e morrem por, se-parao -dostomos.

    . , . . Os tomos, para Derncrito, possuem

    formas e consistncias diferentes (redon

    . dos, triangulares, lisos, duros, moles, rugo- sos,

    tes modos de combinaco entre diferen :1:: produzem a variedade de seres, suas, mu-danas e desaparies. Por meio de nossos rgos dos sentidos, percebemos o quente e o frio, o doce e o amargo,-o seco e o mido, o grande o pequeno, o duro e o mole, sa-bores, odores, texturas, o agradvel e--o de-sagradvel, sentimos prazer e dor, porque percebemos os efeitos das combinaes dos

    - tomos que, em si mesmos no possuem tais qualidades (isto , no so doces: nem amargos, nem azuis nem verdes, nem gran,- des nem pequenos pois so as menores par 4 - ticulas materiais existentes).

    Leitura de 1 Somente o pensamento pode conhecer os tomos, que so invisveis para nossa percep-

    linguagem braile co sensorial. Dessa maneira, Demcrito concordava com Herclito e Parmnides em que h

    para deficientes ' -. -

    visuais, uma diferena entre o que conhecemos por meio de nossa percepao e o que conhecemos apenas pelo pensamento; porm, diversamente dos outros dois filsofos, no considerava .a percepo ilusria, mas apenas um efeito da realidade sobre ns. O conheci'nento sensorial ou sensvel to verdadeiro quanto aquilo que o pensamento puro alcana, embora de uma verdade diferente e menos profunda ou menos relevante do que aquela alcanada pelo puro pensamento.

    sses trs exemplos nos mostram que, desde os ,seus comeos, a filosofia preocupou-se com o problema do conhecimento, pois sempre esteve voltada para a questo do verdadeiro.

    Desde 0:-incio, os - filsofos se deram conta de que nosso pensamento parece seguir certas

    159

  • 1 UNIDADE 5 1 O conhecimento

    lis ou regras para conhecer as coisas e que h uma diferena entre perceber e pensar. Pensa-mos com base no que percebemos ou pensamos negando o que percebemos? O pensamen-to continua, nega ou corrige a percepo? O modo como os seres nos aparecem o modo como os seres realmente so?

    r

    Scrates e os sofistas Preocupaes como essas levaram; na Grcia clssia, a duas atitudes filosficas: a dos

    sofistas e a de Scrates - com eles, os' problemas do conhecimento t rnram-se centrais. Diante da pluralidade e dos antagonismos das filosofias anteriores, ou dos conflitos entre as vrias ontologias, os sofistas concluram que no podemos conhecer o Ser, pois, se puds-semos, pensaramos todos da mesma maneira e haveria uma nica filosofia, uma vez quea verdade universal e a mesma para todos os hunanos. Consequentemente, s podemos ter opinies subjetivas sobre a realidade.

    Por isso, para se relacionarem com o mundo e com os outros humanos, os homens devem valer-se de um instrumento - a linguagem para persuadir os otrode suas pr-prias ideias e opinies. A verdade uma questo de opinio e de persuaso, e a linguagem mais importante do que a percepo e o pensamento.

    Em contrapartida, Scrates, distanciando-se dos primeiros filsofos - que se ocupavam em conhecer a natureza -, propunha comearpelo orculo de Delfos, isto , pelo

    *

    conhece-te a ti mesmo", e, pondo-se aos sofistas, afirmava que a verdade pode ser conhecid desde que compreendamos que precisamos comear afastando as iluses dos sentidos, as imposies das palavras e a multiplicidade das opinies. Possumos uma alma racional e que nos assegu-ra que podemos alcanar a verdade e que a alcanamos apenas pelo pensamento, isto , pela atividade de nossa razo. Como as ideis so inatas em nossa alma racional, conhecer-se a si mesmo fazer o trabalho para o parto ou nascimento das ideias e auxiliar os dnais a realizar esse parto. .

    Os rgos dos sentids, diz Scrates, nos do somente as aparncias das coisas e as pala-vras, meras opinies sobre elas. A marca da aparncia e da opinio sua variabilidade: varia de pessoa para pessoa e'varia num mesmo indivduo. Mas no s.varia: tambm se contra-diz. Conhecer comear a examinar as contradies das aparncias e das opinies para poder abandon-las e passar da aparncia esncia, da opinio ao conceito. O exame das opinies aquele procedimento que Scrates chamava de ironia, com o qual o filsofo conseguia que seus interlocutores reconhcessem que no sabiam o que imaginavam saber; o parto das ideias era a maiutica,com a qual, graas a perguntas adequadas feitas pelo filsofo, o interlocutor encontrava em sua alma racional a ideia verdadeira ou a essncia da coisa procurda.

    Plato e Aristteles Scrates fez a filosofia voltar-se para nossa capacidade de conhecer e indagar quais as

    causas das iluses, dos erros, do falso e da 'mentira. Platoe Aristteles herdaram de Scrates o procedimento filosfico de abordar urna questo comeando pela discusso e pelo debate das opinies contrrias sobre ela. Alm disso, passaram a definir as formas de conhecer e.as diferenas entre o conhecimento verdadeiro e a iluso, introduzindo na filosofia a ideia de que existem diferentes maneiras 'de conhecer ou graus de conhecimento.

    Plato distingue distingu quatro formas ou graus de conhecimento, que vo do grau inferior ao superior: crena, opinio, raciocnio e intui10 intelectual. Os dois primeiros graus f9rmam o que ele chama de conhecimento sensvel, enquanto os dois ultimos formam o conhecimento inteligvel.

    A crena nossa confiana no conhecimento sensorial: cremos que as coisas so tais como as percebemos em nossas sensaes. A opinio nossa aceitao do que nos ensina- rani sobre as coisas pu o que delas pensamos conforme nossas sensaes e lembranas. Esses dois primeiros graus de conhecimento nos oferecem apenas a aparncia das coisas ou suas

    parto: em grego, porto se diz maiutica.

    i6o em

  • A preocupao com o conhecimento 1 CAPITULO 1 1

    ideia; para Plato, as ideias so a realidade verdadeira e conhec-las ter conhecimento ver-dadeiro.

    imagens (so as sombras das coisas verdadeiras) e corre* spondem situao dos prisionei-ros da caverna: Por serem ilusrios, esses dois graus devem ser afastadps pelas pessoas que buscam o conhecimentoverdadeiro, pois este diz respeito s essncias das

    . coisas; portanto,

    somente os dois ltimos graus devem ser considerados vlidos. O ra4iocni - que, para Plato, se realiza dmaneira perfeita na matertica - treina e exercit nosso pensamento, purifica-o das sensaes e opinies eo prepaija para a intuio intelectual, que conhece as essncias das coisas ou o que Plato denomini com a palavra ideia

    A i 1 ronia-e a maiutica socrticas so transformadas por Plato num procedimento de-nominado por ele de dialtica, que consiste em trabalhar .expond e examinando teses con-trarias sobre um mesmo assunto ou sobre uma mesma coisa de maneira a descobrir qual das teses falsa edeve ser abandonada e qual verdadeira e deve ser conservada. A finalida-de do percurso dialtico ou do exerccio dialtico proporcionar, ao seu trmino, a intuio intelectual de uma essncia ou ideia.

    Arstteles distingue sete formas ou graus de conhecimento: sensao, percepo, ima-ginacJ, rnenifla, linguagem, raciocnio e intuio. Enquanto Plato concebia o conheci-mento como abandono de um grau inferior por um superior, para Aristteles, nosso conhe-cimento vai sendo formado e enriquecido por acumulao das informaes trazidas por todos osgis.de modo que, em lugar de uma ruptur entre o conhecimento sensvel e o intelectual, h continuidade entre eles. Assim, as informaes trazidas pelas sensaes se organizame permitem a percepo. As percepes se organizam e permitem a imaginao. Juntas, percepo e imaginao conduzem memria, linguagem eao raciocnio.

    Aristte1es concebe, porm, uma separao entre os seis primeiros graus e o ltimo, a intuio intelectual, que um ato do pensamento puro e no dpende dos graus anteriores. Essa separao, porm, no significa que os outros graus ofeream c nlecimentos ilusrios

    ouTalsos e sim que oferecem tipos de conhecimentos diferentes, que vo de um grau menor a um grau maior de verdade.

    Em cada um deles temos acesso a um aspecto do Ser ou da realidade e, na intuio intelectual; temos o conhecimento dos princpios universais e necessrios do pensamento (identidade, no contradio, terceiro excludo) e dos primeiros princpios e das primeiras causas da realidade

    .ou. do Ser. A diferena entre-os seis primeiros graus e o ltimo decorre

    cia diferena dd objeto do conhecimento, isto , os seis primeiros graus conhecem objetos que se oferecem a ns na sensao, na imaginao, no raciocnio, enquanto o stimo lida com princpios e causasprimeiras, isto , com o que s pode ser alcanado pelo pensamento puro. Ou seja, nos outros graus, o conhecimento obtido por induo ou por deduo, por demonstraes e provas, mas no ltimo grau conhecemos que indemonstrvel (princ-pios) porque condio de todas as demonstraes e raciocnios.

    Princpios gerais

    Com os filsofos gregos, estabeleceram-se alguns princpios gerais do conhecimento verdadeiro: .

    a determinao das fontes e formas do conhecimento: sensao, percepo, imagina-o, memria, linguagem, raciocnio e intuio intelectual;

    .3 a distino entre o conhecimento sensvel e o conhecimentointelectual; ) o papel da linguagem no conhecimento;

    .4 a diferena entre opinio e saber ou conhecimento verdadeiro; .

    .4 a diferena entre aparncia 'e essncia; .. 'a definio dos princpios do pensamento verdadeiro (identidade, no contradio, ter-

    ceiro excludo), da forma do conhecimento verdadeiro (ideias, conceitos e juzos) e dos procedimentos para alcanar o conhecimento verdadeiro (induo, deduo, intuio);

    161

  • 1 UNIDADE 5 1 O conhecimento

    .4. o estabelecimento de procediment'os corretos que orientam a razo n, bsca do co-nhecimento e asseguram sua chegada a conhecimentos verdadeiros (em Plato, esse procedimento a dialtica, em Aristteles, a lgica ou o que ele chama de analtica); a distinO dos campos do conhecimento verdadeiro. segundo os objetos cqnhecidos em cada um deles, distino que foi sistematizada por Aristteles em trs ramos: teor-tico (referente aos seres que apenas podemos contemplar ou observar, sem agir sobre eles ou neles interferir) pratico (referente as aes humanas tica, poltica e econo

    mia); e tcnico (referente fabrica de instrumentos e de objet''iEabalho hurra-no, o qual pode interferir no curso da natureza - como a agricultura e a medicina -, e fabricar instrumentos ou artefatos - como os artesanatos, a arquitetura, a escultura, a poesia, a retrica, etc.); -

    Os filsofos modernos e o nascimento da teoria do conhecimento

    uando se diz que a teoria do conhecimento tornou-se. uma disciplina - especifica da

    filosofia somente com os filsofos modernos (a partir do sculo XVII), no se pre- tende dizer que antes deles oproblemado conhecimento no havia ocupado outros

    filsofos, e sim que, para os modernos, a questo do conhecimento foi considerada anterior a da ontologia e precondio ou pr

    .

    -requisito para a filosofia e as cincias. Por que essa mudana de perspectiva dos gregos para os modernos? Porque a filosofia

    moderna. pressupe..a presena do cristianismo, o qual trouxe questes e problemas que os antigos filosofos desconheciam A perspectiva crist introduziu algumas distines que romperam com a ideia grega de uma participao direta ebarmoniosa entre o nosso inte-lecto e a verdade, nosso ser e o mundo, pois os filsofos antigos consideravam que ramos entes participantes de todas as formas de realidade: por nosso crpb, p fkiamos da natu-reza; por nossa alma, participamos da inteligncia divina.

    O cristianismo, porm, parte da concepo judaica de uma separao entre o homem e Deus, causada pelo pecado original ou pela queda do primeiro homem e da primeira mu-lher; pelo pecado, os humanos ficaram separados da inteligncia divina e perderam os laos harmoniosos com a natureza. Dessa maneira o cristianismo afirmou que o erro e a iluso so parte da natureza humana em'decorrncia do carter pervertido de nossa vontade, aps o pe-cado original. Criados com uma inteligncia perfeita e uma vontade Iive, o primeiro hmem e a primeira mulher usaram a liberdade para.transgredir a ordem de Deus, que lhes proibia o conhecimento do bem e do mal Por orgulho Ado e Eva infrmgiram a lei divina e ao faze lo foram punidos, perdndo o contato direto com Deus e a verdade, ,a imortalidade de seus cor-pos, a perfeio da inteligncia e da vontade, caindo para sempre no erro ena iluso.

    Em consequncia da concepo crist do ser humano, a filosofia precisou enfrentar problemas novos 1. Como, sendo seres decados e pervertidos, podemos'conhecer a verdade? 2. Ao introduzir a noo de pecado original, o cristianismo introduziu a separao radical

    entre os humanos (pervertidos efinitos) e a divindade (perfeita e infinita). Com isso, fez surgir a pergunta:como o finito (iuman) pode conhecer a verdade (infinita e divina)? Eis por que, durante toda a IdadeiMdia, af. tornou-se central para afilosofia, pois era

    por meio dela que essas perguntas eram respondidas. Misericordioso, Deus prometeu aos homens a redeno e para isso.enviou seu Filho para salv-los. Crer no Filho ter a suprema virtude, a f, que ilumina nosso intelecto e guia nossa, vontade, permitindo nossa.razo o conhecimento do que est ao seu alcance, ao mesmo tempo que nossa alma aceita as ver-dades superiores reveladas por Deus e contidas nas Escrituras Sagradas Com isso o cristia

    162

  • Santo Agostinho (354 ..-430 )

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    A preocupao como conhecimento 1 CAPITULO 1 1

    nismointroduziu uma distino impensvel pra os filsofos antigs, qual seja, a distino entre verdades-de rato e verdades de f, ou entre o cnhecimento que nossa razo pode alcanar por si, mesma e o conhecimento que . s alcanamos por meio de uma revlad divina. As verdades que dependem de revelao divina so aquelas que nossa razo finita e imperfeita no s no pode alcanar sozinha coifrio so, sobretudo, aquelas que s podemos aceitar sem compreender (como ocaso, por exemplo, da Encarnao do Filho de Deus, ou a Santssima Trindade, ou a Eucaristia). Em outras!palavras, as verdades da f so mistrios. H, portanto, duas maneiras de conhecer: pela atividade da razo ou luz natural e pela aceitao da' revelao ou luz sobrenatural.

    Visto qu a verdade, tanto de razo como de f, tem sua origem nasabedoria e intelign-cia- de Deus (pois este o criadof de todas as coisas), a verdade, dividida para ns, indivisa e uma em si nsma. Isso significa, em primeiro lugar, que no pode haver contradio entre verdades da f e da razo, pois a verdade no pode contradizer a verdade, , e, em segundo, se houver alguma contradio, as verdades de razo devem ser abandonadas em proveito das verdades daf, ma vez que a razo humana est sujeita ao erroe, ao falso. O conhecimento racional, mesmo que no dependa da f, subordina-se a ela.

    Alm da distino das verdades, o cristianismo trouxe a ideia de que a causa da ver-' dade a inteligncia divina enquanto a causa do erro e dofalso a vontade humana, cuja liberdade perversa polui nossa inteligncia ou razo. Essa ideia crist foi fundamentda par -ticularmente com Saito Agostinho na ideia depessoa vinda do Direito. Romano, que define. a pessoa cm.o umsujeito de direitose deveres. Se somos pessoas, dizem os cristos, somos responsveis por nossos atos e pensamentos. Nossa pessoa nossa conscincia, que nossa alma dotada de vontade, imaginao, memria e inteligncia. A verdade setorna, portanto, uma questo de conscincia. .

    A vontade livre e, aprisionada num corpo passional e fraco, pode mergulhar nossa alma na iluso e no erro. Estar no erro ou na verdade depender, portanto, de ns mesmos, de nossa conscincia, e por isso precisamos saber se podemos ou no conhecer a verdade e em que condies tal conhecimento po'ssvel.Os primeiros filsofos cristos e os medie-vais afirmaram que podemos conhecer a vrdad, desde que a razo no contradiga a f e se submeta a ela no tocant s verdades'ltimas e principais.

    Os filsofos modernos, porm, no aceitaram essas respostas e por esse notivo a ques-to do conhecimento tornou-se centralpara eles.

    Os filsofos gregos se surpreendiam que pudesse haver erio, iluso e mentira. Como a verdade - altheia - era concebida como presena e manifestao do verdadeiro aos nos-sos sentidos ou ao nosso intelecto, isto , como presena d Ser nossa experincia sensvel :e/ou ao puro pensamento, a pergunta filosfica.s podia ser: "Como possvel o erro ou a iluso?". Oti seja, se o verdadeiro o prprio Ser fazend-se ver em todas s coisas, presente em nossas percepes, em nossas palavras, em nossos pensamentos, como o falso possvel se o falso dizer e pensar que existe o que no existe? Como possvel ver o que no , dizer o que no , pensar o que no ?

    Para ....mdrnos, a situao exatamente contrria. Perguntam: "Como o conheci-mento da verdade possvel?". De fato, se a verdade o que est no intelcto infinito de Deus, ento est escondida de nossa razo finita e no temos acesso a ela. Avrdade, portan-to, no o que est manifesto na realidade, mas depende da revelao divina. Ora, a revela-o s conhecida pela f e para esta a verdade emunah, a confiana que nos leva a dizer "assim seja" e que nossa razo no pode entender; Por outro lado, visto que nosso intelecto limitado foi pervertido peta nossa vontade pecadora, como podemos conhecer at mesmo as verdades de razo, isto , as que estariam ao nosso alcance sem o auxlio da revelao e da f? Ou seja, at que ponto podemos admitir que nossa razo ou luz natural capaz de um saber verdadeiro? .

    Por isso 'mesmo, os filsofos modernos observaram que as verdaies de f haviam in-fluenciado a prpria maneira de conceber as verdades de razo. De fato, uma verdade de f

  • UNIDADE 5 1 O conhecimento

    algo proferido e proclamado.por uma autoridade inquestionvel (Deus, anjos, santos) e esse aspecto como que "ontamino" as verdades de razo, fazendo com que os filsofos s acei-tassem uma ideia se esta viesse com o selo de alguma autoridade reconhecid pela Igreja. Assim, mesmo uma verdade que podia ser alcanada por nossa raz s era aceita se fosse autorizada por algum considerado superior (um filsofo antigo, um santo, um papa, um conclio eclesistico, etc.). E essa autoridade era ainda maior se estivesse situada no passado distante e suas ideias conhecidas pela leitura de livros ou por lies de escola.

    A primeira tarefa que os modernos se deram foi a de recusar o poder de autoridades sobre a razo, seja a autoridade das Igrejas, seja a das escols e dos livros. Comeam, por isso, separando f de razo, considerando cada uma delas voltada para conhecimentos diferen-tes e sem que uma deva subordinar-se outra. Prosseguem fazendo a crtica da autoridade atribuda trdio, aos livros dos antigos e ao ensinamento das escolas. E passam a explicar como a razo e o pensamento podem tornar-se mais fortes do que a vontade e control-la para que se evite o erro. -

    O problema do conhecimento torna-se, portanto, crucial e a filosofia precisa comear pelo exame da capacidade humana de conhecer, pelo entendimento, o estudo da prpria razo 'humana ou de nosso intelecto ou entendimento. Com

    isso, o ponto de partida dos modernos o sujeito do conhecimento. Os dois filsofos que, no sculo XVII, iniciam esse trabalho so o. ingls Francis Bacon e o francs Reri Descartes. O filsofo que prope, pela primeira vez, uma teoria do conhecimento propriamente dita o ingls John Locki Pode-mos dizer que a partir do sculo XVII, portanto, a teoria do conhecimento torna-se uma disciplina crucial da filosofia.

    1 .........

    Bacon e Descartes

    C orno dissemos, os gregos indagavam: "Como o erro possvel?". Os modernos per-guntaram: "Comoa verdade possvel?". Para os gregos, a verdade era altheia, para os modernos, ventas. Em outras palavras, para os modernos trata-se de compreender e explicar como os relatos mentais - nossas ideias - correspondem ao que se passa ver-dadeiramente na realidade. Apesar dessas diferenas, os modernos retomaram o modo de trabalhar filosoficamente propoto porScrates, Plato e Aristteles, qual seja, comear pelo exame das opinies contrrias e ilusrias para ultrapass-las em direo verdade.

    Antes de abordar o conhecimento verdadeiro, Bacon e Descartes examinaram exausti-vamente as causas e as formas do erro, inaugurando um estilo filosfico que permanecer na filosofia, isto , a anlise das causas e formas dos nosos preconceitos.

    Bacon . 1 Bacon elaborou uma teoria conhecida como a crtica dos (dolos. De acordo ccm Bacon,

    existem quatro tipos de dolos ou de imagens que formam opinies cristalizadas e precon-ceitos, que impedem o conhecimento da verdade:

    1. dolos da caverna (a caverna de que fala Bacon a do Mito da Caverna, de Plato): as opinies que se formam em ns por erros e defeitos de nossos rgos dos sentidos. So os mais fceis de serem corrigidos por nosso intelecto;

    2. dolos dofrum (o frum era o lugar da discusses e dos debates pblicos na Roma antiga): so as opiides que se formam m ns como consequncia da linguagem e de nossas relaes com os outros. So difceis de serem vencidos, mas o intelecto tem poder sobre eles;

    3. dolos do teatro (o teatro o lugar em que ficamos passivos, onde somos apenas espec--

    tadores e receptores de mensagens): so as opinies formadas em ns em-decorrncia

    dolo: a palavra dolo vem do grego eidi,lon eignifi. ca "imagem'

    164

  • A preocupao como conhecimento 1 CAPITULO 1

    dos poderes das autoridades que nos impem seus pontos de vista e os transformam em decretos e leis inquestionveis. S podem ser desfeitos se houver uma mudana social e poltic; - -

    4. dolos da tribo (a tribo um agrupameno humano em que todos possuem a mesma origem, o mesmo-destino, as mesmas caractersticas e os mesmos comportamentos): so as opinies que se formam em ns em decorrncia da natureza humana. So pr-priosda espcie humana e s podem seX

    . vencidos se houver uma reforma da prpria

    natureza humana.

    O ento presidente dos Estados Unidos,

    George W. Bush, com sua me Barbara Bush e seu pai, o

    ex-presidente George Bush, durante um

    discurso numa universidade do

    Texas, em dezembro de 2008. Cena

    exemplar do que Bacon chama de "dolo de teatro".

    o 5

    a

    1

    A demolio dos dolos , portanto, uma reforma do intelecto, dos conhecimentos e da sociedade. Para os dois primeiros, Bacon prope a instaurao de um mtodo, definido como o modo seguro de "aplicar a razo experincia", isto , de aplicar o pensamento lgico aos dados ofereci4os pelo conhecimento sensvel. O mtodo deve tornar possvel: 1. organizar e controlar os dados recebidos da experincia sensvel, graas a procedimen-

    tos adequados de.observao e de experimentao; 2. organizar e controlar os resultados observacionais e experimentais para chegar a co-

    nhecimentos nov6s ou formulao de teorias verdadeiras; -

    3. desenvolver procedimentos adequados para a aplicao prtica dos resultados tericos, pois para ele o homem "ministro da natureza" e,se souber conhec-la (obedecer-lhe, diz Bacon), poder comand-la. O mtodo, diz Bacon, ' o modo seguro e certo de "apli-car razo experincia' isto , de aplicar o penamentp verdadeiro aos dados ofereci-dos pelo conhecimento sensvel. Bacon acreditava que o avano dos conhecimentos e das tcnicas, as mudanas sociais

    e polticas e o desenvolvimento das cincias e da filosofia propiciariam uma grande reforma do conhecimento humano, que seria tambm uma grande reforma da vida humana. Tanto assim que, ao lado de suas obras filosficas, escreveu uma obra filosfico-poltica, a Nova At!ntida, na qual descrev e narra uma sociedade ideal e perfeita, nascida do conhecimento verdadeiro e do desenvolvimento das tcnicas.

    165 .4

    1-

  • 1 UNIDADES O conhecimento

    Descartes

    Descartes localizava a origem do erro em duas atitudes que chamou de atitudes infantis ou preconceitos da infncia: 1. a preveno, que a facilidade com que nosso sprito se deixa, levar pelas opinies e

    ideias alheias, sem se preocupar em verificar s so ou no verdadeiras. So as opinies que se cristalizam em ns na forma de preconceitos (colocados em ns por pais, pro-fessores, livros, autoridades) e que escravizam nosso pensamento, impedindo-nos de pensar e de investigar; .

    2. a precipitao, que a facilidade e a velocidade com que nossa vontade nos faz emitir juzos sobre as coisas antes- de verificarmos se nossas ideias so ou no so verdadei-ras. So opinies que emitimos em consequncia de nossa vontade ser mais forte e poderosa que nosso intelecto. Originam-se no conhecimento sensvel, na imaginao, na linguagem e na memria. Essas duas atitudes indicam que, para Descartes, o erro situa-se no conhecimento sen-

    svel (ou seja, sensao, prcepo, imaginao, memria e linguagem); de maneira que o co-nhecimento verdadeiro puramente intelectual, ou seja, Tundado apenas nas operaes de nosso intelecto ou entendimento e tem como ponto de partida ou ideisihati(xstnt'es em nossa razo) ou observaes que foram inteiramente controladas pelo pensamento.

    Como Bacon, Descartes tambm est convencido de que possvel vencer os defitos no conhecimento, por meio de uma reforma do entendimento e das cincias. (Diferente mente de Bacon, Descartes no v a' necessidade de essa reforma tambm exigir mudanas sociais e polticas.) . : , '

    Essa reforma deve ser feita pelo sujeitodo conhecimento quando este compreende a necessidade de encontrar fundamentos seguros para o saber e se, para tanto, instituir um mtodo. -

    Os objetivos principais do mtodo so: 1. assegurar a reforma do intelecto para que este siga o caminho seguro da verdade (por-

    tanto, afastar a preveno e a precipitao); - 2. oferecer pocedimentos pelos quais a razo possa controlar-se a si mesma durante o

    processo de conhecimento sabendo que caminho percorrer e sabendo reconhecer se um resultado obtido verdadeiro ou no;

    3. permitir a ampliao ou o aumento dos conhecimentos graas a procedimentos seg-ros qu permitam passar do j conhecido ao desconhecido;

    4. oferecer os meios para que os novos conhecimentos possam ser aplicados, pois o saber deve, no dizer de Descartes, tornaro homem "senhor da natureza".

    Por que o mtodo se torna,'necessrio? ,

    Feitas as crticas autoridade das escolas e dos livros, da tradio e dos preconceitos, o sujeito do conhecimento descobre-se como uma conscincia que parece no poder contar com o auxlio do mundo para gui-lo, desconfia dos conhecimentos sensveis e dos conhe-cimentos herdados. Est s. Conta apenas com seu prprio pensamento. Sua solido torna indispensvel um mtodo que possa guiar o pensamento em direo aos conhecimentos verdadeiros e distingui-los dos falsos Eis por que Descartes escreve Discurso do mtodo e Regras para a direo do esprito. Sobre o mtodo, diz ele, na regra.IV das Regras........

    Por mtodo, entendo regras certas efcceis, graas s quais todos os que ak observei-vi exatamente jamais tomaro como verdadeiro aquilo que falso e chegaro, sem se an-sar com esforos inteis e aumentando progressivamente sua Cincia, ao conhecimento verdadeiro de tudo o que lhes possvel esperar:

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    Discurso do mtodo: fac-smile da capa da obra Discurso do mtodo, de Descartes, publicada em 1637.

    166

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    3 z 2

    John i.ocke (1632-1704)

    E.SSAY U4n;tanb%ltg, ,

    800IS

    , O Q.,.4,.

    .F. ONDON

    z. 1 U by

    Ensaio sobre o entendi-mento humano:fac-smile da capa de Ensaio sobre. o entendimento humano,, deiohn Locke,em edio de 169.

    o

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    167

    A'preocupao como conhecimento 1 CAPITULO1

    Descartes, portanto, define o mtodo como um conjunto de regras cujas caractersticas principais so trs: 1

    1. certas (o mtodo d segurana ao pensamento); 2. fceis (o mtodo evita complicaes e esforos inteis); 3. amplas (o mtodo dev permitir que se alcance todos os conhecimentcs possveis para

    o entendimento humano). Descartes elabora quatro grande regras do mtodo:

    1. regra da evidncia: s admitir como verdadeiro um conhecimento evidente, isto , no qual e sobre o qual no caiba a menor dvida. Para isso Descartes criou um procedi-

    duvida metdica: como j

    mento a duvida metdica, pelo qual o sujeito do conhecimento analisando cada um de seus conhecimentos, conhece e avalia as fontes e as causas d cada um, a forma e o

    aceitar nenhum pensa- mento ou henhuma ideia contedo de cada um, a falsidade ea verdade de cada um e encontra meios para livrar-se em que possa haver a de tudo quanto seja duvidoso perante o pensamento;

    menor duvida. ,

    2. regra da diviso: para conFecermos realidades complexas precisamos dividir as dificul-dadee os problemas em suas parcelas mais simples, examinando cada uma delas em conformidade com a regra da evidncia;

    3. regra da ordem: os pensamentos devem ser ordenados em sries que vo dos mais sim-ples aos mais complexos, dos mais fceis aos mais difceis, pois a ordem consiste em distribuir os conhecimentos de tal maneira que possamos passar do conhecido ao des-conhecido; -

    A. regra da enumerao: a cada conhecimento novo obtido, fazer a reviso completados passos dados, dos resultados parciais e dos encadeamentos que permitiram chegar ao novo conhecimento. .

    Locke \

    J ohn Locke o iniciador da teoria do conhecimento propriamente dita porque se prope a analisar cada uma -das formas de conhecimento que possumos, a origem de nossas ideias enossos discursos, a finalidade das teorias e,as capacidades do sujeito cognoscente relacionadas com os objetos que ele pode conhecer.

    Logo na abertura de sua obra Ensaio sobre o ent.endimento humano, Locke escreve:

    - .......Visto quo'entenimento situa o homem acima dos outros seres snsveis ed-lhe -toda vantagem e todo domnio que tem sobre eles, seu estudo consiste crtamente num tpico que, por sua nobreza, mercedor de nosso trabalho de investig-lo. O entendi-mento, como o olho, que nos faz ver e perceber todas as outras coisas, no se observa c si mesmo; requer arte e esforo situ10.a distncia efaz-lo seu prprio objeto. Assim como .o olho, que faz ver e no se v a si mesmo, o entendimento humano fa

    conhecer mas no se conhece a si mesmo. Para conhecer-se, isto , para que o entendimento torne-se um objeto de conhecimento para si mesmo, "requer arte e esforo". Como Descartes e Bacon, Locke afirma a necessidade do entendimento examinar a si mesmo. Como Bacon e Descartes, -Lqcketambm considera que necessrio esforo, trabalho, deciso para fazer o entendimentd tomar-se a si:mesmo omoobjeto de investigao. Porm,assim como Aris-tteles diferia de Plato, Locke difere de Descartes.

    Plato e Descartes s param, de um lado, a experincia sensvel, que pde estar sujeita ao erro, e, de outro, o conhecimento verdadeiro, que puramente intelectual. Descartes, porm, difere de Plato, porque considera que o conhecimento sensvel pode e deve ser emprega-do por ns, desde que submetido ao mtodo e controlado pelo entendimento. Aristteles e

  • UNIDADE 5 1 O conhecimento -

    Locke consideram que o conhecimento se realiza por graus contnuas, partindo da sensao at chegar s ideias. No entaiito, Locke difere de Aristteles porque, para este, os princpios do pensamento e da realidade no so conhecidos por experincia sensvel nem procedem da experincia sensvel, mas - so conhecidos apenas pelo puro pensamento ou pela intuio intelectual. Para, Locke, porm, todas as ideias e todos os prinpios do conhecimento deri-vam da experincia sensvel. Em outras palavras, o intelecto recebe da experincia sensvel todo o material do conhecimento e por esse motivo pode-se dizr que ho h nad em nosso entendimento que no tenha vindo das sensaes.

    Suponhamos que o esprito seja; por assim dizer, uma folha em branco, sem ne-nhuma letra, sem nenhuma ideia: Corno estas chegaram ali? (...) De onde procede todo o material da razo e do conhecimento? Respondo com uma s palavra: da experincia. Todo nosso conhecimento se baseia nela e dela provm em ltima instncia.

    Como se formamos conhecimentos? Por um processo de combinao e associao dos dados da experincia. Por meio das sensaes, recebemos as impresses das coisas externas; essas impresses formam o que Locke chama de ideias simples. Por sua vez, nas percep- es, essas impresses ou ideias simples se associam por semelhanas e diferenas, forman- do ideias complexas ou compostas. Por intermdio de novas combinaes e associaes, essas ideias se tornaro mais complexas na razo, que forma as ideias abstratas ou gerais,. como as ideias de substncia, corpo, alma, Deus, natureza, etc., bem como as ideias das rela- es entre essas ideias complexas, como as ideias de idntidade, ausalidade, finalidade, etc, A formo das ideias na sensao, na percepo e na razo se faz por um processo de gene-. ralizao pelo qual, a cad'a passo, eliminamos as diferenas para ficar com as semelhanas e os traos comuns, cujo conjunto forma uma ideia complexa geral ou universal.

    Tudo o que sabemos existir nos dado pelas sensaes e percepes, portanto, pela experiicia. 1Visto'que a experincia nos mostra e nos d a conhecer apenas coisas particu- lares ou singulares somente elas existem Por conseguinte as ideias gerais ou universais no correspondem a realidades ou a essncias existentes, mas so nomes que institumos por conveno para organizar nossos pensamentos e nossos discursos. Assim, por exemplo,

    nossos olhos sentem ou percebem objetos coloridos e no a cor (isto , percebemos dores de- terminadas que existem nos objetos particulares da viso). Da mesma forma, nossos olhos percebem objetos luminosos ou com luminosidades diferentes, mas no percebem a luz. Nossa razo, recebendo as percep6 singulares dos objetos coloridos e dos objetos lumi- nososcombina e organiza essas sensaes e percepes, ab...raidos objetos (isto , separa) abstrao: a palavra. as qualidades coloridas e luminosas e com elas forma as ideias universais de 'cor" e de"luz".

    signifi ca existe "a cor' mas objetos singulares coloridos tais como os percebemos - "a cor" um parar pelo pensamento".

    nome geral com que nossa razo organiza nossas sehsaes.

    visuais. Do mesmo modo, no -

    A abstrao consiste em separar qualidades, quan-

    existe "a luz" e sim objetos singulares luminosos tais como os percebemos - 'a luz" um tidades, propriedades nome geral com que nossa razo organiza nossas sensaes visuais. Por isso se diz que Locke que existem nas coisas e nominalista., singulares percebidas e organiz-las em ideias

    gerais que no possuem objetos determinados.

    Racionalismo e empirismo

    N a histria da filosofia e da episternoogia ) a diferena de perspectiva entre Descartes e Locke levou a distinguir as duas grandes orientaes da teoria do conhecimento: o racionalismo e o empfrisrno. Para o racionalismo, a razo, tomada em si mesma e sem apoio da experincia sensvel,

    o fundamento e fonte do conhecimento verdadeiro. O valor e o sentido da experincia sensvel, bem comp seu uso na prduo de conhecimentos dependem de princpios, re-gras' e normas esta?elecidos pela.` razo. Em outras palavras, a razo controla a exprinci sensvel para que esta possa participar do conhecimento verdadeiro. Para o racionalismo, o

    168

    ma

  • A preocupao como conhecimento CAPITULO 1 1

    modelo perfeito de conhecimento verdadeiro a matemtica, que depnde exclusivamente do uso da razo e que usa a percepo sensvel (por exemplo, para contruir figuras geom-, tricas) sob o controle da atividade do intelecto.

    Parao epipirismo, o fundamento ea fonte de todo e qualquer conhecimento a expe-rincia sensvel, responsvel pela existncia das ideias na razo e controlando o trabalho da prpria razo, pois o valor e o sentido da ativi1ade racional dependem do que determinado pela experincia sensvel. Para os empiristas, p modelo do conhecimento verdadeiro dado pelas cincias naturais ou cincias experimer tais, como a fsica e a qumica.

    A conscincia: o sujeito, o eu, a pessoa e o cidado

    A s diferenas entre racionalismo e empirismo no impedem que haja um elemento cei-rium a tios os filsofos a partir da modernidade, qual seja, tomar o entendimen-to humano como objeto da investigao filosfica. Tomar o entendimento objeto para si prpiio, tomar o sujeito do conhecimento objeto

    de cbnhecimento para si mesmo a grande taiefa que a modernidade filosfica inaugura ao desenvolver a teoria do conhecimento. Como se tratada volta do pensamento sobre simesnio' para conhecer-se, ou do sujeito do conhecimento colocando-se como objeto para si mesmo, teoria do conhecimento reflexo filosfica.

    O pressuposto da teoria do conhecimento como reflex filosfica ode que somos seres racionais conscientes. O que a teoria do conhecimento entende por conscincia?

    A capacidade humana para conhecer, para saber que conhece e para saber que sabe que conhece. A conscincia um conhecimento (das coisas e de si)'e um conhecimento desse conhecimento (reflexo). .

    Do ponto de vista da teoria do conhecimento, a conscincia uma atividade sensvel e intelectual dotada do poder de anlise e sntese, de representao dos objetos por meio de ideias e de avaliao, compreenso e interpretao desses objetos por meio de juzos. -o sujeito do conhecimento. Este s reconhece como diferente dos objetos, cria e/ou descobre significaes, institui sentidos, elabora conceitos,, ideias, juzos e teorias. Por ser dotado de reflexo, io , da capacidade de conhecer-se a si mesmo no ato do conhecimento, o sujeito um saber de si e um saber sobre o mundo, manifestando-se como sujeito percebedor, ima-ginante, memorioso, falante e pensante. o entendimento propriamente dito, uma estrutu-ra racional e uma capacidade de conhecimento que a mesma em todos os seres humanos. Por sua universalidade, o sujeito do conhecimento distingue-se da conscincia psicolgica, pois esta sempre individual.

    Que entendemos por "conscincia psicolgica"? Do ponto d vista psicolgico, a conscincia o sentimento de nossa prpria identidade:

    o eu. O eu o centro ou a unidade ,de todos os nossos estados psquicos e corporais, ou aque-la percepo qe permite a algum dizer "meu corpo", "minha razo", "minhas lembranas".

    A conscincia psicolgica ou o eu e formada por nossas vivencias O eu e a conscincia11de si como o ponto de identidade e de permanncia de um fluxo temporal interior que re-tm o,passado na memria, percebe o presente pela ateno e espera o futuro pela imagina-o e pelo pensamento.

    Por seu turno, a conscincia de si reflexiva o,ii o sujeito do conhecimento forma-se como atividade de anlise e sntese, de representao e de sigrificao voltadas para a ex-plica, descrio e interpretao da realidade e das outras trs esferas da vidaconsciente (vida psquica, moral e poltica), isto , da posio do mundo natural 'e cultural e de si mesma como objetos de conhecimento. Apoia-se em mtodos de conhecer e buscar a verdade ou o verdadeiro. o aspecto intelectual e tericoda conscincia.

    Ao contrrio do eu, o sujeito do conhecimento no uma vivncia individual, uma es-trutura cognitiva dotada de universalidade ou seja a capacidade de conhecimento e idnti

    vivncias; a maneira como sentimos e com-preendemos o que se passa em nosso corpo e no mundo que nos rodeia, assim como o que se passa em nosso interior; a maneira individual e prpria com que cada um de ns percebe, imagina, lembra, opina, deseja, age, ama e odeia, sente prazer e dor, toma posio diante das coisas e dos outros, decide, age, sente-se feliz ou infeliz.

    169

    "i

  • 1 UNIDADE 5 1 O conhecimento

    ca em todos os seres humanos e tem a mesma validade para todos os seres humanos, em to -dos os tempqs e lugares. Assim, por exemplo, .a ideia de crculo ou a de tringulo, elaboradas pelo gemetra enquanto sujeito do conhecimento, possuem o mesmo sentido, as mesmas caractersticas e propriedades, seguem as mesmas leis geomtricas em todos os tempos e l-gares, no dependendo de nossos gostos e desejos. Da mesma maneira, oprincpio de iden-tidade e o de no contradio exprimem a estrutura universal do modo de pensar do sujeito do conhecimento e so vlidos em todos os tempos e lugares. O. sujeito do conhecimento se ocupa com noes como as de espao e tempo, causa e efeito, princpio e consequncia, verdadeiro e falso, matria e forma, signo e significao, etc., enfendidas como condies universais e necessrias do conhecimento.

    Podemos compreender melhor a diferena entre o eu psicolgico e o sujeito do conhe-cimento tomando alguns exemplos. Joo, por exemplo, pode gostar de geometria e Paula pode detestar essa matria, mas o que ambos sentem no afeta os conceitos geomtricos, nem os procedimentos matemticos, cujo sentido e valor independem das vivncias de am-bos e so o objeto construdo ou descoberto pelo sujeito do conhecimento. Maria pode no saber que existe a fsica quntica e pode, ao ser informad sobre ela, no acreditar nela e no gostar da ideia de que seu corpo seja apenas movimentos de partculas invisveis. Isso, porm, no afeta a validade e o sentido da fsica quntica, descoberta e coiheida pelo sujei-to do conhecimento. Luza tem lembranas agradveis quando v rosas amarelas; Antnio, porm, tem pssimas lembranas quando v rosas dessa cor. No entanto, a perepo de cores, de seres espaciais e temporais se realiza em ns no apenas segundo nossas vivncias psicolgicas individuais, mas tambm segundo leis, normas, princpios de estruturao e organizao que so os mesmos para todos na medida em que cada um de ns um sujeito do conhecimento, mesmo quando no sabemos disso, ou seja, mesmo que no tenhamos passado atitude reflexiva pela qual conheemos que conhecemos.

    Alm de sua dimenso epistemolgica (sujeito do conhecimento ou entendimento) e de sua dimenso psicolgica (o eu das vivncias individuais) a conscincia possui tambm uma dimenso tica.

    O que a conscincia moral ou tica? Do ponto de vista tico e moral, a conscincia a capacidade livre e racional para esco-

    lher, deliberar e agir conforme valores, normas e regras que dizem respeito ao bem e ao mal, ao justo e ao injusto, virtude e ao vcio. a pessoa, dotada de vontade livre ede responsa-bilidade. a capaidade de algum para compreender e interpretar sua prpria situao e condio (fsica, mental, social, cultural, histrica), viver na companhia de outros segundo as normas e os valores morais definidos por sua sociedade, agir tndo em vista fins escolhidos por deliberao e deciso prprias, comportar-se segundo o que julga o melhor para si e para os outros e, quando necessrio, contrapor-se e opor-se aos valores estabelecidos ;- em nome de outros considerados mais adequados liberdade e responsabilidade. a conscinci de si como exerccio rac'ional e afetivo da liberdade e da responsabilidade, em vista da vida feliz e justa.

    A conscincia moral pertence esfera da vida privada, isto ; das relaes interpessoais. e intersubjetivas que transcorrem na famlia, nas amizades, no trabalho, na com' omunidade re-ligiosa, na organizao empresarial, etc. Alm de nossa vida privada, participamos tambm da vida pblica, isto , da esfera poltica.

    O que a conscincia na esfera pblica ou poltica? Do ponto de vista poltico, a conscIncia cjdado,isto , o indivduo situado no teci-

    do das relaes sociais como portador de dirtitos e deveres definidos na esfera pblica, rela-cionando sc com o poder poltico e as leis; bem como o indivduo na.condio de membro de uma classe social, definid por sua situao e posio nessa classe, portador e defensor de interessesespecficos de seu grupo ou de sua classe, relacionando-se com a esfera pblica do poder e das leis. m outras palavras, o cidado a conscincia de si definida pela esfera pblica dos direitose deveres civis e sociais, das leis e do poder poltico.

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