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ngoquynh
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Programa Mnimo de Formao
Anarquismo Especifista(Especifismo)
Caderno 03
O Programa Mnimo de Formao da OASL um projeto que conta com um material bsico de formao poltica, de conhecimento de toda sua militncia. Tem por objetivo, alm de proporcionar o aprimoramento do conhecimento dos militantes da OASL, disponibilizar um material para fortalecer o processo de ingresso e a aproximao de novos militantes. Inspirados nos Cadernos de Formao da Federao Anarquista Gacha (FAG), esses textos buscam trazer ao pblico um pouco de nosso conhecimento sobre distintos temas que esto presentes cotidianamente em nossa militncia.
Fazemos das nossas palavras as dos gachos, que afirmam: Selecionamos textos nossos e de outros autores, que esperamos dar um ponto de partida para a leitura crtica e a formao de cada um. Desde j recomendamos que os companheiros no parem nessas primeiras linhas, que consultem as fontes do trabalho, tomem livros, faam grupos de estudos etc.; no esqueam de alimentar a vontade de saber, que deixa aberto entre ns o campo ilimitado da investigao e o descobrimento.
Boa leitura!
Organizao Anarquista Socialismo Libertrio (OASL)
www.anarquismosp.org
Para tratar do tema Anarquismo Especifista / Especifismo, apresentamos dois textos: o primeiro um trecho de um texto nosso, Anarquismo Especifista e Poder Popular, escrito em 2011; o segundo parte de Anarquismo Social e Organizao, da FARJ, escrito em 2008.
Anarquismo especifista
Organizao Anarquista Socialismo Libertrio (OASL)
O especifismo uma concepo de anarquismo e, portanto, constitui uma de suas correntes histricas.
Apesar de o termo ter sido forjado recentemente pela Federao Anarquista Uruguaia (FAU), refere-se a formas de organizao propostas pelos clssicos anarquistas desde o sculo XIX e que so defendidas at hoje, no Brasil e em outros lugares do mundo.
Sua primeira origem pode ser identificada nas posies orgnicas de Bakunin, tanto em relao s organizaes populares o que materializou em sua defesa de um determinado modelo para a Associao Internacional dos Trabalhadores (AIT) , quanto em relao organizao poltica revolucionria que se materializou na teoria e na prtica em torno da Aliana da Democracia Socialista (ADS). Outra referncia encontra-se nas posies de Malatesta, tanto em relao s organizaes populares e toda a discusso que ele realizou em relao ao movimento operrio e ao sindicalismo , quanto em relao organizao especfica anarquista, que ele chamou de partido anarquista. Ao longo do tempo esta teoria foi sendo contrastada com a realidade, e outros elementos foram sendo incorporados.
Para ns, fazem parte de caldo organizacional que compe o especifismo outras posies como a dos russos do Dielo Truda, que estiveram em torno do projeto da Plataforma, a da Federao dos Anarco-Comunistas da Bulgria (FAKB), a dos mexicanos do Partido Liberal Mexicano no contexto da revoluo, a dos latinos da FAU a partir dos anos 1950, a dos
Anarquismo Especifista (Especifismo)
organizacionistas como Neno Vasco, Jos Oiticica e Domingos Passos, que atuaram no Brasil no incio do sculo XX. H certamente outras.
Historicamente, a discusso em torno da Plataforma colocou em campos distintos duas propostas organizacionais do anarquismo. Uma primeira, j citada, que foi proposta pelos russos exilados na Frana, a Plataforma de 1926, e outra, que surgiu como resposta Plataforma e que foi formalizada em dois momentos diferentes: primeiramente por Sebastin Faure em 1928 e por Volin em 1934, ambos em documentos homnimos chamados A Sntese Anarquista. Na Amrica Latina, diferentemente de outras localidades do mundo em que h uma tradio anarco-comunista claramente inspirada na Plataforma, o modelo de organizao que se diferencia da sntese o especifismo que, apesar das influncias que possui da Plataforma, no pode resumir-se a ela.
O especifismo caracteriza-se, na prtica, pela defesa de dois eixos fundamentais: a organizao em nveis distintos e complementares dos anarquistas, que atuam tanto como membros da organizao anarquista como dos movimentos populares (o que se chama normalmente de diferenciao entre os nveis poltico e social de atuao) e a prtica prioritria de trabalho e insero social, no seio das lutas sociais. No entanto, no s isso.
Hoje, o especifismo inclui uma srie de outras concepes que determinam essa nossa forma de compreender e de colocar o anarquismo em prtica. Vejamos algumas delas.
Entendemos o anarquismo como uma ideologia que, neste sentido, deve possuir, necessariamente, uma prtica poltica com inteno de transformao social. Essa ideologia nasce em meio s lutas de classe do sculo XIX e representa as aspiraes de um determinado setor do povo, ideologia esta que, ao mesmo tempo em que emerge da sociedade, volta a ela em forma de prtica organizada para buscar a revoluo social e o socialismo libertrio.
Esses objetivos de tipo finalista, a nosso ver, s chegaro por meio de uma mobilizao social, ampla e popular, que consiga acumular fora e promover a transformao que no acreditamos ser decorrente das contradies internas do prprio capitalismo, mas fruto da vontade do
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povo organizado. Por estes motivos, esta nossa concepo de anarquismo no tem nada de individualista.
Desta forma, organizao para ns uma questo central, imprescindvel para um processo revolucionrio consistente que pavimente as vias de uma nova sociedade.
Trabalhamos a organizao para a transformao social a partir de dois nveis: a organizao especfica anarquista e a organizao dos movimentos populares.
A organizao especfica anarquista possui carter de minoria ativa, associando militantes no nvel poltico-ideolgico e cujo trabalho principal se d no seio dos movimentos populares. Estes, para ns, no devem caber dentro de uma ideologia determinada, mas organizarem-se sobre a necessidade e possuir diversas ideologias em seu seio. Toda nossa perspectiva de organizao baseia-se nestes dois nveis onde nos associamos, na organizao anarquista, por nossas afinidades ideolgicas, e nas organizaes populares, por nossas necessidades como trabalhadores.
A organizao especfica anarquista possui objetivos determinados, que se refletem nas atividades e no perfil de seus militantes. Ela funciona com uma lgica que chamamos de crculos concntricos, que determina posies claras para cada militante na organizao. H posies em que h maior comprometimento, e consequentemente maior poder de deciso o que poderamos chamar de um ncleo militante orgnico , e posies em que h menos comprometimento e menor poder de deciso, como as posies de apoio ou colaboradores.
As organizaes populares (movimentos sociais, sindicatos, etc.) so, na maioria dos casos, expresses de uma sociedade de classes, dividida entre dominadores e dominados, que se evidenciam em um processo de luta de classes. Por evidenciar as contradies do sistema e significar certa articulao dos setores populares nas lutas do povo, as organizaes populares possuem um potencial transformador. por meio da atuao nestas organizaes e da criao de novas que entendemos poder dar ao anarquismo sua real funo, que de estimular e servir como fermento das organizaes populares.
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No entanto, hoje a grande maioria destas organizaes est burocratizada e, portanto, tem este potencial de transformao limitado. No contato com elas, o objetivo dos anarquistas lutar para que estes movimentos sociais desfaam-se destes laos burocrticos, ampliem-se o mximo possvel, aumentem seu nvel de combatividade e de autonomia. Para que elementos como autogesto e ao direta possam contribuir com processo de luta que aponte para uma revoluo social. Para ns, somente a luta popular, este nvel social conhecido outrora por representar os movimentos de massa que tem condies de promover a transformao. A esse processo chamamos construo do poder popular.
o conjunto das organizaes populares, unidas umas com as outras, e da organizao anarquista que pode constituir o meio que levar ao fim desejado por ns o socialismo libertrio. Esta estratgia est na base da concepo especifista de anarquismo.
* Trecho de Anarquismo Especifista e Poder Popular
As diferenas entre o especifismo e outras formas de organizao
anarquista
Federao Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ)
Tratemos das diferenas entre o especifismo e outras formas de organizao anarquista.
A primeira diferena est na forma de entender o prprio anarquismo. Como pontuamos no incio deste texto, entendemos o anarquismo como uma ideologia, ou seja, um conjunto de idias, motivaes, aspiraes, valores, estrutura ou sistema de conceitos, que possuem uma conexo direta com a ao o que chamamos de prtica poltica. Neste caso, buscamos diferenciar esta compreenso de anarquismo de uma outra, puramente abstrata e terica, que estimula somente o livre pensar, sem necessariamente conceber um modelo de transformao social. O anarquismo pensado somente a partir deste modelo de observao crtica da vida, oferece uma liberdade esttica e de possibilidades
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infinitas. No entanto, se assim for concebido, no oferece possibilidades reais de transformao social, visto que no colocado em prtica, em ao. No possui a prtica poltica que busca os objetivos finalistas.
O especifismo defende um anarquismo que, como ideologia, busque conceber um modelo de atuao que transforme a sociedade de hoje no socialismo libertrio por meio da revoluo social. Este processo, necessariamente, passa pela organizao das classes exploradas em organizao popular e exige a utilizao da violncia, entendida fundamentalmente como resposta violncia do atual sistema. Outras correntes anarquistas so contra a violncia e acreditam que a transformao social pode se dar de outras maneiras.
Outra diferena est em torno da prpria questo da organizao. Para ns, a organizao uma questo absolutamente central ao tratarmos de anarquismo. Sem ela, acreditamos ser impossvel conceber qualquer projeto poltico srio e que tenha por objetivo chegar revoluo social e ao socialismo libertrio.
H correntes anarquistas sustentam posies anti-organizao, ou mesmo espontanestas, e acreditam que qualquer forma de organizao autoritria ou avessa ao anarquismo. Para estas correntes, a formao de uma mesa para coordenar uma assemblia autoritria, a formao de um grupo para trabalhar nos movimentos sociais autoritria. Enfim, para estes anarquistas, as lutas devem se dar de maneira espontnea, os ganhos, caso vierem, devero vir de maneira espontnea, a conexo entre lutas deve ser espontnea e o mesmo o capitalismo e o Estado, se forem derrubados, ser por uma mobilizao espontnea. Talvez, ainda, depois de uma eventual revoluo social, as coisas evoluiro por sua prpria conta, entrando nos eixos sem maiores esforos. Estes anarquistas acreditam que a organizao prvia no necessria, outros pensam que ela nem mesmo desejvel.
Alguns indivduos anarquistas que defendem estes pontos de vista e que se dispem a realizar trabalho social, no conseguem lidar com as foras autoritrias e, sem a devida organizao, terminam sendo tarefeiros e buchas para projetos autoritrios ou saem frustrados por no conseguirem espao nos movimentos sociais.
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Pontuamos anteriormente que concebemos a organizao especfica anarquista como uma organizao de minoria ativa. Assim, ela uma organizao de anarquistas que se agrupam no nvel poltico e ideolgico e que realizam sua principal atividade no nvel social, que mais amplo, buscando ser o fermento das lutas. No modelo especifista, h obrigatoriamente esta diferenciao entre os nveis poltico e social de atuao.
Diferentemente, h anarquistas que concebem a organizao anarquista como um amplo agrupamento que federa todos aqueles que se intitulam anarquistas, servindo como um espao de convergncia para a realizao de aes com completa autonomia. No anarquismo, de maneira ampla, tambm esta diviso entre os nveis poltico e social no aceita por todas as correntes, que compreendem a organizao anarquista de maneira difusa, podendo ser ela um movimento social, uma organizao, um grupo de afinidades, um grupo de estudos, uma comunidade, uma cooperativa etc.
Mesmo o conceito de anarco-sindicalismo, em diversos momentos, buscou suprimir esta diferena de atuao entre nveis, misturando a ideologia anarquista com o sindicalismo. Estas e outras tentativas de ideologizar os movimentos sociais, no nosso entender, enfraquecem tanto os movimentos sociais que no funcionam mais em torno de questes concretas como terra, moradia, emprego etc. , quanto o prprio anarquismo, j que no permitem o aprofundamento das discusses ideolgicas, que so feitas em meio ao movimento social. Enfraquece tambm, pois o objetivo destes anarquistas de tornar todos os militantes dos movimentos sociais anarquistas impossvel, a no ser que se reduzam e enfraqueam significativamente os movimentos. Desta forma, ou mesmo por ver que natural encontrar pessoas de ideologias diferentes nos movimentos sociais que nunca sero anarquistas, estes anarquistas se frustram, e muitas vezes se afastam das lutas. Como conseqncia disso, fazem, frequentemente, o anarquismo fechar-se em si mesmo.
A organizao anarquista de minoria ativa muitas vezes entendida, por outras correntes do anarquismo, como similar organizao autoritria de vanguarda. Como fizemos questo de pontuar, quando concebemos esta
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separao entre os nveis poltico e social, no queremos dizer com isso que queremos estar frente dos movimentos sociais e nem que o nvel poltico possui qualquer hierarquia ou domnio em relao ao nvel social.
H tambm uma diferena em relao ao espao privilegiado para a prtica do anarquismo. Ns especifistas acreditamos que este espao a luta de classes. Antes de tudo, j consideramos que no vivemos apenas em uma sociedade, mas em uma sociedade de classes. Independente da forma que pensemos a diferena destas classes, nos parece impossvel negar que a dominao e a explorao aconteam em nveis diferentes em nossa sociedade e que o fator econmico tem grande influncia sobre isso. Para ns, o anarquismo nasceu no seio do povo e l que ele deve estar, tomando uma posio clara em favor das classes exploradas que esto em conflito permanente na luta de classes. Portanto, quando discutimos onde jogar as sementes do anarquismo, para ns claro que deve ser no seio da luta de classes; nos espaos em que as contradies do capitalismo so mais evidentes.
H anarquistas que no sustentam este vis classista do anarquismo e, o que pior, h aqueles que o acusam de ser assistencialista, ou de querer fazer apologia dos pobres. Negando a luta de classes, a maioria desses anarquistas acredita que como a definio clssica de classes de burgus e proletrio no d conta da sociedade de hoje, ento se poderia dizer que no existem mais classes; ou que este seria um conceito anacrnico. Discordamos radicalmente destas posies e acreditamos que, independente de como formos definir as classes se daremos mais ou menos nfase ao carter econmico etc. inegvel que existam contextos e circunstncias em que as pessoas sofrem mais os efeitos do capitalismo. E nestes contextos e nestas circunstncias que queremos priorizar o nosso trabalho.
Quando buscamos aplicar o anarquismo luta de classes, reivindicamos o que chamamos de trabalho social, e que definimos anteriormente como a atividade que a organizao anarquista realiza em meio luta de classes, fazendo o anarquismo interagir com as classes exploradas. Como tambm dissemos, para ns, esta deve ser a principal atividade da organizao especfica anarquista. Por meio do trabalho
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social, defendemos que a organizao anarquista deva buscar a insero social, processo de influncia dos movimentos sociais a partir da prtica anarquista.
H anarquistas que no defendem este trabalho com vistas insero social. Parte no acredita que isso seja prioridade, e outra parte, o que mais complicado, acredita que autoritrio. Para os anarquistas que pensam que trabalho/insero social no so prioritrios, parece que outras atividades teriam mais efetividade no desenvolvimento do anarquismo por mais que geralmente isso no seja dito. Apesar de, pelo menos aparentemente, no haver uma formulao estratgica, o que acontece na prtica que estes anarquistas procuram trabalhar com a propaganda, muito restrita s publicaes, aos eventos, cultura. Como j enfatizamos, esta propaganda tambm central para ns, mas no suficiente se for feita sem respaldo de trabalho/insero social. Com este respaldo, a propaganda muito mais efetiva. Portanto, a propaganda, no especifismo, deve ser realizada por estes dois vieses: educacional/cultural e de luta com os movimentos sociais.
Os anarquistas que no acreditam que trabalho/insero social no so e nem devem ser prioridade, preferem trabalhar em outros meios, longe da luta de classes, longe dos movimentos sociais, longe das pessoas de ideologias diferentes. Alguns dizem que como so membros da sociedade, j possuem insero social. Muitas vezes, terminam sectrios, conseguindo conviver apenas com seus pares, e guetificando o anarquismo. Isso explica o sectarismo de parte dos anarquistas, que acontece em proporo muito menor com as organizaes especifistas.
Muito mais complicada que a posio acima, a posio defendida por anarquistas que so contra o trabalho e a insero social; posio bastante comum no meio libertrio. Esses anarquistas acreditam que como muitas vezes no so pobres, como muitas vezes no esto em movimentos sociais (no so sem-terra, por exemplo), que autoritrio trabalhar com a comunidade carente ou mesmo com os movimentos sociais, j que so de fora dessa realidade. Para eles, autoritrio uma pessoa que tem onde morar apoiar a luta dos sem-teto; autoritrio freqentar um movimento comunitrio sem ser da comunidade; autoritrio apoiar o trabalho dos
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catadores de lixo se voc no um deles. Para estes anarquistas, s h legitimidade em se trabalhar com movimentos populares se voc um popular e se voc faz parte da realidade do movimento. Como geralmente esses anarquistas no esto nessas condies, no se aproximam de movimentos sociais e nem da luta de classes. Terminam por fazer de seu anarquismo um movimento em si mesmo, que se caracteriza por ser essencialmente de classe mdia e de intelectuais, por no buscar contato com as lutas sociais e populares, por no estar em contato com pessoas de ideologia diferentes. Alis, este anarquismo de classe mdia e intelectual, quando no busca trabalho e insero social, termina necessariamente em um de dois caminhos. Ou abandona a proposta de transformao social, ou constitui-se em um agrupamento que luta pelo povo, e no com o povo assumindo a posio de vanguarda e no de minoria ativa.
O trabalho social, para estes militantes, muitas vezes comparado ao entrismo da esquerda autoritria, pessoas que entram nos movimentos para faz-los funcionar em seu prprio favor. Na maioria das vezes, defendem um espontanesmo de que vir de fora, colocar o anarquismo dentro dos movimentos sociais, autoritrio. Segundo eles, as idias deveriam surgir espontaneamente. Acusam a discusso, a persuaso, o convencimento, a troca, a influncia, externos aos movimentos sociais e, por isso, autoritrios.
Dessa posio contrria ao trabalho e insero social, ns especifistas tambm discordamos radicalmente. Como explicamos, para ns o anarquismo no deve ser fechado em si mesmo, e nem se afastar dos movimentos sociais e das pessoas de ideologias diferentes. Ele deve servir como ferramenta, como fermento, como motor das lutas de nosso tempo. Para isso, o anarquismo, ao invs de esconder-se deve confrontar-se com a realidade e buscar transform-la. Para esta transformao, de nada adianta pregarmos para os convertidos; temos, necessariamente, que interagir com no-anarquistas.
J que entendemos que a classe no se define a partir da origem, mas sim a partir da posio que se defende na luta, acreditamos que apoiar movimentos sociais, auxiliar mobilizaes e organizaes diferentes da realidade que se est includo uma obrigao tica de qualquer militante
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comprometido com o fim da sociedade de classes. Finalmente, acreditamos que o trabalho social traz a prtica necessria ao anarquismo, que tem uma contribuio imensa na formulao da linha terica e ideolgica da organizao. Esta atividade , para ns, importantssima em nossa formulao terica, pois faz com que teorizemos tendo conhecimento da realidade e da aplicao prtica do anarquismo nas lutas. Grupos e organizaes que no possuem trabalho social tendem a radicalizar um discurso que no possui respaldo na prtica. Quando isso acontece, a tendncia que exista um discurso ultra-radical e revolucionrio muitas vezes acusando outros de reformistas etc. , mas que no sai da teoria.
Como vimos, no especifismo h unidade terica e ideolgica, um alinhamento em relao aos aspectos tericos e ideolgicos do anarquismo. Esta linha poltica construda coletivamente e todos na organizao tm obrigao de segui-la. Por considerarmos o anarquismo algo muito amplo, com posies muito variadas ou mesmo contraditrias, nos parece necessrio que, entre todas estas posies, devemos extrair uma linha terica e ideolgica a ser defendida e desenvolvida pela organizao. Como enfatizamos, esta linha deve, necessariamente, ter vnculo com a prtica, j que acreditamos que para teorizar com eficcia imprescindvel atuar.
Para anarquistas que no defendem esta unidade, a organizao anarquista poderia trabalhar com diversas linhas tericas e ideolgicas. Cada anarquista ou grupo de anarquistas pode ter a sua interpretao do anarquismo e sua prpria teoria. Isso motivo de diversos conflitos e cises em organizaes com esta concepo. Como no h acordo nas questes de sada, so freqentes as brigas, pois alguns acham que os anarquistas devem realizar trabalho com movimentos sociais, outros acham isso autoritrio e coisa de marxista, alguns acham que a funo do anarquismo realar o ego dos indivduos, outros so radicalmente contra, e assim por diante. Para ns, no h como ter uma prtica efetiva ou mesmo constituir-se em uma organizao, sem que haja acordo em algumas questes de sada. Nas organizaes que no trabalham com unidade terica e ideolgica, no h aprofundamento neste sentido, visto que com tantos problemas nas questes mais simples, as mais complexas no chegam nem a ser discutidas. Bakunin
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estava certo quando afirmou que quem muito abraa, pouco aperta (Bakunin, Programa Revolucionrio e Programa Liberal). importante
que se compreenda que a diviso que existe neste ponto entre os anarquistas muito mais profunda do que o que normalmente se acredita, e que supe igualmente uma inconcilivel discordncia terica. Digo isto para responder aos meus bons amigos, favorveis a um acordo a qualquer preo, que afirmam: No criemos problemas de mtodo! A idia uma s e a meta a mesma; permaneamos pois unidos sem nos rasgarmos por um pequeno desacordo sobre a ttica. Eu, ao contrrio, dei-me conta h muito tempo atrs, que nos dilaceramos justamente porque estamos muito prximos, por que estamos artificialmente prximos. Sob o verniz aparente da comunidade de trs ou quatro idias abolio do Estado, abolio da propriedade privada, revoluo, antiparlamentarismo existe uma diferena enorme na concepo de cada uma destas afirmaes tericas. A diferena de tal monta que nos impede de tomarmos o mesmo caminho sem querelarmo-nos e sem neutralizar reciprocamente o nosso trabalho ou, se assim quisermos, permanecer em paz, sem renunciarmos quilo que acreditamos ser verdadeiro. Repito: no existe apenas uma diferena de mtodo, mas sim uma grande diferena de idias. (Fabbri, A Organizao Anarquista)
Alm da unidade terica e ideolgica, os especifistas defendem a unidade estratgica e ttica. Atuar com estratgia, como vimos, implica em realizar um planejamento de todas as aes prticas que forem realizadas pela organizao, buscando verificar de onde se quer sair, onde se quer
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chegar e como. O anarquismo que trabalha com unidade estratgica e ttica faz do planejamento e do alinhamento na atuao prtica um forte pilar organizacional. Isso, porque acreditamos que a falta de estratgia dispersa os esforos, fazendo com que muitos deles sejam perdidos. Defendemos um modelo em que se discute coletivamente um caminho a seguir, e junto com este caminho, temos prioridades estabelecidas e responsabilidades atribudas aos militantes. As prioridades e responsabilidades significam que cada um no vai poder fazer o que lhe passar pela cabea, quando quiser. Cada um vai ter obrigao, perante a organizao, de realizar aquilo que se comprometeu e aquilo que foi definido como prioritrio. Obviamente que se buscar conciliar as atividades que cada um gosta de fazer, com as responsabilidades estabelecidas pela organizao, mas nem sempre temos de fazer s aquilo que gostamos de fazer. Um modelo especifista implica em termos de fazer coisas que no gostamos muito ou deixarmos de fazer algumas coisas que gostamos muito. Isso, para fazer com que a organizao caminhe com estratgia, com todos remando o barco no mesmo sentido.
Criticamos com nfase as organizaes que no trabalham com estratgia. Para ns, no h como trabalhar em uma organizao em que cada militante ou grupo faz aquilo que achar melhor, ou simplesmente aquilo que gosta de fazer, acreditando estar contribuindo com um todo comum. Geralmente, quando se agrupa anarquistas de todos os tipos em uma organizao, sem que haja afinidades estratgicas, no h qualquer acordo sobre como atuar. Ou seja, no possvel estabelecer uma forma de caminhar, e h somente um acordo: que as coisas devem ir caminhando.
Como pensar uma organizao em que se busca conciliar um grupo que acredita que deve atuar como organizao especfica no movimento social, com um grupo que acha que a prioridade deve ser a convivncia entre amigos, a terapia de grupo ou mesmo a exaltao do papel do indivduo, considerando autoritrio (ou mesmo marxista ou assistencialista) o trabalho com movimento sociais? H duas maneiras de se trabalhar essas diferenas: ou se discute as questes, e se vive entre brigas e desgastes, que consomem grande parte do tempo, ou simplesmente no se toca nas questes. A maioria das organizaes deste tipo opta pela segunda forma.
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A fim de estabelecer uma certa coordenao na ao, coordenao necessria, creio eu, entre pessoas que tendem para o mesmo objetivo, impem-se determinadas condies: um certo nmero de regras ligando cada um a todos, determinados pactos e acordos renovados frequentemente se falta tudo isto, se cada um trabalha como lhe apetece, as pessoas mais srias encontrar-se-o elas prprias numa situao em que os esforos de uns sero neutralizados pelos dos outros. Disto resultar a desarmonia e no a harmonia e a confiana serena para a qual ns tendemos. (Bakunin, Ttica e Disciplina do Partido Revolucionrio)
A unidade terica e ideolgica e a unidade estratgia e ttica so atingidas por meio do processo decisrio coletivo, adotado pelas organizaes especifistas que a tentativa de consenso e se este no for possvel, a votao, vencendo a maioria. Como tambm enfatizamos, neste caso, toda organizao adota a deciso vencedora. Diferentemente, h organizaes que trabalham somente com o consenso, permitindo, muitas vezes, que uma ou outra pessoa tenha influncia exacerbada em um processo decisrio que envolve um nmero muito maior de pessoas. Buscando o consenso a qualquer custo, e com o medo de rachar, essas organizaes permitem que uma ou outra pessoa consiga ter um peso desproporcional nas decises, somente para se conseguir o consenso. Outras vezes, se gasta horas com discusses de pouca importncia somente para se buscar o consenso. Temos em mente que o processo decisrio um meio e no um fim em si mesmo.
A obrigao de todos seguirem um mesmo caminho que regra no especifismo o compromisso que a organizao possui com a estratgia, pois, se cada vez que uma deciso tomada no agradar parte dos militantes, e esta parte se recusar realizao do trabalho, ser impossvel a organizao caminhar. Em caso de votao, importante termos em mente que, em uma vez, alguns ganharo a votao e trabalharo na sua proposta, em outra vez, perdero e trabalharo na proposta dos outros companheiros. Com esta
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forma de tomada de deciso, se d mais importncia para as deliberaes coletivas do que para os pontos de vista individuais.
H diferena, ainda, em pontos centrais que favorecem a organizao especifista: o comprometimento, a responsabilidade e a autodisciplina dos militantes com a organizao. No modelo especifista, h alto nvel deste compromisso militante. Assim, imprescindvel que os militantes assumam compromissos frente organizao e os cumpram. O compromisso militante imprime uma ligao entre militante e organizao, que uma relao mtua, em que a organizao responsvel pelo militante, assim como o militante responsvel pela organizao. Assim como a organizao deve satisfao ao militante, o militante deve satisfao organizao.
A falta de comprometimento, responsabilidade e autodisciplina constitui um grande problema em muitos grupos e organizaes anarquistas. muito comum as pessoas se aproximarem e participarem mais ou menos das atividades, fazendo somente aquilo que tm interesse, muitas vezes participando de decises, assumindo compromissos e no os cumprindo ou, simplesmente, no assumindo compromissos. H muitas organizaes que so complacentes com a falta de compromisso militante. inegvel que, por este motivo, essas organizaes sejam mais legais de se fazer parte, no entanto, so muito pouco efetivas do ponto de vista militante. Como para ns a militncia algo necessrio na luta por uma sociedade livre e igualitria, no acreditamos que ela ser sempre legal. Se tivermos de optar entre um modelo de militncia mais efetivo e outro mais legal, devemos optar pela efetividade.
Para o trabalho com compromisso militante, o especifismo sustenta uma organizao com nveis de compromisso. Como explicamos, defendemos a lgica dos crculos concntricos em que todos os militantes possuem um espao bem definido na organizao, espao este que determinado pelo nvel de compromisso que o militante quer assumir. Quanto mais ele quiser se comprometer, mais dentro da organizao ele estar e maior ser o seu poder de deliberao. Portanto, tanto no nvel poltico quanto no nvel social, h critrios bem definidos de entrada desde as instncias de apoio ou agrupamentos de tendncia at a organizao
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especfica anarquista. S esto dentro da organizao especfica anarquistas, militantes com afinidade ideolgica com a organizao.
Ao contrrio do modelo especifista, h outras organizaes cujo nico critrio para entrada de militantes sua definio como anarquistas, independente de que concepo de anarquismo eles tenham. Algumas pessoas participam um pouco da organizao, outras so mais comprometidas; uns assumem mais responsabilidades do que outros e todos possuem o mesmo poder de deliberao. Por isso, muitos deliberam sobre atividades que no vo realizar, ou seja, determinam o que os outros vo fazer. Quando uma organizao permite que algum delibere algo e no assuma responsabilidades, ou que assuma responsabilidades e no as cumpra, ela permite um autoritarismo daqueles que vo deliberar e jogar trabalho nas costas de outros companheiros. Enfim, neste outro modelo, cada um se envolve da forma que acha melhor, aparece quando acha que deve, e no h muita cobrana sobre a questo do compromisso militante. Muitos, ao serem cobrados, julgam-se vtimas do autoritarismo. Como explicamos, para ns, este modelo de organizao, alm de sobrecarregar os militantes mais responsveis, acaba por permitir esta discrepncia de pessoas que no deliberam e trabalham na mesma proporo.
Portanto, no querermos ser este grande guarda-chuva que abarca todos os tipos de anarquistas. Estas amplas (in)definies, aparentemente agregam mais anarquistas na organizao, no entanto, acreditamos que no devemos optar pelo critrio da quantidade, mas sim da qualidade de militantes.
No h dvida que se evitarmos precisar bem o nosso verdadeiro carter, o nmero de nossos aderentes poder tornar-se maior. [...] evidente, por outro lado, que se ns proclamamos alto os nossos princpios, o nmero dos nossos aderentes ser menor, mas pelo menos sero aderentes srios, com os quais poderemos contar. (Bakunin, Programa Revolucionrio e Programa Liberal)
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Diferena relevante tambm se d em torno da questo do individualismo anarquista. O especifismo significa uma recusa absoluta e completa do individualismo anarquista. Por este motivo, diverge de outras organizaes que aceitam trabalhar com os individualistas. Para ns, h dois tipos de individualistas no anarquismo. Um tipo, que era mais comum no passado, de pessoas que preferem trabalhar sozinhas, mas que tm em mente o mesmo projeto que ns. Nestas pessoas, s temos a criticar o fato de que, estando desorganizadas, no conseguem potencializar os resultados de seu trabalho. Um outro tipo, mais em evidncia nos dias de hoje, renunciou ao projeto socialista. Baseados na crtica anarquista do Estado, possuem pouca crtica ao capitalismo, e nenhuma atuao no sentido de transformar socialmente a realidade em que vivemos. Colocando-se na condio de simples observadores crticos da sociedade, constroem um anarquismo a partir de referncias e pensadores secundrios, simplesmente em torno da crtica. No possuem qualquer projeto de sociedade e muito menos uma atuao coerente que aponte para esta nova sociedade. Poderamos nos perguntar:
o que ento nos resta do individualismo anarquista? A negao da luta de classes, a negao do princpio de uma organizao anarquista, cuja finalidade seja a sociedade livre de trabalhadores iguais: e mais ainda, a charlatanice vazia, estimulando os trabalhadores infelizes com sua existncia, a tomar parte recorrendo a solues pessoais, supostamente abertas a eles enquanto indivduos libertados. (Dielo Truda, O Problema Organizacional e a Idia de Sntese)
Assim, exacerbam o papel da liberdade individual, que, apartada da liberdade coletiva, torna-se meramente um gozo egosta, para o deleite de alguns poucos que podem, por seus privilgios dentro do capitalismo, permitir-se isso. Na realidade, a liberdade individual s pode existir na liberdade coletiva, pois a escravido de outros limita a liberdade de cada
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um, e a liberdade individual plena s pode se realizar no momento em que, coletivamente, todos forem livres. Concordamos com Bakunin quando colocou:
S posso considerar-me e sentir-me livre na presena e em relao a outros homens. [...] S sou verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, so igualmente livres. A liberdade do outro, longe de ser um limite ou a negao da minha liberdade, , ao contrrio, sua condio necessria e sua confirmao. Apenas a liberdade dos outros me torna verdadeiramente livre, de forma que, quanto mais numerosos forem os homens livres que me cercam, e mais extensa e ampla for sua liberdade, maior e mais profunda se tornar a minha liberdade. Ao contrrio, a escravido dos homens que pe uma barreira na minha liberdade. [...] Minha liberdade pessoal assim confirmada pela liberdade de todos se estende ao infinito. (Bakunin, Imprio Cnuto-Germnico)
Para ns, impossvel buscar uma liberdade individual em uma sociedade como a nossa, em que milhes no tm acesso s mais bsicas necessidades de um ser humano. No h como se pensar em um anarquismo puramente individual, como uma forma de se colocar no mundo, de ter um estilo de vida diferente. Para os individualistas, na grande maioria dos casos, ser anarquista significa ser artista, bomio, defender a liberdade sexual de ter relacionamentos abertos ou com mais de um(a) companheiro(a), usar roupas diferentes, ter um corte de cabelo radical, ter comportamentos extravagantes, comer comidas diferentes, definir-se pessoalmente, realizar-se pessoalmente, ser contra a revoluo(?!), ser contra o socialismo(?!), possuir um discurso sem p nem cabea gozando da liberdade de esttica enfim, tornar-se apoltico. Discordamos radicalmente desta posio e acreditamos que as influncias neste sentido so funestas ao anarquismo,
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afastando militantes srios e comprometidos. Finalmente, concordamos com Malatesta quando enfatizou:
verdade, gostaramos de poder estar, todos ns, de acordo, e reunir em um nico feixe poderoso todas as foras do anarquismo. Mas no acreditamos na solidez das organizaes feitas fora de concesses e de restries, onde no h entre os membros simpatia e concordncia real. melhor estarmos desunidos que mal unidos. (Malatesta, A Organizao II)
Para ns, escolher o modelo mais adequado de organizao anarquista fundamental para que tenhamos os meios mais adequados e coerentes com os fins que buscamos atingir. Se defendemos o especifismo, que uma forma de organizao anarquista, porque acreditamos que ele hoje mais adequado para o trabalho que pretendemos realizar. Entendemos que h anarquistas que no concordam com o especifismo e no achamos que so menos anarquistas por isso. S exigimos respeito por nossa escolha, assim como ns respeitamos aqueles que fizeram outras escolhas.
* Trecho de Anarquismo Social e Organizao
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A Organizao Anarquista Socialismo Libertrio (OASL) uma
organizao anarquista sediada no Estado de So Paulo, fundada em
18 de novembro de 2009. Adepta de uma tradio anarquista conhecida
por especifismo, a OASL atua em quatro frentes sociais (agrria,
comunitria, estudantil e sindical) e tem por objetivo aglutinar
anarquistas em torno de princpios e de um programa comum. Por
estratgia geral, compreende que como ideologia dos movimentos
populares que o anarquismo deve funcionar, no seio do povo,
impulsionando as lutas com uma perspectiva revolucionria buscando
o socialismo libertrio. A OASL faz parte da Coordenao Anarquista
Brasileira (CAB), que composta por outras oito organizaes
anarquistas especifistas brasileiras.
Contato: [email protected] www.anarquismosp.org
Organizao AnarquistaSocialismo Libertrio