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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS - CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS JONALVA SANTIAGO DA SILVA DO CORDEL À NARRATIVA BIOGRÁFICA: A INVENÇÃO DE BESOURO, O HERÓI DE CORPO FECHADO SALVADOR – BA 2010

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS - CAMPUS I

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS JONALVA SANTIAGO DA SILVA

DO CORDEL À NARRATIVA BIOGRÁFICA:

A INVENÇÃO DE BESOURO, O HERÓI DE CORPO FECHADO

SALVADOR – BA

2010

JONALVA SANTIAGO DA SILVA

DO CORDEL À NARRATIVA BIOGRÁFICA: A INVENÇÃO DE BESOURO, O HERÓI DE CORPO FECHADO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudo de Linguagens da Univers idade do Estado da Bahia, como requis ito parcial para ob tenção do títu lo de Mestre, sob a orientação da Profª Drª. Márcia Rios da Silva

SALVADOR – BA 2010

Ilustração da capa: Desenho de Carybe. Extraído do livro O Jogo da capoeira. 24 desenhos de Carybé.K.Paulo Hebeisen. (org). Coleção Recôncavo. Salvador, Livraria Turista, 1951.

S586

Silva , Jonalva Santiago da Do cordel à narrativa biográfica: A Invenção de Besouro

herói de corpo fechado/ Jonalva Santiago da Silva- Salvador, 2010. 126 f.:i l

Orientador Prof.ª Dr.ª Márcia Rios da Silva .

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia DepartamentoCiências Humanas - Campus I Programa

de Pós Graduação em Estudo de Linguagens.

1. Besouro Mangangá - Capoeira na literatura brasileira 2.Capoeira – Bahia 3 .Capoeirista I. Titulo

CDD B869.00

Dedico este trabalho, in memoriam,a Jônatas Conceição da Silva. Tal qual Besouro, lutou , resist iu e ho je também brilha no céu. Virou estrela.

AGRADECIMENTOS

À minha especial orientadora, Profa. Dra. Márcia Rios da Silva, pela paciênc ia e cumplicidade no acompanhamento e construção deste texto ; À Profa. Dra. Florent ina Souza, desde o Exame de Qualif icação, pelas contribuições valiosas à e laboração desta pesquisa; Ao Prof. Dr. Sílvio Roberto de Oliveira, desde o Exame de Qualif icação, também pelas sugestões enr iquecedoras a este trabalho; Aos meus pais, José e Marina lva responsáveis pelo meu exist ir e por sempre me incent ivarem a cont inuar crescendo ; Aos meus irmãos e em especia l às minhas duas irmãs, Lad ismar e Adla por todo o incent ivo; A Vado e Igor, família que construí e que me faz sempre buscar novos ideais; À Edna Viana pela ajuda na organização do texto final; À p ro fessora Beatr iz Ribeiro, pela a juda em algumas correções do texto; Às minhas grandes amigas, irmãs do coração e anjos que encontre i, Andréa e Margarete, pela convivência intelectual, o que me fez amadurecer para a vida acadêmica; À Hildete, bibliotecária do PPGEduc, pelos textos interessantes que conseguiu para que melhor fundamentasse a minha pesquisa; À Antonio Reinaldo , Mestre Lampião, incansável pesquisador sobre Besouro, pelo acesso ao seu acervo e disponibilidade; À Profa. Zilda Paim, pelos deta lhes sobre as histó rias de Besouro e paciência para contá-las; Aos professores do PPGEL, pelos ensinamentos, em especial, Luciano Lima e Edil Costa; Às secretarias de educação do Estado da Bahia e Mu nicipal de Santo Amaro pela concessão de licença, para a rea lização deste estudo ; À minha turma de mestrado, e ao meu grupo de estudo, Edna, Geraldo, Elizabete, Raquel por todas as trocas de exper iências; Aos atenc iosos secretár ios do PPGEL, Camila e Danilo; À todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para a rea lização desse trabalho.

RESUMO

Este estudo tem por objet ivo analisar as imagens ou representações sobre o

capoeirista Besouro Mangangá, tornado um mito, produzidas na literatura de

cordel, de autoria de Antônio Vie ira e de Victo r Alvim Garcia, e na narrat iva

de Marco Carvalho , como textos f iccionais que se a limentam de uma

textualidade popular. Buscando articular literatura, mito e história,

entendidos como discursos, recorre-se a pesquisadores que contribuem para

uma compreensão da construção do mito Besouro, capoeirista ba iano que

nasce no contexto histórico da nova ordem republicana e pós -abolição, de

forte repressão, por instânc ias jurídicas, ao jogo da capoeira. As narrat ivas

ana lisadas contribuem para ampliar uma tradição da literatura brasileira,

como textos f icc iona is que tensionam valo res das produções literárias

legit imadas.

Palavras-chave: Besouro Mangangá. Capoeira. Textua lidade Popular.

Literatura Brasileira

RÉSUMÉ

Cette étude a comme objectif analyser les images ou les répresentations sur le capoeirista

Besouro Mangangá, qui est devenu un mito, produites dans la littérature de cordel, écrit par

Antônio Vieira et Victor Alvim Gárcia, et dans le récit de Marco Carvalho, comme des textes

de fiction que se nourrissent d’une textualité populaire. En cherchant articuler la littérature,

le mythe et l'histoire, compris comme des discours, il fait appel aux chercheurs qui

contribuent à une compréhension de la construction du mythe Besouro, capoeirista de Bahia

qui est né dans le contexte historique du nouvel ordre républicain et d’après l'abolition, de

forte répression, pour les cas juridiques, au jeu du capoeira. Les récits analysés contribuent

pour agrandir une tradition de la littérature brésilienne, comme des textes de fiction que

tensionnent les valeurs des productions littéraires légitimées.

Mots-Clés: Besouro Mangangá – capoeira – textualité popu laire – littérature brésilienne

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

08

2 NO RECÔNCAVO DA BAHIA, NASCE UM HERÓI

17

3 OS “VOOS” DE BESOURO NA LITERATURA DE CORDEL

46

4 MORTE E NASCIMENTO DO HERÓI NEGRO EM FEIJOADA NO PARAÍSO

85

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

118

REFERÊNCIAS 120

ANEXO 126

8

1 INTRODUÇÃO

O capoeir ista Besouro Mangangá nasceu provavelmente no ano de

1895, no municíp io de Santo Amaro , no Recôncavo Baiano, vindo a falecer

em 1924. Filho de negros escravizados que atravessaram o Atlânt ico, o

capoeirista viveu uma época em que muitos deles viram-se obrigados a usar

seu corpo como máquina na co lheita e moagem da cana-de-açúcar, nas terras

dos senhores de engenhos. Contudo , apesar dessa vio lênc ia, fizeram do seu

corpo uma arte, no jogo da capoeira – luta e dança –, síncopa que marca a

cadência, a firmando sua força, como resistência, em pro l da abolição.

Manuel Henrique Pereira, nome civil de Besouro Mangangá,

conhec ido ainda como Besouro Preto ou Besouro Cordão de Ouro, viveu num

período de fo rte repressão à capoeiragem – entre f inal do sécu lo XIX e

começo do século XX –, tempo em que muitos negros vagavam e vadiavam

pelas ruas de muitas c idades da Bahia, particularmente a sua capital e as do

Recô ncavo, sem emprego fixo , explorados como mão-de-obra temporária. As

ruas passam a ser palco de um jogo encenado por muitos negros qu e

libertavam seu corpo inventando modos de viver e de se relac ionar,

protagonizando muitas histórias, que iam sendo retidas na memória de sua

comunidade.

Dentre as muitas histórias tecidas com os f ios do real e da

imaginação, as histórias produzidas por e sobre Besouro estão preservadas por

uma trad ição oral, vindo a se const itu ir em uma textualidade popular, que

passou a alimentar as páginas de a lguns gêneros literár ios, como o cordel, e,

recentemente, invadiu as telas do cinema, s inalizando a permanência de um

mito, vindo a ser estudado por algu ns pesquisadores, que constatam naquela

textualidade um processo de construção da f igura de um herói popular.

A permanência desse mito gerou as inqu ietações deste trabalho, de

auto ria de uma estud iosa negra, também filha de Santo Amaro da Purif icação.

A minha vivência em um ambiente soc ial impregnado da experiênc ia histórica

dos negros, no qual compartilho os muitos “causos” sobre esse capoeir ista,

levou-me a indagar e a pesqu isar sobre a permanência do mito Besouro – tão

famoso, seguidos por ou tros como Mestre Bimba e Mestre Past inha –, um

herói a fro-baiano , que nasceu em um estado cujas oligarqu ias subjugaram os

9

modos de vida e de luta de um expressivo segmento de descendentes de

escravos.

Pelo tempo exíguo em um Curso de Mestrado para desenvolver um

estudo que, como primeira etapa, exigiria o levantamento das histórias

contadas sobre Besouro pelos moradores do Recôncavo Baiano, optei po r

ana lisar produções literár ias sobre esse capoeirista: os textos de cordel de

auto ria do santoamarense Antônio Vie ira, O encontro de Besouro com o

valentão Doze Homens (s/d) e A valentia justiceira de Besouro (2003), e do

poeta e capoeirista car ioca Victo r Alvim Itahim Garc ia, Histórias e bravuras

de Besouro o va lente capoeira (2006) e narrat iva de Marco Carvalho,

Feijoada no para íso : a saga de Besouro, o capoeira (2002). O objetivo

principal deste estudo é ana lisar as rep resentações sobre Besouro nesses

textos f iccionais, considerando o contexto histórico em que viveu esse

capoeirista, no intuito de entender a permanência desse mito.

Essas narrat ivas contam a história de um herói negro, que se

singulariza em relação aos heróis forjados pelas e lites de uma c ivilização, a

exemplos dos heróis gregos, pátr ias ou nações modernas. Ao cont rár io, o

herói Besouro é protagonista de contranarrativas, de lu tas de resistência a um

sistema opressor, de um Brasil colonial, imperia l e republicano, que sempre

sentenciou, muitas vezes de forma cruel, o apagamento dos negros e

afrodescendentes.

Na primeira seção desta Dissertação, No Recôncavo da Bahia nasce

um herói , realiza-se uma composição b iográfica desse capoeir ista,

articulando-a com o contexto histórico, no intuito de puxar os fios da cu ltura

afro-baiana para se pensar a const itu ição do herói Besouro . Para compor a

paisagem histó rica do Brasil e da Bahia, particularmente a do Recôncavo

Baiano, entre f ins do século XIX e iníc io do sécu lo XX, período tensionado

por conflitos sociais, mudanças de regime político e pós-abolição, recorre-se

aos estudos de Walter Fraga Filho, Eu l Soo Pang e Antonio Risério, bem

como aos de Almir Areias, Adriana Dias, Josivaldo Olive ira e Muniz Sodré.

Visando entender a constitu ição do heró i e sua mitif icação, recorre -se

a Mircea Eliade e Joseph Campbell. Como o estudo proposto trata de um

su jeito da his tória “esquecido” pela historiografia ofic ia l, buscam-se as

contribuições de José Geraldo Vasconcelos, Ecléa Bosi, para a qual as

10

experiênc ias do passado são refe itas, reconstruídas, um trabalho da memória,

e Lo iva Otero Fé lix, com sua noção de “memórias subterrâneas”. Pelo

entendimento de que uma pesquisa se alimenta de fontes diversas, a lgumas até

desau torizadas pela academia, não se pôde desprezar a contribuição da Profa.

Zilda Paim, conhecida como memoria lista, sobre o Recôncavo Baiano.

Na segunda seção, Os vôos de Besouro Mangangá na literatura de

cordel , são analisadas e interpretadas as narrat ivas do co rdel de Antônio

Vie ira e Victor Alvim Garcia, nas quais se biografa a histó ria de Besouro

Mangangá. Para tanto, recorre-se às contribu ições de Márcia Abreu, Antônio

Arantes e Doralice Alcofo rado, em seus estudos sobre o cordel, gênero

produzido por escritores do chamado segmento popular, aqu i entend idos como

su jeitos que se viram privados, historicamente, dos direitos básicos de

cidadania, à cultura letrada, mas, ainda que numa inclusão degradada, como

ana lisada, e cr it icada, pelo sociólogo José de Souza Martins 1, aprenderam a

ler e a escrever. Tal conquista possib ilitou uma escrita que lhes permit iram

registrar histórias e socializá- las, s ilenciadas pela História oficia l, entendida

aqu i, dentro do campo historio gráfico, como um d iscurso elaborado pela

perspectiva da cultura dominante.

Na terce ira seção , Morte e nascimento de Besouro em Feijoada no

paraíso , é analisada a narrat iva Feijoada no paraíso , de Marco Carvalho,

jornalista e publicitário , a qual tem como narrador e personagem centra l o

capoeirista Mangangá trazendo sua versão acerca de muitas histórias co ntadas

sobre ele próprio: sua morte, seu apelido, seu nascimento, o jogo da capoeira,

relações de amizade, bem como o enfrentamento à ordem republicana, com

relatos alinhavados por reflexões, digressões ou comentários.

Em Feijoada no paraíso , o jogo da capoeira ganha destaque, como

uma prática cultural e performát ica : a ginga do corpo, seus golpes, a

mandinga, a p ro teção dos orixás são postos em relevo. Em vista d isso , são

importantes as reflexões de Stuart Hall sobre os repertórios culturais dos

negros da diáspora, bem como a noção de performance , elaborada por Paul

Zumthor, compreendida como corporeidade e teatra lidade.

1 Cf. MARTINS, José de Souza. A exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997. Apud PEREGRINO, Mônica. www.anped.org.br/reunioes/25/monicaperegrinoferreirat06.rtf - Acesso em 21/05/2010.

11

A narrat iva de Marco Carva lho inspirou um longa-metragem do

cinema nac ional, Besouro , da capoeira nasce um herói , que estreou em 2009,

f ilme dir igido pelo renomado pub licitário João Daniel Tikhomiroff.2 A

película, buscando aproximação com a textualidade popular tec ida sobre

Besouro, conta a história de Mangangá, com uma superp rodução que realiza o

esforço de traduzir a visão heroicizada sobre o lendário capoeir ista. Para

tanto , as cenas de luta, marcadas por efe itos especiais, foram coreografadas

pelo chinês Huen Chiu Ku, o mesmo que dirigiu Kill Bill e O tigre e o

dragão . Rodado na Chapada Diamant ina , na Bahia, a produção cuidou de

trazer capoeiristas para atuarem, e Ailton Santos, professor de capoeira, é

protagonista da história. 3 Destaque-se que em 1980 foi lançado Besouro

Capoeirista , do diretor Tato Taborda, tendo o ato r baiano Mário Gusmão

atuando como Besouro.

Os d iferentes sites que divu lgaram o lançamento do filme de João

Daniel T ikhomiroff destacaram a re levância de Besouro Cordão de Ouro no

universo da capoeiragem, ressaltando seus fe itos extrao rd inár ios, as fugas

espetaculares, a sua agilidade, denominando-o de heró i, de mito, uma

referência para a arte da capoeira. Tais rep resentações têm longa data, como

imagens cint ilantes na cultura afro -baiana, particularmente no Recôncavo

Baiano e no universo da capoeiragem. O filme p rojeta Besouro num universo

mais amplo, com a promessa de torná-lo conhecido por um público maior, que

vive distante de um tempo em que o jogo da capoeira era t ido como uma

prática de “pretos”, “vad ios” e “ ind ivíduos perigosos”, ou seja, de negros que

ameaçavam a nova ordem republicana, até ser enquadrado como crime em

1890, dois anos após a abolição da escravatura.

Como este estudo tem a preocupação de articular literatura e

história, os pesquisadores e estudiosos que se fazem presentes na primeira

seção desta dissertação são retomados nas demais seções, para art icular suas

contribuições com os textos ficcio nais que dramatizam a his tória de Besouro

Mangangá.

2 Disponível em http://www.interfilmes.com/filme_21174_Besouro-(Besouro).htlm. Acesso em 20/08/2009. 3Cf.correio24horas.globo.com/noticias/noticia.asp2codigo=367048mdl=4http://www.cordaodeouromangalot.com.br/index.php?opt. Acesso em 07/10/2009.

12

As narrat ivas de Antônio Vie ira, Victor Alvim Garc ia e Marco

Carvalho, insp iradas na textualidade popular, trazem traços dessa

textualidade, f iliada a “uma c lasse de narrat ivas que se apresentam como

fantást icas e que terminam com uma aceitação do sobrenatural”, na visão de

Tzvetan Todorov, 4 sem uma exp licação lógica causa l. Os feitos e

acontec imentos envo lvendo o personagem Besouro, e até mesmo sua vida

cotid iana, são marcados pela presença do inusitado, do sobrenatural e de

metamorfoses.

Assim, o personagem capoeirista protagoniza situações

extraordinár ias: vira besouro, um mangangá, voa, transforma-se em planta,

morre e renasce, tem o corpo refratár io aos metais, enfrenta lobisomem,

convive com mundo sagrado dos orixás, retorna ao mundo dos vivos sem ser

visto e ainda se encarna no corpo de outras pessoas. Muitas das situações

extraordinár ias ou metamorfoses ocorrem quando se torna necessário driblar

os adversár ios, escapar dos inimigos, defender-se ou proteger a lgum

injust içado. Ainda de acordo com Todorov, no plano da recepção ocorre “a

hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis natura is, face a um

acontec imento aparentemente sobrenatu ral” – daí que o público ou le itor

dessas histórias vai conviver com o extraordinár io, o insólito, o estranho , o

encantamento e a magia experimentando uma sensação que o suspende da vida

cotid iana.

As histórias cr iadas por Antônio Vieira, Victor Alvim Garc ia e

Marco Carvalho podem ser lidas como b iografemas, segundo Roland Barthes,

traço acentuado em Feijoada no paraíso , narrat iva em 1 ª. pessoa, em que o

personagem Besouro assume o lugar de narrador. São lendas inventadas,

relatos biográficos ou ainda “instantâneos fotográficos”, que Barthes va i

designar de biografemas: “gosto de certos traços biográficos que, na vida de

um escr ito r, me encantam tanto quanto certas fotografias; chamei esses traços

de ‘biografemas’” 5

Todas elas se f iliam a uma textualidade popular, tecida por uma

superposição de fa las, vozes, textos, histórias, “causos”, enfim, ficções sobre 4 TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castelo. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 58. 5 Cf. Roland BARTHES. A câmara clara; nota sobre a fotografia. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 51.

13

uma lenda, também uma ficção, do Recôncavo Baiano, cuja história de vida,

marcada pela rebeldia, fertilizou a imaginação de uma comunidade,

ampliando-se continuamente. Tais f icções devem ser entendidas pe la noção de

f ictício, apresentada por Wolfgang Iser .

Questionando a visão corrente de que os textos f icc iona is se opõem

aos textos factua is, Iser considera que aqueles não são “de todo isentos de

realidade”. O texto ficc ional “contém e lementos do real, sem que se esgo te na

descrição deste real”. Assim, como “o seu componente f ictício não tem o

caráter de uma fina lidade em si mesma”, é, “enquanto fingida, a preparação

de um imaginário”. 6 Segu ndo Iser, um texto ficcional guarda muita realidade,

de ordem socia l, sent imenta l e emocional. Tais rea lidades não são ficções

nem se convertem nelas ao entrarem nos textos f icc ionais, pois não se

repetem por efeito de si mesmas.

A “repetição é um ato de fingir , pelo qual aparecem fina lidades que

não pertencem à rea lidad e repetida, daí que o ato de fingir é uma transgressão

de limites”. Por isso, Iser propõe substituir o par oposit ivo ficção/realidade

pela tr íade “rea l, fictíc io e imaginár io”. Em relação ao imaginár io, “seu

caráter d ifuso é transfer ido para uma configuração determinada, que se impõe

num mundo dado como produto de uma transgressão de limites”. Ou seja, no

ato de fingir, “o imaginário ganha uma determinação que não lhe é própria e

adquire, deste modo, um pred icado de realidade : po is a determinação é uma

definição mínima do real”.

Para Iser , “as f icções não existem só como textos ficcionais :

desempenham papel importante tanto nas at ividades do conhec imento, da

ação, do comportamento, quanto no estabe lec imento de instituições, de

sociedades e de visões de mundo”. Entendendo o texto literár io como um

modo de temat izar o mundo, para Iser esse modo não está dado a priori .

Assim, é preciso que seja implantado, para se impor, o que “não s ignifica

imitar as estruturas de organização previamente encontráve is, mas sim

decompor”. Nessa decomposição ocorrem as seguintes operações: a seleção e

a combinação .

6 ISER, Wolfgang. O ato de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da Literatura e suas fontes. Vol. II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 384-416.

14

A seleção , “necessár ia a cada texto f iccio nal, dos sistemas

contextua is pré-existentes, sejam e les de natu reza sócio -cultural ou mesmo

literár ia”, “é uma transgressão de limites na medida em que os elementos

acolhidos pelo texto agora se desvinculam da estruturação semânt ica ou

sistemát ica dos sistemas de que foram tomados. Isso va le tanto para os

sistemas contextua is, quanto para os textos literár ios a que os novos textos se

referem”. Cont inua: “Os elementos contextuais que o texto integra não são em

si f ictícios, apenas a seleção é um ato de f ingir pelo qual os sistemas, como

campos de referênc ia, são entre s i delimitados, pois suas fronte iras são

transgred idas”.

No ato de seleção ocorre “uma perda de articulações precedentes e

uma reintegração dos elementos esco lhidos em uma nova art icu lação”.

“Suprimir, complementar, valorizar” vêm a ser , de acordo com Iser, operações

básicas da “produção de um mundo”. A seleção , como ato de f ingir , encontra

sua co rrespondência intratextual na combinação – outra operação e

transgressão de limites, dos e lementos textuais – , “que abrange tanto a

combina lidade do significado verbal, o mundo introduzido no texto, quanto os

esquemas responsáveis pela organização de personagens e ações”.

Como ocorre quase sempre, segundo Iser, nos textos narrativos são

acentuados “os espaços semânt icos const ituídos a partir de elementos

se lec ionados das realidades extratextuais , que se revelam pela ap resentaç ão

esquemática das personagens do romance (caracteres posit ivos e negat ivos)”.

Nos relac ionamentos intratextua is, ocorre um rompimento de fronteiras, pois

a f icção agrega, em um único espaço, “uma var iedade de linguagens, de níveis

de focos, de pontos de vista, que ser iam contraditórios noutras espécies de

discurso, organizadas quanto a um fim empírico particu lar”.

Compondo uma textualidade popular, as histórias sobre Besouro –

elaboradas a partir da se leção de elementos da realidade extratextual,

seguidas da combinação intertextual, e na ruptu ra de fronteiras – são

contranarrat ivas que põem em xeque um modelo de nação , um desenho

ident itár io homogeneizador do Brasil, segundo Florentina Souza, tecido por

um grupo social, a saber, as elites do país. Para a pesquisadora, este desenho

ident itár io,

15

individual ou coletivo, consiste num processo de const rução simbólica uti l izado como ponto de referência e auto -afirmação do grupo ou indivíduo. As fraturas, dúvidas, deslizes, heterogeneidades sofrem um p rocesso de esmaecimento par a que seja garantida a const rução de um desenho uni forme, unitá rio e total izante, acima de qualquer suspeita quanto à propriedade ou plausibil idade. Legit imado pela imposição de um grupo social , pelas repetições de figuras retóricas, o desenho será rat ifi cado e ret i fi cado pela tradição e arvorar -se-á capaz de definir e s ingularizar indivíduos e/ou grupos sociais. 7

O capoeirista Besouro viveu uma época em que estava em curso o

projeto de consolidação do Estado-nação brasile iro , traçando seu desenho

ident itár io, e a literatura e a história, inst itucionalizadas como disciplinas e

domínio do conhecimento, vão se irmanar em tal projeto. Enquanto

produções, ambas vão contribuir , em sua maioria, na construção de um

discurso ident itár io homogeneizador.

A identidade, para os intelectuais dos “primórdios” da nação, estava l igada à necessidade de construção de um país, de uma história, uma cultura, através dos quais todos s e reconhecessem simultaneamente semelhantes e di ferentes da Met rópole (contradições de colonizado. . . ) . Órgãos são criados, um projeto l i terário é delineado, escri tores, estudiosos, art is tas e polí t i cos art iculam-se; todas as energias intelectuai s dirigem-se e concentram-se no es forço de “inventar” o Brasil . É preciso inventar o país, preencher os vácuos da memória com aquilo que não propicie constrangimentos maiores que o de ser uma ex-colônia. Como construção simbólica que é, a identidade cultural brasil ei ra vai ganhar perfis mais ou menos ot imistas de acordo com as idéias , princípios e valores hegemônicos de cada época. 8

Para Florentina Souza, os intelectuais brasile iros têm à frente um

desafio, cercando-os de constrangimentos: “Como forjar uma ident idade d igna

se o imaginár io já t inha cr ista lizado como verdadeira a ‘ ind ignidade’ d e dois

segmentos étnicos [o índio e o negro ] da população?” 9. Segundo a autora, o

7 SOUZA, Florentina. Imagens e contra imagens do negro. In.: Congresso ABRALIC, Anais... Rio de Janeiro. 1988.p. 243. Nesse trabalho, a autora analisa a série Cadernos Negros, um periódico criado por escritores afrodescendentes, em fins de 1970. Segundo a autora, Cadernos Negros, “produzidos com intenção expressa de abalar a autoridade do discurso do saber e do poder, podem ser vistos como tentativa de constituir uma suplementariedade à cultura oficial brasileira; buscam inventar uma contra-imagem que desautorize a unanimidade proposta pela imagem instituída”. p. 245. 8 Id., p. 243-244. 9 Id., p. 244.

16

“processo de construção simbólica não descarta as significações p ré -

existentes”.

Desse modo, no processo de construção da identidade nac iona l

brasileira, pelas elites do país, de cunho homogeneizante, a trad ição ocidental

desempenhará um papel fundamental, uma vez que tece “narrat ivas sobre o

Outro [o índio e o negro] de acordo com o seu projeto de dominação”,

incu lcando-as “no imaginár io do próprio colonizado de modo que o m esmo

chega a acred itar na verac idade do texto.”10 Assim, o “perfil do Outro

inventado pela tradição ocidental presc inde de ser comprovado ou organizado

logicamente, a repetição garante a sua validade”. 11

Na contramão de um desenho ident itário homogeneizador, uma

textualidade popu lar emerge quest ionando -o , com histórias que têm Besouro

como herói, à reve lia da História oficia l. Tais narrat ivas são elaboradas por

su jeitos que enco ntram nesse capoeirista a referência de uma luta e

res istência ao processo de colo nização , que subjugou os negros, colocando-os

num lugar inferio r, em diversos níveis, naquele desenho, a despeito de sua

inegável contr ibuição na construção do país. Assim, um refrão insiste,

“furando” tal desenho, em riste: “zum zum zum, zum zum zum, capo eira mata

um”.

10 Id., loc. cit. 11 Id., p. 244.

Fonte: CARNEIRO, Edison - Caderno de Folclore 1 – Capoeira, 1977

17

2 NO RECÔNCAVO DA BAHIA, NASCE UM HERÓI

Quand o eu morrer Não quero gri to e nem mi stér i o Quero u m beri mbau Tocand o na porta d o cemit ér i o Com u ma fi ta amarel a Gravada com o nome dela Ai nda depoi s de mort o Besouro é cordão de ouro Como é o nome? Cord ão de Ouro. 12

Vida breve, longa história

Manuel Henr ique Pereira é o nome c ivil do mestre de capoeira

Besouro Mangangá, ou Besouro Cordão de Ouro. A data provável de seu

nascimento tem como referênc ia o processo movido em 1918 , pelo Exército

Brasile iro, que resultou na sua expulsão da corporação, no mesmo ano , po r

“incapacidade moral”, conforme o fício do Ministér io da Guerra, 13 no qual se

atesta que o acusado tinha 23 anos à época. Besouro Mangangá nasce no

quilombo Urup y, Olive ira dos Campinhos, distr ito de Santo Amaro da

Purif icação, na região denominada Recôncavo Baiano, 14 filho de João Martins

12 Letra da canção Cordão de ouro, do mestre Traíra de Santo Amaro, o José Ramos do Nascimento. Capoeirista famoso da Bahia, marcou época e ganhou notabilidade ímpar na arte das “rasteiras” e “cabeçadas”. No disco fonográfico, produzido pela Editora Xauã, intitulado "Capoeira", hoje uma preciosidade para os estudiosos e adeptos dessa arte, tem presença marcante envolvendo os ouvintes. Sobre a beleza e periculosidade do seu jogo, assim se referiu Jorge Amado: "Traíra, um caboclo seco e de pouco falar, feito de músculos, grande mestre de capoeira. Vê-lo brincar é um verdadeiro prazer estético. Parece bailarino e só mesmo Pastinha pode competir com ele na beleza dos movimentos, na agilidade, na rigidez dos golpes. Quando Traíra não se encontra na Escola de Waldemar, está ali por perto, na Escola de Sete Molas, também na Liberdade". Mestre Traíra também teve importante participação no filme "Vadiação", de Alexandre Robatto Filho, produzido em 1954, junto a outros grandes capoeiristas baianos, como Curió, Nagé, Bimba, Waldemar, Caiçara, Crispim Disponível em: http://sites.br.inter.net/capueirameialua. Acesso em 06/06/2009. 13 Cf. VASCONCELOS, José Gerardo. Etnocenologia e história: percorrendo indícios da vida de Manoel Henrique Pereira, vulgo “Besouro” (1895-1924). p. 25. In: MATOS, Kelma Socorro L. de. VASCONCELOS, José Gerardo. (Orgs.). Registros de pesquisas na educação. Fortaleza: LC-UFC, 2002. p. 27. Na Seção Judiciária do Arquivo Público Municipal de Santo Amaro (Data limite: 1920 – 1927: Subsérie: Tentativa de Homicídio: Cx. 4; Nº. 104: Vol. 18), tem-se o seguinte registro, de 04/02/1922, no auto de perguntas dirigidas à vítima Caetano José Diogo: “um homem moderno de cor escura quase preto”. 14 O Recôncavo abrange a região Bahia de Todos os Santos, com 23 municípios, incluso o de Salvador. Partindo do litoral, onde começam as dunas e praias do Litoral-Norte, a linha limite inflete para o Oeste, para o interior, passando ao Norte de São Sebastião do Passé, até alcançar o norte do município de Santo Amaro, e encontrar Humildes, onde seu traçado curva-se para o Sul, correndo paralela ao sentido do litoral, atravessando os leitos dos rios Jacuípe e Paraguaçu, envolvendo os municípios de São Gonçalo dos Campos, Cachoeira, Conceição da Feira e Cruz das Almas; deste, a fronteira retorna em direção à costa, passando por Santo Antônio de Jesus, apontando em linha reta para o mar, margeando as Matas do Sul, passando abaixo de Nazaré, Aratuípe e Jaguaribe, até encontrar a praia, nas alturas da Ponta do Garcez, ao norte da Barra do Jequiriçá. Cf. COSTA, Pinto. Recôncavo: laboratório de uma experiência humana. In. BRANDÃO, Maria de Azevedo et al. Recôncavo

18

Pereira e Maria Auta Pereira 15. Zilda Paim, conhec ida como memoria lista

santoamarense, traz a lguns dados biográficos desse capoeirista, fa lec ido em

1924: Nasceu em Santo Amaro. Filho de João Matos Pereira e Maria José. O mais ladino e malicioso capoei ris ta da Bahia. Mestr e de capoei ra no Exército, de onde se desligou depois da guerra. Não conhecia o medo, vencia a polí cia dando pernadas e rabos de arraia, com seus famosos saltos acrobáti cos. Foi fria e covardemente golpeado em Maracangalha, no lugar de nome Quimbeca. Veio para Santo Amaro em canoa , fi cando no Port o em frente a Loja Nova, até que foi t ranspor tado para a Santa Casa da Misericórdia, onde faleceu aos 32 anos de idade. 16

O capoeirista Besouro Mangangá dá continuidade a uma p rática, a

capoeira, que chegou ao Brasil desde o início da colonização. Segu ndo

Car ibé, os capoeiristas chegaram à Bahia “no bo jo de pau dos ant igos ve leiros

do século XVI. Eram negros da Angola, talvez guerreiros jogadores dessa luta

em que pés e cabeça têm mais importância e que as mãos passam a segundo

da Bahia Sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Academia de Letras da Bahia; UFBA, 1998. p. 103-105. 15 Não há informações precisas sobre a data de nascimento de Besouro. Segundo Vasconcelos, “só foi possível desvendar a sua origem mediante a certidão de óbito do seu irmão Caetano Cícero Pereira”. O autor ainda cita relato de João Pequeno, citando-o em seu livro: “Besouro morreu com vinte e tantos anos ou trinta. To ouvindo falar que ele morreu em 1924”. Cf. Etnocenologia e história: percorrendo indícios da vida de Manuel Henrique Pereira, vulgo “Besouro” (1895-1924). p. 29-32. In: Matos, Kelma Socorro Lopes de. VASCONCELOS, José Gerardo. Orgs. Registros de Pesquisas na Educação. Fortaleza: LCR – UFC, 2002. O autor transcreve na íntegra a certidão de óbito, expedida pela Santa Casa da Misericórdia de Santo Amaro, em 1925, a pedido do Dr. João de Cerqueira e Souza, promotor público da Comarca de Santo Amaro, para o arquivamento do processo movido contra o capoeirista por Caetano José Diogo em 1922, em virtude do seu falecimento em 1924. C.f.; certidão de óbito em anexo. “A Santa Casa da Misericórdia de Santo Amaro, mantenedora do Hospital Nossa Senhora da Natividade, é uma entidade filantrópica sem fins lucrativos que presta serviços de saúde de urgência/emergência, há cerca de 235 anos, a toda a população santoamarense e de cidades circunvizinhas, tendo como finalidade principais o atendimento aos mais carentes. “O objetivo maior da Santa Casa da Bahia, como de todas as Santas Casas, desde sua criação, era praticar a caridade cristã, observando o estatuto, “a lei escrita da Misericórdia”, chamado de Compromisso. A Santa Casa da Bahia seguia o Compromisso datado de 1516, que regia a Santa Casa de Lisboa. O Compromisso prescrevia as quatorze ações ou ‘obras de misericórdia’ que concretizavam a prática caritativa, sendo sete Espirituais ensinar aos ignorantes; dar bom conselho; consolar os infelizes; perdoar as injúrias recebidas; suportar as deficiências do próximo; orar a Deus pelos vivos e pelos mortos e sete compromissos Corporais resgatar os cativos e visitar prisioneiros; tratar os doentes; vestir os nus; alimentar os famintos; dar de beber aos sedentos; abrigar os viajantes e os pobres; sepultar os mortos”. SANTANA, A. C. S. de. Santa Casa de Misericórdia da Bahia e sua prática educativa, 1862-1934. 227f. Tese (doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, UFBA, Salvador, 2008.p. 44. 16 PAIM, Zilda. Relicário popular. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo: EGBA, 1999. p 53. Conhecida pela divulgação da cultura santoamaresense, a autora nasceu em 1919 e iniciou o magistério, em Santo Amaro, de 1937 até 1988. Foi vereadora pelo PDC e MDB nas legislaturas de 1959-1963 e 1997-1982, presidente do Legislativo de Santo Amaro entre 1980 e 1982. Seu grupo folclórico Maculelê de Santo Amaro atravessou fronteiras para ser aplaudido por cariocas, paulistas, mineiros e paraibanos. In: Isto é Santo Amaro. 3ª ed. Salvador Academia de Letras, 2005. Zilda Paim apóia-se na memória popular para referir-se ao nome da mãe de Besouro como Maria José, enquanto na certidão de seu irmão Caetano Cícero Pereira, consta Maria Auta Pereira.

19

plano”.17 São detentores de uma cultura que contribuiu para formar a cultura

afro-brasileira, fortalecendo o combate à opressão, uma arte que usa da

“ginga” “para disfarçar a luta, dando-lhe um caráter lúdico ino fensivo e

cadenciado, de certa forma, à locomoção e preparação dos ataques e

defesas”.18

Nas histórias sobre Besouro, que compõem uma textualidade

popular, sobressa i-se a imagem do capoeirista como um indivíduo alt ivo,

destemido, rebelde, corajoso, va lente, audacioso, ju stice iro, representante dos

segmentos oprimidos num período de pós-abolição e mudança de regime

polít ico . Besouro torna-se uma lenda, mito , acima do bem e do mal pelo poder

de que se investe e é investido, para enfrentar a elite econômica e polít ica da

terra de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano.

Graças a uma tradição oral, pode-se recontar a sua história,

praticamente ausente das páginas da literatu ra canonizada, exceção feita a

Jo rge Amado, que o ap resenta em Mar Morto , publicado em 1936, um ano

depois de Jubiabá , narrat iva que elege um negro o herói da trama. Em Mar

Morto , o escritor faz uma homenagem a Mangangá, no capítulo int itu lado

“Viscondes, condes, marqueses e Besouro”. Na trama, Besouro Cordão de

Ouro , um “negro valente”, é o save irista amigo de Guma, personagem desta

narrat iva:

Essa cidade de Santo Amaro, onde Guma es tá com o saveiro, foi pátri a de muito barão do império, viscondes , condes, marqueses, mas foi t ambém de gente do cais, a pát ria de Besouro. Por esse motivo, somente por esse motivo, não é por produzi r açúcar, condes, viscondes, barões, marqueses, cachaça, que Santo Amaro é uma cidade ama da dos homens do cais. Mas foi al i que nasceu Besouro, correu naquelas ruas, al i derramou sangue, esfaqueou, at irou, lutou capoeira, cantou sambas. Foi al i p erto em Maracangalha, que o cortara m todinho a facão, foi al i que seu sangue correu e al i bri lha a sua estrela, cl ara e grande [. . . ] ele virou estrela, que foi um negr o valente [. . . ] . Besouro nunca casou, além de marít imo ele era jagunço, além do remo tinha um ri fl e, além da faca de marinhei ro t inha uma navalha. [. . . ] a estrela de Besouro pisca no céu. É cla ra e grande. As mulheres dizem que ele est á espiando os mal feitos dos homens (barões, condes, viscondes,

17Cf. CARIBÉ, op. cit., Zilda Paim em Relicário Popular, transcreve essas mesmas informações no corpo do seu texto, porém não cita a fonte pesquisada. op. cit.; p. 47. 18 AREIAS, Almir, O que é capoeira. 3 ed. Brasiliense. (sd), p.24.

20

marqueses) de Santo Amaro. Está vendo todas as injustiças que os marít imos sofrem. Um dia voltará para se vingar. 19

Besouro se metamorfoseia, torna-se uma estrela, “clara e grand e” –

depois de ter vivido como “marítimo” e “ jagunço” –, atento às injust iças dos

poderosos do Recôncavo, como os barões, co ndes, viscondes e marqueses.

Assim como o personagem Macunaíma, de Mário de Andrade, que também

“vira estrela”, Besouro faz parte de uma conste lação, organizada pelo

pensamento mít ico, const itutivo dos homens, em diferentes épocas ou

sociedades, visando dar sent ido e reflet ir “sobre a existênc ia, os cosmos, as

situações de ‘estar no mundo’ ou as relações soc iais”. 20

Ao se rememorar a vida de Besouro, deve-se considerar que “a

lembrança é a sobrevivência do passado. O passado, conservando -se no

espírito de cada ser humano, aflora à consc iênc ia na forma de imagens -

lembrança”.21 Portanto, o ato de lembrar acontec imentos que se transformam

em história vivifica s ituações e perpetua o seu aprendizado. Assim são as

histórias sobre Besouro Cordão de Ouro, idea lizadas em imagens elaboradas

pela memória de quem as conta. Segundo Ecléa Bosi, “o instrumento

socializador da memória é a linguagem. Ela reduz, unifica e ap roxima no

mesmo espaço histó rico e cultu ral a imagem do sonho, a imagem lembrada e

as imagens da vigí lia atual”. 22

As narrativas sobre Besouro Mangangá são produzidas num

momento histórico e social e ta is acontecimentos, num processo de se leção e

combinação, são memorizados, contados e recontados, dispensando -se ass im

uma cobrança aos seus narradores quanto a dados históricos p recisos, pois a

importância da narrat iva está no personagem vetor do acontec imento narrado.

Como representante de um expressivo segmento populac ional

afrodescendente, a histó ria desse capoeirista, que Car ibé destaca, dentre

vários nomes da capoeiragem, como “bom faquista angola, mas jogador 19 AMADO, Jorge. Mar Morto. 36ª ed. São Paulo, Martins, 1973. p. 123-127. 20 ROCHA, Everardo. O que é mito. São Paulo, Brasiliense, 1991. 5ª. edição. P. 7. De acordo com o autor, o mito, presente em todas as épocas, “não possui sólidos alicerces de definições. Não possui verdade eterna e é como uma construção que não repousa no solo. O mito flutua. Seu registro é o do imaginário. Seu poder é a sensação, a emoção, a dádiva. Sua possibilidade intelectual é o prazer da interpretação. E interpretação é jogo e não certeza. Id., p. 95. 21 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembrança de velhos. 9ª ed. São Paulo Companhia das Letras, 2001. p. 53. 22 Id.; p. 56.

21

escasso”,23 foi, como a de tantos ou tros, “esquecida” pela História oficial,

comprometida com o projeto ident itár io das elites do país, na construção de

um Brasil europeizado. Por isso, a ausência de documentos escr itos, devendo

o pesqu isador recorrer à memória oral para elaborar uma histór ia da capoeira,

pela importância dos afr icanos na construção da memória do país. Ao

considerar o traço livre e quase onírico da memória, Bosi afirma o seguinte :

[. . . ] lembrar não é reviver, mas refazer, reconstrui r, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi” e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão agora à nossa disposição, no conjunto de representaçõ es que povoam nossa consciência atual . 24

Transmit idas de geração a geração, há quase um século, as

narrat ivas sobre Besouro são fios de uma “memória subterrânea”, tecendo

outros trançados, a fim de evitar o seu esquecimento.

Estudar memória é falar não apenas de vida e de perpetuação da vida at ravés da história; é falar, também, de seu reverso, do esquecimento, dos s i lêncios, dos não ditos e, ainda, de uma forma intermediária, que é a permanência de memória s subterrâneas ent re o esquecimento e a memória social. E no campo das memórias subter râneas, é falar também nas memórias dos excluídos, daqueles que a fronteira do poder lançou à marginalidade da história, a um outro t ipo de esquecimento ao lhes ret i ra r o espaço ofic ial ou regular da mani festação do di reito à fala e ao reconhecimento da presença social . 25

Por esse entendimento, tais histórias são reconstruídas,

ressignificadas pelo traba lho da memória, que se efetua pelas operações de

lembrar e esquecer. Toda vez que um acontecimento é narrado, ou tras

performances são colocadas e trazidas do inconsciente e, num misto de real e

imaginár io, confluem para o mesmo ponto, ou seja, a recriação das “façanhas”

ou feitos realizados por Besouro, num país que fez do negro o seu Outro, um

23 CARIBÉ. Op.cit.; 24 Ibid.; p. 55. 25FÉLIX, Loiva Otero. Política, memória e esquecimento. In: TEDESCO, João Carlos (org). Usos de memórias. (Política, Educação e Identidade). Universidade de Passo Fundo. RS – Brasil. 2002, p. 31.

22

estranho a quem se “podia” maltratar, ao ignorar que se trata de um ser

humano .

Segu ndo Vasconcelos, ao tratar da importância da memória para a

so lidificação da história, “se o esquecimento nos protege das dores, não

impedirá que os homens s intam saudade ou rememorem seus mitos, s ímbolos

e imagens”.26 Assim, ao se propor um estudo sobre o capoeirista Besouro, não

se tem a intenção de esquecer as dores que certamente viveu . Ao contrário,

busca-se entender as razões pelas quais esse p ro tagonista é rememorado como

um mito, um símbolo, rep resentante de um segmento social margina lizado.

Para se entender o lugar que Besouro Mangangá ocupa no

imaginár io popular, é necessár io contextua lizar o período em que viveu,

marcado por mudanças soc iais e polít icas do Brasil do f ina l do século XIX e

início do século XX. A abo lição da escravatura, com a assinatura da Lei

Áurea em 13 de maio de 1888 , e a Primeira República, que começa a vigorar

com a sua proclamação, em 15 de novembro de 1889, pelo Marechal Deodoro

da Fonseca, até 1930, criam a esperança de transformar o Brasil em um novo

país.

Nesse período, o Recôncavo Baiano é o principal veto r das relações

econômicas com o plant io e a colhe ita da cana-de-açúcar, e os engenhos são

os p rincipa is núc leos para os contatos . A maioria dos engenhos estava

loca lizada em Santo Amaro da Purif icação, terra de Besouro Cordão de Ouro.

Para Z ilda Paim, “o Recôncavo tornou-se em pouco tempo o mais importante

centro agrícola da era colonia l”. 27 Ainda para a autora, Santo Amaro “fo i, sem

dúvida, o município que mais escravos possuiu. Seus primeiros povoadores,

os portugueses, dado às aventuras, ávidos de lucros, queriam t irar da terra o

máximo que ela pudesse dar”. Destacam-se a inda os agrupamentos negros que

vieram para Santo Amaro:

[. . . ] os haussás habitavam o Sudão Central , ao norte dos rios Niger e Binue. Formavam a nação mais importante de todas as negrít i cas sudanesas. Os malês eram africanos is lamizados, possuidores de mediana cultura e portador de ofícios de

26 VASCONCELOS, José Gerardo. op. cit.; p. 24. 27 PAIM, Zilda. Isto é Santo Amaro. 3 ed. Salvador. Academia de Letras, 2005, p.51.

23

pedrei ro e ca rpinteiro, ótimos agricul tores, exercend o influência sobre escravos de diversas procedências. 28

No período em que Besouro viveu , preva leciam “ranços” muito

fortes do regime monárqu ico no país, e a abolição era ainda uma s ituação a

ser aceita por muitos ex-donos de escravos. Segundo o historiador baiano

Walter Fraga Filho, “nos últ imos anos do século XIX, o Recôncavo era a

região economicamente mais importante da provínc ia. Era também a mais

densamente povoada e a que concentrava maior número de escravos”. 29 E para

Antônio Risér io a sociedade que se formou na “cidade da Bahia” e seu

Recô ncavo esteve marcada por um processo contínuo de mest içagem, apesar

de todas as desigualdades entre os grupos que a constitu íram. 30

Com essa composição populacional s ingularizando o Recôncavo

Baiano e a cidade do Salvador nos primeiros anos da República, as e lites

loca is vão fazer uso dos capoeiristas. De acordo com Risério, “a c lasse

dir igente baiana se opôs, até quando isso foi possível, à mudança de regime

polít ico”, e a Bahia foi a ú lt ima província do império a ad er ir à Repúb lica.

Risério destaca que a elite baiana, por seu conservadorismo, de “fundas e

contorcidas raízes”, via no novo regime o sinônimo da anarquia e, tanto a

elite po lítica quanto o empresariado agromercant il, consideravam que, com a

alteração do regime, só ter iam a perder o poder adqu irido durante anos de

domínio senhorial. 31

Assim, com a Primeira Repúb lica, surge a f igura do coronel, que va i

atuar como “escudo” das forças políticas vigentes, cabendo -lhe, po r muitas

vezes, escolher os líderes loca is ou formar novas parcerias, pois a

sobrevivência do sistema político dependia do contínuo e da manipu lação do

poder pelas o ligarquias trad iciona is.

Para o histo riador coreano Eul Soo Pang, a Bahia, “devido ao seu

tamanho físico e demográfico e sua importância econômica, era o maior e

28Id. Ibid., p. 45- 48. 29 FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos libertos na Bahia (1870-1910). Campinas/SP. UNICAMP, 2006. p. 34. 30 RISÉRIO, Antonio. Uma história da cidade da Bahia. 2 ed. Versal, 2004. p. 103. Segundo, Josivaldo Pires de Oliveira, Salvador, “capital da Bahia”, é, historicamente, conhecida como uma cidade de muitos nomes. “Cidade da Bahia”, “São Salvador”, “Cidade do Salvador” ou “Bahia de Todos os Santos”, principalmente quando se trata da cidade da primeira metade do século XX. 31 RISÉRIO, Antonio. op. cit., p. 404-405.

24

mais poderoso estado do Nordeste do Brasil e os seus coronéis chegaram a

participar de campanhas militares ao lado de determinados grupos polít icos

estaduais e naciona is. 32 Ainda com Eul Soo Pang, o co ronelismo tem como

base patriarca l, soc ial e econômica os engenhos de açúcar do século XVI, e a

sua principal função era a hábil u tilização do poder privado acumulado pelo

patriarca de um clã ou uma família mais extensa. 33 Josivaldo Oliveira entende

o coronelismo como “fruto de situações históricas específicas em uma

sociedade, inclusive em soc iedades urbanas, a exemplo de Salvador na

Primeira República”.34

Destaque-se que o poder senhor ia l do interior do Brasil a inda

manteve a sua força até a segunda metade do século XX, como afirmam

Vilaça e Albuquerque, “tendo, portanto, sobrevivido por mais de meio século

a seus precursores, o s coronéis do açúcar”. 35 Nesse contexto, muitos

capoeiras, assim também conhecidos, homens fortes e destemidos, aptos a

todo tipo de serviço, vão trabalhar como “capangas” ou homens de confiança

dos coronéis – uma espécie de seus protetores particulares e de suas terras – e

vão ter os coronéis como seus protetores.

Segu ndo Muniz Sodré, “desde pouco antes da Abolição e durante a

Primeira República”,

os capoei ris tas passaram a ser usados, sob retudo no Rio de Janeiro como capangas (às vezes contra os próprios negros, ou contra os republicanos ) por polí t i cos e pessoas de influência. Não sendo esse o caso, o capoeiris ta era freqüentement e

32 PANG, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias. 1899-1934. A Bahia na Primeira República Brasileira. Trad. Vera Teixeira Soares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 9. No período em que viveu Besouro Mangangá, a divisão geopolítica do Brasil estava demarcada por duas regiões: Norte e Sul. O “termo nordeste é usado inicialmente para designar a área de atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), criado em 1919. Neste discurso institucional, o Nordeste surge como a parte do Norte sujeita às estiagens e, por essa razão merecedora de especial atenção do poder público federal. [...] Em 1920, a separação Norte e Nordeste ainda está se processando; só neste momento começa a surgir nos discursos a separação entre a área amazônica e a área ‘ocidental’ do norte, provocada principalmente pela preocupação com a migração de ‘nordestinos’ para a extração de borracha e o perigo que isto acarreta para o suprimento de trabalhadores para as lavouras tradicionais do Nordeste”. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2 ed. Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2001. p. 68-69. 33 PANG, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias. 1899-1934. A Bahia na Primeira República Brasileira. Trad. Vera Teixeira Soares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 9. 34 OLIVEIRA, Josivaldo Pires. No tempo dos valentes: os capoeiras na cidade da Bahia. Salvador: Quarteto, 2005. p. 90. 35 VILAÇA, Marcos Vinicius; ALBURQUEQUE, Roberto Cavalcante de. Coronel, coronéis. Apogeu e declínio do Coronelismo no Nordeste. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 23.

25

apontado como autor de t rop eli as e desordens, suscit ando mais uma vez medidas l egislat ivas especí fi cas. 36

Ainda com Sodré, “a crônica da capoeira até quase o f im do Império

reve la d isposições permanentes de resistênc ia marc ia l aos dispositivos

repressivos de ordem escravagista”. Assim, no final do século XIX, o jogo da

capoeira começa a so frer forte repressão socia l e polic ia l, tanto na capital da

Repúb lica, o Rio de Janeiro, quanto na Bahia e seu Recôncavo, decorrente da

insurgência dos negros ao sistema político vigente. Nos primeiros anos pós-

monárquicos e de Repúb lica Velha (1889-1930), a capoeira vem a ser

considerada crime, com o Código Penal de 1890.

De acordo com Manuel Querino, no Rio de Jane iro “o capoeira

const ituía um elemento perigoso, tornando-se necessário que o governo , pela

portaria de 31 de outubro de 1821, estabelecesse cast igos corporais e

providências ou tras, relat ivas ao caso” . 37 Os t ipos, então descr itos nas

narrat ivas, podem bem representar caricaturas do sistema soc ial da

época.Desse modo, dominantes e dominados lideravam um conflito freqüente.

Afirma Edil Costa : Prati cada pelos a fro-brasil eiros como um jogo, uma forma de divert imento que dis farçava uma luta perigosa, a capoei ra parece não t er deixado de ser p rati cada em momento algum de sua história, apesar da repressão policial violenta que sofreu. Ao cont rário, ganhou força enquanto s inal de resis tência e de descoberta da negritude. Em um momento seguinte, fi rmou-s e como luta e, mesmo prati cada ent re os negros, não havendo combate direto entre o oprimido socia lmente e o seu opressor, o combate s imbólico estava estabelecido: jogar capoei ra s igni fi cava a fi rmar-se como negro, herdeiro da tradição a fri cana e fazer frente e resis tência aos valores sociais do branco. 38

A repressão ao jogo da capoeira não se estendia às e lites, que

faziam uso da fo rça e da valent ia dos capoeiristas. Segundo Almir das Areias,

o Código Penal de 1890 confere à capoeiragem um tratamento específico:

36 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida; por um conceito de cultura no Brasil. 3ª ed. DPA editora. Rio de Janeiro, 2005. p. 155. 37 QUERINO, Manuel. A Bahia de outrora. Salvador. Progresso, 1955. p. 80. 38 COSTA, Edil Silva. Comunicação sem reservas. Ensaios de malandragem e preguiça. 2005 (236 p) Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo 2005. p.88.

26

– Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agil idade e destreza corporal conhecidos p ela denominação capoeiragem; será o autuado punido com dois meses de prisão. – É considerada ci rcunstância agravante pertencer o capoei ra a alguma banda ou malta. – Aos chefes e cabeças se imporá a pena em dob ro. – No caso de reincidência será apli cada ao capoeira, no grau máximo, a pena do art igo 400. – Se for estrangeiro, s erá deportado depois de cumprir pena. – Se nesses exercícios de capoeiragem perpetra r homicídio, prati car alguma lesão corporal , ul traja r o poder público e part i cular, e perturbar a ordem, a tranqüil idade ou a segurança pública ou for encontrado com armas, incorrer á cumulativamente nas penas cominadas para t ais crimes. 39

Tal código é destituído em 1937, na República Nova, com o então

presidente Getúlio Vargas, e a capoeira torna-se um esporte, inst itucionaliza-

se, como um modo de contro lar a atuação dos capoeiristas, através da

organização de academias para o seu ensino. 40 De acordo com Walde loir

Rego, a capoei ra foi inventada com a finalidade de divert imento, mas na realidade funcionava como faca de dois gumes. Ao lado do normal e do quotidiano, que era divert ir, era luta também no momento oportuno. Não havia Academias de Capoeira, nem ambiente fechado, premeditadamente para jogar capoeira. Antigamente havia capoei ra, onde havia uma quitan da ou uma venda de cachaça, com um largo bem em frente, propício ao jogo. Aí, aos domingos, feri ados e dias s antos, ou após o trabalho se reuniam os capoeiras mais famosos a tagarelarem, beberem e jogarem capoei ra. 41

Com a ass inatura da Lei Áurea, muitos negros libertos cont inuaram

a trabalhar em troca de salários ou arrendando terras dos seus ex-senhores,

segundo Walter Fraga Filho :

É preciso lembrar que a população que emergiu da escravidão era bastante di ferenciada internamente. A posse de alguns bens, o direi to de acesso à t er ra, o domínio de uma profissão especializada, a posição de fei tor de serviço, estabelecera m

39 AREIAS, Almir das. O que é capoeira. 3 ed. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1983. p. 43. Em A verdade seduzida, Muniz Sodré, em nota de rodapé, afirma o seguinte: “O Código Penal de 1890 previa desterro e castigos corporais para quem praticasse a capoeira. Exemplos célebres de desterro: Manduca da Praia, Juca Reis, mandados para a Ilha de Fernando de Noronha, durante o primeiro governo republicano; de castigos corporais: as chicotadas aplicadas pelo famoso Major Vidigal, chefe de polícia do Rio de Janeiro, no início do século XIX Cf. SODRÉ, Muniz. Op. cit.; p. 155. 40 OLIVEIRA, Josivaldo. op. cit., p. 31. 41 RÊGO, Waldeloir. Capoeira Angola: ensaio sócio-etnográfico. Salvador: Itapoã, 1968, p. 35-36.

27

algumas di ferenças dentro do contingente escravo, definira m escolhas e poder de barganha frente aos ex-senhores. 42

Antes escravos, agora os negros passam a const itu ir um expressivo

segmento de exc luídos, deixados à própria sorte. Como a grande maio ria não

teve acesso à cultu ra letrada, restava- lhes fazer parte do grande cont ingente

de-mão-de obra barata e desqualificada que povoava as c idades do Recôncavo

Baiano e do Brasil.

Para a historiadora Adriana Dias, muitos negros “eram

trabalhadores braçais, como carregadores, estivadores, engraxates, capangas,

polic iais”, 43 e a rua era o p rincipa l cenário de conflito s constantes, pois

muitos trabalhavam esporad icamente, e lugar do jogo da capoeira. Nesse

contexto, negros e “mest iços” são c lassif icados de “vadios”, “valentões,”

“desordeiros” ou ainda pobres “viciosos”. 44

Ainda segundo Adriana Dias,

[. . . ] no final do século XIX, muitos viviam de ocupações esporádicas t endo um ri tmo de vida bastante ir regular, o que lhes proporcionava freqüentes períodos de ociosidade ent remeados por momentos de diversão quase sempr e acompanhados de muitos ‘goles de cachaça’ e, lógico, muitas brigas e provocações. 45

Assim, como afirma Walter Fraga, justamente por suas hab ilidades

ou p ro fissão especia lizada, os negros do pós-abolição usam seu poder de

barganha junto às e lites, e os capoeiristas também vêm a negociar suas

hab ilidades, ao serem usados como capangas por “polít icos e pessoas de

influência”, como também analisa Muniz Sodré.

A capoeira, misto de arte e lu ta, compõe o repertório cultural do

negro , uma estratégia cr iada em sua defesa e estabelec imento de poder entre

outros negros. No Rio de Jane iro , após a abolição, um enorme cont ingente de

ex-escravos também vagueava pelas ruas, “resid indo nos morros e na s

42 FILHO, Walter Fraga. Op. cit., p. 232. 43 DIAS, Adriana Albert. Mandinga, manha & malícia; uma história sobre os capoeiras na capital da Bahia (1910-1925). Salvador: EDUFBA, 2006. p. 70. 44 Ibid., p. 26. 45Ibid., p. 17

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periferias, circu lando normalmente nos locais de maior movimento da cidade

[ . .. ], mal conseguiam um trabalho que lhes garant isse a sobrevivência”. 46

Entregues à própria sorte, por conta de um passado que não

esco lheram, envolviam-se em assa ltos, cr imes e emboscadas. Por isso,

vad iavam pe la cidade – “dividindo-se e o rganizando-se em grupos, os negros

caminhavam cada vez mais para a marginalidade. Surgem as famosas maltas

de capoeira”. 47 Em relação a essas maltas, Edson Carneiro afirma o segu inte:

As maltas da Bahia foram desorganizadas por ocasião da guerra do Paraguai: o governo da província recrutou à força os capoeiras , que fez seguir para o Sul como “voluntários da Pátria”. Manuel Querino conta que muitos de les s e dist inguia m por atos de bravura no campo de batalha. 48

Ao reconst ituir um percurso histó rico da capoeiragem, Líbano

Soares destaca que, antes

de ser ‘descoberta’ pelos historiadores, há poucas décadas, a capoeira já t inha vivido suas aventuras nas páginas da l i teratura, dos cronistas , dos memoriali s tas do passado imperial do Rio de Janeiro. E antes mesmo destes – e de forma muito mais freqüente -, num passado remoto, a capoei ra só era testemunhada pelos escrivães de Polícia. 49

Aluís io de Azevedo, em O cortiço , (1890) e Manoel Antônio de

Almeida, em Memórias de um sargento de milícias , (1854) registram nas

páginas desses romances episódios envo lvendo personagens capoeir istas, os

quais contr ibuem para entender a dinâmica socia l do Rio de Janeiro, no século

XIX, período que marca a passagem da o rdem imperial para a o rdem

repub licana.

Cont inua Líbano Soares:

[. . . ] junto com ramei ras, prosti tutas , vagabundos, est ivadores, malandros, boêmios, poli ciais , os capoei ras faziam parte da buliçosa fauna das ruas da Corte, que assustava as camadas médias e também a elit e dirigente. Persegu idos pelo aparat o

46 Cf. AREIAS, op. cit., p. 29 47 Id., p. 29. 48 CARNEIRO, Edson. Capoeira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1977. 2 ed. Cadernos de Folclore. V. 1. 49 SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições no Rio de Janeiro. (1808-1850). 2 ed. Campinas, São Paulo: Unicamp, 2004. p. 35-36.

29

policial os capoei ras foram p resença freqüente nas páginas do crime do século XIX. 50

Concomitante aos ep isódios da Corte Imperial no Rio de Janeiro,

envolvendo indivíduos desses segmentos sociais, a Bahia e seu Recôncavo

também possuem os seus “vadios”, “valentões”, “desordeiros” ou ainda

“pobres e vic iosos”. Segundo Josiva ldo Olive ira, na cidade de Salvador das

primeiras décadas republicanas a capoeiragem assim era vista : Configurou-se de forma aproximada ao Pará republicano. Os capoeiras eram associados à vagabundagem e a outros t ipos sociais do universo das ruas, a exemplo do capanga polí t i co e do soldado de polícia, mas t ambém ao trabalhador nas principais ocupações das camadas populares: pedrei ro, carregador, car roceiro, marít imo, peixeiro, etc. 51

Para Muniz Sodré, a capoeira implicava, como toda estratégia

cultu ral dos negros no Brasil, um jogo d e res istência e acomodação .

Luta com aparência de dança, dança que aparenta combate, fantasia de luta, vadiação, mandinga, a capoeira sobreviveu por ser um jogo cultural . Um jogo de destreza e malícia em que se finge lutar, e finge-se t ão bem que o concei to de verdade da luta se dissolve aos olhos do espectador e – ai del e – do adversário desavisado. 52

Sodré traz uma descrição p rimorosa dessa arte :

Vadiação e brincadeira são outros nomes com que os negros designavam na Bahia o jogo da capoeira. Capoeir a se luta, joga, brinca, é algo que se faz entre amigos ou companheiros. Como? Primei ro, forma-se uma roda composta por um ou mais tocadores de berimbau (a rco retesado por um fio de aço, percutido por uma vareta e ao qual s e prende uma cabaça capaz de funcionar como caixa de ressonância), pandeiros, caxixis ou reco-recos. Em seguida, dois homens entram no cí rculo, abaixando-se na frente dos músicos, ao som dos instrumentos e de canções (chulas) especí fi cas. 53

50 SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição. Os capoeiras na Corte Imperial 1850-1890. Rio de Janeiro: Access, 1999. p. 3. Segundo o autor, os feitos dos capoeiras no Rio de Janeiro – capital da República – Bahia e seu Recôncavo vinham desde o período monárquico, o que validava a sua coibição. Por conta disso, o Código Penal de 1890 passa a ser o principal recurso de punição para esse tipo de luta. 51 OLIVEIRA, Josivaldo. op. cit.; p. 33. 52 SODRÉ, Muniz. Capoeira, um jogo de corpo. op. cit.; p. 155. Grifos do autor. 53 Id. p. 153. Grifos do autor.

30

Então, mobilizam-se totalmente os corpos dos jogadores. Mãos, pés, joelhos, braços, calcanhares, cotovelos, dedos, cabeças combinam-se dinamicamente em esquivas e golpes, de nomes variados: aú, rasteira, meia -lua, meia -lua de compasso, martelo, rabo-de-ar raia, benção, chapa-de-pé, chibata, t esoura e muitos outros. 54

Em sua cartografia da capoeiragem baiana, Josivaldo Oliveira

mapeia os princ ipais loca is de conflitos dos capoeiristas, ruas, logradouros, e

a moradia de muitos dos indivíduos ident ificados como capoeiras. 55 As e lites

so teropolitanas consideravam esses locais espaços suscet íveis à

crimina lidade.

O “cotid iano da rua na Cidade do Salvador, inclusive nas obscuras

e embriagadas noites, urgia atenção especial por parte das autoridades e os

edito ria is dos principa is jorna is da época cobravam das auto ridades polic iais

melhor segurança e ordenação pública”. 56 Contudo, a despeito da forte

repressão, os capoeir istas mant iveram clandest inamente o jogo, praticando -o

nos quinta is, nas praias, nos terre iros e nos arredores da cidade, ao tempo em

que transmit iam seus ensinamentos às gerações fu turas. 57

A ginga e malícia da capoeira estavam nas ruas, fert ilizando a

imaginação de segmentos sociais e lit izados, amedrontados com as possíveis

agressões, endossando a máxima de que o capoeir ista é “malandro”, um

detentor de artimanhas, aprimoradas a cada luta e, princ ipalmente, na roda da

capoeira.

Nesse contexto histórico, começa a saga de Besouro Mangangá, cuja

fama alcançada é ass im compreend ida por Pedro Abib: No imaginário da capoeiragem e dos capoei ras não exi s t e figura mais representativa do que Besouro Mangangá. [. . . ] na memória dos mais antigos moradores do Recôncavo, a figura de Besouro, vive e protagoniza um sem-número de histórias e “causos” envolvendo suas peripécias e astúcias no enfrentamento com a pol ícia, sua valentia ao brigar e bater em vários oponentes ao mesmo tempo [. . . ] . 58

54 Id. p. 153-154. 55 Id. p. 41. O autor destaca a importância das crônicas e da literatura urbana para os estudos africanistas e a etnografia, vigorando até os anos 1930, por contribuírem com a reconstituição do cotidiano dos capoeiras baianos que viveram em Salvador nas primeiras décadas do século XX. Cf. OLIVEIRA, Josivaldo. p. 39-40. 56 Id. p. 45. 57 Cf. AREIAS, p. 61. 58 ABIB, Pedro. Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. Campinas, SP. Unicamp/ CMU; Salvador: EDUFBA, 2005. p. 160.

31

Ao sair de casa com 13 anos de idade, Besouro vai para a sede do

distr ito em que morava, Santo Amaro da Purif icação, vindo a res idir no ba irro

do Trapiche de Baixo , zona suburbana da cidade que passa a ser a sua escola.

Aprende a jogar capoeira com o “tio Alípio” e trabalha em diversos o fíc ios:

vaqueiro, amansador de burros, save irista, num tempo de conflito entre

“maltas”, disputas a nava lha, capangas ele itorais e repressão do Estado

repub licano ao jogo da capoeira.

É nesse período conturbado do país, em espec ial a Bahia e o seu

Recô ncavo, cu ja at ividade econômica, em seus modos e relação de produção,

não abriu mão da fo rça de trabalho dos negros, mesmo com a abolição da

escravatura, que passam a compor predominantemente os segmentos populares

que Besouro ganha evidência com seus feitos que desafiam a ordem vigente.

Naquele universo da capoeiragem baiana, muitos capoeiristas se

tornaram notáveis. Contudo, Besouro Cordão de Ouro lidera o período, com

maestria, síncopa, qualif icada por Muniz Sodré como um espaço a ser

preenchido com o corpo 59 e, nesse caso, o corpo do negro : em movimentos

r ítmicos, envolvido pela música e a ginga da capoeir a, quase um bailado que

hipno tiza o adversár io. Edson Carne iro o destaca : o “mais famoso dos

capoeiras nacionais era natura l de Santo Amaro, na zona canavieira, e tinha o

apelido de Besouro Venenoso. Era invencível e inigualável. Ainda agora as

chu las de capoeira cantam as suas proezas lendár ias”. 60

Besouro Mangangá ensinou a outros o que aprendeu com o seu

velho mestre, a inda garoto . Nesse ap rendizado começa a conhecer o corpo

como elemento agregador para fortalecer a arte da então “capoeira escrava”, 61

um instrumento para defesa e ataque, uma das estratégias dos escravos para 59 SODRÉ, Muniz, Samba, o dono do corpo. 2 ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p. 11. De acordo com Walnice Nogueira Galvão, a síncopa é “uma espécie de padrão rítmico em que um som é articulado na parte fraca do tempo ou compasso, prolongando-se pela parte forte seguinte”. “Um corpo sincopado valoriza mais intensa e expressivamente o tempo fraco da música. E isso se reflete de diversas maneiras. Porque rompendo com a hegemonia do tempo forte, esse corpo se fraseia de um outro jeito: é como se ele tomasse a liberdade de brincar se expressando. Conectado com o espírito da música esse corpo tanto ginga por dentro como por fora; saracoteia, deixa-se tomar por trejeitos, por negaças, remelexos, balanços, meneios, volteios, suíngues...”. A síncopa “se traduz no corpo e o corpo traduziria o ritmo caso ele fosse dessincompado. É como se no tempo fraco o corpo pudesse exprimir certas sutilezas para as quais o tempo forte não dispõe de duração suficiente. Pois o tempo forte nos prende ao chão enquanto o fraco nos liberta dele: o tempo forte é peso, o tempo fraco é leveza”. Cf. GALVÃO, Walnice Nogueira. Grandeza e encanto de Naturalmente, de Antônio Nóbrega. Disponível em http://www.conectedance.com.br/matéria.php?id=9 60 CARNEIRO, Edson. op. cit., loc., cit. 61 Denominação usada por Carlos Líbano Soares para a capoeira jogada no século XIX. In: A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 2004.

32

lidar com a brutalidade do poder escravista. Segundo Almir das Areias, “a

capoeira surge no Brasil como arma, em função da necessidade do escravo de

se defender dos maltratos e cast igos dos seus opressores e, ao mesmo tempo,

como folguedo, para expressão e manifestação dos seus sent imentos”. 62

Assim, a capoeira era uma prática necessária a um segmento da

população afro -baiana, cada vez mais oprimida e marginalizada. “Às

escondidas, os capoeiras, nos qu intais, nas pra ias, nos terreiros e nos

arredores da c idade, exerc itavam a sua prática e transmit iam os seus

ensinamentos às gerações futuras”. 63 Nessa p rática, tem-se um jogo de corpo

que marca um movimento de res istência, o scilando entre a revolta e o embate

direto às forças da ordem.

Besouro Cordão de Ouro, um heró i da cultura afro -brasileira

Onça preta foi l á em casa/ t um tum tu m bateu na porta/ M e chamou pra conver sar/ Tem u m n ego que é u m touro/ Viaj ando para cá/Usa cord ão d e ouro/ Cal ça chapéu e abadar/ Usa brinco e patuá/ Onça pret a foi lá em casa/ Zu m zu m zum boat o corr e/ É Besouro Mangangá64 Zum, zu m, zu m, Besouro M an gangá Batendo nos soldad os da pol ícia mil i tar Zum, zu m, zu m, Besouro M an gangá Quem não pode com mandinga não carr ega patuá65.

Quem é o herói Besouro? Que narrat iva protagoniza? Em sua

trajetória, não abraçou uma nobre missão, como os heróis das epopéias

cláss icas: r epresentar grand iosamente a sua pátria ou nação ou a humanidade.

Besouro va i compor a galer ia de ou tra tradição, a do heró i popu lar, erguido na

contramão dos valo res de uma cultura hegemônica. Por esse entendimento,

são tidos como ant i-heróis, marginais ou picarescos.

No Ocidente, as narrat ivas sobre os feitos extraordinár ios dos

heróis começam na Grécia, as quais registram histórias de personagens que

62 AREIAS, Almir. O que é capoeira. 1 ed. Brasiliense, São Paulo: 1983, p. 22 63 Id. p.60-61. 64 Cantiga de capoeira identificada por Areias, de autoria de Dado. In. O que é capoeira. p. 55. 65 Cantiga de domínio público.

33

enfrentaram situações desafiadoras de sua condição humana. O herói dessas

narrat ivas é jovem, corajoso e destemido, que vivencia incríveis façanhas.

Assim os heró is são figuras imorta lizadas como semideuses, p ersonagens de

narrat ivas mít icas povoando o imaginário dos ind ivíduos em diferentes

cultu ras. De acordo com Massaud Moisés, até o século XVIII, [ . . . ] grosso modo a épica caracteri zou-se por um tom majestoso e mesmo religioso, e por conter as sublimes façanhas dum herói que simbolizava as grandezas de sua pát ri a e mesmo de toda a Humanidade: num mundo estrat i fi cado, havia lugar certo para o herói . Com o advento do Romantismo e a conseqüente derrubada das carcomidas e tradicionai s estruturas, desaparece o herói e nasce o não-herói ou o anti -herói , pois no mundo novo deixou de haver espaço para as concepções míti cas segundo o antigo figurino. 66

O herói das narrat ivas ocidentais é uma espéc ie de super -homem,

um semi-deus, daí a ambigüidade, o que mantém sua co nd ição humana. Nas

epopéias gregas, o herói ap resenta uma faceta bélica, protagonizando uma

história de conflitos, que tem o seguinte enredo : “a preparação (apresentação

do herói e descrição das armas); o combate (peripécias, espectadores,

proezas); o desenlace vito rioso (despojos, injúria aos cadáveres inimigos,

jogos fúnebres)”. 67

Besouro, herói de extração popular, é protagonista da epopéia

dolorosa dos negros no Brasil, tornando-se um personagem da história que va i

alimentar, ainda hoje, muitas narrativas sobre suas aventuras. O capoeirista

rasura a noção de herói como a elaborada por uma conceituação tradicional do

gênero épico, vindo simbolizar a rebeldia dos negros, como resposta ao

sistema escravocrata no país.

O enfrentamento dos negros escravizados ao s istema dominante

sempre foi vigiado, controlado, objeto de punições severas, se ja através de

cód igos criados pelos senhores escravistas, seja através de leis elaboradas

pelo campo ju rídico, que inc lusive dá respaldo àqueles códigos. Em seu

estudo acerca do papel dos negros na desagregação da ordem escravista no

66 MASSAUD, Moisés. A criação literária. 4 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1971, p. 70. 67 Cf. E-Dicionário de Termos Literários. http://www2.fcsh.unl.pt/edtl//verbetes/H/heroi.htm. Acesso em 01/05/2010.

34

Brasil, a historiadora Lane Lage Lima ana lisa a aliança entre a campanha

abo licionista e a rebeldia negra. 68

Para a auto ra, a insurreição “const itui a resposta do escravo à

violência do s istema de dominação imposto pelo branco. Vio lênc ia traduzida

por precárias condições de subsistênc ia, aliadas à compulsão a um trabalho

extenuante e a lienador, através de mecanismos de coerção particularmente

violentos e legitimados, legal e ideologicamente, na consc iênc ia do senhor”. 69

A autora constata os limites dessa rebeldia, como suas

possib ilidades. Limitada, porque “não se abrem para o escravo perspectivas

de atuação política dentro do sistema, que condena o negro rebelde à

marginalidade e à vio lência sem expressão social”, como se apresentam

“dificuldades mater iais de mobilização de uma classe constantemente

vigiada” e, sobretudo, “impossib ilidade de o escravo at ingir uma

consc ient ização mais ampla de s i mesmo e do sistema que o oprime”. 70

Porém, dois fatores vão possibil i tar ao negro ultrapassar os l imites dessa rebeldia fechada em si mesma. Em primeir o lugar, a preservação da rel igião e cultura a fr icanas; na medida em que não só aglutinam e organizam os negros pela reprodução de hierarquias transplantadas da África, mas, principalmente, permitem-lhes autoconceberem-se como pessoas, dotadas de individualidade própria , fora do sis t ema escravista, que passa a s er vis to, de forma globalizante, como um todo cultural que lhe é hosti l . E , em segundo lugar, o aproveitamento das conturbações sociais surgidas nos momentos de crise do s is tema, quando os negros canalizam sua revolta para os movimentos revolucionários que agitam esses períodos, como forma,

68 LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia negra & abolicionismo. Rio de Janeiro: s/d. A pesquisadora elenca os movimentos de insurreição no país, principalmente os ocorridos no século XIX, momento em que o sistema escravocrata apresenta sinais de crise, isto é, quando o trabalho escravo inviabiliza a expansão do capitalismo. A autora destaca a rebeldia do negro em movimentos de cunho político, como a Conspiração dos Alfaiates, na Bahia, em 1798, a Cabanagem, no Pará, a Balaiada, no Maranhão, a Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, a Sabinada, na Bahia, no século XIX, e de cunho religioso, como as insurreições dos Malês, na Bahia, também no século XIX. 69 Idem, p. 153. 70 Id. p. 154. Segundo a autora, esses limites, “por sua vez, são determinados pela estrutura de produção brasileira, que, ao integrar a produção para mercado à de subsistência, alia num só núcleo o lar e a empresa, permeando com relações pessoais as relações de produção”. De acordo com Lana Lima, nas relações pessoais, senhor e escravo, de base patriarcal, no âmbito da esfera privada, o negro se percebe em sua condição humana, enquanto pelas relações econômicas, patrão e empregado, é colocado como instrumento de produção, portanto, coisificado, o que conduz o escravo a “auto-representar-se como não pessoa, destituído de vontade própria, posto que submetido ao arbítrio do senhor”. Isso limita “no escravo a capacidade de identificar o sentido real das relações de produção do sistema escravista, percebido apenas do ângulo particular, vivenciado no cotidiano da fazenda. Assim, a atuação divergente do negro restringe-se à revolta parcial e imediatista contra as situações de opressão que povoam o seu dia-a-dia”. Cf. LIMA, loc. cit.

35

consciente ou não, de ampliar suas possibil idades de expressão social . 71

A preservação da religião e cu ltu ra africanas possib ilita aos negros

uma integração entre s i. A p rática da religião do candomblé, trazido ao Brasil

pelos sacerdotes afr icanos escravizados, assegura a permanência do idioma e

da cultura dos negros. No candomblé, são cultuados os deuses – orixás,

voduns, inqu ices –, preservados em rituais sagrados, com vestimentas

próprias, danças, cânt icos, o ferendas, homenagens, integrando -se à vida

cotid iana, a despeito da proib ição estabelecida pela Igreja Cató lica ou

governantes. 72

Para Lana Lima, é no século XIX que a ampliação das

possib ilidades de expressão social dos negros alcança seu limite máximo, com

o movimento abo lic ionis ta, que “absorve, funcionando como agente

catalizador, uma rebeldia sempre manifesta”, com a promessa de um mundo

diferente da marginalidade em que viviam.

Mas, ao alia r-se à rebeldia negra, uti l izando-a para pressionar e desgastar o s is t ema [escravocrata], o abolicionismo impõe-l he seus próprios l imites , enquanto ideologia nascida de int eresses especí fi cos, que depois da abolição o negro percebe não coincidirem exatamente com os seus. Trans formadas as relações de produção, não se modi fi ca o lugar ocupado pelo negro no processo produtivo, e desfeitas as al i anças, seu comportament o divergente vai s er novamente relegado a mera questão policial . 73

Nasc ido no contexto de pós-abolição, tempo de alianças desfe itas,

portanto, o capoeir ista Besouro const itui-se, enquanto su jeito, num ambiente

quilombola, de negros rebeldes à dominação, preservando a religião do

candomblé, que se expande com a abolição da escravatura, bem como a

cultu ra africana. Ainda menino, conhece o mestre Alíp io, que lhe transmite,

na prática, os ensinamentos da capoeira, uma arte, um fazer que se aprimora

incorporando a religiosidade – de “religare”, ou seja, l igar de novo –, de

integração ao mundo de seus ancestrais . Para tanto, crenças e va lores da

71 Id. p. 154-155. 72 Informações disponíveis em: http://www.turismoreligioso.org.br/system=news&action=read&id=88. 73 Id. p. 155.

36

religião do candomblé vão const itu ir o ethos dos capoeiristas, com rituais

próprios e princípios ét icos.

Os capoeiras não presc indiam de suas crenças, da proteção e

orientação de seus orixás, do atendimento a suas qu izilas, pois aprenderam,

com o so frimento, os limites da co ndição humana. O capoeirista Besouro,

protegido de Ogum, deve atender as suas quizilas – como não passar po r

baixo de cerca de arame farpado , não ter relações sexuais em dia de jogo –,

respeitar as proibições de seu santo e cumprir suas obrigações (o brigações

dizem respeito às cer imônias internas, a serem cumpridas pelo “iniciado”,

preparadas para o seu orixá) . Caso contrár io, so frerá punições. 74

Assim, Besouro encontra forças e alt ivez para quest ionar uma

estrutura socia l perversa, jogando capoeira, lu tando , zombando, como um

herói pícaro, do mundo da ordem senhoria l, const ituído de mentalidade

escravocrata, mesmo com a Abolição. Em sua rebeldia, valent ia e ginga

aprimorada, ele vai se to rnando conhecido e reconhecido, principalmente no

universo da capoeira.

Segu ndo Abib, “no imaginár io da capoeiragem e dos capoeiras não

existe f igura mais expressiva e representat iva do que Besouro Mangangá”. 75

Ainda com o autor, a fama e a admiração nu tridas pela memória co let iva

sobre as façanhas e p roezas de mitos como Besouro Mangangá, de certa

forma, explicam a insistênc ia de alguns mestres em marcar sua ligação com

esses mito s, a exemplo de Cobrinha Verde, que diz ter começado a capoeira

com Besouro aos quatro anos de idade.

Segu ndo Cobrinha, “Besouro ensinava capoeira aos alunos

escondido da polícia, porque a polícia persegu ia muito . No dia que estava

aperriado quando a polícia vinha para acabar, e le se revoltava, mandava os

alunos fugirem e dava testa a po lícia sozinho”. 76 Ainda, “quando Besouro

74 Quizilas são proibições rituais, referentes a alimentação, mas não se restringem a ela; dizem respeito também a ações cotidianas. A desobediência à quizila de um santo provocará sanções. Cada um deles tem suas preferências e repulsas e desobedecê-las significa tornar-se suscetível a sanções. São as chamadas quizilas de santo, que é tudo aquilo que o orixá rejeita, causando uma reação negativa que atinge as pessoas. De acordo com o antropólogo Vilson Caetano, toda “iniciação ao candomblé passa por tabus alimentares. As quizilas são proibições rituais que têm uma única função: lembrar ao iniciado a sua relação com aquele ancestral. Seguir essas restrições é uma forma de reforçar a identidade com o seu orixá”, explica o antropólogo. Disponível em http://www.iroin.org.br/onl/clip.php?sec=clip&id=326. Acesso em 22/05/2010. 75 ABIB, Pedro. Capoeira angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. p. 160. 76ABIB. op.cit. p. 163. apud SANTOS, Marcelino dos. Capoeira e mandingas: Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos. Salvador: A Rasteira, 1991.

37

ensinava aos seus discípulos e via que o aluno estava preparado, testava o

aprendiz, fechando-se em uma sala com o d iscípulo, para o qual diz ia : ‘vamos

trocar facas com uma toalha amarrada na c intura dos dois, p ra um não fugir

do outro ’.77

Também o mestre João Pequeno de Past inha afirma que, desde

menino, queria aprender capoeira para ser “valentão” como Besouro. 78 Esse

capoeirista endossa uma visão mit ificada de Mangangá, dotado de poderes

sobrenaturais, ao afirmar que seu pai, primo do capoeirista santoamarense

Cordão de Ouro, lhe contava histórias sobre ele, que tinha o poder de se

esconder de alguém, to rnar- se invisíve l, em qualquer lugar, a a lgumas

pessoas.

Abib menciona que João Pequeno diz ia ser o seu pai, assim como

Besouro, “preparado” de oração e revest ido do poder de se tornar invisíve l:

“Ele andando assim, num caminho e quando avistava uma pessoa que ele não

queria que visse e le, a pessoa não via mesmo não”. 79 Segundo o estudioso, tal

“fenômeno” “revela muito do ethos dos capoeiras de ant igamente e mesmo

dos capoeiras de ho je - por mais que se evitem ta is comparações, quando se

busca associar a capoeira com valores mais ace itos socia lmente”. 80

Para Josef Campbell, o herói “é o homem ou mulher que conseguiu

vencer as suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas

verdadeiramente válidas, humanas”. 81 Nesse sent ido, os fe itos e atr ibutos de

Besouro Mangangá, guardados na memória dos mais velhos e renovados por

uma tradição oral, vão construir a f igura do herói, assim como o seu apelido,

“Besouro Mangangá”, que s imboliza a sua história de luta e res istência. José

Raimundo Când ido apresenta uma explicação para essa a lcun ha:

Quanto ao apelido “Besouro Mangangá”, conta -se que surgi u quando, após arrumar mais uma encrenca com a polícia, desapareceu misteriosamente. Atordoado, um policial perguntou para um dos que assis t iram à cena: “Você viu prá onde foi aquele negro?” “Vi, sim senhor. Ele virou besouro e

77 Cf. SANTOS, Marcelino dos. Capoeira e mandingas: Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos. Salvador: A Rasteira, 1991. apud ABIB. op. cit. p. 163. 78 .Id. p. 163-164. 79 Id. p. 164. 80 Id. p. 164-165. 81 CAMPBELL, Josef. O herói de mil faces. Trad. Adail Ubirajara Sobral. 11 reimp. da 1 ed. de 1989. São Paulo: Pensamento, 2007. p. 28.

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saiu voando. “Mangangá” é um tipo de besouro cuja picada é muito perigosa e às vezes fatal . 82

As tess ituras que compõem a biografia de Besouro, da o rigem do

seu epíteto às suas façanhas, constituem-se por uma aliança entre real e

imaginár io num texto f icciona l, num processo de “seleção” e “combinação”

dos elementos textua is, reais e imaginários. No processo de heroic ização

destacam-se os feitos de Besouro Mangangá, com suas fugas espetacu lares,

sem deixar vestígios. Adroaldo Ribeiro Costa, jo rnalista baiano, em texto

pub licado no jo rnal A Tarde, em 1951, relata uma dessas fugas, p resenciada

por seu pai:

Na margem do rio Subaé, Manuel Henrique se viu cercado por oito praças armados com sabres. Ele se desvencilhava dos golpes com seu gingado de capoeiris t a e, de vez em quando gri tava: ‘Vou t irar s eu quepe, macaco!’ ia l á e t irava o quepe do soldado, s em o menor ferimento. Até que a certa al tura, acuado na ponte, subiu no parapeito, deu um salto mortal e mergulhou no rio, sob os aplausos da multidão que já se havi a aglomerado. 83

Também João Moniz em artigo publicado em 1949, citado por

Adriana Jacob, descreve Besouro Mangangá como sendo

dono de uma coragem pessoal que parecia loucura, talvez pela certeza de ser imbatível , e revela que ele gostava de ‘bulir ’ com a polícia. Não raro, descreve, ‘explodia um turundundum em frente à cadeia velha’, s i tuada no rés do chão da Casa da Câmara de Santo Amaro. Era Besouro que noite velha, havi a acordado o destacamento para um brinquedo, que s e prolongava em correrias e t i ros, e de que ele saía i l eso e s empre sorrindo, como entrava. 84

A co ragem e a invencibilidade de Besouro Mangangá são atr ibu tos

recorrentes na co nstrução da imagem desse herói pelo imaginár io popular,

t ido como marginal, um desordeiro, pelas elites e o Estado republicano. Para

Pedro Abib,

82SILVA, José Raimundo Cândido da. Besouro Mangangá. Zumbidos Da Resistência. Irohin – jornal on-line. ed. 19. Disponível em http//www.irohin.org.br/. Acesso em 26/07/2009. 83 COSTA, Adroaldo Ribeiro,apud JACOB, Adriana. op. cit.; p. 5. 84 MONIZ João. apud JACOB, Adriana. id. p. 5. A jornalista cita o artigo de João Muniz, traz os comentários do autor, mas não informa o periódico de publicação.

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Besouro reúne um pouco daquilo que poder ia ser considerado atributo do herói marginal , um mito que povoa o imaginário dos capoeiras , assim como Pedro Malasartes e João Grilo, malandros definidos por suas trajetórias tortuosas, que, a exemplo de Besouro, também povoam a consciência popular. 85

O temido Besouro Mangangá trabalhou para o coronel José Antônio

Rodrigues Teixeira, “Zeca Teixe ira”, então proprietário do Engenho Santo

Antônio do Rio Fundo . Nesse local, o capoeirista passa os últ imos anos da sua

vida, quando aí chegou pedindo proteção, fugido da polícia por desacato a um

polic ial c ivil em uma delegac ia na capital baiana. Na época, 1918 , Besouro

fez praça no Exército Brasileiro, conforme Vasconce los e Adriana Jacob , que

compara o “valente” capoeir ista a Lampião , o “rei do cangaço”. 86

Segu ndo Adriana Jacob, “sua fama cruzou os limites do recôncavo,

chegou à capital baiana, ao restante do país e alcançou os quatro cantos do

mundo”.87 A jornalista ressa lta que hoje não há nome mais cantado nas rodas

de capoeira: inspirou a música Lapinha , de Baden Powell e Paulo César

Pinhe iro , vencedora do Festival de Música da TV Record, na voz da cantora

Elis Regina, com um refrão que enaltece Besouro Mangangá:

Quando eu morrer me enterre na Lapinha Quando eu morrer me enterre na Lapinha Calça, culote, pali tó almofadinha Calça, culote, pali tó almofadinha Adeus Bahia, zum-zum-zum Cordão de ouro Eu vou part ir porque mataram meu besouro 88

Ao tratar da const itu ição heróica e mít ica do capoeirista Mangangá,

Vasconcelos o associa aos heróis o limpianos, imorta is, que apenas cumprem

um ritual de passagem e, ao mesmo tempo, estendem a própria morte ao

constante reiníc io, 89 ao terem seus feitos narrados, descritos ou reinventados

através de diferentes gêneros textuais.

Os relatos produzidos em to rno de Besouro o tornam uma figura

lendár ia, cercada de mistér ios, alguns, t idos como su rreais. O ep isódio 85 ABIB, Pedro. op. cit. p. 161. 86 Nessa reportagem, a jornalista ressalta o caráter heróico e mítico desse capoeirista. In. JACOB, Adriana. O Lampião da capoeira. Correio da Bahia. p. 3-7. 06/06/2004. 87 op. cit.; p. 3. 88 Disponível em: http://letras.terra.com.br/mariana-leporace/1245717.Acesso em 07/01/2009. 89 VASCONCELOS, José Gerardo de. op.cit.; p. 24.

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conhecido como o “do Largo da Cruz” é considerado um marco do heroísmo

de Besouro, envolvendo o cabo José da Costa e seus dez soldados, os quais

tinham uma missão quase impossível, tendo em vista a sagac idade de

Besouro: prendê-lo vivo ou morto , acusado de obrigar um soldado a beber

vários litros de aguardente, uma beb ida alcoólica.

[. . . ]Quando ouviu os gri tos e s e virou, Manoel Henrique vi u diante de si os 11 homens, agora com olhares sedentos de vingança, com armas empunhadas, prontos a at irar. Só t eve tempo de, encostado na cruz de madei ra, abri r os b raços, numa ent rega destemida à execução, corajoso até o fim. Não s e ouviu nem mesmo a respiração das almas vivas quando abrira m fogo sobre aquele que era o homem mais temido de todo o recôncavo, o único capaz de esvazia r ruas e fei ras pelo simples mencionar de seu nome. Besouro Mangangá jazia no chão do Largo da Cruz. Mas qual não foi a surpresa quando os praças se aproximaram e viram Manoel se l evantar, tão vivo quant o antes , e correr, em movimentos ágeis , pelo beco que l eva à ponte do Xaréu. Sem hesita r, pulou da pon te, fazendo quas e um vôo, e fugiu pelo mato. Atrás de si , deixou policiais co m uma expressão mista de raiva e surpresa e um povo, que cada vez mais , se convencia de que estava diante não apenas do melhor e mais t emido capoei ris ta de todos os t empos, o único com coragem suficiente para – mais do que enfrentar – at é debochar da polícia. 90

Nesse relato, destaca-se a invencibilidade do herói, homem de

movimentos ágeis, salto espetacu lar , “quase um voo”. Besouro, o “melhor e

mais temido capoeir ista de todos os tempos”, é aplaudido sobretudo por

desdenhar da le i, ao “debochar da polícia”, tornar -se mito, decorrente de um

processo de ident ificação.

Em todas as épocas e sob vár ias formas, os mitos realizam

operações que transportam os ind ivíduos ao tempo e ao mundo imaginár io das

“origens” em que os seres e as razões da cr iação do existente t iveram lugar,

foram estabelecidos. Logo, o homem é considerado centro da sua própria

existência e do seu mundo e, como mito, desloca-se para fora da história de

sua própria hominização , pondo em seu lugar a ação da natureza, dos seres

sobrenaturais, das forças mágicas. 90Cf. JACOB, Adriana. O Lampião da Capoeira. Correio da Bahia. 06/06/2004. p. 3-7. Esse episódio foi relatado à repórter por Aloísio Lima, conhecido no distrito de Maracangalha como “Seu Belo”. À época da publicação dessa matéria, Aloísio Lima estava com 92 anos de idade e declarou ainda ter visto a cruz de madeira na qual Besouro se “escorou”, ou seja, se apoiou e hoje não existe mais, cravejada de balas.

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Besouro Mangangá: um herói de corpo fechado

Eu sou Besouro Preto/ Besouro de Man gangá/ Ando com o corpo fech ad o/ Carrego meu patuá/ Quem é você que acaba d e chegar 91

Os poderes sobrenaturais atr ibuídos a Besouro Mangangá, um herói

negro , advêm da crença de que todo capoeir ista tem o “corpo fechado”, o que

contribu i para a construção desse mito. No candomblé, ter o corpo fechado

significa ser protegido por uma ent idade dessa re ligião . Em Jogo da

capoeira , Caribé info rma o segu inte: ( . . . ) nomes l egendários surgiram; homens que t inham o corpo fechado às balas, às armas brancas e que desafiavam pelotões intei ros da polícia, homens que t inham trato com mandinga, patuás poderosos; que vi ravam o pé no mato nas horas de apert o e depois apareciam em Cachoei ra e Santo Amaro. Homens que desafiavam qualquer ci l ada ou cerco a golpes de rabo de a rraia, rastei ras e cabeçadas, nomes fica ram na história dos valentes da capoeira. 92

O autor destaca aspectos importantes da capoeiragem “malandra” do

início do século XX no Recôncavo Baiano: o capoeirista deve ter o corpo

fechado e ser mandingueiro, para assegurar sua força e invencibilidade.

Besouro tinha o “corpo fechado” por ser f ilho de Ogum e Oxossi, ent idades

do candomblé, que protegiam esse capoeirista, tornando -o invulnerável a

qualquer tipo de instrumento de meta l. Em entrevista à Adriana Jacob, Dona

Cic i do Ilê Axé Opô Aganju afirma que Besouro era “preparado” através da

“mand inga”, por isso, t inha o corpo fechado.93 De acordo com Adriana Dias, a

mandinga é (. . . ) uma característ i ca essencial da capoeira. Em Salvador, desde o século XIX, a palavra mandinga era usada como sinônimo de capoei ra. Considerada uma das principais arma s de defesa e ataque dos seus prati cantes, el a pode ser observada no j ei to de corpo do jogador, nas expres sões faciais , nos golpes apli cados e celebrada ou invocada em muita músicas

91 Letra da canção Besouro Preto, do compositor Olho de Gato. Disponível em: http://vagalume.uol.com.br/abada-capoeira/besouro-preto.html. Acesso em 07/09/2009. 92 CARIBÉ, op. cit. Mais uma vez, ressalto que a professora Zilda Paim retoma o trabalho desse artista e utiliza essa passagem no seu livro Relicário popular. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo. EGBA: 1999. op. cit. p.47, mas opto em privilegiar a data mais antiga de publicação. 93 Matéria publicada em 06/06/ 2004, p. 6, intitulada O Lampião da capoeira.

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cantadas nas rodas. Atualmente o bom capoei ra é o indivíduo mandingueiro que sabe dis farçar, enganar o adversário, que ganha o jogo através da esperteza da “arte da fals idade”, do fingimento. 94

Para os capoeir istas, ter o corpo fechado era uma forma de se

proteger dos perigos, e, no caso de Besouro, outros preceitos deviam ser

observados: “não podia passar embaixo de cerca de arame farpado e nem ter

relações sexuais em dia de jo go”.95 Segundo Pedro Abib, ter o “corpo

fechado” foi sempre uma crença no universo mítico da capoeira. 96 O auto r

também destaca o aspecto mágico e mister ioso, conhecido no universo da

capoeiragem como “mand inga”, considerado por esse estud ioso outro traço

fundamental do ethos da capoeira ango la, já Adriana Dias ana lisa a forte

relação dos capoeiristas com o candomblé, uma “família cu ltural” :

capoeiristas, batuqueiros, sambistas e candomblezeiros, eram, segundo a

pesqu isadora, aqui apoiada em Mestre Pastinha, tudo “coisa de preto , de

escravo”. 97

Ainda segundo Abib, citando Waldeloir Rego, a provável origem da

expressão “mandinga” vem do fato de que, entre os afr icanos traz idos para o

Brasil, havia a crença de que na região Mandinga, na Áfr ica Ocidental,

banhada pelos r ios Níger, Senegal e Gâmbia habitavam muitos fe it iceiros. 98

Abib destaca o depoimento do mestre Valdemar da Liberdade, para

o qual os mestres daquele tempo “tinham muita mandinga, viravam folha,

94 DIAS, Adriana Albert. Mandinga, Manha & Malícia.op. cit.; p. 17. 95Cf. entrevista de Zilda Paim na matéria O Lampião da Capoeira. Correio Da Bahia. p. 3-7. Jun/ 2004. Na religião do candomblé, há uma lenda sobre a disputa entre Nana, uma das orixás mais antigas, e Ogum, o criador dos metais, proprietário do chumbo, ferro e cobre. Segundo a lenda, Nanã não reconhece a superioridade de Ogum ao declarar que não usaria mais nada fabricado por Ogum e, mesmo assim, tudo poderia realizar. Por isso, os filhos de Nanã não usam faca de metal para sacrificar um animal, mas um pedaço de madeira afiado, em forma de faca, evocando, assim, a disputa entre Ogum e Nanã. Cf. ATOTÔ. Cartilha de prevenção as DST/AIDS dirigida aos participantes dos cultos afro-brasileiros. Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco Diretoria de Epidemiologia e Vigilância Sanitária Programa Estadual de DST/AIDS. 2001. 96 ABIB, op. cit. p. 190. 97 Segundo Pastinha, citado por Adriana Dias, o capoeirista “[...] vem da mesma religião que vem o candomblé, tem um batuque, tem um samba, ela tem a mesma parcela, é da mesma parcela. Agora com uma modificação, um pouquinho diferente, o manifesto é um pouquinho diferente, mas a parcela é a mesma, [...]. O capoeirista é o mesmo feiticeiro, mas ele abandona uma parte por outra. Nós acompanhamos o feiticismo, nós acompanhamos o candomblé, se fosse assim, nós não iria em casa de candomblé, nós não ia, mas nós somos [...] e da mesma parcela [...]. Agora um que gosta mais de uma finalidade do que da outra [...]. Um corre mais pra o capoeirismo e outro corre para o feiticismo. Cf. DIAS, 2006. Segundo a autora, a entrevista foi realizada em 1964 por uma antropóloga da Finlândia, cujo nome não foi identificado, na academia de Mestre Pastinha, Pelourinho, Salvador. Ainda informa que o texto na íntegra encontra-se no acervo particular do pesquisador sobre capoeira, Frederico José de Abreu. 98 Id. p. 190.

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viravam bicho. Aquilo era p róprio para baru lho. Besouro era um grande

capoeirista, mas tudo debaixo da oração”.99 O autor conclu i a firmando que “a

mandinga de Besouro Mangangá – que, segundo Mestre Bimba, ‘era capaiz d i

sartá d i costa i caí de vórta dentro dus chinélu ’ –, de mestre Noronha e de

tantos outros capoeiras antigos, considerados ‘mand ingueiros’ e que povoam

o imaginário popular de Sa lvador e do Recôncavo , está além das ‘qualidades’

de desordeiros e va lentões”.100

Ao tratar da arte da mandinga e do preceito do “corpo fechado”,

Adriana Dias co loca que “no passado a mandinga ou a arte da fals idade e da

malíc ia era talvez a principa l arma do capoeira, e chegava a se sobrepor à

força fí s ica”. Logo, a malíc ia era espec ial por fazer parte do jogo de corpo do

capoeira. Para a autora, entre os capoeiristas, “mandinga” se referia “tanto

aos poderes mágicos de alguns deles, como também se fundia com a idéia de

malandragem, no sentido de arte da esperteza, da malíc ia e da trucagem”. 101

A mand inga faz parte do jogo da capoeira, a marcar um estilo

r ítmico, segundo Muniz Sodré: O esti lo rí tmico do jogo não se confunde, ent retanto, com o esti lo individual do jogador. Este se define inicialmente pela ginga, o balanço incessante e manei roso do corpo, que faz com que se esquive e dance ao mesmo tempo, tudo isso comportando uma mandinga ( fei t içaria, encantamento, malícia ) de gestos, firulas, sorrisos, capazes de desviar o adversário de seu caminho previsto, is to é, de seduzi-lo. 102

Nas histó rias sobre Besouro, todas apresentam o componente

mítico -religioso , aqui entendido como elemento agregador da arte da

malandragem, da mand inga e magia. As histórias sobre Besouro Cordão de

Ouro contribuem para se compreender o contexto soc iocu ltural da Bahia no

início da Primeira República, época em que a vida de muitos desses homens

“estava sempre em perigo , em função do meio social em que viviam, das

brigas em que se envo lviam, da persegu ição polic ia l e das arr iscadas rodas de

99 ABIB, op. cit. p.196. 100 Id. p. 190-191. 101 DIAS, Adriana. op. cit., p. 156-157. 102 SODRÉ. op. cit. p. 154. Grifo do autor.

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capoeira de rua e como não eram indivíduos muito confiáveis t inham uma

grande preocupação em ter o ‘corpo fechado’”. 103 Para Adriana Dias,

não era à toa que os capoei ras antigos não i am a uma roda de capoeira de corpo aberto, s em proteção. Como explicou Mestr e Gigante, el es eram homens “preparados,” t inham “preceitos”, ou seja, além de andarem armados, s erem espertos e s e garantirem no jogo de perna, também faziam tatuagens, conheciam rezas fortes de “São Salomão e São Cipriano”, carregavam patuá e preparavam mand inga para se protegere m de qualquer “maldade”, real ou imaginária, no jogo de capoeira e da vida 104

Tais preceitos são produzidos na esfera da re ligiosidade, com

superstições e crend ices.

O universo das superst ições dos capoei ras talvez explique porque alguns deles usavam a palavra ‘mandinga’ como sinônimo de capoeira. Nesta época, o fei t iço era vis to como algo maléfico e amedrontava muitas pessoas; as ‘maldades ’ dos capoei ras também assustavam e realmente podiam causar o mal a outrem. A ‘falsidade’ do capoeira estava associada tant o às pequenas perversidades do jogo, quanto aos fei t iços que alguns costumavam preparar para vencer ou derrubar o adversário”. 105

Forte protetora de Besouro, a “mandinga” também foi ut ilizada

contra esse herói, crença repet ida nos relatos analisados, expondo a sua

vulnerabilidade. Em Santugri , tem-se um relato da emboscada contra o

capoeirista santoamarense, f ilho de Ogum, o qual não escapou da sua

condição de humano:

O mestre morreu? Bem, nesta t erra finou, s im, camarada. Vi tudo – as traições, as covardias , tudo. Primei ro o fogo dos morcegos, mas ele não foi sequer tocado. Que nem mangangá, no rumo do vento, escapuliu das balas . Na pressa deu as costas a Eusébio da Quibaca, pau mandado de fazendei ro, que o at ingiu com uma faca [. . . ] fi lho i lustre de Ogum não ia morre r pelo fer ro. Mas com a lâmina da palmei ra, á rvore de mistério, foi feio o corte, foi coisa fatal [. . . ] . 106

103 DIAS, Adriana. op. cit. p. 151. 104 Id. p. 154. 105 Id. p.159. 106 SODRÉ, Muniz. Santugri: histórias de mandinga e capoeiragem. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.p.23

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Besouro Mangangá, e ou tros capoeiras ou tipos malandros como

eram c lassif icados, transforma um período da capoeiragem baiana, conforme

seus estudiosos, protagonizando histórias const itutivas de um mito da cultura

afro-baiana. Para Mircea Eliade, “o mito é considerado uma história

verdadeira porque se refere a rea lidades”. 107 Quest ionando se seria possível

encontrar uma única definição capaz de cobrir todos os tipos e as funções do

mito, em qualquer sociedade, se ja arcaica, seja trad ic iona l, E liade conclu i

afirmando que o mito é uma realidade cultural e é a narrat iva de uma cr iação,

do modo pelo qual a lgo foi produzido e começou a ser. 108 Ainda, “toda

história mít ica que relata a origem de alguma coisa pressupõe e prolonga a

cosmogonia”.109

De acordo com Gerardo Vasconcelos, a p reservação de algu ns mitos

e símbolos, quase esquecidos pela Histór ia oficia l, ocorre não só pela tradição

oral, como também por parte da lite ratura.110 Enquanto nos discursos

produzidos pelas e lites do país os capoeiristas são desqualif icados, uma

memória oral cuidou de preservar a imagem de um homem que pôs em xeque

um regime vigente no país, como também transgred iu os valores e regras de

uma sociedade escravocrata. Assim, a nar rativa mít ica sobre Besouro Cordão

de Ouro é tec ida com os fios dos textos da cultura afro -baiana, marcada pela

oralidade, por sujeitos com modos próprios de viver, sent ir e pensar o seu

estar no mundo.

Como todo heró i, Besouro tem um ponto vulneráve l, por isso não

pôde escapar de uma “lâmina de palmeira” – a “faca de ticum” –, e sua morte

vem selar a constitu ição de um mito. As histórias então recr iadas tendem a

exa ltar a sua irreverênc ia, frente a diversas s ituações, o que revela a sua

singularidade e o transfo rmam em heró i e mito . Ao entreter com a malícia e a

sincopa os adversários, Besouro Mangangá leva a reflexões sobre um período

da história do país, const ituída também de histórias da capoeiragem no

Recô ncavo e na Bahia.

107 ELIADE, Mircea. Mito e realidade. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1991. p. 12. 108 Cf. ELIADE, Mircea. op. cit. p. 10. 109 ELIADE, Mircea. op. cit. p. 26. 110 VASCONCELOS, José Gerardo. op. cit. p.25.

tc

Fonte: CARNEIRO, Edison - Caderno de Folclore 1 – Capoeira, 1977

46

3 OS “VOOS” DE BESOURO NA LITERATURA DE CORDEL

O encontro de Besouro com o valentão Doze Homens e A valentia

justiceira de Besouro , do poeta baiano Antônio Vieira, bem como Histórias e

bravuras de Besouro o va lente capoeira , do poeta e capoeirista carioca Victor

Alvim Itahim Garcia, são produções textuais inser idas no gênero literatura de

cordel, modalidade narrat iva atr ibuída à chamada cultura popular.

A literatu ra de cordel é um gênero muito cultivado na região

Nordeste do país, passando por modulações que atestam sua sobrevivência,

em meio às inovações tecno lógicas que afetaram as publicações. Tal gênero,

conforme estudiosos, tem datada a sua marca: f inal do século XIX e f inal da

década de 1920.111 Segundo Márcia Abreu, “a literatura de folhetos nordestina

apresenta- se como peça importante para a ve iculação do panorama cultural do

rural que se d ireciona às cidades próximas e aos grandes centros urbanos”.

Destaca : No final dos anos oitocentos, parte do universo poético das cantorias começa a ganhar forma impressa, guardando ent retanto fortes marcas de oralidade. Não se sabe quem foi o primeiro autor a imprimir seus poemas, mas seguramente, Leandro Gomes de Barros foi o responsável pelo início da publicação sist emática. Em folheto editado em 1907, el e a firmava escrever poemas desde 1889. 112

111 ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas. São Paulo. Mercado de Letras. 1999, p. 19. Para a autora, a denominação “cordel” prende-se ao fato de os folhetos serem expostos ao público pendurados em cordéis ou, como diz Nicolau Tolentino, em “O bilhar”, “a cavalo num barbante”. Em suas pesquisas, Abreu pode verificar que os primeiros poetas costumavam anotar suas composições em tiras de papel ou em cadernos como forma de registro de seus poemas, sem intenção de editá-los. Acredita-se que muitos rejeitavam a publicação para deixar os seus textos exclusivamente para apresentações orais, e um número considerável de poetas fizeram da poesia único meio de sobrevivência, o que salienta o poder social desses versos: “Os livrinhos poderiam também ser encomendados pelo correio, ou comprados em livrarias, como a pequena loja de livros usados e folhetos aberta por Francisco das Chagas Batista, em 1911. Entretanto, grande parte do comércio era realizado em viagens feitas pelos autores ou por revendedores, percorrendo fazendas e vilarejos, vendendo trabalhos próprios e de colegas, distribuindo folhetos tanto pelas cidades quanto na região agrícola”. Id. p. 92. 112 Id. p. 91. No que tange à feitura dos folhetos, segundo Antônio A. Arantes, dividem-se com relação ao estilo e ao tamanho, escritos em sextilhas ou em septilhas, embora haja exceção à regra. Classes de cordéis como discussão, peleja e embolada são escritas segundos padrões próprios às várias modalidades de desafio improvisado de que derivam. O bendito se diferencia da oração por ser rimado e, consequentemente, próprio para se cantar. As canções são compostas de acordo com outros padrões métricos. [...] Na banca do folheteiro, em sua “maleta” ou mesmo nas folheterias, os folhetos são dispostos de acordo com o que se chama “tamanho”. Os folhetos, sempre impressos in quarto, são, por sua vez, arrumados conforme número de páginas. Há três categorias: “folheto pequeno”, usualmente de 8 páginas, mas inclui os de 4 a 12 páginas, e “folheto grande”, subdividido em duas categorias: “os folhetos de 16 páginas”, também chamados “meio-romance, unindo os de 24 a 48 páginas. Alguns romances são impressos em dois ou mais volumes.Cf. ARANTES, Antonio A. O Trabalho e a fala. (estudo antropológico sobre os folhetos de cordel). São Paulo: Editora Kairós/FUNCAMP, 1982. p. 53.

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Para Márcia Abreu ,

[. . . ] a fixação da forma impressa não eliminou a oralidade como referência para essas composições. Os poetas populares nordestinos escrevem como se est ivessem contando uma históri a em voz alt a. O público, mesmo quando a lê, prefigura um narrador oral , cuja voz se pode ouvir. Desta forma as exigências pert inentes às composições orais permanecem, mesmo quando s e trata de um texto escri to. Portanto, pode-se entender a l i t eratura de folhetos nordestina como mediadora ent re o oral e o escri to. 113

De acordo com Doralice Alcoforado, a literatura de cordel, “como

uma expressão popular da cultura brasileira, retrata a memória armazenada e

o registro comunitário do imaginár io do Nordeste, levado para outras regiões

através da diáspora nordestina”. Na passagem do oral ao escr ito , acrescenta,

“o verso , que preserva e explora de forma mais expressiva o ritmo, a r ima, as

pausas, recursos diretamente relacionados à dicção vocal, ao ser substituído

pela prosa, molda-se, através da capacidade narrativa do contador, a uma

dicção mais próxima do contar, das conversas em roda de amigos”. 114

Para a autora, a “transição de um mundo oralmente configurado,

ouvido e compartilhado de forma comunitár ia, para um mundo lido em

silêncio e a sós” tem registro em Homero, “cujos poemas seguem regras

formulares característ icas da composição o ral, documentando o início dessa

parceria oral/escr ito”. Segundo Alcoforado, tal parceria se consolida com a

“c irculação mais ampla do texto impresso”, em decorrência da t ipografia. A

pesqu isadora ressa lta o interesse de estudiosos do cordel, que começam a se

voltar, a partir dos anos 1990, para as discussões sobre “as relações

oral/escr ito, culto/popular”, de modo a interp retar esses “cruzamentos

interculturais e interdiscip linares na produção simbólica moderna, buscando

113 Id. p. 118. O traço fortemente oral dessa produção nordestina, seja na composição, seja na transmissão, deu-se com Agostinho Nunes da Costa, que viveu entre 1797 e 1858, na Paraíba, de onde saíram os mais importantes poetas do século XIX: Nicandro e Ugulino, seus filhos, Romualdo da Costa Manduri, Bernardo Nogueira, Germano da Lagoa, Francisco Romano, Silvino Pirauá, conhecidos como “grupo do Teixeira” e responsáveis pelas primeiras composições de que se conhecem os autores. Com referência à impressão dos primeiros folhetos, são precursores Leandro Gomes de Barros e Francisco das Chagas Batista. (p. 74). 114ALCOFORADO, Doralice. A estratégia discursiva do cordel prosificado. p.2. Neste artigo, a autora destaca a prosificação do cordel – gênero consagrado por uma veiculação impressa em verso – que passa a ganhar forma de conto, em alguns folhetos, promovendo acomodações próprias ao gênero.

48

entender, no confronto de culturas, a ‘modulação p rópria’ operada com essa

‘hibridização’”. 115

Ainda na passagem do oral ao escrito, busca-se preservar a

coerênc ia e unidade, centrando -se no desenrolar de uma ação, desenvo lvida

em termos de causas e conseqüências. As histórias são compostas segundo um

“roteiro” de história desembaraçada, sem muita complicação , e com vár ios

episódios.116 Para tanto, os cordelistas evita o acúmulo de personagens,

preservando o verso, um recurso mnemônico de grande valia.

Muniz Sodré destaca a importância do traço oral do cordel, o que

assegura a sua permanência : “mesmo escrito , o texto é moldad o pela

oralidade, esta se impõe como forma”.117 No âmbito da produção da cultura

popular, o cordel vem a ser o veícu lo de expressão de segmentos sociais à

margem da cu ltu ra letrada, “produz seu universo especí fico, no qual se

defrontam Deus e o Diabo, reis e band idos, cantores pop e rústicas donze las,

pavões encantados e o mais comum dos mortais”. 118 Assim, nesse universo,

Pedro Malasartes e João Grilo, os heróis mais conhec idos da cultura popular

brasileira, t idos como pícaros, vão ter suas aventu ras verse jadas pela lavra de

muitos cordelistas.

Atribui-se a Sí lvio Romero e a Luiz Câmara Cascudo o p ione irismo

nos estudos sistemáticos sobre a cu ltura popular brasileira ao inventariarem

produções oriundas dos segmentos socia is de baixo poder aquisit ivo . Sílvio

Romero , sergipano, publica O elemen to popular na litera tura do Brasil e

Cantos popu lares do Brasil . Câmara Cascudo, potiguar, é autor do Dicionário

do Folclore Brasileiro (1952) e Contos tradicionais do Brasil (1946).

Embora sejam reconhecidas suas pesquisas pelo inventár io de tais

produções, recaem sobre eles, como folc lo ristas, severas crít icas, por terem,

na busca de “autent icidade” e “pureza” da cultura popular, da essência de

brasilidade, idealizando o “popular”. A idealização decorre do apego a um

passado que não existe mais.

O folc lorista potiguar, segundo Albuquerque,

115 Id. op. cit., loc. cit.; 116 Apud ABREU, Márcia. op. cit.; p 115. 117 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida; por um conceito de cultura no Brasil. 3 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. p. 148. 118 Id. p. 149.

49

se destaca quanto à ideali zação do popular. Câmara Cascudo, em seus trabalhos, adota a visão estát i ca, museológica do elemento folclórico. Seus estudos, longe de fazer uma anális e his tórica e sociológica do dado folclórico, se consti tuem e m verdadei ras coletâneas de materiais referentes à socieda de rural , p atriarcal e pré -capital is ta do Nordeste, vendo o folclor e como um elemento decisivo na defesa da autenti cidade regional, cont ra os fluxos culturais cosmopol itas . 119

Por esse entendimento, a cultura popu lar vê -se vulneráve l a

apropriações d iversas, a interesses d ist intos, sempre incorporada à produção

artíst ica das e lites. Para Durval Albuquerque Junior, a literatura de cordel

fornece uma estrutura narrativa, uma l inguagem e um código de valores que são incorporados, em vários momentos, na produção art ís t i ca e cultural nordestina. Como a produção do cordel se exerce pela práti ca da variação e reatualização dos mesmos enunciados, imagens e t emas, formas coletivas enraizadas numa práti ca produtiva e materia l coletiva, este s e assemelha a um grande t exto ou vasto intert exto, em que os modelos narrativos se rei t eram e se imbricam e séries enunciativas remetem às outras. [ . . . ] Esta produção popula r funciona como um repositório de imagens, enunciados e formas de exp ressão que serão agenciadas por out ras produções “eruditas”, como a l i t eratura, o t eat ro, o cinema etc. 120

A literatu ra de co rdel produzida por Antonio Vie ira e Victor Alvim

Itahim Garcia sobre Besouro Mangangá reúne essas espec ific idades do

gênero, como um repositó rio de imagens, enunciados e formas de expressão,

em que as estruturas sociais se apresentam pelo binarismo bem x mal,

tomando-se o partido dos oprimidos: o personagem Besouro é um herói,

enfrenta os poderosos, ou seja, coronéis e agentes da lei. As narrat ivas em

aná lise repetem, portanto, os temas do bem contra o mal, em sua var iação,

119 Segundo Durval Albuquerque, a chamada região Nordeste foi inventada politicamente no final dos anos 20 do século XX, antes, o Brasil era dividido geograficamente pela oposição Norte/Sul, este, capitalista, urbano, industrial, aquele, rural, arcaico, pré-capitalista. Para esse historiador, as elites intelectuais e artísticas nordestinas se apropriam da cultura popular no momento em que os grupos dominantes desse espaço vão defender seus interesses, reivindicar recursos financeiros e representações junto às esferas do poder, a nível nacional. Assim, formulam uma identidade para o Nordeste, continua Albuquerque, “para ‘ver’ e ‘dizer’ a região ‘como ela era’”. Os autores nordestinos do “romance de trinta”, como também teriam feito os folcloristas, vão “estabelecer um estilo regional que beberá nestas fontes populares”, idealizando o popular, visando fortalecer e legitimar essa região, do ponto de vista político, econômico e cultural. ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2009. 4. edição revista. 120Ibid. p. 129.

50

atualizam a f igura do herói, como às vezes reforçam valores da o rdem

institu ída.

Nos texto s de Antônio Vieira, agregam-se reminiscências do poeta,

ele dec lara, com histórias e “causos” ouvidos na “venda” 121 do seu pai,

escr itas com o propósito de denunciar a vio lência e expor o descaso dos

poderosos contra os segmentos sociais menos favorecidos. Mediante o uso de

uma linguagem simples e contemporânea, suas histó rias e seus personagens

retratam a forma de viver cr iativa e peculiar do povo brasileiro. Nessa ótica,

os seus versos sobre Besouro buscam atentar para o seu aspecto de heró i

malandro, às avessas, que instaura as suas regras de conduta sobre quaisquer

aspectos, um legít imo representante de um modelo de resistência. Victo r

Alvim Itahim Garcia conta a história de Besouro Mangangá, po r ser a maio r

expressão da capoeira angola, caracte rizada pela luta-defesa-ataque, na

segunda metade do século XIX e iníc io do século XX. A sua narrat iva é

apresentada de forma linear, seqüencial. O cordelista traça um perfil

biográfico desse capoeir ista fazendo uso de uma linguagem mais rebuscada

para compor o perfil de Besouro como um herói com característ icas mít icas.

Em O encontro de Besouro com o valentão Doze Homens , de

Antônio Vie ira, o centro do enredo é o confronto entre os capoeiras que dão

título à histó ria, ocorrido na cidade de Santo Amaro . Essa p rosa versif icada

traz referências à geografia desse lugar, ao so lo de massapê e a flo ra, e a

força dos b raços negros e mestiços para a economia da região 122.

Somam-se às representações mít icas s ignificações histó ricas e

cultu rais, como recurso para o começo da narrativa:

Esta é uma história De natureza bahiana Que envolve o recôncavo O massapê e a cana O engenho, a usina, O candeeiro de manga, O carrei ro que conduz A junta de boi de canga

121Nome dado a pequenas casas comerciais no Norte e Nordeste. 122Cf. VIEIRA, Antônio. O encontro de Besouro com o valentão Doze Homens. Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Santo Amaro s/d. Sem pontuação para marcar os versos, essa narrativa traz 48 estrofes, predominando as oitavas ou estrofes de oito versos, com variação nas estrofes 47 e 48, em que se apresentam a se(p)tilha e a sextilha, com sete e seis versos, respectivamente.

51

O facão de folha larga A enxada e a estrovenga A foice de roçar o pasto O pau-de-arara e a venda A fundição de Pitanga A caldei ra e a moenda A candeia que alumia Para vovó fazer renda (. . . ) A canoa, o vapor O motriz o saveiro O trem para Monte Azul O mel que trouxe o meleiro O bonde puxado a burro Carregando o passagei ro O trole que vinha at rás Com Popó de motorneiro (p.1 -2) (. . . )

O poeta permeia esse universo de imagens que destacam elementos

da cultura afro -baiana e, ao fazê- lo, reitera narrat ivas mít icas acerca de

Besouro, veicu lando va lores, cre nças, costumes, modos de viver e sent ir a

vida em seu tempo: O chá de erva cidrei ra O raizeiro e a crença A folha de bom pra tudo O curador de doenças O sabuguei ro, o milho Para cachumba ou papei ra Pegando menino à beça Mamãe Bebé, a partei ra (. . . ) O candomblé nos terrei ros Tudo quanto é sagrado Os orixás e os santos Os ebós encomendados As procissões, as igrejas Promessas e bati zados Depois de muita peleja O sincretismo arranjado (p .2-3)

Nesses versos ident ifica-se o que Everardo Rocha destaca em

relação ao mito: “este seria capaz de revelar o pensamento de uma sociedade,

a sua concepção da existência e das relações que os homens devem manter

entre si e com o mundo que os cerca”. 123

Cont inua o cordelista :

123 ROCHA, Everardo, O que é mito. São Paulo: Brasiliense, 1999. Coleção Primeiros Passos; 151. 1999, p.2.

52

(. . . ) Ela [a his tória] envolve uma cidade Bem antiga da Bahia Um de seus p rotagonistas A ela é que pertencia Me refi ro a Santo Amaro A cidade de Besouro Negro valente, danado Que não l evava desaforo (p . 4)

A apresentação de Besouro ressa lta seu fenót ipo e sua

personalidade: “Negro valente, danado/Que não leva desaforo”. É esse homem

altaneiro que será p rotagonista de uma “pele ja” com outro capoeirista,

conhec ido como Doze Homens, no “Bar de Bubu”, onde se encontrava

Besouro a contar a todos os ouvintes, extasiados e atentos, suas aventuras

épicas e seus amores:

(. . . )

Besouro estava sentado Dentro do bar de Bubu Tomando sua cachaça Num dia de céu azul Era um domingo à ta rde Suas his tórias de briga Muitas já t inha contado

Falava das aventuras

Das mulheres que ele t inha Do cavaquinho que t ocava Do saveiro e da rinha Do samba que acabara Lá pras bandas de Candeias Do panaço de facão Que deu em Chico Lamprea

Falava da aversão

Que t inha pela polí cia Não podia ver soldado Ou qualquer um da milí cia

( . . . )

De repente, eis que surge Saído não sei de onde Um cidadão arrogante, Vindo. . . talvez lá do Conde Que após olhar pra todos E estudar o ambiente Pediu ao dono do bar Duas doses de aguardadente (. . . )

53

Esse ao ver a cachaça No copo, sobre o balcão Olhou detalhadamente Pra quem estava no salão E com ar de autoridade Todo cheio de razão Apontou o indicador Para um certo cidadão

E com o dedo em rist e

Ele disse: - venha cá! Para a pessoa apontada Querendo lhe comandar Depois lhe most rou o copo E falou quase a gri tar: - Essa cachaça é sua, É para você tomar! (p .4-5) ( . . . )

A at itude de Doze Homens era comum entre os capoeiras, modo de

marcarem presença e poder. Destaque-se aqu i a alcunha “Doze Homens”,

hipérbole que sublinha sua força extraordinár ia, podendo int imidar pelo

apelido. Nesse universo, oferecer bebida vem como provocação. Se o

desafiado recusasse, s ignificava “desfeita”, “p irraça”. Aceitando, tinha -se

uma prova de medo.

O pretexto mais comum

Era oferecer cachaça Se o out ro recusasse Era des feita e pirraça A cachaça ia, na cara Nego fi cava cabreiro Ou part ia para a briga Ou saía sorrateiro

Se o cabra aceitava

Era humilhação, na certa Era uma prova de medo Era gozação à beça Aí não t inha remédio Nem pedido de t ercei ro Tomava tapa na cara E pontapé no trasei ro (p .8) (. . . )

Destaca-se nessa at itude um código moral a ser respeitado: era

muito importante o ind ivíduo ser va lente, desafiador e não fugir do adversário

em quaisquer circunstâncias. Embora não estivesse prescrito, é possíve l

54

infer ir , pe las narrat ivas sobre tais desafios, que os contendores dever iam se

digladiar até a exaustão , med iante o olhar atônito dos expectadores.

Interessante observar que, na luta descrita nesse texto de cordel, o

antagonista de Besouro é mencionado na matér ia jo rnalística de Adriana

Jacob como um dos amigos de Mangangá, por um dos entrevistados pela

jornalista: “Nessa época, Manoel Henrique vivia na área do Trap iche de

Baixo, até ho je a parte mais pobre de Santo Amaro. Era lá que costumava

fazer suas festas, ao lado dos companheiros Paulo Barroq uinha, Boca de Siri,

Noca de Jacó, Doze Homens e Canár io Pardo, todos moradores do mesmo

loca l”. 124 Desse modo, como destaca Muniz Sodré, o jogo da capoeira também

é luta encenada, entre amigos, exercício que os manter iam preparados para

situações adversas.

Segu ndo Olive ira, os capoeir istas “estavam expostos às situações

geradas pelas re lações co tidianas no espaço público, em muitas dessas, era

necessár io usar da força e da violência para demarcar espaço e afirmar

valo res socia is”. 125 Logo, a busca por esse t ipo de afirmação ou

reconhecimento se dava com o intuito de fazer p reva lecer o poder de

determinados grupos entre os capoeiras. Vieira ilustra essa situação:

( . . . ) Normalmente os valentões Para mostrar valentia Onde não era conhecido Onde seu nome não ia Sempre achava um pretexto Pegava um e bati a Surrava alguém do trecho Brigava e sempre vencia (p.7)

Em toda a narrat iva de Vieira, tem-se a exaltação do heró i popular,

Besouro é um homem “valente e destemido”. Sem pro fissão definida e

vivendo de trabalhos esporádicos, o capoeir ista é apresentado como “va lente

de p ro fissão”: (. .. ) Besouro Cordão de Ouro Valente de profissão Que muitas vezes usara

124 Cf. JACOB, Adriana. Correio da Bahia. 125 OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. p. 40.op. cit.

55

A mesma provocação Diante daquela ordem Arretou-se e então Respondeu pro forasteiro – Não pedi cachaça, não! (p. 7) (. . . )

Ao recusar a bebida oferecida por Doze Homens, Besouro o

convida, esse é o código, ao combate sem hora para terminar. O desafiado

então se apresenta de modo a amedrontá-lo, sem consegu ir esse ob jetivo :

( . . . )

O sujeito disse: - cabra, Eu vou lhe dizer meu nome Pra você se borra [t er medo] todo Se arrepender de ser homem Malcriação desse j ei to No meu facão é fome Saiba quem está falando É seu patrão Doze Homens ! Aquela apresentação Foi a gota que faltava Pra Besouro se irri tar Sair e vi r pra calçada Arretar-se de uma vez E dizer: - eu lhe encaro. Venha cá pra conhecer Besouro de Santo Amaro! (p. 9)

(. . . )

E os dois s e engal finharam Numa luta de gigantes O t inido dos facões Podia se ouvir distante O povo estupefato Assist ia a contenda Sem saber quem venceria Aquela luta horrenda (. . . )

Uma pessoa gri tou:

– Vem polícia, vou correr !. . . Besouro não se assustou Mas Doze Homens correu E Besouro só foi p reso Porque ali permaneceu (p .10) (. . . )

O narrador descreve uma cena que se desenrola em lances épicos. O

herói Besouro Cordão de Ouro reage com “pernada”, com o uso do facão e da

56

valent ia quem ousa desafiá- lo. Mangangá e Doze Homens entram em combate,

“numa luta horrenda”, acompanhada por um “povo estupefato”. A narrat iva

põe em destaque a invencib ilidade desse herói de corpo fechado, p ara quem é

preferíve l ser p reso a co rrer da políc ia, como fez Doze Homens, o que poderia

ser visto como covardia.

Em meados do século XIX e início do século XX, as bata lhas entre

capoeiras aconteciam em loca is púb licos, independente de horár ios. Os

conflitos eram intensos e todos possu íam armas para ataque e defesa, como

informa Areias:

[o negro capoeira] para qualquer eventualidade mais sé ria num confli to, t inha uma navalha, ou uma faquinha feita de osso de canela de defunto, materia l resist ente e que di fi cult ava a cicat rização, provocando grave infecção na vít ima. També m uma outra faca feita de madei ra de tucum (árvore espinhosa que produz a fruta do coco do Mané Veio, e que se acredit ava possui r poderes mágicos contra mandinga), incorporava-se às armas dos capoeiras, assim como o “pet rópolis”- bengal a grossa esculpida, imitação do cassetete fabricado pelos alemães de Petrópolis . Essas facas e navalhas eram escondidas normalmente entre os cabelos e o dorso das negras que os acompanhavam e requisi t adas no momento necessário. 126

A chegada da polícia, o agente da le i, para dar fim à contenda entre

Besouro Cordão de Ouro e Doze Homens vem atender à manutenção da o rdem

no no vo regime. À época, o presidente Deodoro da Fonseca, para cumprir seu

programa sem eventuais intempér ies, com base no Código Penal de 1890,

estabe lece por meta principa l o extermínio dos “vad ios e turbulentos

capoeiras”. 127 De acordo com Letícia Reis, a implantação vem aplacar o

sent imento de medo que os capoeiras despertavam nas elites. 128

No cordel de Vieira, finda essa co ntenda, a narrat iva toma outro

rumo. Besouro, po r não ter conseguido vencer a peleja, d rib la a políc ia para

vingar-se de Doze Homens, fato que mantém o capoeirista santoamarense no

lugar de herói invencíve l:

126 AREIAS, Almir. O que é capoeira, 1983, p. 30-31. 127Cf. AREIAS. op. cit.; p. 42. 128 Cf. REIS, Letícia Vidor de Souza. O mundo de pernas para o ar. A capoeira no Brasil. São Paulo. Publisher Brasil, 1987. p. 67.

57

Besouro ia escoltado Bem no meio da patrulha Mas na ponte das moringas Deu uma nega, [enganou] fez firula [ fingiu] A polícia não esperava A reação e só viu Quando Besouro saltou Da ponte dent ro do rio ( . .. ) Contam que o tal soldado Que queria vê-lo p reso Tentou puxar a pis tola Mas recuou, teve medo Besouro feriu-lhe a mão Bateu com o cotovelo Deu-lhe mais um safanão Quase lhe arranca o dedo ( . .. ) Mas Besouro não esqueceu Da luta com Doze Homens Queria vê-lo de novo Passar a l impo o seu nome E quase que passa fome Andando a sua p rocura Mas nunca mais conseguiu Encontrar essa figura. (p .12-13) ( . .. )

O narrador exalta as habilidades de Besouro Mangangá– “deu uma

nega”, “fez f irula” –, um exímio jogador, que sabe diss imular, portanto , é

perigoso, e tem na destreza do jogo/luta/dança a certeza de que vencerá

qualquer oponente. Daí o lance espetacular do capoeirista ao jogar -se da

ponte ao r io, para a surpresa dos policia is que o escoltavam, e o seu drible,

com “co toveladas” “pernadas” e “safanões”, em um policia l que queria detê -

lo. Além disso, como afirma Sodré, Besouro tem a malícia do capoeira que,

sabendo que não vencerá o adversár io, foge.

Na história de Vieira, a fuga do bravo herói Besouro é justif icada

para que “passe a limpo o seu nome”, outro va lor de um cód igo moral entre os

capoeiras, enfrentando Doze Homens e saindo vencedor ao reencontrá -lo.

Essa era a le i que deveria p revalecer no universo da capoeiragem: lutar para

vencer. O salto de Besouro na ponte é um ep isód io constantemente reiterado,

em diferentes narrat ivas, o que contribui para a preservação desse mito.

Para Ernst Cassirer , “os mitos não podem ser descritos como uma

simples emoção por serem estes exemplos vivos de crenças e também de

58

sent imentos de um povo”. 129 O salto espetacu lar desse heró i preserva a sua

força, pela plast icidade da imagem, na memória da cultura popular do

Recô ncavo, convert ido em gesto que ena ltece um segmento social

marginalizado, que se projeta, po r identif icação, no herói de corpo fechado.

Os versos f inais do cordel de Vieira dão destaque a uma dentre as

várias versões da emboscada que levou o notável capoeirista à morte, algum

tempo depois da lu ta com Doze Homens:

(. . . ) Depois de deixar prá lá Dar o caso encerrado Voltou à vida normal Trabalhando contratado Tocando seu cavaquinho No savei ro embarcado De vaqueiro, na fazenda Amansando burro brabo Mas um dia numa sede Da Usina Maracangalha [Besouro] Assumiu uma postura Que lhe valeu a mortalha Pra punir um desaforo Aplicar uma l i ção Fez montar num burro brabo O fi lho de seu patrão E o rapaz que não t inha Traquejo com montaria Mal montou e foi pro chão Era assim que acontecia ( . .. ) O rapaz adoeceu Seu pai fi cou irri t ado Não atirou em Besouro Pois t inha o corpo fechado Então tramou sua mor te Com jagunço contratado Não demorou o serviço Foi logo executado (p .13-16) ( .. . )

Besouro vai trabalhar na fazenda do coronel Zeca Teixe ira como

vaqueiro e amansador de animal. Por não ace itar ordem que não viesse do

dono da fazenda, Besouro recorre à vingança, ao aplicar um cast igo no filho

do co ronel. Dessa at itude, surge uma das versões para a sua morte, a de que

teria s ido vítima de um crime de mando, “encomendado” pelo ex-patrão, o que 129 CASSIRER, Ernest. O Mito do estado. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Códex, 2003. p. 63.

59

é negado por seu neto : “meu tio soube que Besouro estava bebendo na vila e

fazendo arruaça, então mandou chamá- lo. Não se sabe exatamente o que

disseram um ao ou tro na discussão, quais as ameaças dos do is lados – o certo

é que Orlando chegou a pegar um rif le para impor respeito. No dia seguinte

Besouro havia partido para Maracangalha. Pouco tempo depo is ser ia

assassinado”.130

O assassinato de Besouro é destacado pelo narrador como uma

fatalidade, posto que vítima de uma traição numa emboscada, foi pego,

portanto, de surpresa, um ato que não elimina desse herói seu atr ibu to maior:

a invencib ilidade. Por isso, na narrat iva, Besouro Cordão de Ouro é celebrado

como um herói da res istência, “irreverente e brabo”:

(.. . )

Porém, na realidade Ele [Besouro] foi assas sinado Aquilo era vingança por seu castigo pesado A honra estava lavada Fora morto à traição Mas se fosse o contrário Quem vingava era o facão ( . .. ) Viveu a sua maneira Irreverente e brabo Egresso do massapé Intel igente, a rretado Reconcavomente foi Altamente autenti cado 131. (p. 16)

A irreverência, a força, inte ligência e valentia são exa ltadas em um

homem, um capoeirista que “reconcavomente foi/a ltamente autent icado” pelo

cordelista, por ter desafiado a lei, va lores sociais e hierarquias.

A valentia justiceira de Besouro é outro fo lheto de Antônio Vieira

que versa sobre os feitos de Besouro.132 Nele, o cordelista tece uma crít ica aos

historiadores que, na maior ia das vezes , ocultam os fe itos de homens da

cultu ra popu lar, como Besouro Mangangá, herói ausente da galeria de homens 130Cf. JACOB, Adriana. O lampião da capoeira. Correio da Bahia. p. 3-7. Salvador. 06/06/ 2004. 131 Esta estrofe é construída em acróstico com o sobrenome do poeta: VIEIRA, recurso muito utilizado pelos cordelistas para autenticarem a escrita. 132 VIEIRA, Antônio. A valentia justiceira de Besouro. Disponível em: <http://www.portaldocordel.com.br >. p. 1-7. Acesso em 12/05/2008. É uma narrativa composta de 63 versos, sendo 61 deles se(p)tissilábicos e duas sextilhas (versos 62 e 63).

60

“ilustres”, exaltados pela História oficial – uma “grande narrat iva”, uma

totalidade que, paradoxalmente, só considera os feito s dos dominantes. A

“va lentia just iceira” vem corrigir um erro do Estado que abandonou à própria

so rte um expressivo segmento social do país.

A narra t iva começa trazendo argumentos nobres, insp irados no ideal

de liberdade, para defender, e até mesmo cobrar uma reparação, a his tória de

um capoeirista de feitos grandiosos, não reconhecidos pelas elites. O narrador

inicia do segu inte modo a sua história:

Eu disse que a l iberdade É bem como é a vida Tentar t irá-la do homem

É uma coisa descabida Não se pode cerceá -la, Impedi-l a, sufocá-la O homem por ela briga (. . . ) É comum a quem escreve A história oficial Exaltar a quem domina E excluir de seu todo Alguém saído do povo Mesmo um excepcional ( . . . ) Out ro er ro clamoroso Cometido pela histó ria É denegri r a imagem Daquele que está de fora (. . . ) A reação natural Contra esse t ipo de abuso Vem em forma de apati a O povo alheio confuso O anti -herói , o cont raste Vira Pedro malazarte Um malandro absurdo! (p.1 -2)

O narrador destaca os erros cometidos pela História ofic ial, po r

“excluir de seu todo/Alguém saído do povo /Mesmo um excepcional” /,

“denegr ir a imagem/Daquele que está de fora”. Para o narrador, os sujeitos da

história são plurais, de origens sociais diversas, como Manuel Henr ique

Pereira, Besouro Cordão de Ouro ou Besouro Mangangá.

61

Recorrendo à metalinguagem, o narrador chama a atenção para a

função socia l da literatu ra de cordel, veículo de comunicação responsável po r

divu lgar a his tória de su jeitos anônimos:

(. . . ) Muitos fatos importantes Tem se perdido ao léu Em função de nossa história Não cumpri r seu papel De regist ra r só o fato Inda bem que esse ato Faz o bardo, no cordel Não fosse isso eu não sei Como seria, então Que a maioria do povo Sobretudo do sertão Tomaria conhecimento, De pessoas e eventos De pouca divulgação A imagem do herói No conceito popular É di ferente daquela Que a el i t e quer passar O anti -herói é pro povo A esperança, algo novo Porque é seu similar. (p.3)

O enaltecimento do herói popular vem por merecimento a um sujeito

destituído de poder po lítico, que defende outros suje itos na mesma condição

de marginalizados, segundo o bardo santoamarense. Com o seu co rpo

inteligente, Besouro questiona o sistema vigente, a le i, o que o torna a

“esperança, a lgo novo”, ainda que a elite queira detratá -lo, ao enquadrar

como crime a prática da capoeira.

(. . . ) Dessa forma ele enfrentava Quem lhe fazia agressão Capoeiras del egados Polícia e valentão Metia facão pra dent ro Dava pernada em sargento Batia até em pat rão Uma coisa que o deixava Muito fulo [ir ri tado] com a polícia Era vê -lo prati ca r

62

Qualquer t ipo de injustiça Aí ele entrava duro Pontapé, facão e murro Usava a sua malícia (p. 6 -7 ) ( . . . )

A at itude do capoeiris ta está respaldada na Lei de Talião, expressa

no provérbio “olho por o lho, dente por dente”, prática milenar a inda p resente,

particularmente no Nordeste, em que as leis criadas pelo Estado não

conseguiram mudar costumes tão arraigados. 133 O narrador ressalta e endossa

a at itude de Besouro, é a bravura do heró i, que usa dos mesmos artifícios do

seu oponente como forma de defesa e de justiça, pois aquele que agride

também deve ser agredido. Embora não haja re latos de que Besouro tenha

cometido algum assassinato, muitos capoeiras “desafiavam as autoridades

const ituídas e com suas navalhadas e cabeçadas colocavam muitos por terra,

às vezes sem vida”. 134

A valen tia justiceira de Besouro expõe a exploração do trabalhador

rural, numa época de instabilidade do novo regime, o republicano, a qual só

será reparada aplicando a Lei de Talião:

(. . . ) Um lavrador certo dia Lhe disse: - “fui enganado, Cortei cana, na usina Mas não fui remunerado Quando chamaram meu nome Não resp ondi ao homem Meu salário não foi pago!” (. . . ) Besouro ao ouvir aquilo Na mesma hora traçou Um plano pra receber A grana do lavrador Pega o facão e se manda Vai para o corte da cana Onde o out ro trabalhou (p .7-8)

133 Essa expressão está registrada num dos 282 artigos do Código de Hamurábi (1792-1750 A.C). Hamurabi instituiu a vingança como preceito jurídico no Império Babilônico. É baseada também na lei de Talião que está presente em livros da Bíblia e prescreve ao transgressor a pena igual ao crime que praticou. Esse princípio ainda é utilizado em muitos países do Oriente. Disponível em: http//.www.sitedoescritor.com.br/sitedoescritor_ expressões_00003_olho_dente.html.Acessoem08/08/200 9. 134Cf. OLIVEIRA, Josivaldo Pires. op. cit. p. 63.

63

À época, e a inda hoje sem dúvida, os trabalhadores à época são

vít imas de uma economia do Nordeste que enr iquecia os proprietários de terra

às custas da mão -de-obra mal remunerada e até mesmo aviltada. Sem leis

trabalhistas para proteger- se, restava ao trabalhador da zona ru ral recorrer aos

justiceiros, e os capoeiristas, revestidos de força e coragem, cumpriam esse

papel em solidariedade aos vit imados, ao tempo em que dão demonstração de

força. O narrador prossegue, enaltecendo a inteligênc ia de Besouro no

enfrentamento da situação:

Sujeito, eu fiz de p ropósito Não recebi o chamado Somente p ra conferir O que me t inham falado Agora eu acredito No que me haviam dito Você é mesmo safado! Vá tratando de me dar O meu dinhei ro contado Quero receber também Aquele que não foi pago A um companheiro meu Que t ambém não respondeu Na hora que foi chamado! E o gerente, que estava Por Besouro sufocado Pediu com di fi culdade: -Me solt a que eu lhe pago! Quando Besouro o soltou Ele, fundo, respirou Abriu o cofre apressado (p . 9-10) (. . . )

O justiceiro Besouro enfrenta uma sociedade oligárquica e e lit ista

daqueles primeiros anos do século XX na Bahia, quando os dominantes

manipulavam, de acordo com os seus interesses, sujeitos dest ituídos de poder.

Esse tec ido histórico, compreendido pela Primeira República, contava com a

forte presença do co ronel, símbolo do poder do novo sistema político.

Segu ndo Maria de Lourdes M. Janotti, como “representantes da

oligarquia agríco la-mercant il, os coronéis controlavam o poder público e

orientavam suas decisões no sent ido de afasta r as demais classes do poder e

64

manterem seus p rivilégios”. 135 Essa época na Bahia, assim como em ou tras

regiões do Brasil,

(. . . ) foi marcada por ebulições sociais e pol í t icas. O process o de consolidação republicana custou caro às l ideranças polí t i cas e à sociedade civil como um todo, pois registram-se revoltas urbanas e rebeliões no campo nas duas primeiras décadas republicanas, comprometendo a estabil idade polí t i ca do novo regime. 136

Josiva ldo Oliveira destaca que, dos conflitos sociais e políticos

ocorridos na Bahia nesse período, como forma de resistência ao s istema

vigente, merecem destaque a Guerra de Canudos (1897), o Bombardeio de

Salvador (1912), as Greves de 1918 e 1919 e a Revolta Sertaneja (1919). 137 A

narrat iva de Vieira, pub licada no sécu lo XXI, man tém-se f iel a uma memória

oral que registra um Brasil arca ico fe ito por ind ivíduos “esquecidos” pela

História Oficia l, a exemplo dos que p ro tagonizaram tais rebeliões e revo ltas

no estado da Bahia.

Outro episódio relatado em A valentia do justiceiro Besouro ilustra

o “senso de justiça”, às vezes feita com “as próprias mãos”:

(. . . )

Um dia, um cidadão Chegou em um armazém Comprou açúcar, farinha Macarrão, milho xerém E fez com isso uma carga Capaz de ser embarcada Num caminhão ou num t rem!. . . Mas pra surpresa de todos Testemunhas do absurdo O sujeito car regou Tudo num lombo de um burro Esse, quando recebeu O peso todo cedeu Escanchou-se, dando urros O dono do animal Não teve o que fazer

135JANOTTI, Maria de Lourdes M. O coronelismo uma política de compromissos. Coleção Tudo é História. 8ª ed. Brasiliense Editora. São Paulo,1992. p.9. 136 OLIVEIRA, Josivaldo Pires. op. cit. p. 89. 137 Idem. ibid. p.89.

65

Vendo o burro caído Sem condições de se erguer Pegou uma taca trançada Fazendo muita zoada Se pôs, no burro a bater (. . . ) Foi quando Besouro, então Que presenciara tudo Saltou pra cima do homem Foi em defesa do burro Tomou- lhe a taca da mão Deu-lhe um forte pescoção E completou com um murro (p .10-12)

A atitude de Besouro, aplaudida pelos “testemunhos”, expõe um

exercício de arb itrariedade para co rrigir uma ação decorrente de um ato

insano do dono do animal. O cordelista prossegue dando detalhes de como

Besouro livrou o burro da estupidez e cast igou o seu dono:

(. . . ) [Besouro] Aí gri tou: - ajoelha! F ique aqui de quatro pés Vou lhe botar essa carga Sem lhe pagar um mil rés O que esse burro sofreu E por pouco não morreu Vou multipli car por dez! O homem obedeceu Besouro ap roveitou Tirou a carga do burro Em seu lombo colocou Depois, meteu-lhe o relho Ele fi cou bem vermelho E quase que desmaiou Quando Besouro sentiu Que t inha dado a l ição Desatou o nó das cordas O homem se ergueu do chão A carga fi cou na rua A culpa foi toda sua Por não t er compreensão! (p .12) (. . . )

A “va lent ia just ice ira” de Besouro ganha re levo , como um grande

atr ibuto desse capoeira revest ido de coragem, como um heró i pícaro:

66

(. . . ) brigava por tudo Por coisa séria ou banal Não tolerava insulto Nunca corri a do pau Um dia em salvador Com a polícia brigou Por causa dum berimbau (. . . ) Contou-me um santo-amarense Que foi s eu conter râneo “A briga não procurava Não era esse o seu plano Contudo não enjeitava Quem com ele se engraçava Em breve tava apanhando” (p.13) (. . . )

O narrador também enaltece o capoeir ista audacioso, capaz de

enfrentar os poderosos. Ainda:

(. . . ) De revidar agressão De exigir s eus di rei tos De ir contra a repressão Racismo, perseguição Apartheid, preconceito (p.13)

Ganha destaque também a desenvo ltura de Besouro, po r seu je ito de

corpo, dada a agilidade para driblar s ituações de perigo :

(. . . ) Várias vezes se l ivra ra De bala de arcabuz Ao enfrenta r a polí cia No antigo Largo da Cruz E a chuva de balaços Riscava o ar, como luz (p.14) (. . . )

O jeito de corpo de Besouro , tão permeado de ginga e malíc ia, faz

com que se destaque aqu i a importância do co rpo como construção social,

organizado como sistema de signos. Besouro consegue fugir de balas,

enfrentar a políc ia e poderosos, utilizando sua p rincipal arma, o corpo, o qual

reflete o esquema corporal de um dado grupo socia l. A memória se entranha

67

nesse corpo e vivif ica a res istência de um grupo contra a opressão, e a

capoeira é a base que determina essa res istência.

Na passagem de co rdel citada, atualiza-se a imagem do heró i

combatente, ao torná-lo um militante da luta contra o racismo, o apartheid e o

preconceito 138, uma representação que não se encontra no imaginário popular,

como também não se faz presente no ou tro cordel de Vie ira nem no de Victo r

Garcia.

Na história do cordelista santoamarense, f ica em segundo p lano a

capoeira como jogo, dança, bailado, destacando -se por ser arma de ataque e

defesa que Besouro possuía para reparar injust iças. Também o seu

aprendizado, ainda menino, com o tio Alíp io, e os ofícios de Besouro –

vaqueiro, saveir ista, amansador de burros – são ressaltados.

O áp ice da narrat iva ocorre com a descrição da morte de Besouro,

desde a suposta “tocaia” de que fo ra vítima, à sua agonia f inal, depois de

passar quinze dias no Hospita l Santa Casa da Miser icórd ia em Sa nto Amaro,

vindo a falecer 139. Também nesse cordel repete-se a versão mais recorrente de

sua morte: a do crime de mando, de autoria do co ronel Zeca Teixeira. No

universo dos coronéis, os cr imes de mando ou por vingança eram uma p rática

comum, encomendados aos seus capangas ou homens de confiança. Os versos

abaixo descrevem as circunstânc ias da morte de Besouro, cruel, entregue ao

desamparo:

(. . . ) Até que um certo dia Dizem que um senhor mandou Preparar uma tocaia Em casa de um lavrador F izeram um “samba de trei ta” A mandinga foi desfeita E pau mandado o furou Seu fato veio pra fora Demoraram a socorrer

138 A incorporação de temas atuais em sua produção literária, como o racismo, o apartheid e o preconceito – que fazem parte da agenda política dos movimentos negros, revela um cordelista em sintonia com seu tempo. Em 2003, Antônio Vieira publicou um trabalho, denominado “O Cordel Remoçado”, no intuito de renovar esse gênero, no qual une música e literatura popular numa linguagem contemporânea. 139 Embora seja comprovada a existência da certidão de óbito expedida pelo enfermeiro do hospital informando o dia de internamento e hora de falecimento de Besouro (Cf. cópia anexa), a memória oral criou um mito acerca desse fato; daí as várias versões existentes. Grifos do autor.

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Levaram pra Santo Amaro O ferimento a doer E ali , na Santa Casa Misericó rdia, que nada! Deixaram à míngua, morrer. (p.14)

A histó ria se encerra marcada pela ind ignação do narrador com a

morte do heró i capoeira: (. . . ) Não venceu Besouro, não Tirou foi sua vida Obedecendo o patrão Nada t inha a ver com ele Incoerência a dele O pegou a traição Veio todo p reparado Interessado em propina E com a faca de t i cum Infalível pra mandinga Rasgou ventre de Besouro Aquela foi sua s ina. (p.17)

O cordelista denuncia a arbitrar iedade das oligarquias ao afirmar

que o atentado contra Besouro aconteceu a mando de poderosos. A morte do

herói é uma fatalidade que aconteceu, vit imado pela “faca de ticum”, com seu

poder de esvaziar a força da mand inga.

O cordel Histórias e bravuras de besouro o va lente capoeira , de

Victor Alvim Itahim Garcia, conhecido por Lob isomem, também vai

ena ltecer, como sugere o título, a coragem e a audácia do herói negro do

Recô ncavo Baiano. 140 O autor, também capoeirista, dec lara ter se encantado

com a his tória de Besouro ouvindo as músicas cantadas nas rodas de capoeira,

bem como os causos, que trazem as façanhas de Mangangá. Desde que me entendo por capoeiris t a, venho ouvindo as músicas, his tórias e “causos” sobre um tal homem, da cida de de Santo Amaro da Puri fi cação na Bahia, que enfrentava a polí cia ou qualquer outro adversário e s empre saía vencedor. Além de t er o corpo fechado, o suj eito ainda conhecia orações poderosas e uma mandinga que o transformava num besour o preto e venenoso, que saía voando nas horas de grande perigo.

140 GARCIA, Victor Alvim Itahim. Histórias e bravuras de Besouro o valente capoeira. Rio de Janeiro, Abadá Edições, 2006. Essa narrativa é composta por 200 versos e 31 páginas. Também capoeirista, Garcia é carioca, nascido no ano de 1973. De acordo com o autor, começou a jogar capoeira em 2003. O apelido de Lobisomem, segundo ele, foi sugerido pelo capoeirista Pantalona.

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Este homem, o tal capoeirist a de Santo Amaro, era conhecido como Besouro Mangangá, Besouro Cordão de Ouro ou B esour o Preto. 141

Assim começa Histórias e bravuras de besouro o valente capoeira :

(. . . ) Vou fala r de um personagem Da história da capoeira Muitos ainda duvidam Se a his tória é verdadeira Desse homem batizado Manoel Henrique Pereira A história deste homem De mistérios é cercada Muita gente ainda pensa Que é uma lenda inventada Mas a sua existência Já foi mais que comprovada (p. 3) (. . . )

O texto começa construindo outra narrat iva mítica sobre Besouro

Mangangá, mas negando ser “lenda inventada”, visando val idar a existência

de um personagem tão importante. No decorrer da histó ria, estão em primeiro

plano os feitos heróicos de Besouro Cordão de Ouro, com matizes su rreais,

entremeados com acontecimentos comuns de sua vida. Segundo Victor Garcia,

seu texto é resultado de um trabalho de pesquisa sobre as histórias da vida de

Besouro, preservadas por uma tradição oral.

O narrador prossegue com o relato, dando exp licações sobre a

bravura do herói e sua singu lar idade, confirmada pelos apelidos:

(. . . ) Dizem que era valente E bravo como um touro O chamavam “Besouro Preto” Besouro “Cordão de Ouro” De “Besouro Mangangá” Ou simplesmente “Besouro” (. . . ) Mangangá é uma espécie De besouro da cor escura

141 GARCIA, Victor Alvim Itahim. A bravura de se contar histórias sobre Besouro. Trecho do texto em que o autor expõe sobre o seu encantamento ao escrever sobre Besouro. Disponível em: http://www.docstoc.com. Acesso em março de 2010.

70

Que fura qualquer madeira Seja ela a mais dura Madeira boa, de l ei O Mangangá vai e fura (p. 3 -4) (. . . )

O nome Besouro Mangangá vem a ser uma imagem que agrega um

paradoxo : o capoeirista é conhecido por sua agilidade no sa lto , a sua leveza, o

seu voo , daí receber o nome desse inseto, como também ganhou fama por sua

precisão e firmeza nos gestos, nos go lpes de capoeira, e sua resistência, daí a

força para enfrentar os mais duros obstáculos, po r ser um “mangangá”.

O herói tem uma família, a despeito de não ter um registro civil,

não há uma cert idão de nascimento, fato que contribui para a tessitura da

lenda: (. . . ) Mil e oitocentos e Noventa e cinco era o ano Que dizem nasceu Besouro Mas pode haver engano Pois a cert idão sumiu No Recôncavo baiano Dona Maria José E João Matos Perei ra Eram os pais do l endário Besouro da capoei ra Das ter ras de Santo Amaro Nas bandas de Cachoeira (p. 4)

O narrador põe em destaque os atr ibutos posit ivos do heró i – forte,

destemido, invencível, hábil – e va loriza o ap rendizado que este teve com o

“tio Alípio”, um sábio a fricano que, como um grande mestre, foi generoso

com seu discípu lo ao ensinar - lhe “bastante do que sabia” :

(. . . ) No tempo em que Besouro Era apenas um menino Um dia houve um encontro Traçado pelo destino Do velho a fri cano Alípio E aquele rapaz franzino Tio Alípio era um negro De muita sabedoria Que ensinou para Besouro Bastante do que sabia

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E tudo que ele ensinava Besouro sempre aprendia (p.5) (. . . )

A narrat iva de Victor Garcia sublinha a importância da capoeira

para a mit if icação de Besouro Mangangá. Daí a va lorização de um jogo que é

arte, luta e ofíc io ensinado pelo ve lho mestre de capoeira.

(. . . ) Ap rendia os segredos Da velha capoeiragem Os mistérios desta A malícia, a malandragem As mandingas, art imanhas A dest reza e a coragem Dentro dos canaviais No meio das plantações Besouro ouvia atento A todas essas lições Do jogo da capoeira Das facas e orações (. . . ) Besouro foi bom aluno Discípulo obediente Foi crescendo e se tornou Capoeira expoente O menino agora era Forte, ágil, valente (p.5)

O jogo da capoeira, com seus segredos, ensinado “dentro dos

canavia is” e marcado pela malícia, malandragem, mandinga, art imanhas,

destreza, coragem, facas e orações, reveste-se de magia, reve la a riqueza de

uma cultura popular de matriz a fr icana, desenvolvida como uma astúcia, na

reinvenção do cotidiano, como pensado por Michel de Certeau, dos negros

escravizados.142 Como “discípu lo atento”, Besouro Cordão de Ouro dá o salto

e se torna mestre, e sua invencibilidade é traduzida na ginga do corpo, na

beleza da luta, o que o faz se tornar um mito no imaginário popular,

confirmado na memória do Recôncavo Baiano .

142CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, vol 1, 1994; vol. 2 1996.

72

O cordel de Victor Alvim também não ignora a audácia de Besouro

ao desafiar a le i zombando dos agentes policia is:

(. . . ) Numa out ra ocasião Besouro andava a pé Passeando pela margem Lá do Rio Subaé A polícia lhe abordou -Me diga você quem é? E os soldados não sabiam Onde estavam se metendo A casa de marimbondo Em que estavam mexendo P ior que panela quente Cheia de água fervendo Besouro se esquivava Dos golpes negaceando [enganando] Zombava dos oito praças De “macacos” o chamando Tomou o chapéu de um deles E depois fugiu nadando (p. 9) ( . . . )

O desafio é enaltec ido, como ocorre em muitos outros relatos, até

porque esse capoeir ista ousou um confronto com os representantes da le i,

quando servia ao Exército Brasileiro. De acordo com Adriana Dias,

(. . . ) se em algumas ocasiões os capoeiras estavam no lugar de representantes da lei , em muitas outras estavam no lugar dos que sofri am o peso da l ei . Na realidade havia um ódio mútuo ent re capoei ras e agentes da ordem. Para os capoeiras , briga r com a polícia era motivo de orgulho e prova de valentia, fat o que é de conhecimento geral e transparece até em suas cantigas: ‘Não estudei para ser padre nem também pra se r doutô; estudei a capoeira, pra bater no inspetô (coro)’. 143

Em relação ao ingresso dos negros em corporações militares, Walter

Fraga Filho afirma que, no pós-abolição, os negros t idos como

insubordinados, por não se submeterem à autoridade senhor ia l, recusarem-se

ao trabalho nas p lantações de cana, eram convocados a fazer parte dessas

corporações.

143DIAS, Adriana Albert. op. cit. p. 113.

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Ao longo dos anos de 1888 e 1889, os delegados das cidades do Recôncavo remeteram para a capital diversos indivíduos acusados de vagabundagem e vadiagem. [. . . ] Na verdade, ess a era uma tentativa de controlar e l imita r a l iberdade dos egressos da escravidão de escolherem onde e quando trabalhar e de circula r em busca de out ras al ternativas de sobrevivência. 144

Mesmo sendo um praça do Exército , o destemido Besouro não se

int imidava nem com as mais altas patentes, conforme o narrador:

(. . . ) Podia ser qualquer um Paisana ou policial Fosse soldado, sargento Coronel ou general Quem se metesse com ele No certo se dava mal Não t inha homem valente Que ele não derrotasse Não t inha faca, facão Que o seu corpo perfurasse Nem bala de qualquer arma Que ao seu corpo alcançasse Mas se o cerco apertasse Nunca pagava pra ver Se trans formava em inseto Para desaparecer E o inimigo fi cava Sem conseguir entender (p. 6) (. . . )

Ainda nos versos ac ima, o narrador traz para a trama mais um fio : a

sagac idade de Besouro, pondo em destaque uma inte ligência que calcula o

perigo : “Mas se o cerco apertasse/Nu nca pagava pra ver/Se transfo rmava em

inseto/Para desaparecer”. É sublinhada a fo rça da mandinga para o

capoeirista. 145

O co rdel Histórias e bravuras de besouro o valente capoeira

também registra o episódio p ro tagonizado por Besouro Cordão de Ouro,

quando ainda servia ao Exército :

144 FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade. Histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2006, p. 156-157. 145 Cf. REIS, Letícia Vidor. O mundo de pernas para o ar. A capoeira no Brasil. São Paulo, Publisher, Brasil, 1997. p. 217.

74

(. . . ) Me garantiram que ele Não era ar ruacei ro Que só era valentão E cuidava de um saveiro E também que foi soldado No exército brasil eiro (. . . ) Mesmo enquanto Besouro Ao exército servia No Trigésimo Primeiro Batalhão de Infantaria Não mudava o seu j ei to Nem a sua valentia (p.7) (. . . ) ( . . . ) Em São Caetano havia Um posto policial Nesse domingo, Besouro Passou em frente ao local E encostou-se à janela Da parede principal 146 Pela janela do posto Ele olhou lá de fora Armas apreendidas Avistou na mesma hora Mas um outro objeto Não o deixou ir embora No meio de tantas a rmas O que chamou-lhe atenção Não foi nenhuma faca Arma de fogo ou munição Foi um berimbau que estava Jogado ali pelo chão (p.10)

O desprezo dado ao berimbau, instrumento considerado sagrado

pelos capoeiristas, desencadeia um confronto : 147 (. . . ) Besouro então chamou Ao soldado de plantão

146 São Caetano é um bairro periférico da cidade de Salvador. 147Para Charlles Robson dos Santos, “Mestre Pastinha expressa bem o valor do instrumento berimbau para o capoeirista: ‘Muita desordem que capoeirista fazia não era propriamente por ele. Era também provocado. Porque se estavam numa vadiação, num grupo com berimbau na mão, eles entendiam de querer tomar pra querer quebrar... Aí inflamava. O íntimo do capoeirista não queria perder seu instrumento, então tinha que brigar’". Cf. SANTOS, em O Berimbau e a Capoeira (SP, junho de 2005). Charlles Robson dos Santos é, fotógrafo, compositor, músico e professor de capoeira Angola da Escola de Capoeira Angola Raiz Negra de São José dos Campos. Disponível em http://www.capoeira.jex.com.br. Acesso em 12/05/2009.

75

Argeu Cláudio de Souza O nome do cidadão Que era praça da Brigada Do Primei ro Batalhão Olhando para o soldado Besouro lhe disse assim –Me dê esse berimbau Que dele eu fiquei afim! O soldado disse: – isso Não é decisão prá mim (. . . ) – Sem o subdelegado Nada posso decidir E objeto nenhum Que o senhor vier pedir Nem arma, nem berimbau Daqui não irão sair ! (p .10) ( . . . ) Besouro entrou no posto Como se fosse uma invasão (p10) (. . . ) . Besouro ap roximou-se De Cerqueira e de Ageu O “képe” de Cerquei ra Besouro o suspendeu Disse: - Recruta, você Não sabe onde se meteu! (p .11) ( . . . ) Besouro saiu pra fora Sabre desenbainhado Três amigos de Besouro O aguardavam ao lado Do posto policial Que ele havia ent rado E os amigos de Besouro Juntaram-se ao companheiro Ent raram também na briga Com espíri to guerreiro Pois também eram soldados Do Exército brasil ei ro. (p.11) (. . . )

A retirada do “kepe” de Cerqueira denota um desafio à autoridade,

parte para o confronto, apo iado pelos companheiros, e são apedrejados pelos

moradores do bairro, unidos ao escrivão e a dois soldados do posto policia l.

Como revide, o capoeirista reú ne tr inta soldados do Exérc ito e retorna ao

76

posto. Sucede-se grande co nfusão, que só tem fim com a chegada do

comandante da guarda po licial e o genera l responsável pe lo quartel onde

Besouro estava lotado.

O historiador Antônio Liberac Pires traz o relato, documentado, das

vít imas e dos acusados, no processo aberto pelo Ministério da Guerra para a

apuração desse fato, o que, como já foi visto, culminou na expulsão de

Besouro da corporação:

[. . . ] mais uma vez fez justiça a sua fama: foi o ‘t error’ do exército baiano. [. . . ] Aos 23 anos de idade, foi p reso e processado no a rt igo 303, por t er p rovoca do lesões em Argeu Cláudio de Souza, agente da polícia civil de Salvador. O acontecimento ocorreu em 8 de setembro de 1918. 148

O relato do cordel retoma essa versão, na qual se co nstatou a culpa

de Besouro , por parte dos “poderes competentes”, e o capoeirista foi punido: (. . . ) Mandaram Besouro Preto Direto para a cadeia Pra não armar algazarra Nem zombar da vida alheia (p.11) (. . . )

Para Josiva ldo Oliveira, “os confrontos entre Besouro e polic iais

não ficaram restr itos ao universo do ‘mito popular’ ”.149 No episódio do

cordel, Besouro, membro da corporação do Exército Brasileiro, enfrenta

“recrutas da polícia civil”, invest ido de autoridade, em defesa da capoeira,

vez que o conflito foi desencadeado pelo desprezo ao berimbau.

Subentende-se ainda um confronto político, po is Besouro rep resenta

as forças federais em co nfronto com a estadual. “Ele crit ica o governo do

Estado da Bahia por financ iar os policia is e afirma sua posição ao lado de

representante das forças federais.” Segundo Pires, “Manuel Henr iq ue perdeu

148 Cf. PIRES, Antonio Liberac Cardoso Simões. Movimentos da cultura afro-brasileira. A formação histórica da capoeira contemporânea. 1890-1950. 2001. 453f . Tese (Doutorado em História). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. 2001. p. 227. 149 OLIVEIRA, Josivaldo. op. cit. p. 39. O autor se apóia nas informações do historiador Antônio Liberac Pires, que encontrou dois processos crimes movidos contra Mangangá, um deles, na cidade do Salvador em 1918 (época em que Besouro serviu ao Exército e foi expulso por conta desse episódio) e o outro em Santo Amaro, em 1921. Cf. p. 44.

77

esta causa e fo i expulso do Exército Brasileiro. Besouro de Mangangá, no

entanto ganhou certamente mais uma histó ria para engrandecer sua fama”. 150

Para Olive ira, os confrontos entre a polícia e os capoeiras, t idos

como “personagens perigosos” – expressão u tilizada pela e lite baiana em

meados do século XIX – eram freqüentes, o que comprova a valent ia dos

capoeiristas. Decorriam da principa l preocupação com o policiamento das

ruas de Salvador, para “tranqüilizar a população em re lação aos desatinos

causados por homens e mulheres desordeiros acusados de serem parte do

perigo que a rua representava”. O “(. . . ) p rimeiro atr ibuto para um homem

poder ser um bom capoeira era, por consegu inte, a valent ia, ou seja, a

coragem de encarar o perigo , de não ter medo de brigar, especia lmente se o

adversár io fosse um agente de o rdem ou um inimigo tirado a valentão”. 151

No cordel de Alvim Victor Garc ia, o narrador rememora os fe itos

desse “herói” valentão que, ao sair da p risão , encontrou guarida, graças à sua

fama, no Engenho Sant’Antônio do Rio Fundo, propriedade do coronel José

Antônio Rodrigues Teixeira, “Zeca Teixeira”, acontec imento presente também

no co rdel de Antonio Vie ira. O narrador destaca o episódio com o filho do

coronel: (. . . ) P ra cidade da Bahia Seu Zeca foi viajar Enquanto estava ausente Colocou no seu lugar Seu fi lho chamado Orlando Pra fazenda ele cuidar (. . . ) Lhe contaram que Besouro Na Vila estava bebendo Arrumando confusão E algazarra fazendo Orlando então ordenou: – Tragam ele aqui correndo! (. . . ) Besouro então foi chamado Para vir s e explicar Orlando lhe perguntou: – Onde é que quer chegar Com toda essa bebedeira Onde você vai parar? (p.19-20 )

150 Cf. tese de doutorado. PIRES, Antonio Liberac. op. cit. p. 223. 151DIAS, Adriana Albert. Mandinga, Manha & Malícia. 2005, p.135.

78

( . . . ) Besouro lhe respondeu: “– Orlando está enganado Meu patrão não é você Seu moleque malcriado Meu patrão é o seu pai E prove se estou errado! – E ainda t em outra coisa Que esqueci de lhe dizer: De ri fle não t enha medo É melhor você esquecer Pois senão dou-lhe uma surra Que tu vai se ar repender! – E agora eu vou-me embora E aqui não vou mais volta r Nunca mais nesta fazenda Eu volto a trabalhar Dê l embranças a s eu pai Assim que ele chegar (p. 20-21) (. . . )

Tão logo sa i desse engenho, o capoeirista passa a trabalhar para

outro fazendeiro, o que confirma a importância desse p ro fissional para os

coronéis, que mesmo com os r iscos, dependem de indivíduos destemidos na

proteção de suas propriedades. Eis uma passagem da narrat iva que ilustra ta l

dependência: (. . . ) Com a fama de Mangangá Seu Hélio era receoso Sempre ouvia que Besouro Era um cabra perigoso Um faquis ta a rruaceiro Um homem muito t inhoso Mesmo assim seu Heliodoro Resolveu foi ar riscar Contratou Besouro Preto Pra seis burros amansar E logo a desconfiança Que t inha veio acabar (p .25) ( . . . )

Em toda a narrat iva, é destacada não só a honest idade de Besouro ,

um homem avesso às injust iças, como também se exa lta o heró i imbatível.

79

Para o narrador, o nome Besouro Mangangá tornar ia esse capoeira um imortal,

como ocorre com todo herói: (. . . ) Não t inha nem trinta anos Já t inha vivido tanto Cada coisa que até nele Às vezes causava espanto Perigos que se l ivra ra Somente por seu encanto Das vezes que se l ivrou De t iros e de facadas Foram tantas emboscadas Mas sempre saiu i l eso De todas as enrascadas (. . . ) A cantiga que dizia Que no dia em que morresse O que ele mais queria Que ninguém se esquecesse Era que depois de mor to Seu nome sobrevivesse (p.26-27) (. . . )

O herói que sobrevive no nome marca sua posição de capoeir ista

notável, capaz de int imidar os adversários:

(. . . ) A briga continuava Eram sete contra um Besouro enfurecido Derrubava um por um E no fim, dos sete homens Em pé não sobrou nenhum. Besouro se ap rumou E pagou o que bebeu Olhou os homens no chão Pensou no que aconteceu E antes de ir embora Um recado ainda deu: “Homem pra brigar comigo Nessa t erra aqui não há Podem vir t entar a sorte Mas aviso que não dá Se querem saber quem sou Sou Besouro Mangangá” (p. 23-24)

80

Em Histórias e Bravuras de Besouro está endossada uma

representação mítica de Besouro Mangangá, um ser que transita pelo mundo

sobrenatural, através de sonhos, habitado por d ivindades, seus orixás de

proteção: (. . . ) Nesse dia ao dormir Algo est ranho aconteceu Besouro t eve um sonho Logo assim que adormeceu No sonho encontrou Ogum Que um aviso lhe deu. No sonho Ogum falou: “-Besouro t enha cuidado Estou a lhe proteger E vivo sempre ao seu lado Mas você deve manter O seu corpo fechado. “E tome muito cuidado Com as mulheres que anda Tenha sempre fé em Deus Que vence qualquer demanda O bom fi lho sempre faz Aquilo que o pai manda” (p.24)

O sinal de alerta do orixá a Besouro vem reiterar a força mítica no

universo cultural do capoeira, o que, segundo Eliade, “implica em uma

experiênc ia verdadeiramente “re ligiosa”, pois ela se dist ingue da experiência

ordinária da vida quotidiana”. 152 Prossegue o narrador :

Então Besouro acordou Do sonho meio assustado Tentando lembrar daquilo Que Ogum tinha lhe falado Mas não l embrava de tudo E levantou preocupado (. . . ) Naquele dia Besouro Lembrou de sua vida inteira Também lembrou da cantiga Das rodas de capoeira Aquela que mais gostava E cantava a sua maneira A cantiga que dizia

152 Idem. Ibidem, 1991, p. 22.

81

Que no dia que morresse O que ele mais queria Que ninguém se esquecesse Era que depois de mor to Seu nome sobrevivesse. (p25-26) ( . . . )

Tal presságio é interpretado, quando chega a vigí lia, como anúncio

de sua morte, o que faz o capoeirista dese jar , segundo o narrador, a

imortalidade, conquistada com o nome. O sonho é sacramentado na histó ria de

Victor Garcia:

(. . . )

E quando a primeira estrela Lá no céu então bri lhou Besouro fechou os olhos E as duas mãos juntou Fazendo uma oração Em voz baixa ele falou: -No dia em que eu morrer Não quero ninguém chorando Quero que o berimbau Esteja s empre tocando E o meu nome nas rodas Alguém esteja cantando -Meu corpo pode dormir Pode até desaparecer Mas o nome de Besouro Ninguém i rá esquecer

Minha fama a cada dia Muito mais irá crescer (p . 27-28) (. . . )

As palavras “oração”, “berimbau” e o codinome Besouro compõem a

teia tecida para transformar um heró i em mito. A o ração é o elo entre o

homem e o sobrenatural, o berimbau é o instrumento que desencadeia o tom, a

musica lidade para jogo da capoeira.

No desenrolar da história, Garcia narra a morte de Besouro

Mangangá, relato que compreende episódios prosaicos da vid a do heró i, quase

um deus, que também vive o seu co tidiano :

(. .. )

Besouro passou em casa Pra poder se arrumar

82

Tomou um banho e foi Uma mulher encontrar Bem cedo veio acordar (. . . ) Logo que amanheceu Besouro então se vestiu Daquela l inda mulher Mangangá se despediu Colocou o seu chapéu E pelos fundos saiu (p . 28) ( . . . )

As estrofes a seguir dão conta de como o capoeirista fo i vítima de

uma cilada: (. . . ) Decidiu então sair Lá por detrás do roçado Passou embaixo da cerca Feita de arame farpado Depois de passar l embrou Do que havia sonhado Mas nesse mesmo instante Um homem por det rás chegou Uma faca de ati cum Na barriga lhe enfiou Besouro nem teve t empo De olhar quem lhe emboscou Mas sabia que era tarde Que chegara a sua hora A sua missão no planeta Chegava ao fim agora Part iria para Aruanda Era t empo de ir embora (p. 28-29 ) (. . . ) O homem saiu andando Besouro caiu no chão Nem sabia quem havia Lhe feito esta traição Enquanto o sangue descia Lembrou-se de uma oração Mangangá sangrava muito O sol já bri lhava forte Besouro t inha vivido Uma vida de muita sorte Mas parece que chegara A hora de sua morte (p . 29) (. . . )

83

A narrat iva prossegue discorrendo sobre a remoção do capoeirista à

Santa Casa da Miser icórdia em Santo Amaro. Como todo herói, Besouro

também t inha o seu ponto vulneráve l, para marcar a sua condição humana. O

herói burlou um preceito, o que o deixou com o co rpo aberto. Contudo , a

traição que sofrera não o retira da condição de herói. Ao contrário, a morte o

engrandece, f irmando-se o pacto com o mítico – o homem que se transforma

em herói – e o místico – o homem que busca o divino, o sobrenatural.

Besouro “partir ia para Aruanda”, 153 ao encontro dos o rixás da rel igião

afr icana.

Os versos f ina is do cordel de Garcia trazem uma homenagem do seu

auto r, capoeirista, de “corpo e alma também”, a Besouro Cordão de Ouro. ( . . . ) Mas quem é capoeirist a De corpo e alma também Quem conhece os segredos E quem realmente tem No sangue a capoeira Me entenderá muito bem A emoção que eu sinto Quando escuto alguém contar Uma história de Besouro Ou quando eu vou cantar Cantigas de capoei ra Para lhe homenagear (p.30-31) (. . . ) No que depender de mim Será pra sempre exaltado Nas rodas que eu canta r Besouro será l embrado E quando eu for jogar Ele esta rá ao meu lado E ele está mais perto Do que pode imaginar Besouro é uma est rela Out ras vezes se trans forma E as rodas vem visi tar

Chega em forma de cantiga Ou do som do berimbau

153Aruanda (banto) (LP)-s. a África mítica, termo que aparece freqüentemente em cânticos rituais e do folclore afro-brasileiros, como nos versos “Quando eu vim de Aruanda” ou “Eu sou negro de Aruanda”. In: CASTRO, Yeda Pessoa. Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Rio de Janeiro, Topbooks, 2005, p. 158.

84

Eu sinto a sua presença Energia sem igual E tenho a plena certeza Que Besouro é imortal (p . 31)

Os sent imentos do cordelista c imentam essa narrat iva mít ica, um

discurso “capaz de rep resentar a vida e a morte, o tudo e o nada, o pleno e o

vaz io, o visíve l e o invisível, o d ito e o inefáve l, o mistér io da existênc ia”. 154

Besouro torna-se imortal, transfo rma-se em uma estre la da constelação de

mitos da cultura popular.

As histórias inventadas pelos co rdelistas sobre Besouro Co rdão de

Ouro são traduções e ress ignificações de um mito construído por

determinados segmentos socia is, marcadas por va lores produzidos em uma

época, em que ainda se fazem potentes co ntemporaneamente. Besouro

Mangangá, como ícone da capoeira, s imboliza a r es istência aos dispositivos

repressivos p roduzidos e usados por uma menta lidade escravagista no Brasil,

desde os tempos da co lonização.

154LUZ, Marco Aurélio. Agadá; dinâmica da civilização africano-brasileira. 2.ed. Salvador: EDUFBA, 2000. p. 21.

Fonte: CARNEIRO, Edison - Caderno de Folclore 1 – Capoeira, 1977

85

4 MORTE E NASCIMENTO DO HERÓI NEGRO EM FEIJOADA NO

PARAÍSO

Feijoada no paraíso tem como personagem centra l o capoeir ista

Besouro Mangangá. O romance retoma algumas histórias e “causos” já

contados a respeito desse personagem. Na abertura do livro , int itulada

“Memórias de um capoeira”, ass inada por Marco Carvalho , tem-se demarcado

o recorte na composição dessa teia ficcional:

Esta é a his tória de Manoel Henrique, filho de Maria Hai fa e João Grosso, contada por ele mesmo desde antes e até depois do t empo em que vi rou Besouro, capoeiris t a famoso de Sant o Amaro de Nossa senhora da P uri fi cação, na Bahia. Não é a his tória toda porque sua vida não é coisa que caiba mesmo em nenhum livro. São fragmentos, casos, his tórias, nar rações de sua saga t anto neste mundo quanto no outro. Não se encontrar á nestas páginas as pretensões de uma biografia. Mesmo porque tudo o que dizem sobre ele é e será sempre, de uma forma ou de outra, l enda e fantasia. Ele é um mandingueiro que s e trans formou ainda em vida no mito que é até hoje. E é um sujeito muito maior do que qualquer l i t era tura. É cla ro que nem tudo o que se conta sobre ele está aqui, porque a memória de Besouro já s e espalhou dent ro e fora da sua cabeça entre os capoeiras . E se por acaso uma ou outra his tória deste l ivro não t iver acontecido do j ei to que Besouro o conta, azar o dela. (p. 9). 155

Chama atenção o segu inte comentário : “[. . . ] não se encontrará

nestas páginas a p retensão de uma b iografia”, entend ida aqui nos moldes de

uma biografia tradicional, em sua pretensão de contar a história de um

indivíduo em sua totalidade, seguindo uma cronologia. Ao contrár io, Feijoada

no paraíso traz “fragmentos, casos, histórias”, como uma co lcha de retalhos,

que vai compor a saga de Besouro “tanto neste mundo quanto no outro”.

Destacando a grandeza desse capoerista, tem-se ainda na abertura do

livro a declaração de que Besouro é “um suje ito muito maior do que qualquer

literatura”, visto que o escrito não comporta toda uma experiência de mundo,

o vivido. Por isso, abd ica-se de buscar uma história verdadeira: “Mesmo

155CARVALHO, Marco. Feijoada no paraíso, a saga de Besouro, o capoeira. Rio de Janeiro. São Paulo: Record, 2002. Doravante, as referências a essa narrativa virão sucedidas da indicação de páginas.

86

porque tudo o que dizem sobre ele é e será sempre, de uma forma ou de outra,

lenda e fantasia”.

Nesse p risma, ao percorrer o “movediço mundo da literatura”, 156

tecendo uma lenda do herói, Marco Carvalho recorre a textos de uma tradição

oral, histórias, “causos” sobre Besouro, mito da cultura afro -baiana, para

manter viva uma memória. Retomando Wolfgang Iser , entende-se que os

“causos” – ouvidos pelo autor, como declara, a lguns, através das letras de

músicas compostas por capoeiristas –, sejam de o rdem sent imenta l, sejam de

ordem social, vão se tornar matér ia-prima dessa fabulação, num processo de

se leção e combinação .

Essa narrat iva traz um personagem-narrador, Besouro, contando sua

morte, seu apelido, seu nasc imento, o jogo da capoeira, relações de amizade e

contendas com a políc ia e jagunços, a mando dos coronéis do Recôncavo

Baiano. Reto rna, portanto , boa parte dos episódios ficciona lizados por

Antônio Vieira e Victo r Alvim Garcia, destacando-se nos textos dos

cordelistas um narrador em terceira pessoa.

No texto de Marco Carvalho , as exper iências, através de relatos

entremeados de reflexões, expressam também lutas de resistênc ia, e são

acrescentados alguns episódios que não se encontram nos textos de Antônio

Vie ira e Victor Alvim Garcia, como o nascimento do neto de Besouro na

cidade do Rio de Janeiro.

Estruturada em forma de novela, gênero literár io que se caracter iza

por agregar diversos episódios ou contos, vividos ou envo lvendo o

personagem central, Fei joada no para íso reúne vinte e um capítulos, como

quadros ou telas, em que Besouro rememora a sua história e as hist órias dos

moradores da cidade de Santo Amaro da Purif icação , no Recô ncavo Baiano, e

sobre elas conjectura, divaga. Como estão reunidos, os capítulos podem ser

lidos de modo independente, 157 e a narrat iva contribu i para uma compreensão,

numa perspectiva histó rica e soc ial, da histó ria dos negros no país.

Feijoada no para íso confere ao jogo da capoeira uma visibilidade

maior, se comparada aos textos de cordel, como prática e luta incessante de 156 Expressão empregada por Muniz Sodré quando a apresentação do livro Feijoada no paraíso. 157Títulos dos capítulos: Cilada, Fama, Tio Alípio, Apelido, Mangangá, Palavra de homem, Fuzuê, Feira, São João, Encruzilhada, Quando eu morrer..., Anjo não, Magia, Enterro, Roda de rua, Madames, Padre Vito, Babuíno, Sorte, Nascimento e Feijoada no Paraíso.

87

resistência, que compõe, segundo Stuart Hall, os repertórios cultura is dos

negros, estratégias “capazes de efetuar diferenças e de deslocar as disposições

do poder”, como entende Hall ao trata r, no contexto contemporâneo, da

questão da visibilidade dos negros na cultura, a qual, historicamente, é

“regulada e segregada” na cu ltura hegemônica. 158

Ainda que se trate de uma história criada por outro, de autoria de

Marco Carva lho, também capoeirista, que concede voz ao personagem

Besouro, Feijoada no paraíso toma partido dos oprimidos, ao d ramatizar, do

seu lugar de fa la, aqui ainda apoiada em Hall, a “experiência histórica do

povo negro na diáspora”, cujas lutas sobrevivem através da “estét ica negra

(repertórios culturais próprios a partir dos quais fo ram produzidas as

representações popu lares) e das contranar rativas negras”. 159

A narrat iva é tecida por leveza e d inamismo, ao contar os ep isód ios,

com uma linguagem marcada pela o ralidade e coloquialidade, daí as frases

entrecortadas, pensamentos interrompidos, às vezes recorrendo ao d iscurso

indireto livre. O personagem Besouro se apresenta como um sujeito reflexivo,

ao narrar , comentar e fazer especulações sobre suas ações, os valores de sua

cultu ra, de sua tradição e as e lites políticas e econômicas, representadas pelos

coronéis e senhores de engenhos de açúcar.

Como a narrativa não obedece a uma ordem crono lógica, o

nascimento do capoeirista Besouro é trazido à altura da página 149 do livro,

de um to tal de 158 páginas, no cap ítu lo “Nascimento”, episódio evocado

quando nasce seu neto , no Rio de Janeiro.

Ninguém não se l embra do dia em que nasceu. Não conheço um. Sabem só o que foi contado. E lamba. Quando nasci t eve rojão de festa e jogo de faca no fim da feira, mas nem foi nada de marra não. Foi só porque Tonha do Rolo quis pôr respeit o num desavergonhado que folgou com ela. O sol benzeu os canaviais com sua luz e s ecou o miolo de pote da moringa que a minha mãe deixava na sala para as vis i tas . Pelo menos er a essa a desculpa que João Grosso, meu pai , dava para cada um que vinha saber notí cia do parto, enquanto servia aguardent e da caiana no lugar da água. Porque o nascimento do menino merecia uma festejação. A preta Zulmi ra veio dar a notí cia a meu pai . O velho babalaô t inha jogado os búzios. Viu o destino. Cachorros lat i ram nas ruas empoei radas de Sant o

158Cf. HALL, Stuart. Da diáspora; identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. p.339. 159Idem, p. 344.

88

Amaro. O padre não quis dar sua benção. Disse que não i a batizar o fi lho de Ogum que eu era, a não ser que meus pai s renegassem a sua fé de origem, o que meu pai e minha mãe s e negaram a fazer. Um besouro entrou no ouvido do padre nessa hora e ele imprecou por isso em vigoroso i tal iano tanto do palavrão que deixou suas beatas com todos os olhos arregalados e com as bocas abertas. Quando nasci foi assim. Pelo menos foi o que contaram. (p . 150).

O re lato registra a prepo tênc ia da Igre ja cató lica, que não aceita

nem reconhece os p rece itos da religião afr icana, num período em que o

candomblé era uma prática cultu ra l criminalizada pelas elites do país. Daí a

recusa do padre para dar a “benção”. Mas o personagem centra l da história,

tentando organizar o vivido no período do pós-abolição e transição entre

Império e República, para entendê- lo, troca seu nome, Manoel Henr ique

Pereira, de origem portuguesa, por aquele que melhor traduz a sua

const itu ição como suje ito: Besouro Mangangá ou Besouro.

A história dos negros escravizados diz de uma lu ta pela

sobrevivência, contra o extermínio de vidas marcadas por so frimento e

privação, como a do capoeirista Besouro, que cultua suas crenças d ivinas, de

modo a buscar proteção frente a um Brasil desigual e host il aos negros. Por

isso, o personagem evoca momentos de sua vida que ilustram modos de

res ist ir a um regime opressor e a uma mentalidade escravocrata:

Mesmo quem nunca morreu antes pode morrer um dia. Mas isso eu não i a ap render hoje não. Só bem depois da noite em que cruzei o medonho. Sou homem de sor te, me acredit e o senhor. Mesmo quando o destino se esmera de esvaziar para es fregar o cont rário no meu nariz, mesmo aí , ainda é mais quando eu acredito que sou um cabra muito agraciado por Deus e pelos santos de todos os recôncavos da Bahia. Sou cabeça que orixá fundou falange e dinastia . Foi s im sempr e Ogum que me reinou. Mas também sou homem governado a coração, porque cresci cri ado a mangalô com leit e, que minha t ia me dava na solei ra da porta todo dia, para mim e para as outras cri anças. No coração da fé e da maldade que era a noss a vida de menino, morava essa mãe de um p rimo que me alimentava, com feijão-de-porco e coent ro, e com a poesia das lendas dos antigos. Mas minha fome era de esperteza de encarar o cão que era o mundo dos pretos naquele tempo. (p. 143).

89

A luta pela sobrevivência confere- lhe um reconhecimento , atestado

pelo nome Besouro Mangangá, o que é significat ivo na sua const ituição como

su jeito :

Tudo na vida e depois dela l eva t empo. Tudo tarda. Hoje sei que tudo passa e tudo fi ca em algum quintal da memória, junt o com bichos e abacateiros, onde t empo nenhum não reina e apenas um que outro t em o direito de i r vadiar. Mas que m anda, faz, s e comove é que imprime no t empo e cri a engendramentos, deixa marca. Fama que ficou para trás é rastro. Comigo mesmo foi assim. Acompanhe. Só depois de muitos fei tos e desfeitos foi que minha fama veio a crescer e encher mais que bexiga em festa de carnaval. [ . . . ] Fama engorda e cresce, t anto quanto gente, e a minha foi fi cando tão forte e viajei ra de modo que passou a chegar em antes de mi m em muitos lugares, rinhas, brigas, festas e tocaias. E deu de custar de muito a ir embora, mesmo depois de eu já t er ido. Mas foi só isso. O resto é o povo e que inventa e aumenta. Eu, hein? Mas nunca que briguei uma tarde a fora com ningué m não, meu senhor, nunca careceu uma coisa dessa. Bestagem. Isso é tudo falastri ce dessa gente. Onde j á se viu alguém vira r desvira r coisa, toco, b icho, assim sem mais precisão ou justifi cativa. Isso é coisa de encantamento. Não é par a qualquer um não. (p . 17-18). O gosto por confusão veio depois. Já quando vencia o largo em minha vida o tempo em que o perigo é que tinha medo de mim. Porque já se pronunciava o nome de Besouro com respeito no final das feiras, nas rodas e festas de largo, como é hoje em dia, para meu orgulho e devoção. (p. 144).

A fama vem no nome, e no caso de Besouro , este a carrega como

uma senha que o pro tege da ordem escravocrata, pois, mesmo vivendo em um

país de negros libertos, torna-se uma referência para o universo da capoeira e

da cultura afro-baiana ou afro-brasile ira. O personagem reflete sobre o

sent ido de seu apelido, que sub linha a sua fama, aceito, nesse caso, como

resistência aos valores da cu ltu ra européia, b ranca e cristã.

O nome é a primeira imposição que a pessoa recebe pelas fuças adent ro, como assim para o vivente já ir se acostumando às out ras tantas que a vida há de fazer ou deixar de fazer só para mostrar que é ele, o destino, quem manda e desmanda e toca na banda. Ter um apelido é resist i r. Em Santo Amar o quase todo mundo tem um. Ser chamado por outro nome é se r reconhecido pela di ferença que sempre existe ent re o nome q ue o mundo dá para qualquer José, Nestor, Vi rgulino ou Pedr o Alcântara, e o que ele t em no coração, entre as pernas, ou n a cabeça desmiola rada de não prestar atenção na vida não. [. . . ] E os apelidos são tanto assim um resumo como, às vezes, só o

90

começo da história daquele um que atende por aquele nome carinhoso, engraçado ou esquisi to. É nome conquistado por merecimento, não é coisa herdada não. É mais . Ter apelido é muitas vezes melhor do que só t er o nome [. . . ] (p. 31).

O apelido está relac ionado à vida e às experiências pessoais, “nome

conquistado por merecimento”, ao contrário do nome civil, imposto por leis

sociais e que, na maior ia das vezes, traz uma origem diversa do seu dono . No

caso de Besouro, o nome de batismo e c ivil é de o rigem portuguesa, o que

demarca uma dominação: “Sou Manoel. Manoel Henr ique. Mas sou Besouro.

Nasc i de Maria Haifa tendo por pai João Grosso e fu i bat izado com nome

santo”. (p . 32).

A criação da alcunha atesta, ass im, a sua notoriedade:

O gringo conversava com o padre na sombra das árvores do quintal da casa de Amália. E no meio da conversa ele, que era um homem estudado, disse que um besouro, fosse pelas l eis da fís i ca ou qualquer outra raça de l ei , era um bicho que t inha tudo para não voar, muito pelo cont rário. . . e que, no entanto, voava gracioso e veloz. Foi aí que eu me a feiçoei de ser um mangangá pela vez primei ra. Quase endoideci de l ouvar e cumprir preceito nos dias seguintes para aprender a art e daqueles bichinhos. [. . . ] Minha dedicação a esse aprendizado, durante todos os anos dessa minha vida só não foi maior que o meu fascínio. Depois já com o t io Alípio, ardeu foi vela em muitas quaresmas e eu encantado com aquele dom. (p . 51 -52). 160

O fascínio por movimentos que desafiam a le i da gravidade, como

ocorre com um besouro que “tinha tudo para não voar”, e com o corpo no jogo

da capoeira, conduz Manoel Henr ique a um aprendizado incessante, com

sa ltos leves e f irmes, um corpo bailando no ar . Esse ap rend izado requer

“dedicação”, d isc ip lina e observação da “arte daqueles bichinhos” e não

prescinde de intuição. Por isso, afirma o personagem: “Mas não ap rendi nada

disso com luneta, régua, mapa, não. Foi tudo no respeito, na reverênc ia, na

cadência, com tento apenas no que fosse pé pisando certo nos errantes do

mundo”. (p . 52).

160Mangangá, de origem banto, pode significar pessoa importante, o manda-chuva, o maioral. Cf. CASTRO, Yeda Pessoa. Falares africanos na Bahia. Um vocabulário Afro-Brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005. p. 275.

91

Ainda o apelido va i marcar uma ident idade, importante para dribla r

o controle sobre os indivíduos:

Ter apelido é muitas vezes melhor do que t er só o nome, porque se ninguém não assina apelido em papel de escri tura nem em cartório, nem quando os morcegos procuram, é só porque aí , pelas conveniências , a gente só se sabe pelo nome, como cidadão de respeito, mas quando é preciso mesmo, quando as coisas fi cam quentes e os morcegos vêm com a cavalaria, a gente só se reconhece pelo escorregadio dos apelidos. (p .32). 161

Percebe-se na passagem acima que o apelido é o que lhe confere

respeito, princ ipalmente no universo da capoeiragem: “Todo mundo sabe. Na

capoeira então é lei todo mundo ter um nome de fé. Um nome só para bater e

levar porrada.” (p. 32).

Ainda o narrador apresenta sua versão para o reconhecimento da

força e do poder do apelido, um “segundo nome”.

Pois foi distraído na vida, de ainda dar asas a esse encanto, que anos mais t arde, vinha descendo a estrada do Maracangalha pela minha mão direita. Esbarrava por onde o mato era uns dois palmos do chão, a modo de me esconder logo, antes de precisar virar planta se a jagunçada de Noca de Antônia mais os morcegos de delegado Veloso viessem mesmo para me dar a caça. De fato quiseram me surpreender na encruzilhada, e quase que consegui ram se não t ivesse eu mais surpreendido eles na montagem da tocaiação. Tanto distraído que eu estava que nem deu t empo de proferir por intei ro a encantação que t io Alípio me ensinou para uma ocasião dessas. [. . . ] Corri na di reção deles gri tando e na certeza que o fi lho de Ogum que eu era não haverá de morrer por nenhum fer ro que eles tateassem nos seus embornais não. Nem figurei o t empo que l evou aquilo, só sei que a cada mais que eu corri a i a fi cando tanto e t anto l eve e a escapada menos improvável . Quando assustei , j á voava l ivre sobre os praguejamentos espantados dos cabra ruim de Noca de Antônia. Antes que dessem pelo que ocorreu, eu j á avoava solto. Besourava. Mangangá é voador. Nunca me abusei desse dom. Mas escolhi o olho esquerdo de Noca e ardi ele até inchar. Fiz isso par a que soubessem que sou o espíri to daquele um que fer roa os beiços dos bezerros novos que ainda não aprenderam a não focinhar o verde de certas moitas na seca. Se assuntem. Que m mandou perseguirem um protegido? (p. 53-54).

161 “Morcego” era o apelido dos homens que estavam sob as ordens dos coronéis, para procurar os negros tidos pelo aparelhamento policial como “vadios” e “perigosos”.

92

Para o personagem, Besouro é “o espírito daquele um que ferroa os

beiços dos bezerros novos que ainda não ap renderam a não focinhar o verde

de certas moitas na seca”. Seu apelido ident ifica, ass im, alguém que aprendeu

a arte da capoeira – “já avoava so lto”, “besourava” –, marcada pela agilidade,

imprevisib ilidade e malícia, a liadas à p ro teção do seu orixá, Ogu m. No

episódio descrito, a proteção sagrada, vinda desse deus, traduz a força do

sobrenatural, que emerge em muitas ou tras situações. Por isso, nessa

narrat iva, traços marcantes do que se convencionou chamar de literatura

fantást ica, presentes naqueles “causos” e histó rias sobre Besouro,

permanecem e são mais exp lorados: o extraordinár io, o insó lito , a magia, o

encantamento e o sobrenatural.

Em Feijoada no para íso tem-se uma trama que conduz o leitor ao

entendimento de que Besouro conta suas histó rias depo is de morto, como

também reto rna ao mundo dos vivos, vindo a partic ipar de diferentes

situações, sem ser visto . Assim, a morte, ou as mortes, do capoeirista Besouro

é narrada como um ep isód io que não só encontra várias versões, como escapa

à normalidade, uma vez que está envolta em mistér io, cercada pelo

sobrenatural, sem uma explicação lógica causal.

A primeira his tória da narrat iva, int itulada “Cilada”, começa pela

morte, contrariando, de início , o esboço de uma b iografia convencional,

marcada pela linear idade e sequência cronológica, podendo-se encontrar nessa

narrat iva ecos do escritor Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás

Cubas , que também começa pela a morte do personagem. Assim começa

“Cilada”: “Quando morri pela p rimeira vez já era noite, t inha passado o dia

nas folgas com a mulata Doralice entre as p ilhas de açúcar do coronel

Juvencino”. (p. 13).

A referência a “pela primeira vez” s ina liza os diferentes momentos

em que o capoeirista enfrentou situações de perigo, muitas delas, conforme

relatos orais, provocadas pelos senhores do engenho de açúcar no Recôncavo

Baiano, que inst ituíram a servidão aos negros no Brasil colonial. Assim, a

cena amorosa protagonizada pelo personagem expõe de modo irônico a

exp loração do negro pelo sistema escravocra ta. As “pilhas de açúcar”,

produzidas pe los braços dos descendentes de afr icanos, à custa de suor, labor

93

e tortura, são cenários para dias e tardes de id ílio s entre Besouro e Doralice,

como uma vingança p razerosa :

Amei muito aquela cab rocha sobre os doces em que trans formavam no engenho toda a cana madura de Maracangalha. Terminávamos sempre melados ainda de mais mel. [ . . . ] No tempo em que vadiar era grande, muitas vezes adormecemos abraçados entre fer ramentas, fazendo sacos e rapaduras de t ravessei ro, só acordando mesmo por medo do perigo ou para ap roveitar mais a tarde e o t empo para ama r mais no meio do mel de engenho esparramado no chão ent re os potes de barro. (p . 13).

“Cilada” expõe o perigo vivido pelo personagem Besouro, ao

retornar de um desses momentos de “vad iação” 162, alegorizando as tentat ivas

de apagamento, real ou simbólico – engendrado pela cu ltura européia – das

cultu ras de matriz afr icana.

Quase tarde, então estranhei o s i l êncio. Estanquei. Alguma coisa piscou rápido e azulado lá para os longes das moitas , j á perto do cruzeiro. Estranhei. Podia ser vaga-lume. Não, não podia, duvidei . Vaga-lume mesmo só pisca quando já t em estrelas penduradas firmes no breu do céu, gostam de rivalizar. [ . . . ] Aquele bri lho bem podia ser do cano de alguma ar ma dos homens do coronel, ou o bri lho dos olhos do coisa -ruim. Ou os dois , quem haverá de saber. [ . . . ] (p. 14-15).

O personagem ident if ica s igno s que o colocam frente ao risco,

levando-o a preparar-se contra um possíve l ataque. A noite veio sem est relas e s em vaga-lumes, mas com ruídos estranhos, de homens apreensivos, espantando muriçocas, quebrando gravetos, corações batendo. Mais e mais barulho s e faz quando se t enta fazer s i lêncio. Sei nota r. Situação di fí ci l para eles t ambém. Quase t ive pena, mas nem não t ive, que eu não era também passarinho. Escolhi um, depois de muit o esperar, e fui chegando com todo o cuidado, para não fazer barulho, que eu não era cobra nem gato naquela hora. Este um só me notou quando já era t arde, nem teve t empo de fazer alarde, avisa r ninguém. Tirei ele de combate. Botei só para dormi r, nem tirei a a rma dele. Não matei não, que nunca fui de matar ninguém assim sem mais, s em preci são. Tirei foi s eu surrão de couro gasto e vesti nele meu melhor paletó , que

162 Expressão empregada no texto com o sentido de “brincar”, “divertir-se”. In: Novo Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: editora Nova Fronteira, 1986. À época em que Besouro viveu, a expressão também era usada numa referência ao jogo da capoeira.

94

estava um pouco sujo de barro. Mas eu era, podem acreditar, meu melhor paletó. Vesti s eu surrão para me proteger da noit e e de outras coisas traiçoei ras , e sentei quieto na frente dele. Esperar é a rt e. Silêncio de tocaia é grande e pesa no ar.

Com astúcia e inteligência, Besouro consegue se livrar da “toca ia”,

vest indo a roupa do mandante do coronel: “Enquanto corria, vi passar po r

mim dois, três, dez, sei lá, não fiquei pra contar”. (p. 16). Tranqu ilo por ter

escapado da emboscada, o personagem não se sente culpado pelo delito :

“Cheguei em casa antes do sol, a roupa suja de barro seco, a alma limpa como

os lençó is que a avó botava para quarar sobre as abobreiras” (p. 16).

Feijoada no paraíso traduz a visão do candomblé sobre a morte, um

rito sagrado, carregado de encantamento. O personagem relata o seu fu neral,

em que se faz presente a Oyá Iansã, 163 em sua proteção:

O enterro se deu depois da chuvarada. Só mais quando as cigarras vieram se consumir na doidei ra de chamar o sol , q ue veio depois trazendo o arco-íris, resplendor da natureza, aí é que me abalei com a serpente encantada a rastejar no l igei ro, ent re a cor e a luz. Iansã veio então se mi rar nas poças q ue refl et iam as cores da cobra. Meu olhar se esbarrou com o dela justo no fundo da água morna parada da chuva que ela t in ha chovido e ventado antes O que estava se passando comigo? Poder olhar, olho no olho, a dona das nuvens escuras haver á de t er algum sentido mas durou muitíssimo para eu figurar qual fosse. Mesmo abrandado pelo refl exo nas águas que ela caprichosamente empoçou enquanto ventava a tempestade, o seu olhar severo e poderoso. A senhora dos panos vermelhos me acenava. Por certo haverá de t er alguma coisa a me dizer. Por isso estava ali . Mas o quê? (p. 110).

O cortejo é acompanhado ao som dos berimbaus e ladainhas

entoadas em homenagem àquele que partira para o mundo divino .

Foi Quincas [era ogã] quem susteniu o berimbau no velório, que durou noite adentro, antes, e o resto do dia até no enterro. [ . . . ] O sino do único campanário da igreja de Nossa Senhora da Oliveira do Campinho tocou as vésperas. Vindo, só agora sei de onde, o som do gã veio rompendo e rompendo, fer ro contr a fer ro, um ar que foi s e abrindo numa fenda por onde ent rara m os graves toques dos atabaques. [. . . ] Quem era de bater cabeça

163 Oiá: nome de Iansã menina, uma das três mulheres de Xangô. Cf. Oba.Yor. Oyá., deusa do rio Niger, na Nigéria.Iansã (kwa) (BR) –s.f. orixá do fogo, trovão tempestade, [...] mulher corajosa e destemida, a única aiabá a quem é permitido dançar qualquer toque consagrado às outras divindades. Cores: vermelha e rosa. Cf. CASTRO, Yeda Pessoa. Op. cit.. p. 247-305.

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ou tambor bateu e aguardou o início da cerimônia reservada apenas aos mais chegados. (p. 111-112).

Almir de Are ias assim descreve esse r ito:

[. . . ] seja qual for o motivo da morte de um capoeiris ta, el a é s empre, t ambém, festa e união e um mot ivo para que os capoeiristas pensem mais do que nunca no sentido da vida e no gosto de viver, que, muitas vezes, mesmo dent ro de uma roda de capoeira, também já sentimos. [. . . ] A notícia corre, a dor e a tris t eza são imensas. Porém nesse momento o amor e a solidariedade florescem mais do que nunca no universo de cada capoeiris ta. Em um terrei ro de capoeiragem o seu corpo será velado. Todos, orgulhosamente vestidos de branco e co m seus berimbaus em punho, enfeitados de fi t as coloridas, o esperam. O corpo chega, o si lêncio e apreensão formam o clima do momento, a orquest ra de berimbaus, ao toque belo e melancólico da lúna o recebe. O corpo é colocado no cent ro da roda, a roda onde ele s empre esteve e na qual t eve os seus maiores momentos de êxtase e delírio. 164

Nessa descrição, Areias traduz a carga metafórica do funera l de um

capoeirista, comparando-o, por sua beleza, à “corte de Macunaíma, o herói

sem caráter , seguida do seu séqüito de araras coloridas, em d ireção ao reino

cint ilante das estre las”. 165 Quanto ao personagem Besouro , herói de corpo

fechado , ao d irigir - se ao mundo mítico, teve a companhia da rainha dos

eguns, Iansã e o seu ve lhe mestre Alíp io:

Oiá dançava sua dança depois da chuva, os braços estendidos para frente a espantar os eguns. Dia de forças poderosas foi aquele. Não sei s e o que gi rou em mim foi primeiro a cabeça ou o corpo. Sei que rompi o terreiro todo varrendo ele em rastei ras , em armadas e floreios diversos . Sempre com a cabeça rente ao chão, sempre respeitoso. A dama do al fange encantado me olhou no olho. [. . . ] Nessa hora é que vi que os outros todos eram também eguns dançando à roda dela e estanquei. Foi aí que comecei a entender. Egum baba mais s e amansa e s e cria mesmo é na barra das saias de Iansã. Só acordei que t inha morrido naquela hora. (p. 112-113).

A mão fi rme de t io Alípio produzia em mim uma consumição danada de dançar e dançar pela primei ra vez ent re meus ancestrais para saudar a esposa de Xangô que já reinava no terreiro. O olho de Iansã, desviado das águas empoçadas, procurou em mim o respeito. E encontrou mais o fi lho de

164AREIAS, Almir das. O que é capoeira. São Paulo: Brasiliense, [sd]. p. 109. 3 ed. (Coleção Primeiros Passos). 165 Id. Ibid. p 109.

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Ogum cumpridor de seus deveres que t io Al ípio me ensinou a ser. (p. 112).

Assim, em Feijoada no para íso , o jogo da capoeira ganha destaque

em d iferentes situações, sendo também uma p rática que é ob jeto de reflexão,

por parte do personagem-narrador, vindas como lição, um saber acumulado

pelo tempo. Assim entende o personagem:

Capoeira é coisa de se aprender de cada vez um pouco até o fim de nossos dias , é art e de bicho de planta, de pedra, s im. [. . . ] Capoei ra é a vadiação, a r oda. É ser o b icho, um besouro, um camaleão que mamou na mula e t em pé pesado, ginga mole, dolência e a preguiça a que qualquer um tem di reito, ora se. [. . . ] Capoei ra é magia grande. [. . . ] capoei ra é art e. (p. 52).

Quem conhece sabe que a capoeira é um ri to de corpo. Mas que deve ser prati cada por quem tiver espíri to forte e não dever aos santos. Atenta r no improvável é a rotina do ardiloso. [. . . ](p . 60).

Capoeira é l eveza e pandeirada. (p. 87).

O personagem Besouro ressalta a força mít ica e míst ica do

capoeirista, que exerce uma profissão de fé, como um malandro, aqu i de modo

posit ivado, por sua astúcia, esperteza, em sua irreverência, com um saber que

só a exper iênc ia, o vivido, pode propic iar . Para o personagem, as tát icas

criadas pelos capoeir istas, com a f inalidade de driblar os inimigos, vêm a se

const itu ir em saberes que devem ser preservados, de modo a fortalecê- los nos

combates. E esse ap rendizado e conhec imento se revestem de encantamento e

magia. Assim Besouro reflete sobre uma dessas tát icas, ao se preparar para o

enfrentamento com os jagunços do co ronel:

Meio-dia é hora que não se t em nem vestígio. Seja porque não tem sombra, s eja porque não se deixa rast ro. De noite é só breu ou a luz morti ça de alguma lua misturando nossa sombra com os out ros escuros. T udo cumpre. Mas a melhor hora de s e fazer alguma coisa sem ser vis to, s em ninguém notar ou se dar por percebido é quando ninguém espera. Isso aprendi nas rodas da vida. A gente pode agir no contraluz, mas aí tem que se r rápido como quem rouba. S empre que estiver de um lado, vai ter uma sombra do out ro t e denunciando. Um capoei ra quando é bom caminha maciinho dent ro dela, na sua di reção, no seu sentido, s em ser notado, e age depressa mesmo, bem depressinha, s em dar nem tempo de a sombra acompanhar gesto nenhum não. Tudo isso fui aprendendo assim no

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remanso, na vivência, no cada dia. Por is so esperei aquel e tanto pela hora certa e me escafedi. (p. 103).

Para livrar- se da emboscada do coronel, Besouro se esconde numa

plantação de banana, invocando o “dono do ardil, o que mata um pássaro

ontem com a pedra que atirou ho je. Laroiê. E ele ventou nas fo lhas das

bananeiras a rezação de fechamento que faz sempre os meus inimigos terem

pés que não me alcançam, mãos que não me tocam e olhos de não me ver”. 166

(p. 105). Assim, metamorfoseia-se, “fenômeno” recorrente na textualidade

popular, confund indo-se com uma bananeira: “Então fui me encantando de

f icar ali no meu quieto, paradinho, de pé, sem nem fa lar nem respirar, po rque

planta nenhuma não respira, deixando até o vento fazer car inho no meu cabelo

como nas folhas das bananeiras”. (p. 105).

Pro tegido por Ogum, invencível, portanto , aos metais, invoca uma

força mágica, mister iosa, que o mantém de corpo fechado, como recita na

oração: “E quantas sejam sempre facas e espadas, sou filho de Ogum e todas

se quebram sem o meu corpo tocar, cordas e correntes arrebentam sem o meu

corpo amarrar, e ass im me vest iu com as suas roupas e as suas armas porque

sou filho do senhor da guerra”. (p. 105).

Besouro evoca sua relação com o mestre Alípio, fazendo uma

reverência a e le por ser mais ve lho, valor cultivado nas culturas africanas,

pelos ensinamentos da magia da capoeira, pois este lhe ensinou que capoeira é

um rito de corpo. Desde a infânc ia de Besouro, Tio Alípio compõe sua

família, não pela consagu inidade, da ordem do b iológico, mas pelo sent imento

e amizade, da ordem do simbólico, como uma referência de va lores na sua

formação.

Tio Alípio me ensinou de tudo um muito. Com a calma do partei ro dos anos que a eternidade é que engendra. Ele era um negro, daqueles uns que olharam bem fundo no olho da maldade e viram a única forma de sair vivo de lá. A capoeira é art e do dono do corpo e de outros tantos. (p . 24).

Tio Alípio era já velho quando conheci ele, mas parecia t e r s ido assim desde sempre. Andava l eve, p isando macio no chão feito bicho gato. [. . . ] Tio Alípio, meu pai e meu mestre que foi e que era, me fez o fi lho querido dos segredos, me iniciou nas

166 Laroiê (Kwa) (Ls). Exp. Saudação para Exu. Var. Laroi. Yor. Làároyè. Cf. CASTRO, Yeda Pessoa. op. cit. p. 263.

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artes , na mandingada, no coração da maldade, na poesia do corpo, nas lendas dos antigos, e na capoeira. Ele sabia bem de por dentro o passado, e falava do futuro como quem com saudade. (p. 25-26).

Com essas l embranças, Besouro vai compondo uma memória afet iva,

tec ida pelo místico e o sagrado: tio Alípio “me fez o f ilho querido dos

segredos”. Ainda, “Tio Alípio era, foi e é ancestral. Egum baba. Coisa de

preto, de b ranco, de gente da arte da capoeiragem. Não sei explicar não

senhor”. (p.30).167 O “não sei exp licar” traduz experiências que escapam a

uma racio nalidade que só va loriza o que pode ser entendido pela pa lavra, pelo

discurso. Ao contrário, a convivência com o seu mestre lhe ensinou que o

vivido escapa às palavras, podendo ser verbalizado pela linguagem do corpo,

como o do capoeirista. Há uma economia de palavra , que tem seu lugar e

valo r na capoeiragem.

Para Besouro, ter e manter a palavra são muito mais importantes do

que a posse de bens, como ocorre no episódio da chegada de um homem

estranho à “venda de Amaro”, um bar, na qual se encontrava Besouro. Esse

estranho veio a mando de um coronel, cuja f ilha foi “visitada pela ousad ia de

Samuel Quero Quero”, um amigo de Besouro, que também se encontrava no

bar. O personagem-narrador descreve o comportamento desse desconhecido no

interior do recinto:

Encostou no bal cão, fez um sinal para o Amaro como quem pede uma dose. [. . . ] Deu a volta pelo meu lado direito [de Besouro], caminhou só uns mais três ou quat ro passos junto ao balcão onde o bom Amaro servia aguardente para os out ros que estavam na venda, e perguntou para eles assim de chapada porque diabos se precisava de palmas, cantoria, berimbau, atabaques e pandei ros, aquele t anto de presepada, só para um negro amassar a ca ra do outro e o outro amassar a ca ra de um? Palhaçada. Negro é tudo raça de fingidos, que inventaram a capoeira só para meter medo em frouxo. Um ci rco [. . . ] (p . 55).

167 Na religião do Candomblé, os Egungun concretizam um valor característico da cultura negra, que é a busca da expansão da existência pelo homem negro através das homenagens e lembrança eterna mantida pelos seus descendentes [...] se constituem em protetores da comunidade, guardiões da tradição e da moralidade. Seu culto inspira adoração, respeito e temor. Os Egum Agba ou Baba-Egum são os Egun mais velhos Esses Eguns não possuem voz. A voz de Egum é um atributo especial, pois sua palavra sagrada pronunciada tem poder de realização, revelação e força de lei. Guardiões da tradição dos valores da comunidade, os Egun são também realizadores dos princípios da justiça, continuidade e expansão. In: LUZ, Marco Aurélio. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. 2ª ed. Salvador: EDUFBA, 2000. p. 83-84.

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Reproduzindo e endossando o p reconceito sobre uma etnia

integrante da cu ltu ra brasileira – “Negro é tudo raça de fingidos” – , produzida

pelo imaginár io escravocrata, o mandante do coronel lança palavras que soam

como provocação, assim interpretadas por Besouro:

[. . . ] É mais nessa hora que as coisas tomam tino. Palavras roubam sentidos de out ros dizeres, de outros lugares. Caça m um rumo no meio do atordoamento, apenas porque o meu estranhar espantou o sentido morno e p reguiçoso de onde elas moravam e aí elas fi cam naquele alvoroço de formigas antes da chuva, procurando e procurando um juízo que elas não t inham antes não. J á nem estranho mesmo mais a hora em que mato sem nem faca o s igni fi cado do que ainda não t inha sido figurado pelo olho de um sentido. Disse assim então para o homem, de repente, antes de qualquer conversa. Capoeira é art e, eu falei . E calei depois . Nem bem sei por que fui dizer uma coisa daquela assim sem mais. Um homem como eu não profere palavra ociosa não. Um capoeira mesmo sempr e cumpre o que a palavra promete, de um jeito ou de outro que nunca ninguém tinha pensado, mas cumpre. Tudo isso aprendi assim da cadência, t irando do juízo. (p. 56).

O mandante do coronel lhe lança um desafio, afirma Besouro:

“Sent i seu olho na minha nuca mas não me abalei”. (p. 57). O grande

capoeirista de Santo Amaro ass im descreve, reflet indo, a situação vivida:

Nunca l i uma letra de l ivro ou de cartaz de reclame, mas de esperteza eu entendo. Li a dele num trisco. E antes q ue piscasse uma vez que fosse, qualquer maldade cont ra Samuel ou contra mim, inaugurei um sorriso e ergui um brinde aos estrangeiros de todas as t erras . Aos gringos de todas as europas e outros confins. Dos quintos que vies sem sempr e haverá de se receber bem os estranhos na Bahia. [. . . ] Amar o trouxe a pinga que o abusado t inha pedido nos dedos antes, mas isso só fez piora r o ar dent ro da venda. Todos foram s e desafastando com seus copos. Uns na direção da porta, out ros sem di reção nenhuma. Ficamos só nós três na venda. Eu, Samuel Quero Quero e o nariz do caçador de ar reli a. [ . . . ] Aí foi tudo muito rápido. O estranho caçou um fer ro dentro do casaco e eu só t ive t empo de jogar Samuel com copo de bebida na mão e tudo para trás do balcão, antes do dedo do estranho coçar o trabuco e mandar caroço. Foi muito t iro que passou no vazio das minhas firulas até eu acertar uma cabeçada bem dada no meio do bigode de mercador de encrenca. [. . . ] Chutei sua bunda até a rua. Lá de trás do balcão, dentro da venda, Samuel s e l evantou com o copo cheinho na mão, e também veio para fora cantando uma cantiga de capoeira. Tive que bater palma. Capoeira é art e. Não falei? Só não t em palhaço. Mas equil ibris ta t em sim, meu camaradinho. (p . 57 -58)

100

Com esse revide, Besouro busca reverter a desqualif icação ao jogo

da capoeira e a seus prat icantes. Em sua tra jetória social, movimentava -se

entre a ordem e a desordem, rejeitando, assim, o mundo social ta l qual se

apresentava,168 transformando seu corpo em instrumento de lu ta e resistência

ao controle. Ao tratar da capoeira como uma cultura de corpo, Muniz Sodré

faz a segu inte afirmação :

As culturas costumam defini r-se pela tônica do soma (corpo ) ou do signo (escri ta ). A cultura ocidental é predominantement e s ígnica, porque fez da escri ta e do conceito os eixos da sua universalidade, do seu poder de ir radiação planetário. [. . . ] Numerosas culturas tradicionais, como as asiát i cas e as a fri canas, são basicamente s imbólicas, o que equivale a dizer “corporais”, pois partem do corpo para se relacionar com o mundo. O símbolo, di ferentemente do signo, não s e universaliza nem se reduz ao conceito. Precisa-se do aqui-e-agora de uma si tuação da concretude corporal para interpretá -lo e vivê -lo. Pode até mesmo uti l i zar alguma let ra, mas vive da oralidade, não como mero recurso técnico, e s im como o arcabouço de um relacionamento com o mundo, que inclui a respiração, a vital idade fís i ca, a força de realização, a movimentação no espaço, o culto à transcendência. 169

Assim é o corpo do capoeirista Besouro que, em cadência com a

mente, marca um único compasso e transcende a palavra. Essa u nicidade

também se apresenta em outras situações e vem traduzir a presença do

maravilhoso-fantást ico. Feijoada no paraíso traz um episódio em que o orixá

Exu ganha corpo e entra em lu ta com Besouro, no jogo da capoeira, marcado

pela fé e encantamento dos corpos, em estado de pura estesia e intuição:

Ninguém não vive sem uma fé. P ode ser em um deus ou e m dez. Não sei . Nunca fiz menção de contar não. Tem q ue m acredite em breves, figas, t erços. Tem os que se apegam co m santos, rezas, promessas. A mandinga está na fala ou na sola de um pé. O que sempre me valeu foi a intuição. Mandingada é a a rt e de manter o t ino justo no improvável. A hora do besour o é incerta e vigorosa. E ai daquele que deixar o olho no caminho do peste. Besouro a rde de fi car roxo! Capoeira é magia grande. Sempre fui homem cumpridor das minhas obrigações. A mim ninguém não atenta. Eu é que sou o capeta ! (p . 69).

168Cf.DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro, Rocco, 1997. p. 263. 169SODRÉ, Muniz. Mestre Bimba Corpo de mandinga. Rio de Janeiro, Manati, 2002. p. 16.

101

Nesse cap ítu lo, Besouro enfrenta Exu, ent idade poderosa do

candomblé, “o senhor de todos os caminhos, o travest i do tempo, o enganador.

O que comanda o passado com as artes que ainda va i aprontar”. (p. 72 ). Tal

confronto ocorreu no dia da feira, em consequência da desobediência do

feirante Chico Feio, ex-capoeir ista e amigo de Besouro.

A feira era armada todo dia de sábado num intrincado cruzamento de ruas onde vez que out ra se deixavam as oferendas para o que come primeiro. Não era raro os barraqueiros chegarem na madrugada com seus caixotes e balaios de pitanga, caju, rapadura e encont rarem ainda a rdendo em velas a fé do povo do santo, da gente do candomblé. Havi a nesses dias que se pedir l icença em antes de montar as barracas e exibir as mercadorias . Porque era da tradição, er a da l ei , s e t emer e respeitar o que com sua grande boca come de tudo que há. Foi justamente isso que Chico Feio não fez naquele dia, vexado que estava com o peso dos peixes em seu balaio. Foi o seu erro. (p. 69-70).

Após consegu ir livrar esse amigo da punição de Exu, Besouro, sob a

proteção de Ogum, parte para o enfrentamento no jogo da capoeira, com

aquele orixá, ass im descr ito pelo personagem-narrador: “O homem

magríss imo baixou já no fim da feira, com uma argola no nariz e, na cabeça,

um gorro comprido que só. Uns olhos vermelhos, a modo até que ele

pertencesse a um lugar onde nem pagão não erra enquanto lhe bater um

coração no peito”. (p. 70).

A luta é descr ita pelo personagem como de grande beleza: “Tudo

isso era a capoeira mais encantante que jamais jogue i em qualquer tarde na

vida”. (p. 73). Na versão de Besouro, que se d istraiu com a chegada do

Delegado Veloso e seus “acapangados”, nesse momento Exu “ficou rindo com

seus dentes dourados todas as maldades que poderia fazer antes de terminar a

briga. Não me fez porque simpatizou com minha ousadia, ou reconheceu o

Ogum que me protege. Quem vai saber”. (p. 74).

De acordo com Muniz Sodré, o antagonismo se faz presente na

cultu ra religiosa do candomblé.

Nas relações dos homens com os orixás, destes ent re si , dos animais com os homens, do princípio masculino com o feminino, há sempre a dimensão de luta ( i já em nagô). Na verdade, as coisas só existem por meio da luta que se pode travar contra elas (Exu, orixá responsável pelo dinamismo das

102

coisas, é também chamado de Pai da Luta). Não é a violência ou a força das armas que entram em jogo aqui (a guerra é um aspecto pequeno e episódico da luta ), mas as art imanhas, a astúcia, a coragem, o poder de realização (axé) implicados. 170

A at itude de Exu, suspendendo a lu ta, traduz-se num gesto de

cumplicidade, quando o Delegado Veloso , rep resentante da Lei, chega como

um intruso , que poderia interromper um momento de consagração entre o

cósmico e o terrestre, o divino e o humano. Para evitar que isso ocorra, o

capoeirista e Exu enfrentam o delegado: “Só depois fo i que avoei Besouro no

meio da capangada”. (p. 75).

Na história int itu lada “Encruzilhada”, Besouro traz uma versão para

a sua morte contestando outra, a de que ter ia s ido assassinado pela “honra

traída do marido de Isaura”, com quem se envo lveu. A palavra “encruz ilhada”

designa mistér io, por tratar -se de um cruzamento de caminhos que dificulta o

contro le a ser dispensado a uma situação de perigo. Ao descartar a versão de

que sua morte decorreu de motivos pessoais, a vingança do marido traído, o

personagem, colocando -se como o vit imado, qualifica os autores do crime.

Besouro relata o acontecimento :

A tropa da guarda, t endo à frente de seus borrabotas o cabo, me aguardava desde a noite anterior, um pouco a fastada da encruzilhada. Mas apenas o bastante para poderem abrir sobr e meu lombo, ainda de longe, o fogo de seus bacamartes . Fazia m isso por fazer, mais por obrigação. Porque já sabiam que nada, nem chumbo nem bala, havera de fura r o protegido dos santos que eu era. (p. 82).

Besouro é atingido pela faca de tucum, uma palmeira, “árvore que

guarda assim como só uma gameleira também sabe, segredos e encantações.”

(p. 83), que atravessou o abdômen do capoeirista, deixando suas vísceras

expostas na encruzilhada. Segundo o p ersonagem, o ocorrido foi um acidente:

o cigano Tadeu Come Gato, “pela es trada que partia da encruzilhada na

direção da cidade”, trazia em sua carroça uma carga de madeira, evitando

transportar armas para que não houvesse problemas com a polícia; t inha,

170 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. Por um conceito de cultura no Brasil. 3ª ed. Rio de janeiro, DP&A, 2005. p. 108.

103

contudo, “duas facas de tucum espetadas em duas varas que, de compridas que

eram, atravessavam os lados da carroça”. (p. 82).

Nesse ínter im, aparece a “jagunçada do coronel Venâncio” para

atacar Besouro, quando o cigano se aproxima com a carroça. Segundo o

personagem-narrador, Tadeu Come Gato

[. . . ] teve apenas o cuidado de desviar de mim com sua carroça. De modo que o que me acer tou mesmo foram somente as facas de tucum que furavam o pano, pelo lado de fora da car roça. P rimei ro uma, depois a out ra. Corte fundo. F iquei caído na encruzilhada. A notícia s e espalhou mais dep ressa que fogo e m canavial . (p . 84).

Nos cultos religiosos afro -brasile iros, uma encruzilhada,

cruzamento de caminhos, tem uma carga semânt ica muito forte: cada lugar da

natu reza, como cachoeiras, mares, rio s, montanhas, estradas etc, tem sua

força correspondente. A encruzilhada rep resenta um sinal, aviso, entrada e

saída de tudo, quatro cantos, um apontando para cada ponto cardeal. O centro

é a convergência, o núcleo de energia acumulada naquele local. Na religião do

candomblé, os “traba lhos” e oferendas entregues em encruzilhadas visam ao

encantamento para abertura de caminhos e têm sempre muita força. 171

Em seu estudo sobre os orixás, Marcos Aurélio Luz afirma que Exu,

irmão de Ogum e Oxossi, é o responsável pelas encruzilhadas. 172 Exu

transporta as oferendas r ituais, faz circu lar o axé , que dinamiza o c iclo vital,

ao recebê-lo das mãos da humanidade, e rest itu í -lo a Olorum173 e aos orixás,

que, de novo forta lec idos, poderão, por sua vez, expandir a humanidade.

Besouro, ao ser ferido numa encruzilhada, é recebido por Exu, que o

transforma numa oferenda aos o rixás e, ao mesmo tempo, o fo rtalece com as

energias do orum,174 fazendo com que ele conduza seu so fr imento e o

ressignifique:

171Disponível em http://cade.search.yahoo.com/search?p=significado+de+encruzilhada+no+Candombl%C3%A9+e+umbanda&fr=ush-news&xargs=0&pstart=1&b=131. Acesso em 17/01/2010. 172 LUZ, Marco Aurélio. Agadá.: dinâmica da civilização africana-brasileira. Salvador: EDUFBA, 2000. p. 50-51 173Termo (kwa) (LS). Deus Supremo. Nomes: Alaiê, Eledá,, Oba-Orum, Olodumarê,, Olofim, Olua. Cf. CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia. Um vocabulário afro-brasileiro. 2ª ed. Academia Brasileira de Letras. Topbooks. p. 306. 174 O mesmo que céu, o sol (kwa). Cf. CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia. Um vocabulário afro-brasileiro. 2 ed. Academia Brasileira de Letras. Topbooks. p. 310.

104

Fiquei al i naquela encruzilhada entre a vida e a morte durant e um tempo sem perder a conta. Mais depois eu mesmo coloquei minhas t ripas para dentro, rejuntei o t alho com as mãos e fiquei lá aguardando o socorro até a noit e desabar sobre as nossas cabeças. (p. 85-86).

Segu ndo Antônio Liberac Pires, “Besouro era possuidor de uma

mandinga ant i-morte, seu corpo teria s ido fechado por milhares de babalaôs,

enfim, um homem pro tegido por todos os santos.” 175 Feijoada no para íso

reforça uma visão mítica sobre o capoeirista de Santo Amaro , homem de

corpo fechado que, na encruzilhada – lugar de liberação de fo rça ou de sua

perda –, to rnou-se vu lnerável, defrontando-se com os limites da condição

humana.

O personagem expressa um desejo a ser rea lizado com a sua morte:

que se ja reconhecido o legado das culturas afr icanas, como o jogo da capoeira

e o samba, práticas ind issociáveis à sua época.

A capoei ra é l eveza e pandeirada. Sou criatura que insis t i por viver o diverso o enviesado. Sou homem e sou Besouro. Mangangá é voador e para mim avoar não é falsear com o seguro. È coisa das art es da capoeiragem, e ninguém duvi de que é melhor que capengar no incerto, qualquer passarinho sabe disso. Mas quem samba também avoa, só quem é mesmo do batuque é que sabe. Sei rima e sei mandinga porque sa mba também pode ser demanda, meu camarado. Aprendi isso na vida. Quando eu morrer me enterrem num terreiro. / E deixem meu braço de fora para eu bater no seu pandeiro . (p. 87. Gri fos do autor).

No iníc io do século XX, era muito forte a aliança entre o samba e a

capoeira, pois “samba também avoa”, é “demanda”. Em entrevista fe ita a um

velho capoeirista de Santo Amaro da Purif icação, Noca de Jacó , Liberac Pires

informa o seguinte :

Noca de Jacó acabou descortinando o meio da capoei ra na época e mencionou que eles faziam reuniões, matavam uma galinha para comer e convidavam os capoei ras. Segundo ele, a parte lúdica da capoei ra estava presente, pois t inha festa. 176

175Cf. PIRES, Antonio Liberac Cardoso Simões. Movimentos da cultura afro-brasileira. A formação histórica da capoeira contemporânea. 1890-1950. 2001. 453f Tese (Doutorado em História). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. 2001.p. 220. 176 PIRES, Antonio Liberac Cardoso Simões. op. cit.; p. 223. Cf. entrevista de Liberac a Ernesto Ferreira da Silva, conhecido por “Noca de Jacó”, morador de Santo Amaro da Purificação, nas mesmas imediações de Besouro, no bairro do Trapiche de Baixo. Foi seu aprendiz. À época da entrevista, era o maior informante sobre a vida desse capoeira, pois, como afirma Liberac Pires, “guardou contos e casos na memória, acompanhou de

105

Cont inua Liberac Pires, transcrevendo a fala de Noca de Jacó:

Tinha demonstração, não usava golpe para acertar, faz brinca r e não brigar. Recebia convite, matava galinha, fazia aquel a galinhada, ia brincar. O mest re ia administrando a al t eração. O mesmo que o Batuque. Batuque era o samba de forma grosseira, pandeiro, viola ou cavaquinho, dava aquel a sapatiada, dava um rabo de ar raia. 177

Numa louvação ao samba, o personagem-narrador evoca, de forma

nostálgica e prazerosa, os momentos e lugares em que a capoeira e o samba

estavam irmanados: “De noite, roda para ser boa tem que ter samba. É de lei.

Debaixo de berimbau e atabaque, pobres, pretos e mulatos também vazam seus

versos. Pisam o chão com outra manha, sem desfe itear nem ‘firu la’ , nem

mulher de ninguém não”. (p. 87 ). É um apelo para que se reconheça se venere

o samba, adornado de encantos, “o dono do corpo”. Assim, Besouro aprendeu

com Tio Alípio “a pisar mundo na cadência remanhosa de le com o mesmo pé

que andou na capoeira” e passara as lições para o seu afilhado Serafim, do

qual se tornou tutor após a morte de seus compadres Chico Feio e Florinda.

Uma das histórias de Feijoada no paraíso , intitulada “Quando eu

morrer.. .”, é entremeado de versos de letras de samba, que teriam sido

compostas por Besouro . O destaque ao ap rendizado desse r itmo, transmit ido

de pai para f ilho, também é constante. Besouro ap rende a cadência com Tio

Alíp io e propaga a outros “filhos” que a vida lhe der, como Serafim, que

propaga o r itmo por outros cantos do país, e o “espírito” de Besouro o

acompanha, repenteando o samba que lançara no mundo, para que sempre se

lembrem dele : “Quando eu morrer/ Não quero guru fim/ quero berimbau de

ouro, cavaquinho e tamborim. /Quando eu morrer me enterrem na Lapinha. /

Calça, culote, paletó e almofadinha”. (p. 93).

Para os negros ou afrodescendentes, o samba, assim como a

capoeira, extrapola a função de entretenimento, como visto pela cu ltu ra dos

brancos. O seu ritmo é uma forma de libertação do corpo, resistênc ia contra a

opressão e o preconceito, vindo, desse modo, a const itu ir um conjunto de

perto a vida do mestre, nos momentos mais calmos, mais íntimos, quando estava a trabalho, na lancha “Deus me Guie”, nas “galinhadas” e nas rodas da capoeira”. [...] p. 225. 177 Id. Ibid. p. 223.

106

práticas e va lores da cultura negra. Ao conceber o samba como o “dono do

corpo”, ass im Sodré o interp reta:

O “encontrão”, dado geralmente com o umbigo (semba , e m dialeto angolano) mas também com a perna, s erviri a para caracteri za r esse ri to de dança e batuque, e mais tarde dar -lhe um nome genérico: samba . Nos quilombos, nos engenhos, nas plantações, nas cidades, havia samba onde estava o negro, como uma inequívoca demonstração de resis tência ao imperativo social (escravagista) de redução do corpo negro a uma máquina produtiva e como uma afirmação de continuidade do universo cultural a fri cano [. . . ] Os batuques modi fi cavam-s e ora para se incorporarem às festas populares de origem branca, ora para se adaptarem à vida urbana. As músicas e danças a fri canas transformavam-se, perdendo alguns elementos e adquirindo outros, em função do ambiente social . 178

Os versos “Quando eu morrer/ Não quero gurufim/ quero berimbau

de ouro, cavaquinho e tamborim” evocam batuques no adeus ao capoeirista,

marcando a passagem de Besouro para outro mundo, carregado de mistér ios.

Marcam a sua transição para um reino em que o herói destemido fará sua

história, dessa vez, não só como o capoeira va lente, mas um representante da

cultu ra negra, com direito a se fixar no panteão dos deuses afr icanos,

cultuados por seus ancestra is descendentes. A narrat iva de Marco Carvalho

ce lebra essa passagem:

Tudo correu bonito e de conforme durante todo o t empo preciso. E mesmo os capoeiras que vieram de longe atendendo aos chamados da fé ou da tradição jogaram e celebraram minha memória na raça e no respei to. Por isso é que ninguém vi u quando um besouro furou de atrevido a t erra fresca do cemité rio antes da vigésima primei ra noit e despencar s eus negrumes por sobre o Recôncavo e ainda dar bem umas duas piruetas antes de vazar o ar escuro e pousar suave no be rimbau de Quincas entre as fi tas que ele t inha amarrado no meio da verga, e fi car lá até o amanhecer lavar o céu, os corações e a memória de todos em Santo Amaro de Nossa Senhora da Puri fi cação. (p . 114).

O babalo rixá Pai Raimundo , do Centro do Caboclo Est rela Guia, em

Santo Amaro, tem sua interp retação para o tempo na religião do candomblé:

A contagem do t empo no Candomblé diz respeito aos momentos de preparo de um yaô para yalorixá ou babalorixá. É

178 SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. 2 ed. Rio de Janeiro, Mauad, 2007. p. 12-13.

107

o período que se fi ca em reti ro no roncó recebendo o sacri fí ci o até que o Orixá se mani feste e diga o seu nome na cerimôni a do Abaçá . Esse t empo pode ser sete, quatorze ou vinte um dias. Com vinte e um dias acontece a cerimônia do Axexê, que é a ret irada do egum da casa e t ambém a designação de quem ficará com o santo ou Orixá. 179

O capítulo sub linha a força míst ica de Besouro, que se transporta

para um tempo mítico, eternizando-se. O jovem mestre ressurge antes da

cerimônia f inal de envio da sua alma para o Orum, como um animal, um

besouro , a voar pelo mundo defendendo os homens e os valores nos quais

acredita. Desse modo, sacraliza-se esse herói, que, não sendo vencido pela

morte, ao contrário, torna-se imortal, vivo na memória do povo de santo e dos

ant igos moradores do Recôncavo Baiano, como também nas rodas d e capoeira,

que sempre invocam o seu nome.

A narrat iva de Marco Carva lho contribui para se entender o sent ido

da morte entre os povos africanos, celeb rada como uma festa. Para o

historiador baiano João José Reis, em seu estudo sobre a morte no sécu lo

XIX, “os temas fúnebres ocupavam lugar de destaque no imaginário da Bahia

de outrora”.

Como era comum nas sociedades tradicionais , não havia separação radical , como hoje t emos, ent re a vida e a morte, ent re o sagrado e o profano, ent re as cidades dos vivos e a dos mortos. Não é que a morte e os mortos nunca inspirassem temor. Temia-se, e muito, a morte sem aviso, sem preparação, repentina, trágica e sobretudo sem funeral e sepultura adequados. 180

179 Antônio Raimundo da Silva, o Pai Raimundo cultua o candomblé da nação Angola Tumpajussara. Atualmente com 54 anos. Desde os 9 “é feito no santo.” Em entrevista a esta pesquisadora, em 03/02/2010, esse babalorixá explicou o significado de alguns vocábulos da religião do candomblé.: Roncó: Local no terreiro onde os (as) yaôs ficam em retiro para fazerem o santo. Abaçá: Kwa) (PS) - s.m. sala de entrada, geralmente o maior cômodo da casa onde se realizam as cerimônias públicas festivas; varanda, espaço aberto de chão batido ou acimentado, reservado para determinadas cerimônias. Cf. CASTRO, Yeda Pessoa de. Op. cit.; p. 1 35. Segundo Pai Raimundo, em seu terreiro, Abaçá é a cerimônia de revelação do nome do santo após a yaô sair do retiro no roncó.Axexe: ( Kwa) (PS) Candomblé funerário, preliminar à missa de sétimo dia. Ver. Sirrum, zarrim. Cf.intambe, xorrum. Yor. Ìjeje, cerimônia fúnebre do sexto dia. Cf. CASTRO Yeda Pessoa de. p. 16. 180 Cf. REIS, p. 74. O historiador confirma suas conclusões apoiado em Thomas Lindley, que afirmara: “Dentre os principais ‘divertimentos dos cidadãos’ se contavam os ‘suntuosos funerais’ e as festas da Semana Santa, celebrados ‘com grandes cerimônias, concerto completo e frequentes procissões’”passim; Lindley, Narrative, p. 275, In. REIS, João José. A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. 5 ed. São Paulo, Companhia das Letras, 2009. p. 137.Reis também destaca o texto de Juana E. Dos Santos & Deoscoredes M Santos. “O culto dos ancestrais na Bahia”, in C. Moura, org., Oloorisa (São Paulo, 1981), p. 158-62, 170. Segundo Santos & Deoscoredes, “Na ilha de Itaparica existe uma sociedade egungun de culto dos ancestrais, cuja origem pode remontar à primeira metade do século XIX, quando grande número de iorubás aqui aportaram como escravos nagôs. Baseados na tradição oral dos candomblés da Bahia,esses autores citados por Reis, afirmam ainda ter identificado cinco terreiros dedicados a esse culto, todos fundados naquelas décadas.

108

Outros aspectos da ce lebração da morte naquele período também se

fazem importantes. João Reis descreve o r itual dos “enterros afr icanos de

afr icanos”, não sendo “concebível aos candomblés que se formaram na Bahia

escravocrata [que] faltassem ritos e mitos fúnebres especí ficos”. Segundo o

pesqu isador, muitos costumes mortuários da África foram mant idos pelos

escravos no Brasil,

[. . . ] apesar das mudanças que neles s e foram operando ao longo da escravidão, inclusive os empréstimos do cerimonial católi co. [. . . ] Hoje em dia – e esta tradição está bem fincada no passado –, as pessoas de candomblé são enterradas segundo normas católi cas e normas a fri canas, com o sacri fí cio das missas e dos animais . 181

Feijoada no paraíso alegoriza permanência da cu ltura negra,

relatando um ep isód io em que Besouro reto rna, depo is de morto, ao

Recô ncavo Baiano e acompanha, de longe, do telhado de uma casa, um jogo

de capoeira, inter ferindo no momento em que o mendigo entra na roda do jogo

e é molestado.

Era finzinho da ta rde. Na beira da rua, berimbau tocou. O q ue parecia o mais velho se benzeu, s audou o berimbau e t ambém, porque era da fé, o atabaque e, agachado junto aos instrumentos, lançou um olhar para o al to e outro atento a toda volta, depois abriu a roda. – Iêêêê!. . . – e começou a canta r uma ladainha sentida. (p . 115)

No relato desse episódio, ganha importânc ia o ritual do jogo da

capoeira, com a roda, as ladainhas, o berimbau e os corpos mand ingueiros

alternando-se na cadência dos toques. Let ícia Reis comenta o sent ido da roda

de capoeira: Esses templos, em sua maioria, se localizavam em Itaparica. Assim, em 1836 a Bahia teria vários centros especializados no culto dos mortos e de ancestrais africanos, ou já baianos. p. 160. 181 Id. Ibid. p. 160. Reis chama atenção para a ausência de registros de funerais africanos na Bahia, excetuando-se as anotações do formado em Medicina, Antônio José Alves (pai do poeta Castro Alves), em 1841, o qual afirma que “os funerais africanos em Salvador eram freqüentes, muitos participantes e grande a ‘algazarra’ que faziam. Os numerosos archotes que iluminavam esses cortejos, uma vez enterrado o morto, eram queimados na rua em grandes fogueiras” ao contrário dos funerais cariocas de negros e escravos libertos, e afirma que neles, no velório à porta da igreja, predominavam os elementos africanos. Reis destaca um estudo sobre funerais de negros libertos, o de Oliveira, que considera tais funerais representações de um “ritual de nivelamento social”. A morte era uma das poucas chances, e a última, de estabelecer simbolicamente a igualdade entre brancos e negros, escravos e senhores, ricos e pobres. Viver mal, mas morrer bem seria o lema. O pobre que consumia economias ou entrava numa irmandade para ser enterrado com dignidade talvez desejasse se igualar aos poderosos, pelo menos uma vez na vida.

109

O jogo de capoei ra acontece no interior de um cí rculo de 2,5 met ros de raio, circundado por out ro. Ent re ambos há uma distância de 0,10 centímetros de largura. Os dois círculos concêntri cos são conhecidos pelos capoeir istas como roda . Esse é o palco privil egiado de exp ressão dos jogadores, pois é o lugar onde eles podem most ra r tudo o que sabem: sua destreza corporal e principalmente sua mandinga , isto é, a capacidade que têm de seduzi r o adversár io, i ludi -lo e, s e quiser (ou puder), derrotá-lo. 182

Ainda nesse episódio , Besouro retorna para o mund o dos vivos,

seduzido pela ladainha e pe lo jogo que chamam por seu nome. Mantém -se

extasiado pelos movimentos, chegando a intervir frente a uma situação que

considera abusiva, desencadeada por um dos integrantes da roda:

[ . . . ] os alunos se sucediam uns aos out ros em armadas, martelos, meias-luas, e era queixada, pontei ra, benção, pisão de frente, tudo assim num floreio de confo rme e bonito. D e repente um mendigo comprou jogo e aí quem jogava amarrava a cara e fez pouco. Não sei s e era aluno. Roda de rua é assim, tem de tudo. Sei que o t al empurrou, botou para fora o mendigo. Nessa hora é que me ofendi. O mestre também não gostou mas nem piscou o l ance, puxava a cantiga. O cor o repeti a é Mangangá, é Mangangá. Resolvi dar uma l i ção no abusado. (p.117-118). 183

O capoeirista Besouro, que já se encontrava próximo à roda,

envolvido em sua magia, sem ser visto , entra no jogo no momento em que um

mendigo está prestes a ser agredido. Besouro resolve fazer just iça, dando uma

lição no agressor, em movimentos que acompanham a cadência do jogo:

182 REIS, Letícia Vidor de Souza. O mundo de pernas para o ar. A capoeira no Brasil. São Paulo. Publisher, Brasil, 1997. p. 200-201. 183 Armada: Golpe giratório e traumatizante em que o capoeirista, partindo da ginga, gira em torno do seu próprio eixo, sem tirar os pés do chão, ficando de costas para o companheiro. A perna que, com o giro ficou em posição anterior, é lançada em direção ao companheiro, de modo a descrever um círculo, atingindo-a com a lateral externa do pé e retornando à posição de partida; Martelo: Golpe traumatizante em que o capoeirista, partindo da ginga, gira os quadris para o lado interno do corpo, ao mesmo tempo que o pé de base realiza uma rotação externa e eleva uma das coxas com a perna flexionada, estendendo-a em direção ao companheiro, de modo a atingi-lo com o peito do pé. Meia-lua: Golpe giratório e traumatizante em que o capoeirista, partindo da ginga, inclina o tronco para o lado da perna em posição posterior e, encaixando as mãos entre as pernas, lança a perna posterior em direção ao oponente, de modo a descrever um círculo, retornando à posição de partida. Queixada: o capoeirista fica de lado para o oponente e gira a perna em sua direção para atingi-lo na cabeça com a face lateral externa do pé; Ponteira: Golpe linear e traumatizante em que o capoeirista, partindo da ginga, eleva a perna flexionada, impulsionando-a em direção ao companheiro, de modo a atingi-lo com a parte superior da planta do pé; Benção: Golpe linear e traumatizante em que o capoeirista, partindo da ginga, eleva a perna flexionada, impulsionando-a em direção ao companheiro, de modo a atingi-lo com a planta do pé. Cf. ANJOS, Eliane Dantas dos. Glossário terminológico ilustrado de movimentos e golpes da capoeira: um estudo término-linguístico. Dissertação de mestrado. São Paulo, USP. 2003.

110

Berimbau é instrumento poderoso, acredit em vocês, e naquel e dia acabei de crer que o coro, as palmas, tudo e pandeir o também é. Recebi no peito a vib ração. Aquilo tudo e mais a cabeça do mendigo que me chupou para dentro da roda como se eu fosse um miolo de jabuticaba. O corpo do mendigo deu, só nessa hora, uma estremecida l igeira mas ele continuou gingando em falso e errando às vezes o pé, como se est ivesse o tanto de bêbado que estava mesmo. Mas não, já era eu fingindo na cara do abusado. Deixei ele crescer, joguei pequeno e, o que foi mais di fí ci l , torto por uns cinco minutos mas ne m assim não deixei ele encostar não. Quando deu por s i é que eu já t inha puxado a perna dele na rasteira. (p . 118).

Com manha, ginga e malícia, Besouro literalmente toma corpo no

jogo, com a vibração dos atabaques, berimbau e “a cabeça do mendigo que me

chupou para dentro da roda como se eu fosse um miolo de jabuticaba”.

Segu ndo Ed il Costa, “mas do que fo rça fí s ica, o que conta na

capoeira é a agilidade assoc iada à rapidez, ou seja, a ginga , o jogo de

corpo”.184 Agilidade e destreza são meios mais do que suficientes para o

capoeirista tornar-se um líder na roda. Assim, ocorre no episódio da roda de

rua a descr ição da união perfeita entre “a lma” e co rpo. A “a lma” de Besouro

adentra o corpo do mendigo e o transforma em exímio jogador, com agilidade

e manha, vencendo, assim, a contenda, mesmo com a resistência do

adversár io.

Mas ar rogância não quis parar aí não. Veio de novo, desabusado e sem respeito. Corri uma volta intei rinha na roda trocando as pernas, p isando em falso só e pirraça. O mestr e mandou reiniciar o jogo, e o pé daquele coisa, ruim mal -educado esteve a dois dedos do meu nariz por duas vezes, mas porque fui eu quem botou o nariz lá só para abusar ele. Depois acertei foi uma ponteira nas costelas e dei uma calcanharzada na cabeça só para t er certeza que ele i a não ia l evantar tão cedo. Cob ra ruim a gente t em que acertar logo a cabeça, meu mest re me ensinou assim. (p . 118-119 ).

Mais uma vez a ginga, aliada ao encanto do jogo, é o combustíve l

para a limentar uma roda de capoeira, um ato performático, que ganha espaço

maior na narrat iva de Marco Carvalho, até por sua extensão, se comparado

com as narrat ivas de cordel de Antônio Vieira e Victor Garcia . Assim, o 184 COSTA, Edil Silva. Comunicação sem reservas. Ensaios de malandragem e preguiça. Pontifícia Universidade Católica. Tese de doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica. São Paulo, 2005. p. 86.

111

corpo no jogo da capoeira, a ginga do corpo, pode ser entend ida a partir da

noção de performance elaborada por Paul Zumthor. Em sua aná lise acerca da

leitura como ato performático, para a qual lhe importa mais o leitor , Zumthor

destaca a importânc ia da voz, dos gestos, do movimento do corpo, elementos

não textuais, const itu intes dos atos perfo rmáticos, e entende o conceito de

performance a partir dos p roced imentos de voca lização, p róprios às

representações das cu ltu ras o rais.

A “performance rea l iza, concret iza, faz passar algo que eu

reconheço, da vir tualidade à atualidade”; situa-se em um “contexto ao mesmo

tempo cultural e situacional: nesse contexto ela aparece como uma

‘emergência’ , um fenômeno que sai do contexto ao mesmo tempo em que nele

encontra lugar”, 185 “não é s implesmente um meio de comunicação:

comunicando ela o marca”. Ainda, é um comportamento re iterat ivo,

indefinidamente, sem ser redundante. 186

A performance é um comportamento que reitera um mater ia l

tradicional, atualizando-o na cu ltura, uma forma dinâmica da qual o conteúdo

não se abstrai, mas, ao contrár io, compõe com ela um todo indivisível. Na

performance , há uma forma, “nem fixa nem estável, uma forma-força, um

dinamismo formalizado”187, que produz energia e é sempre recr iada.

Zumthor ident if ica dois traços fundamentais aos atos performáticos,

a corporeidade e a teatralidade.

Meu corpo é a material ização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo. Dotado de uma signi fi cação incomparável, el e existe à imagem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo e sou, para o melhor e para o pior. Conjunto de t ecidos e órgãos, suporte da vida psíquica, sofrendo também as p ressões do social , do insti tucional, do jurídico, os quais , sem dúvida, pervert e m nele seu impulso primei ro. . . Eu me es forço, menos par apreendê-lo do que para escutá-lo, no nível do t exto, da percepção cotidiana, ao som dos seus apeti t es, de suas penas e alegrias: contração e descontração dos músculos; tensões e relaxamentos internos, s ensa ção de vazio, de pleno, de turgescência, mas também um ardor ou sua queda, o sentimento de uma ameaça ou, ao contrár io, de segurança

185ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. [Tradução: Jerusa Pires Ferreira; Suely Fenerich]. São Paulo: EDUC, 2000. P. 33. 186 Id., p. 37. 187 Id., p. 33.

112

ínt ima, abertura ou dobra afetiva, opacidade ou transparência, al egria ou pena provindas de uma di fusa representação de si próprio. 188

A teatralidade garante que, no momento performático, o co rpo e

suas emanações suspendam a vida ordinária. Assim, “a performance não

apenas se liga ao corpo mas, por ele, ao espaço. Esse laço se valo riza por uma

noção, a de teatralidade [. . . ]”, que rompe com o “real”. 189 A performance

implica competência e esta é entendida do seguinte modo: “saber -ser”, que

“implica e comanda uma presença e uma conduta, um Dasein comportando

coordenadas espaço-temporais e fis iopsíquicas concretas, uma ordem de

valo res encarnada em um corpo vivo”. 190

Assim, o corpo do capoerista Besouro, com seu saber-ser, é um

corpo que dança, se contorce, vibra, em compasso e em movimentos

repetitivos, luta, r itmado ao som de instrumentos, como o berimbau , ou dos

acordes do samba. É o corpo negro performatizado , histórico, marcado pela

ginga, carregado de linguagem, que significa, enquanto estét ica, memória e

tradição, liberado da opressão a que est ivesse submetido, como máqu ina de

produção do regime opressor.

Na capoeira, a ginga garante o jogo de corpo, a destreza, com

cadência, o que fica além da va lent ia dos contendores. Letícia Reis afirma o

seguinte : A ginga é ri tmada pelo som do berimbau, s endo por seu intermédio que o corpo dos capoeiris tas descreve círculos no espaço ci rcular da roda. S eu corpo dança, acompanhando a capoeira do lúdico. Por permitir a um só t empo que o corpo lute dançando e dance lutando, a ginga remete a capoeira a uma zona intermediária e ambígua si tuada entre o lúdico e o combativo. 191

Besouro consegue aliar esses componentes e, “encarnado” no

mendigo , vencer o outro jogador, para fazer justiça, demonstrando que, em

roda de capoeira, a força fí s ica não é importante. Ao contrário, o que

determina o sucesso do vencedor é sua astúcia e sua ginga, seu movimento,

também na defesa dos injust içados.

188 Idem, p. 28-29. 189 Idem, p. 47. 190 Id., p. 35-36. 191 REIS, Letícia Vidor de Souza. op. cit.; p. 215.

113

Como nos textos de Antônio Vie ira e Victor Garc ia, Feijoada no

paraíso apresenta uma imagem de Besouro comprometido com a justiça,

defensor de suas crenças, idéias e valores. Mesmo não pertencendo mais ao

mundo terrestre, o capoeirista cont inua a combater a op ressão e a defender os

indivíduos desqualif icados socialmente: os mendigos, prostitu tas,

trabalhadores de ganho, enfim, uma grande parce la da população do

Recô ncavo republicano.

Carvalho trança esses re latos dando destaque à bravura e heroísmo

de Besouro, acompanhados de senso de just iça, ensinamento da religião do

candomblé: “Sou versado também nessa arte. Co nfusão, pancadar ia,

exemplação. Tudo isso é o terr itório por onde o meu Ogum vaga certe iro e

atento” (p. 127) – afirma o personagem, herói da cultu ra negra. Esse heró i

construiu seu código de ética, que orienta as suas p rát icas e re lações sociais.

Por terem construído seus próprios códigos, que transgridem as

normas criadas pelas e lites do país, esses heróis foram d esqualif icados,

denominados de malandros. O estudo de Edil Costa contribu i para

ressignificar positivamente essa adjet ivação. A pesqu isadora considera o

seguinte :

Os heróis malandros são caracterizados pela maleabil idade e facil idade de romper com as normas comuns de conduta social , criando eles suas próprias normas. Malandragem é maleabil idade, é jogo. O malandro não toma conhecimento do código social vigente e só respeita o novo código inaugurado por ele mesmo. Ele cria o jogo, inventa regras e, por iss o, sabe bem jogar. Com sua maleabil idade, o malandro pode mudar as regras do jogo já existentes, s empre a s eu favor. Cla ro está que, para agir nas margens, o herói t em que conhecer por dentro (e muito bem) o código dominante, pois é por dent r o que ele vai minando-o, muitas vezes fingindo obedecê -lo. 192

É o mundo da ordem e desordem que, na busca do equ ilíb rio , apóia -

se nos seus heróis que intermedeiam as s ituações entre dominantes e

dominados, fazendo com que estes busquem alternat ivas na reso lução de

conflitos ou continuem em confronto com o poder.

Feijoada no paraíso traz um episódio vivido entre o mundo da

ordem e desordem, envolvendo um segmento social altamente marginalizado, 192 COSTA, Edil. op. cit.; p.129.

114

prostitu tas e travest is, no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro. Esses

personagens do “submundo” têm na capoeira a fo rça para se defenderem das

agressões fí sicas e morais, arma empregada contra o preconceito. Para isso, a

magia e o encanto tornam-se fundamentais.

Magia é destino. Varei mundo e raimundos atrás de um para acabar de crer que o meu axé vem de muito longe, das t erras dos reis nagôs. Todo esse encanto me atravessa vidas pel o tempo afora e chega na cena no exato momento de ser a resposta para um gesto que ainda não fi z. Magia é veneno. Logunedé é de dois . Metametá. Uma t rindade pagã. Um caboclinho das águas, da macumba, e não de qualquer santeria. A capoei ra é a art e do índio fei t i ceiro. Mui tas mandingas me vêm desde o Daomé e do t empo do primeiro ala fim de O yó. 193

A magia, o encanto e a força da religião do candomblé,

estruturadores da formação psíquica e cultural do personagem, são decisivos

na proteção dos suje itos desqualif icados pelo imaginário escravocrata e

católico. Na agressão so fr ida pelos travestis e prostitutas Malaquias (ou

Dalva), Esterzinha e Madame Satã, a capoeira se to rna a arma para combater a

violência.194 Besouro, também já distante do mundo dos mortais, va i intervir

na s ituação, através do corpo do travest i Dalva (ou Malaquias) , para a defesa

e ataque no conflito instaurado pela po líc ia:

Roque [o policial] assuntou a moça-dama em voz alta, s e fazendo acompanhar do outro soldado, também de cáqui e capacete. Também se dirigiu a ela naqueles termos. Dirigir é assim meio que um modo de falar, porque ele foi logo descendo a borracha, no que t eve o adjutório pr estimoso do outro meganha [. . . ] Esterzinha gri tou, ganiu esganiçado como

193CARVALHO, Marco. op.cit. p. 121.Significação dos vocábulos: Logunedé: (kwa) (°PS) –sm. Divindade queto, filho de Oxóssi e Oxum, rege os navegantes é representado pelo cavalo-marinho e equivale a São Expedito. Tem a capacidade de ser homem durante seis meses, então é valente caçador. Come carne. Nos outros seis meses, vira mulher, passa a viver nas águas, torna-se doce e manso, alimentando-se de peixe; Cf. CASTRO, Yeda Pessoa de. op. cit. p. 266. Metametá: (kwa) (LS) – adv. Meio a meio. Yor. mE’tame’ta,por três. Id.ibid. p. 883. alafim de oyó (kwa) (LS) título hierárquico do queto. Yor. ALáàfin o `yE. Id.ibid. p.149. 194 Cf. Luciano Milani. “Madame Satã, pernambucano de nome civil João Francisco dos Santos (1900-1976), o mítico Madame Satã, ficou conhecido como “um bandido chique”. Dizia ser filho de Iansã e Ogum e devoto da cantora americana Josephine Baker. Homossexual assumido em plenos anos 1930, reinava como camareiro, cozinheiro, transformista, leão-de-chácara e ladrão no submundo da Lapa, bairro boêmio do Rio de Janeiro. Negro, pobre e analfabeto, João dos Santos ganhou o apelido de Madame Satã por causa de uma fantasia que usou no bloco carnavalesco Caçadores de Veados em 1942. Ao todo, João Francisco contabilizou 27 anos e oito meses de cadeia, 29 processos, 3 homicídios e cerca de 3 mil brigas. Ágil lutador de capoeira e mestre no manuseio da navalha – contam que ele sempre trazia uma presa na sola do sapato –, Madame Satã só recorria ao revólver em situações extremas, a exemplo da vez em que desfechou um tiro num soldado, na esquina da rua do Lavradio com a avenida Mem de Sá. Dizia que não brigava, se defendia.”. Disponível em http://www.portalcapoeira.com/Curiosidades/madame-sata. Acesso em 07/02/2010.

115

o animalzinho buliçoso mesmo que era. [. . . ] Foi nessa hora que chegaram correndo o tal um de camisa l is trada e a morena Dalva. Eles estavam muito revoltados com a covardia com a sua amiga. Até eu que não t inha nada com o peixe, també m estava. (p . 125-126 ).

O personagem se sensib iliza com os agredidos, afirmando : “Nunca

gostei de covardias”. Buscando fazer just iça, alia-se a Madame Satã e, juntos,

vencem a contenda, muito frequente à época da repressão aos capoeir istas,

derrotando a po lícia. O corpo to rna-se o lugar da sacra lização de valo res

religiosos e de fé. Antes de tomar o corpo de Dalva, o personagem -narrador

justif ica a sua esco lha :

[. . . ] Não sei por que mas meu espí ri to se encantou mais com Dalva, talvez porque ela era fi lha querida de Logunedé, como Malaquias e até frequentavam um terreiro no subúrbio. Talvez porque o meu Ogum estivesse de frente. Quem vai saber. O u quem sabe se porque na nação dos bantos Logunedé é Ogum. Não sei . Sei que foi a primeira vez que desci sem ser invocado por um berimbau. (p. 127).

Na narrat iva, o corpo do negro deixa de ser dócil, disciplinado

como máquina do sistema escravocrata, para se erguer como lugar sagrado,

que abriga as experiências e crenças, como afirma Leonardo Tavares Mart ins:

“O ser humano, imerso no rec into sagrado, sente que, ali, o mundo p ro fano é

transcendido e o corpo passa a ser o lugar de passagem dessa experiência. É

uma relação corporal e transcendente”. 195

A narrat iva de Feijoada no paraíso se encerra com o personagem

evocando o dia em que nasceu , ju sto no momento em que nasce o seu neto no

morro de Dona Marta, uma favela do Rio de Janeiro.

Mas só muito mais tarde na vida, só quando já outro sol começou a derramar seus raios pelos al tos do morro de São João, com aquela sede de lamber logo com sua luz amarela os brancos dos mausoléus do cemitério lá embaixo, é que l embrei do dia em que nasci , ou do que me conta ram. No alto do morr o de Dona Marta, ouvi o choro da criança encher a manhã de vida e os galos da favela responderam o choro com seus bateres de asa e cocorocós. [. . . ] Uma lufada de ar fresco subi u pelas vielas do morro sem aviso bem na hora em que nascia o

195 MARTINS, Leonardo Tavares. O corpo e o sagrado. O Renascimento do sagrado através do discurso da corporeidade. Dissertação de mestrado. Faculdade de Educação Física. Universidade Estadual de Campinas. [sn], 2003. p. 30.

116

menino meu neto. Todos bateram palmas e festejaram”. (p . 152-153).

Tal acontecimento traz muita a legr ia para Besouro e o transporta

para a cidade de Santo Amaro : O sol roubou as sombras das l ápides de mármore e fi cou olhando o cemité rio de São João Batista de cima. Era meio -dia. Ele i luminou com força as mangas bicadas de passarinho caídas no chão. [. . . ] Foi um dia danado de encantado aquel e em que nasceu o meu neto. Uma gana de festejação me arrepiou todo e vim descendo o morro de Dona Marta em mei o aos que não me viam, já não querendo mais me desmistura r das gentes. Não se nasce em descendente todo dia não. Ancestral sabe disso. Era de se comemorar então. E cruzei quem subia o morro de t ênis e camisa de loja, ou de chinelo, ainda q ue ninguém me visse. Sempre andei descalço e nunca me acanhei no esperto. Capoeira não é quem se assusta. Sempre est ive e m dia com o inusitado. (p . 153).

Descendo o morro de Dona Marta, o personagem é atraído pelo

che iro de alimento, vindo de algum restau rante, o que desencadeia uma sér ie

de lembranças:

Uma brisa revirou e levantou do chão umas folhas, devagar assim como na minha memória. E lembrei que viver é inventa r fantasia. Um cheiro bom de t emperos foi atravessando as folhas, que ao se revi ra r iam escrevendo no ar umas piruetas preguiçosas. O cheiro quente encheu o a r de Botafogo de lembranças e p romessas. 196 (p. 154).

Rememora o tempo em que vivia em sua terra - “Morrer é se

espalhar em mil lembranças. Pois então onde vivo hoje é senão somente nos

lugares que vis ito em minha memória” (p. 156), afirma o personagem, vindo a

compor uma memória afet iva : o tempo em que tinha o car inho e a proteção da

sua tia, que preparava o alimento , o “feijãozinho corriqueiro” com “muito

fato, costela, lombo , toucinho, orelha de porco, lingü iça, paio e temperos

variados como coentro, cominho, alho, hortelã , umas folhas frescas de louro,

pimenta”. Recorda-se a inda da “fe ijoada da mulata comadre Amália a que

tirava o padre [Vito] do seu sério. Nada se comparava. Não se cansava e le de

196 Botafogo é um bairro da cidade do Rio de Janeiro.

117

repetir, tanto os elogios quanto mais e mais p ratos de feijão pela tarde afo ra.

Depois as redes, os lico res, o s charutos. . .”. (p. 155-156).

Na evocação desse tempo, marcada por imagens sinestésicas – “o

che iro quente encheu o ar de Botafogo”, “fui cheirando minhas lembranças”,

“vinha o che iro morno de minhas recordações”, “cheiro ant igo” –, o

personagem entra no restaurante de onde vinha o cheiro da feijoada: “Procurei

o rumo daquele che iro ant igo no meio dos carros de Botafogo”. (p. 156).

Os que estavam no restaurante pareciam ter pressa nenhuma não. Vi a satisfação e a fa rofa lambuzando a boca do velho e não me cabi de inveja. Estaquei diante da sua mesa com seu prato e sua cerveja. Só ele me viu. Mas não passou recibo de espanto porque era de fé. Nem eu estranhei. Ele apenas pedi u ao garçom primei ro uma dose, depois outro prat o de fei joada. O homem de gravata-borboleta est ranhou apenas quando el e mandou levar de volta os talheres. O velho arrumou tudo muit o cuidadosamente na sua frente, na outra borda da mesa, e fez um gesto me convidando a tomar assento. Poucos t ivera m tempo de estranhar o seu gesto. Por, s em que ninguém visse, evaporei tudo o que estava no prato e saudei as lembranças que me consumiam desde a hora em que desci do morro. [. . . ] Para mim o paraíso sempre foi em S anto Amaro, mas, acabei de crer, t inha uma fi l i al em uma rua qualquer de Botafogo. (p. 158).

Nessa desc ida pelo morro, quando do nasc imento do neto , algumas

décadas depois – como se pode ver pela referência ao t ipo de calçado de

algu ns transeuntes, ao movimento dos automóveis –, Besouro voa pelo Rio de

Janeiro, também um lugar que marca a resistênc ia de muitos escravos e

negros.

Assim, o Recôncavo Baiano e o Rio de Janeiro estão unificados, não

por serem territórios geográficos, mas por serem territórios cu lturais,

grafados de experiênc ias históricas dos negros, que têm no jogo da capoeira,

dentre tantas práticas, o lugar que marca, em diferença, a rebeld ia, com seus

golpes inc isivos – “armada”, “marte lo”, “meia-lua”, “queixada”, “ponte ira”,

“benção” –, uma luta étnico -racial no Brasil, desde tempos coloniais.

118

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa teve por objet ivo analisar as representações

elaboradas sobre o capoeir ista Besouro Mangangá, privilegiando os textos

f iccionais que se inserem na chamada literatura de cordel, dos autores

Antônio Vie ira e Victor Alvim Garcia, bem como a narrat iva b iográfica de

auto ria de Marco Carva lho, no intuito de entender a const ituição desse mito

da cultura afro-baiana.

Como a singular idade de Besouro, enquanto su jeito, está marcada

por sua visibilidade no universo da capoeira, foi fundamental analisar a sua

trajetória pessoal, a sua história de vida, articu lando-a com o contexto

histórico baiano no pós-abo lição . Ao final desse estudo, acredito que uma parte

significativa da história de Besouro Mangangá (Manuel Henrique Pereira) tenha sido

trazida através dos textos ficcionais pesquisados. São narrativas que, cada uma ao

seu modo, estabelecem um diálogo com a textua lidade popu lar, produzida por

uma memória o ral, pondo em questionamento uma grande narrat iva o riunda

das elites do país.

O capoeirista de corpo fechado, que se destacou em sua época, foi trazido

nos versos de cordel de Antonio Vieira e Victor Alvim Garcia, narrativa biográfica

de Marco Carvalho, tecidos com os fios da imaginação, como um homem valente,

justiceiro, rebelde, que soube, com a ginga do corpo, desestabilizar a ordem vigente,

e por isso tornar-se herói.

Os textos literários analisados nesta pesquisa aproximam-se por se

constituírem em narrativa mítica, que destacam a morte e o nascimento do herói

negro. A morte pressupõe novos nascimentos de Besouro, pois esse herói tem o corpo

fechado, por ser protegido pelos fortes orixás, e sua irreverência o coloca ao lado de

heróis pícaros, por protagonizar histórias que podem ser tidas como inconsequentes

na ótica do dominante.

O objeto de estudo eleito terminou por exigir uma incursão na geografia

da capoeira, como jogo, luta e dança, na Bahia e no Recôncavo, durante o final da

Monarquia e a Primeira República, para se desenhar um painel sócio-histórico, e, a

partir dele, perceber e entender o processo de transformação pelo qual passou o

negro em nosso país.

119

Outro aspecto que vislumbrou esse trabalho diz respeito à tentativa de se

explicar o corpo negro, que entra em cena todas as vezes em que a “ginga” e

“malícia” se fazem presentes numa roda de capoeira, mediante um viés ficcional, o

que propiciou pensar e escrever sobre Besouro, ou “besourar”, como diz Marco

Carvalho em Feijoada no paraíso. Certifica-se o aqui dito através do título desse

trabalho: inventar Besouro traduz, assim, muito além do que enveredar pelas teias da

ficção; destaca-se a tentativa de engendrar nos liames históricos para favorecer o

aparecimento de um indivíduo que não se insere no perfil clássico de herói nacional,

igual a tantos outros, mas que reflete outros tantos escondidos pela capa do silêncio e

do preconceito, prontos para serem descobertos.

A exploração do viés mítico e heróico nessas histórias, como a relação

da capoeira ao candomblé, com todo o seu panteão de deuses africanos, também foi

uma preocupação no decorrer do trabalho. Com isso, abriu-se a possibilidade de dar

seqüência a essa pesquisa, para analisar o traço mítico e heróico de Besouro nas

canções ou ladainhas de capoeira cantadas ou repenteadas até hoje no Recôncavo.

Essas ladainhas, compondo uma textualidade popular, sinalizam a

repercussão de um mito, que se constitui validando uma cultura ancestral, e conferem

a Besouro Mangangá um lugar de destaque no panteão dos heróis afro-brasileiros,

legitimando assim a afirmação do negro.

120

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ANEXO