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Brasil / França Diálogos entre design, cultura e sociedade Ano I - n. 1 - julho de 2010

Revista Transverso - Edição 1

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revista com reportagens voltadas para designers e arquitetos

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  • Brasil/Frana

    Dilogos entre design, cultura e sociedade

    Ano I - n. 1 - julho de 2010

  • Dilogos entre design, cultura e sociedade

    Ncleo de Design e CulturaCentro de Extenso da Escola de Design

    Barbacena, julho de 2010

  • Coordenadora do Centro de Extenso da Escola de Design Giselle Hissa Safar http://bit.ly/aS9jpx

    Editor responsvel Mrio Santiagohttp://bit.ly/9tLoTP

    Projeto grfico Daniel GonalvesLucas Dinizhttp://www.vorko.org

    Marca Revista TransversoMarco NickMatheus MouraThiago Barcellos

    Reviso Mrio Santiago

    Superviso do projeto grfico Joana Alves http://bit.ly/dq5D83 Contatos Revista Transverso dilogos entre design, cultura e sociedade

    Escola de DesignUniversidade do Estado de Minas Gerais http://www.ed.uemg.br/

    Ncleo de Design e [email protected]://bit.ly/bzkBLV

    Avenida Presidente Antnio Carlos, 7545 6. Andar - So Luiz Belo Horizonte, MG CEP 31270-010

    [email protected]

    Eliana Marta Santos Teixeira LopesUniversidade Federal de Minas Gerais http://bit.ly/aEDikt

    Jlio Flvio de Figueiredo FernandesUniversidade do Estado de Minas Geraishttp://bit.ly/aISEp5

    Lucy Carlinda da Rocha de NiemeyerPontifcia Universidade Catlica do Rio de JaneiroUniversidade do Estado do Rio de Janeirohttp://bit.ly/9cjj1C

    Marcelina das Graas AlmeidaUniversidade do Estado de Minas Geraishttp://bit.ly/aThZEo

    Sandra MakowieckyUniversidade do Estado de Santa Catarinahttp://bit.ly/d4ndP1 Srgio Antnio SilvaUniversidade do Estado de Minas Geraishttp://bit.ly/9qgqZk

    Conselho Editorial

    FichaTcnica

    REVISTA TRANSVERSO

    Transverso : dilogos entre design, cultura e sociedade / Ncleo de Design e Cultura. Centro de Extenso da

    Escola de Design Ano 1, n. 1 (jul. 2010)

    Barbacena, MG : EdUEMG, 2010.

    57 p.

    Semestral

    1. Design. 2. Cultura Aspectos sociais. I. Ncleo de

    Design e Cultura. Centro de Extenso da Escola de Design.

    CDU: 7.05

  • Impresses de um designer brasileiro transitando entre francesesRber Botelho http://bit.ly/9xCrq5

    A exposio de Marcel Duchamp no MAM-SP vista sob a tica de Jean DavallonRenata Dias de Gouva de Figueiredo/ Clice Toledo Sanjar Mazzillihttp://bit.ly/cu5ilB | http://bit.ly/drb5rQ

    A ordem das desordens. Estudo sobre o enciclopedismo na literatura e nas artes em Diderot e Voltaire, Sami Hilal e Bispo do RosrioSandra Beatriz Duarte de Freitashttp://bit.ly/dpkriN

    Como era gostoso o meu francs, ou o estar-junto com uma brasileiraLcia Bergamaschi Costa Weymarhttp://bit.ly/973qmK

    Mapeamento das cidades atravs da fragmentao do olharFabola Alessandra Rodrigueshttp://bit.ly/9K715A

    Belo Horizonte e a Frana: relaes culturais no perodo pr-designBreno Pessoa dos Santos http://bit.ly/9QUAtI

    Coco Chanel - o estilo retr inspira o design, recria o luxo e aponta para novos comportamento sociaisRita Aparecida da Conceio Ribeiro

    Joana FrancesaRogrio de Souza

    Sumrio

    REVISTA TRANSVERSO

  • REVISTA TRANSVERSO

    EditorialA revista Transverso - dilogos entre design, cultura e sociedade, do Ncleo de Design e Cultura/Centro de Extenso da Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais, um instrumento de divulgao dos resultados da pesquisa realizada por seus alunos e professores, assim como daqueles vinculados a outras universidades e centros de pesquisa em design e reas confluentes, do Brasil e do exterior, que tenha por eixo estrutural a tematizao crtica do design, a partir dos seus vnculos com as letras, as artes e as cincias humanas e sociais.

    Este primeiro volume da revista Transverso traz contribuies crticas, alm de um depoimento e de um ensaio fotogrfico, que se orientaram pelo tema Brasil e Frana: interfaces, convergncias e intersees, cujo objetivo foi o de estabelecer (por ocasio do Ano da Frana no Brasil, em 2009) um dilogo que transversaliza as diversas fronteiras culturais entre as duas naes e que leva em conta a repercusso das diferentes expresses cientficas e artstico-culturais da Frana no design brasileiro, bem como na sua tematizao crtica.

    Desta forma, a revista Transverso espera contribuir para a ampliao do dilogo acadmico sobre o design, em suas diversas formas configuracionais.

    Os leitores deste primeiro volume da Transverso, assim como todos aqueles que se interessam pelo estudo do design e suas fronteiras, esto convidados a participar desta iniciativa, enviando contribuies que assegurem a amplificao deste debate e multipliquem as possibilidades de uma discusso crtica sobre o design.

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    Rber Botelho, Professor da Escola de Design da UEMG

    Depoimento/Impresses de um designer brasileiro transitando entre franceses.

    Eu vejo a minha estada aqui na Frana de forma muito positiva, tanto pelo aspecto profissional quanto (e especialmente) pelo pessoal, se que eu posso, ou mesmo, consigo separar esses dois contextos em minha vida. Alm de estar em mais uma fase de um processo acadmico e pessoal que se iniciou ainda na graduao, em 1998, o ano em que me iniciei pesquisa cientfica, no Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design e Ergonomia da Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais, esta fase , tambm, uma oportunidade para rever e confrontar uma srie de conceitos, e seus PR-fixos, sobretudo a respeito da nossa cultura e da cultura de um continente industrial e economicamente desenvolvido. Isso tudo pode parecer demagogia para uns, mas, quando nos encontramos distantes dos nossos vcios dirios, fica evidente uma srie de pontos positivos e negativos, tanto do nosso pas quanto daqui, do velho continente.

    Entender o raciocnio daqueles que vivem num outro contexto cultural, diferente do meu, se expor e ser avaliado por eles, resulta num verdadeiro desafio e num verdadeiro aprendizado cujas dificuldades, muitas vezes, suplantam as que tenho no prprio doutorado que vim desenvolver.

    Tendo essa primeira questo martelando minha frente, posso concluir que a principal sensao de estar aqui na Frana a de poder contribuir para integrar essas duas culturas, compartilhando e absorvendo os detalhes, de cada um desses dois mundos.

    Ainda assim, seria muito positivo para a nossa cultura se os incentivos governamentais do meu pas permitissem que mais pessoas pudessem vivenciar esse mesmo processo, no somente se deslocando para a Frana, Itlia, EUA, etc., pois, muito possivelmente, melhoraramos a nossa latente incapacidade de perceber a qualidade nos detalhes das questes industriais, sociais e ambientais. Acredito que assim essa sensao de ser um brasileiro vivendo neste contexto, que o j desgastado jargo considera como primeiro mundo, pudesse ser menos exclusiva.

    Acredito que a principal forma de integrar, no somente as culturas francesa e brasileira, mas integrar as diversas culturas (ou mesmo o cenrio mundial), procurarmos compreender os valores inerentes a cada uma delas, sobretudo os nossos prprios valores (emocionais ou tcnicos, prioritrios ou secundrios etc.). Vejo que a

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    responsabilidade para tal compreenso de cada profissional, muito alm da simples tarefa de passar por um curso, pois, no campo do design, criamos, desenvolvemos, vendemos, compramos e trocamos valores. Assim, a integrao cultural depender da capacidade dos seus respectivos indivduos (particularmente dos designers) em decodificar valores mtuos. E os intercmbios so primordiais para a sua efetivao. por este motivo que eu mencionei, acima, que o fato de estar vivendo em um outro contexto cultural (absorvendo e expressando valores, e sendo avaliado por essa mesma cultura) chega a ser mais importante que o prprio estudo acadmico que estou desenvolvendo.

    A escolha da Frana vem de um processo de longa data que, sem dvida alguma foi influenciado e tem razes determinadas ainda durante a minha infncia em Rubim, minha cidade natal, no vale do Jequitinhonha em Minas Gerais, quando eu via o personagem Pepe Le Pew (da Warner Bros), sempre correndo atrs de sua gata a clamar, chrie, chrie, chrie, .... Eu achava o sotaque sempre muito persuasivo e isso, alm de outros fatores, acabou se transformando numa grande admirao pela lngua e cultura francesa. Depois que entrei para o CPqD da Escola Design, em maro de 1997, ainda como voluntrio e sempre em contato com o Prof. Jairo Jos Drummond Cmara, que era o seu coordenador e que havia cursado seu doutorado na Escola de Minas de Paris, aquela admirao infantil se transformou em possibilidade e oportunidade. Durante todo esse percurso (como voluntrio, aluno de iniciao cientfica, mestrando e Professor Pesquisador da Escola de Design), pude visitar a Frana em duas oportunidades atravs do Projeto Sabi. Desde ento, venho estruturando essa fase em que estou, mas, sempre pensando nas prximas etapas.

    Alm desses pontos pessoais, a minha vinda para a Frana esteve sempre associada a outros aspectos. A Universidade de Cergy-Pontoise UCP (localizada nas cidades de Cergy e Pontoise), onde desenvolvo o doutorado, conceituada internacionalmente pela qualidade do seu

    ensino e potencialmente favorvel aplicao do conceito de interdisciplinaridade, um aspecto indissocivel do design. Inaugurada em 1991, a UCP compreende uma sada ao significativo crescimento da populao estudantil e, tambm, para o desafogamento das escolas clssicas situadas em Paris. Localizada a 35 minutos de metr de Paris, a universidade acolhe mais de vinte mil estudantes e mais de oitocentos profissionais, propondo uma oferta pluridisciplinar que cobre os trs ciclos de ensino na maioria das reas de investigao cientfica. A universidade dispe de cinco escolas: Direito; Economia e Gesto; Lnguas; Letras e Cincias Humanas e Cincias e Tcnicas. uma universidade com forte apelo internacional, uma vez que est associada a mais de cem universidades estrangeiras.

    O convnio para a troca de conhecimento e capacitao profissional estabelecido em 2005 entre a UEMG e a UCP foi tambm determinante para a minha vinda para c, uma vez que tive a aprovao integral do meu plano de trabalho pelo diretor de tese Francs, Prof. Ren Lasserre. Atravs deste convnio, o doutorado que desenvolvo se faz pelo sistema de co-direo onde as duas instituies envolvidas participam em igualdade do processo de capacitao. Destaco que meu diretor de tese do Brasil o Prof. Jairo Jos Drummond Cmara.

    Para finalizar este depoimento, posso afirmar que no foi simplesmente uma escolha, mas o resultado de uma sequncia de fases, de todo um processo de formao e que no pretendo chegar to cedo a um game over.

  • Este artigo consiste em uma anlise da exposio de Marcel Duchamp: Uma obra que no obra de arte - ocorrida entre julho e setembro de 2008 no Museu de Arte Moderna (MAM) de So Paulo. A anlise se d a partir da teoria de Jean Davallon, autor francs que desenvolve uma abordagem scio-semitica dos fenmenos comunicacionais nos museus. Este autor discute a contribuio da semitica e da teoria da recepo para analisar como a exposio comunica e como se d a construo de sentido em seu interior. Primeiramente apresentada a exposio, o artista e seus principais conceitos. Logo aps, a base terica de Jean Davallon e na sequncia e feita a anlise do espao expositivo.

    Palavras-chave: exposio de arte, comunicao, semitica, organizao da exposio

    This article describes an analysis about the Marcel Duchamps exhibition A work that is not a `work of art` organized at the MAM - Modern Art Museum of So Paulo, Brazil - between July and September, 2008. The exhibition analysis work presented here is supported by Jean Davallons theories. This French author develops a social semiotics approach for the communication strategies discussing how the semiotics and reception theories are used to build up the sense by the museums visitors. In this article the exhibition is presented first, the artist and his main concepts thereafter. Subsequently, the Davallons theoretical basis and finally the Duchamps exhibition analysis work

    Key words: Art exhibition, communication, semiotics, exhibit organization

    Renata Dias de Gouva de Figueiredoorientadora/co-autoraautoraClice Toledo Sanjar Mazzilli 1

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    A exposio de Marcel Duchamp no MAM-SP vista sob a tica de Jean Davallon

  • A exposio MARCEL DUCHAMP (1887-1968): Uma Obra que no uma obra de arte ocorreu no perodo de 15 de julho a 21 de setembro de 2008, no Museu de arte moderna de So Paulo no Parque do Ibirapuera. A curadoria de Elena Filipovic e expografia do estdio Caruso-Torriccela, de Milo.

    A proposta parte do questionamento do artista colocado em 1913: Pode algum fazer obras que no sejam de arte?.

    A mudana sinalizou o incio de sua desobedincia as idias tradicionais do que levado em conta como obra de arte e lana as bases do que o tornaria o artista mais influente dos sculos XX e XXI.

    A mostra comea justamente no momento em que o artista coloca a questo que d nome a exibio, que coincide com o momento em que a obra de Duchamp muda de figura, e ele passa a conceber os objetos ready-made, entre outras inovaes como pode ser visto no catalogo da exposio: ele inventou um novo sistema de medidas, ao declarar a arte um

    experimento; criou vrias cpias fotogrficas de suas anotaes; usou o acaso (chance) para fazer msica e foi o primeiro a usar a fotografia e a perspectiva para redefinir a pintura.

    A exposio trouxe trabalhos inditos no pas, como a rplica do Grande Vidro, a Caixa de 1914, uma reproduo do tant Donns, feita dentro de uma caixa em que os visitantes podem olhar dentro.

    No espao expositivo existem algumas dessas salas encaixotadas que no podem ser adentradas, mas cujo interior - que encerra reconstrues do atelier do artista ou de exposies inteiras montadas por Duchamp - pode ser espiado. Como a instalao 1.200 sacos de carvo, da Exposio Internacional do Surrealismo de 1938, em Nova York.

    Duchamp/sobre a exposio.

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  • A exposio ser analisada segundo a proposio apresentada no livro do francs Jean Davallon, Lexposition a loeuvre, que discute a contribuio da semitica e da teoria da recepo na anlise da comunicao e construo de sentido da exposio. Sob este ponto de vista foi feita uma anlise da mostra de Duchamp.

    Segue os principais pontos desta anlse, precedidos por uma pequena introduo da teoria de Davallon.

    1. O PROPSITO: O propsito da exposio definido por categorias conhecidas: arte, cincias, tcnicas, comerciais, memria, etc.

    Esta uma exposio de arte. uma retrospectiva em essncia mas que exibe obras at ento inditas no Brasil, tendo a pretenso de gerar um acontecimento histrico por ser a primeira exposio individual do autor na Amrica Latina.

    2. A INTENO: Produzir um efeito, seja um prazer artstico, transmitir um saber ou compreenso, uma identidade, divertir ou vender. De acordo com a resposta inteno revelam-se classificaes embutidas nas exposies: estticas, semiticas, sociais, polticas, etc.

    A inteno declarada da curadora Elena Filipovic: Destacar a complexidade da oeuvre de Duchamp e o seu desafio aos fundamentos da arte da sua poca e ainda dos nossos dias.

    Os objetos ready-made, como a p de remover neve, a roda de bicicleta ou o mictrio de porcelana ganham com Duchamp um estatuto artstico apenas pelo fato de tir-los do contexto original (o mundo real), destitu-los da sua funcionalidade transformando-os numa obra artstica. Duchamp leva os objetos do cotidiano a outro mundo, que poderamos chamar de mundo utpico, mundo esse que se forma na mente do espectador.

    A percepo do visitante (o olhar) cede lugar interpretao. O olhar passa a exigir o pensamento, uma reao intelectual: a busca do significado.

    Mise en exposition: Para Duchamp o modo de expor as coisas influi muito no nosso entendimento delas, ou seja, a percepo e o desejo mudam ou so condicionados pela maneira como os objetos em exibio ocupam o espao.

    Estticas: O repensar a obra de arte o foco principal desta exposio. A concepo dos objetos ready-made marcou uma revoluo na histria da arte ao refutar a idia segundo a qual a arte deveria consistir apenas de peas nicas e originais de pintura ou de escultura realizadas cuidadosamente para serem vistas.

    3. A INTENCIONALIDADE. Pode ser dividida em nas seguintes categorias:

    Constitutiva: a operao de mise en exposition, isto , a operatividade da exposio (colocar em exposio). A exposio opera no sentido de instigar a interpretao do que exposto. Contemplar a obra j no basta.

    Diversos experimentos so exibidos por meio de estudos, rplicas ou reconstrues. As peas esto organizadas em grupos: ready-made, ptica, perspectiva, transparncia, humor, reproduo, performatividade e erotismo, que enfatizam as preocupaes de Duchamp e o seu grande interesse sobre a exposio e a exibio.

    Anlise do espao expositivo sob a tica de Davallon

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  • Tomando o objeto feito anonimamente, Duchamp desferia um golpe mortal na noo clssica de arte. Quando em 1913 ele apresentou Roda de bicicleta, tecnicamente um ready-made modificado ou assemblage, Duchamp, como j foi dito, converteu-se na principal voz a se levantar contra a arte retiniana e a noo do artista como um trabalhador manual, noes que haviam se consolidado no sculo XIX no processo de reao progressiva perda do papel de quase total exclusividade da pintura na produo de imagens e smbolos. (...) Deslocado de seu habitat, o objeto domstico, maneira de um trocadilho - jogo de que Duchamp tanto gostava - passa a demonaco; colocado em outro contexto, desmontada a sintaxe, o objeto converte-se em outro, de afvel e familiar transforma-se em obstculo, corpo estranho.

    Comunicacional: Pe em ao as estratgias comunicacionais, que levam a diferentes formas textuais, onde intervm diversas linguagens: imagem, msica, palavra, som, vdeo, projees, cinema, etc. mostrando a poli valncia da exposio.

    Uma srie de projees que permitem ao visitante espiar os diferentes espaos de exibio que Duchamp elaborou durante sua vida. A criao do Museu Porttil (Bote-en-valise), dos quais vrias peas esto exibidas nesta exposio reproduzem numa nica caixa toda obra de anos do autor.

    Os efeitos pticos: O ponto de vista, combinado com efeitos de luz e sombra assim como com o movimento das peas ou a sua disposio que exigem a observao segundo um ngulo definido para comporem um mosaico, mudam a interpretao do espectador e o significado que atribudo ao objeto contemplado.

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  • As reprodues de peas como a transparncia La Marie mise nu par ses Clibataires (1915-23), combina sombras e perspectivas. Uma pea original do famoso mictrio: Fountain (1917), exposta apoiada de maneira diferente sobre uma base da que lhe d funcionalidade muda completamente a forma de v-la, parecendo at com a figura de um Buda.

    Fica a merc do visitante perceber a seqncia dos grupos de obras: ready-made, ptica, perspectiva, transparncia, humor, reproduo, performatividade e erotismo. Essas interpretaes so deixadas para o visitante, reforando o conceito de recepo abordado (...)cada nova leitura uma interpretao, e que so

    milhares de interpretaes de uma mesma obra, sempre novas e diversas, de acordo com a diversa personalidade dos leitores; mas acaba por conceber esta multiplicidade como conseqncia fatal de um intimismo que reduz qualquer coisa a atividade subjetiva e arbitrria, e por desconhecer a realidade imutvel e constante da obra de arte. Feliz no recordar, que toda a operao humana, at a mais receptiva, tem sempre um carter ativo, essa concepo acaba por exagerar a atividade numa absoluta criatividade, esquecendo que difcil pensar numa receptividade mais ativa do que a leitura de uma obra de arte, onde receber reconstruir, fazer reviver, interpretar, penetrar, colher, e onde, na verdade, trata-se de no inventar mas executar, no de criar, mas de recriar, no de dar vida, mas de desperta-la.

    Basicamente a exposio apresenta quatro linguagens: os objetos, a palavra escrita, projees e fotografia. No h dispositivos interativos apesar das obras performticas provocam o efeito dinmico do movimento, mas no chegam a ser interativos uma vez que no h a colaborao direta do espectador. Este, quando muito, aciona o boto de ligar, mas de resto se pe a contemplar o que acontece sem poder interferir no funcionamento do dispositivo.

    No sentido como o define Davallon, pode-se dizer que a exposio no chega a explorar a interveno de vrias outras formas textuais.

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  • Ambientao: A idia conduzir o visitante em direo ao objeto, com a finalidade de comunicar-se com ele.

    O projeto se desenvolve em funo do conceito de um Visitante Modelo. O layout - percurso fsico da exposio - deve atuar como um mecanismo capaz de prever os movimentos deste visitante. Suas finalidades principais so: produzir a sua compreenso pessoal e tambm num contexto comunicacional dada pelo curador.

    A exposio de Duchamp , um mosaico com partes dispostas no espao onde o visitante no iniciado se perde. Entrando no ambiente expositivo, o visitante depara-se com um salo actico. Piso negro brilhante, paredes negras, pouca luz ambiente. Um local criado para contemplao e reflexo.

    A luz vinda de spots pendurados no teto esto dirigidos para as peas expostas. Pouca cor quebrada aqui e ali por algumas peas expostas como a Noiva (madeira da moldura), a janela pintada verde, peas mveis (performticas) com cores azul e verde.

    O contraste entre as peas (a Roda de bicicleta sobre o banquinho e o Mictrio) expostas sobre prismas de base retangulares pintados de negro. Os objetos (esculturas) esto dispostos perto da parede para produzirem um efeito de sombra na parede. Sombra essa que se compe com o objeto formando imagens.

    A inteno da ambientao evidentemente concentrar a viso do espectador sobre as peas expostas atravs da oposio negro/escuro (ambiente, bases, paredes) vs. branco/claro (mictrio, banquinho e roda de bicicleta) .

    O intuito da ambientao da exposio Marcel Duchamp: Uma Obra que no uma obra de arte, quebrada pela presena de muitas pessoas num espao apertado.

    Davallon diz que a exposio a organizao de objetos num espao. Essa disposio a ambientao ou o layout, que vem a ser a linguagem da representao do espao e do volume nos planos de arquitetura.

    Provavelmente a proposta da exposio no era atingir um grande pblico. No foi organizada para uma exposio de massa. Parece tampouco ser proposta para um pblico heterogneo e no iniciado. A direo da exposio buscou reduzir o efeito da superlotao do espao limitando a entrada do pblico, o que de outro lado causou uma enorme fila fora do MAM. Gerou

    A construo do espao deve satisfazer a trs condies

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  • assim um espectador cansado que pouco se disporia a estar em p contemplando as peas. Rompe-se assim, pelo cansao do espectador, a comunicao pretendida pelo curador num contexto no previsto.

    J vimos que a ambientao conquanto tenha sido bem elaborada no favoreceu muito a compreenso do visitante, uma vez que o contexto comunicacional se rompeu com certa facilidade pelas condies da arquitetura do espao e do edifcio.

    Por outro lado, a ambientao como a disposio das coisas dentro do espao est muito longe de seguir um projeto didtico. A exposio expe, verdade, expe as obras com um certo impacto, mas est longe de conduzir a uma compreenso para os aqueles que desconhecem Duchamp.

    Dispositivos de Enunciao. O efeito pretendido do dispositivo a significao. O visitante levado ao mundo do objeto (mundo utpico). Um objeto cultural concreto. A exposio como objeto cultural pode ser definida como um dispositivo no qual se produz a recepo.

    As Reprodues: a principal e mais importante a Noiva despida por seus Celibatrios, uma complexa trama ertica que se forma pelo arranjo de objetos mecnicos desenhados sobre o vidro a leo e com fios de chumbo. Os ready-made: produzem ainda hoje um efeito bastante impactante, como o Mictrio a Janela verde, o porta garrafas, a ampola de vidro, cujo intuito de dar um estatuto artstico a objetos apenas pelo fato de tir-los do seu contexto original e ser exibido em um museu, com o aval de um curador.

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  • Erticos: o jogo de aventais, uma representao ertica bem humorada dos originais usados para identificar os visitantes da Exposio internacional do surrealismo. Uma ironia irreverente do artista para os visitantes de 1938 em Nova York e que ainda causam impacto e riso nos visitantes.

    Mas est ai mais uma questo a ser colocada: queles que no conhecem o histrico da exposio no esclarecido qual era a funo de tal objeto. No fica clara a ligao entre este elemento e o ambiente encaixotado logo ao lado do objeto exposto (da exposio internacional). Ou seja, no explicando, fica a critrio do pblico deduzir um significado para tal objeto.

    As stoppages: barbantes lanados do alto sobre telas no cho. As figuras formadas pelo barbante so depois coladas na tela com a finalidade de observar-se os interessantes contornos que as curvas do barbante tomam. Uma experincia ldica.

    As miniaturas: o autor miniaturizou a prpria obra. Um Museu Porttil (Boites-en-valise) cujo objetivo era tornar possvel observar de uma s vez anos de produo artstica do autor.

    O Contrato Comunicacional. Esse contrato tem por base a veracidade e a autenticidade do que mostrado, dando credibilidade exposio.

    Esses conceitos so garantidos por instituies como o Philadelphia Museum of Art, o Moderna Museet de Estocolmo, a Duchamp Sucession da Frana, Galerie 1900-2000 de Paris, Indiana University Art Museum dos Estados Unidos, entre outros, que garantem uma relao de respeito com relao as obras expostas. Alm do prprio MAM, que confere credibilidade ao que exposto em seu espao.

    Os performticos: peas que se movimentam produzindo efeitos visuais, cujo significado a metamorfose das representaes do movimento a dinmica do movimento produzindo impresses visuais.

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  • Segundo Davallon, o funcionamento miditico da exposio se relaciona com o modo de recepo do visitante.

    A partir da ele classifica a exposio.

    No caso da mostra do MAM, da forma como a percebemos, classificaramos como uma exposio de arte, na verdade como dissemos no incio quase uma retrospectiva. Porm em certos aspectos tambm documental, em considerao ao contedo que apresenta.

    O tema principal a incessante preocupao do autor em questionar a arte e o museu. Duchamp inovou. Abalou os alicerces da arte. Trouxe para o seu trabalho artstico aspectos mais intelectualizados, como visto no incio deste texto.

    Se, conforme afirma Davallon, o funcionamento miditico da exposio realiza a relao entre o objeto e o receptor com a finalidade de produzir significado, as obras ready-made expostas na exposio o faz, uma vez que Duchamp consegue dar outro significado a objetos do cotidiano s pelo fato de retir-los do seu mundo, suprimir-lhes a sua funcionalidade levando-os para dentro da exposio e dando-lhes novo significado num novo mundo.

    - A exposio no um texto: a simples apresentao dos objetos e sua ao se limita a otimizar tecnicamente a recepo do que apresentado;

    - Ela uma disposio de objetos cujo sentido dado por textos em linguagem natural (etiquetas, painis, fotos, cartazes, etc);

    - A mostra corresponde a formas textuais diversas resultantes de estratgias diferentes. Pode ser discursiva ou exposio de objetos.

    Marcel Duchamp no MAM segundo as caractersticas que apresenta no pode ser considerada como um texto. Esquematicamente, e com base nos conceitos emitidos por Davallon, assim caracterizamos a exposio do MAM:

    Os textos em linguagem natural no do sentido a todos os objetos expostos. Na maior parte das vezes so apenas etiquetas que no chegam a por o visitante em relao com as coisas expostas.

    No h uma grande proposta de cooperao do visitante. A abertura a essa proposta se d apenas em alguns objetos do tipo performtico.

    basicamente uma exposio de objetos. D valor aos objetos autnomos e deixa o visitante ao sabor da sua prpria interpretao. `

    Funcionamento miditico da exposio

    A exposiocomo um texto

    Para que a visita a uma exposio valha a pena, o visitante tem que sair dela melhor do que quando entrou. A mostra de Duchamp deixa na memria uma lembrana realmente importante dos objetos ready-made. Outra considervel inovao do autor a questo do ponto de vista, do modo como um objeto apresentado alterando a sua percepo e, portanto, a sua interpretao e o seu significado.

    O ponto alto de Duchamp est no papel que ele prope para o espectador: o ato de contemplar uma obra no basta. A percepo no tudo.

    Ela cedeu lugar interpretao. O olhar passou a exigir o pensamento a busca do significado

    Concluses/

    Renata Dias de Gouva de Figueiredoorientadora/co-autoraautoraClice Toledo Sanjar Mazzilli

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  • BIBLIOGRAFIA

    DAVALLON, Jean. Lexposition a loeuvre: stratgies de communication et mdiation

    symbolique. Paris, LHarmattan, 2000.

    FARIAS, Agnaldo. Lies das Coisas (I). IN Desgnio 7/8: Revista da Historia da arquitetura e

    do Urbanismo. Annablume, setembro 2007, So Paulo.

    GONALVES, Lisbeth Rebollo. Entre Cenografias. O museu e a exposio de arte no sculo XX.

    So Paulo: EDUSP/FAPESP, 2004.

    MARCEL DUCHAMP (1887-1968): Uma Obra que no uma obra de arte. Catlogo da

    exposio. So Paulo: Museu de Arte Moderna de So Paulo (MAM), 2008.

    OLIVEIRA, Sandra Ramalho. Imagem tambm se l. So Paulo: Rosari, 2006.

    PAREYSON, Luigi. Os problemas da esttica. So Paulo, Martins Fontes, 1997. 3 Edio.

    Sites:

    http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-9702005000400018&script=sci_arttext

    http://diversao.uol.com.br/ultnot/2008/06/29/ult4326u979.jhtm

    MARCEL DUCHAMP (1887-1968): Uma Obra que no uma obra de arte. Catlogo da

    exposio. So Paulo: Museu de Arte Moderna de So Paulo (MAM), 2008.

    Idem.

    Ibidem.

    Jean Davallon professor e diretor de pesquisas na Universidade de Avignon, onde

    desenvolve pesquisas sobre o patrimnio, as instituies culturais e os processos

    comunicacionais de produo e recepo de cultura. membro do Laboratrio Cultura e

    Comunicao, tambm na Universidade de Avignon, desenvolve uma abordagem scio-

    semitica dos fenmenos comunicacionais nos museus.

    idem.

    FARIAS, Agnaldo. Lies das Coisas (I). IN Desgnio 7/8: Revista da Historia da arquitetura

    e do Urbanismo. Annablume, setembro 2007, So Paulo.

    PAREYSON, Luigi. Os problemas da esttica. So Paulo, Martins Fontes, 1997. 3 Edio

    Renata Dias de Gouva de Figueiredoorientadora/co-autoraautoraClice Toledo Sanjar Mazzilli

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  • Investigaes, incurses e aproximaes foram feitas no sentido de tecer possveis relaes textuais e visuais tendo como base o enciclopedismo francs elaborado por Diderot e Voltaire e o arcabouo imagtico dos artistas brasileiros Hilal Sami Hilal e Bispo do Rosrio.

    Palavras chaves: Enciclopedismo, Diderot, Voltaire, Hilal Sami Hilal, Bispo do Rosrio.

    Sandra Beatriz Duarte de Freitasautora

    Centro Educacional Professor Estevo Pinto

    O universo (que outros chamam a Biblioteca)...

    A biblioteca de Babel - Jorge Luis Borges

    Os animais dividem-se em a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) amestrados, d) lees, e) sereias, f) fabulosos, g) ces soltos, h) includos nesta lista, i) que se agitam como loucos, j) inumerveis, k) desenhados com um pincel finssimo de plo de camelo, l) etc, m) que acabam de partir o jarro, n) que de longe parecem moscas.

    O idioma analtico de John Wilkins - Jorge Luis Borges

    Investigations, researches and approximations were done in order to establish possible visual and textual relations based on French encyclopedia which was elaborated by Diderot and Voltaire and the imaging framework developed by Brazilian artists, such as Hilal Sami Hilal and Bispo do Rosrio.

    Keywords : French Encyclopedia, Diderot, Voltaire, Hilal Sami Hilal, Bispo do Rosrio.

    A ordem das desordens/Estudo sobre o enciclopedismo na literatura e nas artes em Diderot e Voltaire, Sami Hilal e Bispo do Rosrio

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  • O que os literatos franceses Voltaire e Diderot e os artistas brasileiros Arthur Bispo do Rosrio e Hilal Sami Hilal tem em comum? Haver uma linha que possa unir a forma de como os conhecimentos foram abarcados nos livros franceses e a forma de estruturar o mundo utilizado pelos artistas brasileiros? possvel que a estrutura de compilar conhecimentos enciclopdicos seja utilizada para compilar sentimentos, memrias, imagens?

    Consideramos o fato de que todos esses artfices das letras e da visualidade partem da mesma gide para ordenar e classificar as coisas. Todos eles encontraram formas de organizar, de forma que as coisas ao serem lidas (ou observadas) os conhecimentos faam amarraes com outros conhecimentos que esto ao lado, acima, abaixo, na memria, em formas de links, hiper e intertextos (as chamadas windows), nos verbetes, colagens, costuras de materiais diversos para que, mesmo de forma labirntica e bablica, haja alguma forma de caotizar a ordem ou ordenar o caos. A esse exerccio, chamamos enciclopedismo. Veremos como este projeto foi desenvolvido inicialmente na Frana do sc. XIX.

    Traar uma cartografia de possveis relaes entre o enciclopedismo na Frana e no Brasil a partir da literatura e das artes plsticas e investigar como os autores/artistas se apropriam deste grande projeto para abarcar o mundo; seja em compilaes literrias (dicionrios, enciclopdias) ou em coisas (livros objetos, barcos, mantos bordados, catlogos, atlas). Este empreendimento humano tentar colocar todo o conhecimento dentro de um mesmo espao - prev o catalogo de tudo numa determinada ordem e dividido em temas e verbetes que se interligam. A enciclopdia , pois, uma pequena biblioteca.

    Da mesma forma Hilal Sami Hilal e Arthur Bispo do Rosrio propem novas experincias para a arte: entrecruzamento de textos (hiper e intertextos), de materiais que vo do algodo ao ferro, da madeira ao tecido, do desfiar de roupas velhas ao bordado de fibra de algodo, do cimento e caco de vidro a gotas de cola quente, do dilogo da leveza

    com o peso. Tais cruzamentos atuam para evocar a memria do ausente, o registro da polifonia de vozes dos distrbios e alucinaes ou ainda o registro bordado das coisas do mundo. Cada um dos autores elencados aqui utilizam campos disciplinares variados e formas diferentes de estruturar e compor a enciclopdia visual/textual que pretendem fazer. Diderot e Voltaire propem a analogia do livro/universo, da enciclopdia como forma de abarcar todos os conhecimentos do mundo, de utilizar o modelo enciclopdico para estruturar o caos; partindo sempre da metfora do universo como Biblioteca.

    Da mesma forma acredito que Hilal Sami Hilal assim como Bispo do Rosrio, partem da concepo do universo como uma Biblioteca de Babel: cada obra como um compndio de uma enciclopdia. Cada obra, nesta perspectiva, funciona como um verbete (ou entrada) no qual todo conhecimento e informao so utilizados como forma de abarcar o mundo que abrange determinado tema. As obras por vezes esgotam o que podem dizer sobre o objeto descrito pela obsesso e grandiosidade da proposta de abarcar todo conhecimento possvel no verbete escolhido.

    Fez-se necessrio estudar o enciclopedismo (nos vrios textos) por sua re-significao na atualidade, pela forma como as novas ferramentas tecnolgicas e uso de materiais plsticos variados so trabalhadas na arte; como so feitas as novas adaptaes do texto (livros) para o texto visual. Foi questionado como os artistas utilizam a estrutura da enciclopdia para organizar em livros, mantos e listas sobrepondo outros textos e materiais para organizar fatos e gestos numa geografia menos emaranhada para se ler.

    O que percebo que a estrutura enciclopdica legada da Frana aparece na forma de classificar dos artistas brasileiros. O interesse estabelecer aproximaes para perceber as formas de catalogar experincias, sensaes, de organizar sistemas de forma catica, sabendo que o caos tambm uma forma rgida de organizar.

    Sandra Beatriz Duarte de Freitasautora

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  • H outros questionamentos a serem considerados: qual estrutura narrativa prevalece nestes lugares imaginrios (simblico, imaginao, real) se o conhecimento que une estes lugares e por quais tipos de classificao e/ou ordenao, como o trabalho enciclopdico feito e, por fim, se podemos dizer que todas as obras fazem parte do mesmo livro e foram escritos sobre a mesma gide, o enciclopedismo.

    Para estabelecer um dilogo com tais indagaes, dividiremos este estudo em fragmentos. No primeiro, veremos o conceito de Enciclopedismo. Perceberemos com o auxlio de Erich Auerbach, Olga Pombo, Diderot e Voltaire como o conhecimento foi compilado no sculo XVIII. No segundo trabalharemos com conceito de Jacob, Enciclopdia sem estrutura (1991:29). No ter estrutura uma estrutura rgida da enciclopdia contempornea.

    Como ordenar as memrias e como mapear o caos sendo este simbolizado pelo imaginrio, sero questionamentos importantes no terceiro fragmento. No exerccio de pausar o olhar na Exposio Seu Sami de Hilal e nas obras de catalogao de Arthur Bispo do Rosrio. A partir dessas aproximaes, tentaremos perceber como Bispo e Hilal se valeram deste empreendimento gigantesco e infinito.

    Todos estes livros/obras podem estar numa mesma biblioteca, sendo que todos os livros ramificam em rizomas onde os conhecimentos se interligam, dialogam e estabelecem um jogo de inter-relaes. Cada livro alimenta e acrescenta informaes potencializar o verbete (imagem, texto, bordado) contido nesta infinda Biblioteca.

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  • Segundo Olga Pombo, o objetivo do enciclopedismo no era prolongar um ato de ensino, mas permitir a transmisso s geraes vindouras dos saberes adquiridos no passado. A enciclopdia toma forma da compilao, balano de todos os conhecimentos acessveis e o carter de abarcar o universo.

    Pombo afirma que a conscincia do estado de inacabamento do projeto faz com que no sculo XXI no tenha como objetivo apenas abarcar o conhecimento, mas, sobretudo discriminar o que h de mais importante, sintetizar informaes e anular redundncias e informaes insignificantes.

    Para entendermos como o projeto enciclopedista cresceu e modificou o olhar das artes e principalmente, transformou as relaes entre o texto e a imagem, as relaes de sobreposio de conhecimento, a possibilidade de ler um mesmo verbete de vrias formas ou por vrias janelas, faremos uma sistematizao do que foi e do que est se transformando este projeto tendo como base o enciclopedismo francs, o cerne do pensamento compilatrio.

    As idias esboadas nos sculos anteriores tomam corpo no sculo XVIII, que passou a combater as idias do Cristianismo a partir das descobertas cientficas que impulsionaram o movimento intelectual. Ento o pensamento e vocabulrio eruditos no sculo XVII uniram-se com a pluralidade e o intelectualismo do sculo seguinte. Surge ento, a inteno de criar algum artifcio de compilar o conhecimento.

    Pierre Bayle, em 1697, publicou o Dicionnaire historique et critique como forma, a priori, de complementar o dicionrio de Morri. Os conhecimentos desse empreendimento de quatro volumes era compilar, em uma obra, os conhecimentos de Histria, Literatura, Filologia, Mitologia e, segundo AUERBACH, sobretudo a Teologia e a Histria do Cristianismo. No entanto, o livro para eruditos caiu no gosto popular e foi muito difundido no sculo XVIII. Bayle, com sua neutralidade e imparcialidade, discorria sobre os muitos verbetes do seu dicionrio.

    O personagem mais representativo do sculo XVIII, porm, foi Franois Marie dArouet que, mais tarde, adotou o nome de Voltaire (1694-1778). Tornou-se poeta da moda por provocar mal estar poltico dado o nvel de atrevimento, stira e ironia que sua literatura possua. Foi perseguido e se refugiou durante trs anos na Inglaterra. L adquiriu as idias principais para voltar Frana e fazer uma literatura diferente. Conhece o teatro de Shakespeare, diferente do Classicismo francs. Mesmo tendo sido criado num padro esttico muito apurado, Voltaire volta com ricas experincias estticas.

    Aos poucos, o movimento das idias havia se cristalizado a um objetivo comum: a Enciclopdia cujo organizador foi Denis Diderot (1713-1740). Porm foi Voltaire, em sua velhice, quem dedicou de forma obstinada, desenfreada e obsessiva ao projeto. Uma das diferenas entre Voltaire e os outros enciclopedistas que ele era o nico que acreditava num Deus organizador da Natureza. Os outros eram ateus e materialistas.

    Entre 1751 e 1772, o empreendimento, originalmente projetado por um livreiro, ganha idias revolucionrias e filosficas. Foi quando Diderot e Voltaire perceberam uma possvel ferramenta de expanso do conhecimento e revoluo dos espritos. Nasce a Enciclopdia ou Diccionnaire raisonn des Sciencces et des Arts et Mties.

    Fragmento 1

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  • Como diz Jacob, Enciclopdia sem estrutura (1991:29) talvez seja a expresso que melhor represente a enciclopdia contempornea. na falta de estrutura, na estrutura catica, que encontramos uma estrutura rgida. No ter estrutura uma das vrias estruturas para organizar. As obras de Hilal Sami Hilal e Bispo do Rosrio partem dessa forma de compilao. O carter enciclopdico de seus textos (artstico e textual) no possui estrutura linear (princpio, meio e fim) e sim carter cclico (princpio, meio, fim, princpio). no caos que a estrutura se organiza. No ter estrutura, uma estrutura rgida no enciclopedismo encontrado nesses textos.

    POMBO (2006) sugere serem estes os elementos que organizam a estrutura do projeto enciclopedista. A exaustividade (pela exaustividade e obsesso o empreendimento enciclopdico beira o universo, o sem limite, a dimenso monstruosa), seletividade (demarcar o que ou no pertinente, o que vale ou no ser compilado, o que merece ou no ser conservado e transmitido), abertura (todos os conhecimentos que o universo abarca podem ser compilados), similaridade (a proximidade dos conceitos universo e enciclopdia), descontinuidade (fruio do texto descontnuo), combinatria (para cada possibilidade de entrada, h uma srie infinita de combinaes possveis), deriva (deambular, se perder pelos labirintos enciclopdicos), e o labirinto (ao abrir a enciclopedia e entrar, percursos vertiginosos, labirnticos e infinitos guiaro o legente).

    A ordem (conhecimento disposto de forma sinttica e ordenada) e o sistema (harmonia aos conhecimentos dispostos no compndio) so elementos que fazem da enciclopdia uma biblioteca compacta. A enciclopdia tem um olhar direcionado para o leitor (o jogo da combinao das entradas ditado por ele), o pblico (exige conhecimento prvio, inteligncia e curiosidade) e o autor (antes solitrio, surgiu a presena de colaboradores-especialistas) tambm deve ser perscrutado. A reflexo (sobre a situao do conhecimento registrado) e seu carter atual (situao dos saberes na atualidade).

    Os conhecimentos sero percebidos no momento em que nos deparamos com uma obra aberta: a enciclopdia uma juno de conhecimentos que no encerra em si, ela se alimenta do conhecimento que so produzidos agora.

    A enciclopdia tem como caractersticas a idia de inventariar o conhecido, rearranjar conhecimentos e registrar o patrimnio cultural em sua memria artificial. Por detrs da idia de conhecimento fechado, a enciclopdia guarda uma idia do saber em constituio. interessante pensar como ao longo dos sculos, a idia de organizao da enciclopdia vem modificando: as regras, a lingustica, a forma, os compndios, os suportes. Contudo, o sculo XX inaugura uma forma catica de inventariar, o que Bispo do Rosrio logo se apropria. no caos que a organizao feita: o devaneio prope formas rgidas de organizar. nessa rigidez catica que Bispo e Hilal tentam abarcar o mximo de conhecimento para cada verbete proposto.

    Fragmento 2

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  • O enciclopedismo contemporneo segue alguns pontos trazidos tona por POMBO (2006). interessante pensar como a Wikipdia, a maior enciclopdia digital da internet, nos mostra em seus hiper links, glossrio, na forma aberta de postar informaes e de forma a agregar valor e verdade ao texto publicado. Assim como qualquer enciclopdia, a Wikipdia parte das mesmas caractersticas do enciclopedismo iluminista; agora como ferramentas tecnolgicas que visam potencializar principalmente o carter de multiplicidade, rapidez e combinatria do enciclopedismo.

    Abertura, labirinto, deriva, combinatria so elementos enciclopdicos que aparecem nas obras de Hilal Sami Hilal e Bispo do Rosrio: a capacidade de classificar e organizar as coisas e objetos tendo como base as memrias que passam pelo simblico, pelo imaginrio e pelo real. Neste sentido qualquer material tem potencial textual e visual para fazer parte da enciclopdia que cada artista pretende fazer. Bispo organiza vrios objetos de plstico, madeira, papel, vassouras e tenta esgotar nestes objetos verbetes, o mximo de texto tais objetos que podem agrupar.

    Bispo do Rosrio j estava inserido numa enciclopdia (tendo como base a metfora do universo, utilizando a idia de que ns tambm fazemos parte da biblioteca, cada um de ns um tomo, um compndio da grande Biblioteca que o universo). Ele morava na Colnia Juliano Moreira, instituio criada no Rio de Janeiro, na primeira metade do sculo XX, destinada a abrigar aqueles classificados como anormais ou indesejveis (negros, pobres, alcolatras e desviantes das mais diversas espcies).

    Suas experincias o ajudaram a elaborar o senso de ordenao que leva pro cotidiano. Entre as catalogaes feitas temas (verbetes) so variados. Destacam-se navios (tema recorrente devido antiga profisso, marinheiro. Foi ainda pugilista e empregado domstico), estandartes, pans, colees em miniaturas e compilaes de objetos domsticos. Os materiais para a construo

    de suas obras partem de seu cotidiano que era marginal, pobre, sujo. Re-significou plasticamente copos, pratos, chapus, garrafas, vassouras e rodos, brinquedos, imagens de santos, botes, enfim tudo que a sociedade jogou fora, tudo que se perdeu, esqueceu ou desprezou.

    Se Diderot e Voltaire partiram das tendncias eruditas da escrita, do pensamento e do universo literrio francs para elaborar o maior projeto de compilao do universo; Bispo do Rosrio parte do entulho potico para catalogar o entorno e preparar o memorial de sua passagem pelo mundo. O cotidiano humano foi registrado em compilao obsessiva na f da salvao e na clara separao de que existe um mundo dos homens e um mundo onrico na presena de Deus.

    Iniciou um processo de classificar e catalogar as coisas e objetos humanos com organizao rgida dentro da estrutura catica e simblica que adotou.

    Todas as imagens foram retiradas dos links inseridos no verbete Arthur Bispo do Rosrio na Enciclopdia virtual Wikipdia.

    importante relevar o rigor simtrico e ordinrio das catalogaes. Importante tambm perceber a obsesso de levar a todo custo a misso de que como escolhido por Deus teria:

    (Sua misso era de) reconstruir o mundo aps o fim de tudo, repovoando a terra como seus objetos mumificados e suas listas infinitas de nomes iniciados com determinadas letras do alfabeto e imagens em srie bordados sobre panos ordinrios.

    Hilal, por sua vez, utiliza varias formas para trabalhar o enciclopedismo. Mantm o carter obsessivo do projeto nos nomes que d as exposies e as obras (Sherezade meno as Mil e uma noites, Biblioteca, Atlas, o Livro Redondo). Se vale de listas de nomes, formatos variados de livros, bem como seus materiais e uso de galpes e salas gigantescas para as instalaes. Substituir a razo pela conjectura, a razo pela imaginao

    Fragmento 3

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  • Sandra Beatriz Duarte de Freitasautora

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    e pelo simblico o que Hilal faz pelos objetos que manuseia. Letras, listas, livros so estruturas importantes no processo enciclopdico.

    Insere em suas obras listas nomes de pessoas reais em um projeto imaginrio, se vale de materiais simples, mas os complexifica ao extremo, extraindo deles a mxima interpretao. Repotencializa o imaginrio por meio da arte.

    As marcas indelveis que foram deixadas por Bispo do Rosrio e as fortes impresses que Hilal Sami Hilal vem apontando em suas obras foram aproximados aqui no intuito de estabelecer dilogos tendo sempre como base o modelo do enciclopedismo iluminista.

    Hilal admite que sua obra se constitui em uma dialtica do devaneio, assim como o de Bispo.

    Foi percebida que a obsesso e entrega ao projeto enciclopedista de Diderot e Voltaire aparecem nas obras Hilal Sami Hilal e Bispo do Rosrio, cada um a sua maneira.

    A idia de enciclopdia contida nas obras de Bispo do Rosrio e Hilal Sami Hilal revela a busca, a tentativa de esgotar a maior quantidade de informao sobre a entrada ou o verbete/tema estabelecido.

    Deste modo, mesmo sendo artistas to diferentes, h uma linha que une e borda estes textos, seja no conceito artstico das obras ou na viso fantstica e ficcional do mundo. As obras destes autores se encontram, perpassam e dialogam.

    Por influncia do projeto francs, as obras-tomos ou os compndios de pano bordado, ao, fibras de algodo dentre outros resduos do cotidiano, tentam trazer a ordem, o equilbrio esttico e humano para obter modos organizados de nomear e classificar as coisas na busca de encontrar e equilibrar harmonia potica e esttica.

    Penso que este modelo organizacional uma forma de controle: no podemos controlar o fluxo

    das coisas, sua ordem, muito menos sua rapidez (principalmente na idia de inacabamento da enciclopdia. Assim que um tomo fica pronto j est desatualizado dado a rapidez e mutao das informaes contidas nos verbetes. Assim que um livro ou obra terminado, logo j no diz o que tem a dizer, no abarca o deveria.) pelo menos podemos controlar a ordem, a distribuio, a nomeao, fazer colees e classificar as coisas.

    Ainda esperamos o livro que no foi escrito. Que um dia ele possa conter todo o universo das coisas que teimosamente continuamos a nomear e ordenar.

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  • BIBLIOGRAFIA

    AUERBACH, Erich. Introduo aos estudos literrios. So Paulo, Cultrix, 1972.

    DIDEROT E DALEMBERT. Enciclopdia ou Dicionrio Raciocinado das Cincias das Artes e

    dos Ofcios. Discurso Preliminar e outros textos. Traduo: Flvia Maria Luiza de Moretto.

    UNESP, So Paulo, 1989.

    LAROUSSE. Dicionrio ilustrado. Larousse do Brasil Participaes. So Paulo, 2004.

    HILAL, Sami Hilal. Seu Sami. (Catlogo) Curadoria e texto de Paulo Herkenhoff. So Paulo,

    Servio Social do Comrcio/SESC Pompia, 2008.

    MACIEL, Maria Esther. A memria das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plsticas.

    A memria das coisas: Arthur Bispo do Rosrio, Jorge Luis Borges e Peter Greenaway. Rio de

    Janeiro, Lamparina editora, 2004.

    POMBO, Olga. Enciclopdia e hipertexto. Lisboa: Duarte Reis, 2006.

    POMBO, Olga. O hipertexto como limite da idia de enciclopdia. Lisboa: Duarte Reis, 2006.

    DOCUMENTOS ELETRNICOS:

    Olga Pombo. O projeto enciclopedista.

    Disponvel em: http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/enciclopedia/cap1p2/genero.htm

    Acessado dia 29/07/2009 as 10:44

    http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/enciclopedia/cap1p2/genero.htm

    Acessado dia 29/07/2009 as 10:44 AM.

    Sandra Beatriz Duarte de Freitasautora

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  • Este texto remonta o ano de 2006 quando o socilogo francs Michel Maffesoli proporcionou numa universidade brasileira um estar-junto, pela sociologia compreensiva, onde refuta as histricas separaes como as que diferenciam a moderna Frana e o ps-moderno Brasil. Deste modo, objetivamos trazer o debate instaurado naquele seminrio e incorpor-lo ao imaginrio tico e esttico dos comunicadores visuais, sobretudo dos designers.

    Palavras-chave: imaginrio; sociologia compreensiva; moderno e ps-moderno; tica da esttica; design

    This text dates from the year 2006 when the French sociologist Michel Maffesoli provided in a Brazilian University, through the comprehensive sociology the possibility of a being-together where the historical separations are refuted such as the ones between the modern France and the postmodern Brazil. Thus, the aim of the present study is to bring that seminar debate and incorporate it within the ethical and aesthetic imaginary of visual communicators, especially the designers.

    Key-words: imaginary; comprehensive sociology; modern and postmodern; ethics of aesthetics; design

    Lcia Bergamaschi Costa Weymarautora

    Universidade Federal de Pelotas

    Como era gostoso o meu francs, ou o estar-junto com uma brasileira

    Ao professor Juremir Machado da Silva, cuja proximidade com os tericos franceses tem permitido aos gachos, todos os anos, um Ano da Frana no Brasil.

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  • Lcia Bergamaschi Costa Weymarautora

    O Seminrio Sociologia Compreensiva, Razo Sensvel e Conhecimento Comum, realizado de 8 a 11 de maio de 2006, foi organizado pelo Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social, na Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Cheguei atrasada no primeiro dia, quelle honte! Aparentemente no foi minha culpa, o nibus procedente de Pelotas atrasou 15 minutos, e no fiquei sabendo se o motivo era a ponte aberta ou o manifesto dos pequenos agricultores e dos arrozeiros.

    Se eu fosse uma europeia, talvez tivesse pegado o nibus anterior, pois contar com a imprevisibilidade no muito tpico por aqui. Por sorte cheguei carregada de malas, para passar a semana em Porto Alegre, e assim o professor constataria que a coisa era sria. Ele no deu a mnima para o atraso, e depois de mim, vrios alunos foram chegando, no ritmo abrasileirado, com cafezinho numa das mos e pastinha na outra.

    Mal sentei e enviei uma mensagem para um colega da minha universidade, elogiando a elegncia do professor. Resposta imediata: - Glria! Maffesoli a resistncia do chique na Academia! Foram manhs e tardes muito especiais. Apesar de ler seus textos h bastante tempo no o conhecia pessoalmente e, enquanto observava a seda de seus diferentes foulards, a alternncia de seus ternos bem cortados e de suas gravatas-borboleta e a manuteno de um lindo anel de formatura na me esquerda; ouvia atentamente seu francs, em forma e contedo. Sempre simpatizei com os franceses, por todas as razes culturais bvias, mas muito porque, em minha estada por l, fui muito bem quista por ser o que sou e, sobretudo, por ser brasileira.

    Fiquei pensando que justamente por causa de nossos contrastes que nos aproximamos, Brasil e Frana. Porque sempre me pareceu existir uma separao entre nossos povos, nossos caracteres, nossa essncia! Estava indo tudo muito bem, at Maffesoli propor a tal Sociologia Compreensiva como forma de juntar o que havia sido separado, com prehendere, tomar junto o que havia sido separado. Este foi um momento importante de sua

    fala, pois a tendncia de separarmos as coisas tamanha, que o prprio professor dicotomizou o tempo todo, organizando grficos no quadro onde as caractersticas da modernidade estavam bem separadas das da ps-modernidade.

    Sua recorrente nfase ao retorno aos valores dionisacos, ideia de tribo e ao nomadismo que estamos vivendo me fez lembrar do filme de Nelson Pereira dos Santos, cineasta brasileiro que dirigiu em 1971 o filme Como era gostoso o meu francs, muito afinado com o modernismo brasileiro e cujo ttulo tomei emprestado para nomear este breve comentrio, despretensioso inventrio de minhas dvidas.

    O filme, que se passa no sculo XV, narra a histria de um francs capturado pelos ndios Tupinamb e colocado em cativeiro a fim de ser canibalizado conforme os costumes desta tribo. Estes encontros entre colonizador e colonizado (entendendo Europa e Amrica), sempre me lembram aquela expresso: plus a change plus cest la mme chose, que significa algo como Quanto mais as coisas mudam, mais elas ficam iguais. O mundo mudou, e eles continuam nos ensinando o caminho para a felicidade: quinhentos anos de complacente servido. No filme em questo e tambm com Maffesoli, este encontro parece ser diferente!

    O radicalismo do pensamento de Maffesoli me atraiu muito lentamente. No incio de sua exposio fui apenas lembrando do filme... Nele,

    os ndios tupinambs no sero colonizados. o francs quem passa por um processo de tupinizao, aprendendo a viver de acordo com os costumes da tribo, participando de diversas atividades como o trabalho na agricultura, aprendendo a usar arco e flecha, chegando mesmo a perseguir, junto com um ndio tupinamb, um portugus que passava nas proximidades da aldeia, atingindo-o com sua flecha. LOBATO, Como era gostoso o meu francs: um marco na representao do ndio no longa-metragem de fico.

    Universidade Federal de Pelotas

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  • Lcia Bergamaschi Costa Weymarautora

    Em diversos momentos durante o seminrio o professor se tupinizava, falava em caipirinha, em umbanda, em sacanagem (palavra que o encantou!), dizia que o Brasil era um laboratrio do ps-moderno, contava que um amigo escreveu um livro chamado A abrasileirao do Mundo ou algo parecido e eu pensava: Maffesoli no mora aqui!

    Nosso francs afirma que a ps-modernidade a dimenso orgnica da modernidade. Acho uma afirmao perfeita, justamente por no dicotomizar nem rejeitar, mas sim por incluir a modernidade, compreendendo-a. bem sabido o quanto a modernidade engessou o pensamento ocidental nos ltimos sculos e a proposio maffesoliana de ingrs ao contrrio de progrs bastante esclarecedora. Suponho que possamos fazer uma relao ainda dicotmica entre um Brasil orgnico e uma Frana moderna. Mas para isso importante recuarmos alguns sculos.

    Maffesoli nos remonta s antigas civilizaes pr-individuais, onde a inveno dos sujeitos filosfico, religioso, poltico e jurdico ainda no havia sido instituda. Civilizaes pags que se voltavam mais ao ventre, terra, ao hedonismo da existncia (dionisacas), maneira de estar junto (tribos) e ao retorno do selvagem (nomadismo). Conforme Maffesoli, a palavra pag vem do latim paganus, paysan, campons. Seria aquele que ama esta terra, amor mundi diria Nietzsche, por esta terra e no por uma longnqua. Sua reflexo supe darmos um passo atrs historicamente, a fim de compreendermos sociedades pr-individuais e podermos perceber, sentir, esta sociedade nascente, que tem se dado de modo muito similar quelas antigas.

    O palestrante cita trs caractersticas essenciais que marcaram nossa histria aps estas civilizaes ditas pags: o monotesmo, a devastao do planeta e o conceito de separao. A opo pelo monotesmo destruiu a biodiversidade, reduzindo a polissemia do real a uma unidade o que acabou por gerar o pensamento de que a verdadeira vida estaria em outro lugar. Esse modo de ser ocasionou a devastao da natureza, j

    que a vida que se leva no teria importncia face Cidade de Deus que est por vir. E, enfim, podemos ento compreender a palavra que explica a epistm moderna: a separao. Na medida em que Deus separou a luz das trevas, tudo passa a ser uma declinao deste conceito de separao.

    A partir de ento se inventou o sujeito, este indivduo racional, que habita sociedades dominadas pela razo, num regime diurno do imaginrio. Essa expresso, segundo Maffesoli, foi utilizada por Durand para designar a dimenso epistmica ocidental representada pelas figuras do falo, da espada, de todos os objetos contundentes, que buscam, que invadem e que cortam. Durand contrape com o regime noturno do imaginrio, representado pela figura de uma copa, enfatizando mais o continente do que o contedo, no o falo, mas a invaginao dos sentidos.

    Primeiramente, a revoluo cartesiana e seu cogito faz surgir o ser filosfico, logo se inventou o sujeito religioso a partir das tradues da bblia para as lnguas profanas, o que possibilitou sua relao direta com Deus. Em seguida se inventou o sujeito poltico, ps revoluo francesa, um sujeito que adquire autonomia pela educao e, finalmente, aparece o sujeito jurdico cujo modelo o cdigo napolenico e da se partiu pra a construo do indivduo uno e das instituies unas.

    Neste sentido, Maffesoli conclui que este indivduo acabou. o fim de um mundo e no do mundo. Sendo assim, o projeto moderno francs, por exemplo, est saturado e nosso socilogo aposta numa relao societal mais prxima organicidade presente na sociedade brasileira, to assemelhada com aquela essncia pag.

    E ento questiono: como retornar ao pr-individual para chegar a uma tica da esttica, conceito que veremos logo a seguir, numa sociedade em que as noes mais primrias de indivduo no chegam a ser respeitadas? Levantei o problema para o professor, perguntando: - Eu lhe apresento uma questo relacionada educao.

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    Voc disse que a Europa o laboratrio do moderno e o Brasil o laboratrio do ps-moderno. Eu lhe pergunto se estas observaes que voc fez acerca do emocional, da festa, do afetivo no so um perigo em um pas como o Brasil onde o projeto moderno foi to frgil. Palavras como politesmo, polifonia, policulturalismo, polissemia, fragmentao, estar-junto e prazer so muito familiares a ns, ao contrrio de palavras como racionalismo, rigor etc. Retornar ao pr-individual, como? A inveno do indivduo no se passou aqui como na Europa.

    Ns, professores nas universidades brasileiras, o que devemos fazer para no desistir da intelectualidade em um pas que sempre justifica sua falta de rigor pelo relativismo? Tudo isto no seria uma permisso para continuarmos sendo um pas que no se leva srio?

    Maffesoli riu um pouco e foi contundente: - No aceitem a estigmatizao. O Brasil se considera sempre um pas de terceiro mundo. Os critrios do primeiro mundo foram dados pela Europa, em um modelo progressista. Ser que estas coisas pouco srias no seriam os critrios que deveriam ser considerados hoje? A nova gerao francesa fascinada pelos valores que vamos encontrar no Brasil. O modelo progressista, ou o progressismo, que um modelo moderno, linear, trabalha com o poder e pensa em educao, em como integrar socialmente os jovens. um modelo paranico porque integra o jovem pela reduo.

    Para mim este modelo perverso e no est mais em harmonia com o tempo atual. Prefiro pensar em iniciao progressiva (e no educao), que no linear, no explica, mas implica. Trabalha com a potncia, metanica. Acompanha. Pensar a educao como um jardineiro. A autoridade (aquilo que faz crescer) s vai acompanhar o crescimento da planta, que est nela mesma. A minha resposta : acompanhar o movimento. So as expresses de minhas ideias.

    Isto posto, admiti que a resposta foi admirvel, e que muito radical pensar assim...pensar apenas

    no, mas ser assim. Ento, comeando pela alterao do pensamento, fui tentar aprofundar a noo de tica da esttica que Maffesoli lanou no ltimo dia, de modo fugaz. Naqueles dias, o professor afirmou que pela racionalizao da existncia, a imagem passou a ser estigmatizada como no sria e ento frivolizada.

    A imagem passa a ser considerada como uma bagagem que deve ser deixada beira da estrada, e compara esta bagagem ao imaginrio. Apresenta logo a seguir a possibilidade de inverso disso, pois vivemos agora um hedonismo latente, um corporesmo (a epifanizao do corpo por si mesmo) e uma estetizao da existncia (a vibrao em comum).

    Finaliza o seminrio apresentando o verbo compartilhar como substituto de separar, e profetizando que esta ao dever conceber um ser holstico, inteiro. A imagem seria a cristalizao deste inteiro. Para saber mais, li o captulo A tica da Esttica, em livro recm lanado, onde o professor nos mostra que devemos compreender a esttica no seu sentido mais simples:

    Vibrar em comum, sentir em unssono, experimentar coletivamente, tudo o que permite a cada um, movido pelo ideal comunitrio, de sentir-se daqui e em casa neste mundo. Assim, o lao social cada vez mais dominado pelos afetos, constitudo por um estranho e vigoroso sentimento de pertena. MAFFESOLI, O Mistrio da Conjuno: ensaios sobre comunicao, corpo e socialidade, p.8.

    Para Maffesoli a vida moral, aquilo que nos permite o estar - juntos, se exprime como uma moral stricto sensu numa lgica do dever-ser, mas tambm se exprime como uma tica cuja lgica valoriza a comunicao e a emoo coletiva. O autor afirma, ento, que o ps-moderno simplesmente uma maneira de realar a ligao entre a tica e a esttica(2005.p.12). E esta tica da esttica seria um ethos constitudo a partir de emoes partilhadas e vividas em comum(2005.p.8).

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    Mas continuar esse tema assunto para outro momento. Por ora quero concluir este comentrio devolvendo a Maffesoli o agrado que me deu. No pretendo comer nosso gostoso francs num ritual canibal, mas convid-lo a continuar este estar-junto numa danante vibrao alm-mares. Como professora de design, j comeo a projetar uma nova Frana e um novo Brasil sem megaprogressos, apenas vivendo estas microticas e aquilo que venho apostando para estudar na minha tese, e que no deu tempo de lhe perguntar: a noo de que o eu s existe pelo outro. Eu pressinto que essa interlocuo que possibilita a construo do estilo do designer e de outros comunicadores visuais que sempre, desde suas origens, desejaram um cotidiano esttico.

    No prximo seminrio, serei precavida, contarei com a imprevisibilidade e pegarei um nibus mais cedo. Sem rejeitar meus pensamentos ainda modernos quero acompanhar melhor a dana da ps-modernidade.Para Maffesoli a vida moral, aquilo que nos permite o estar - juntos, se exprime como uma moral stricto sensu numa lgica do dever-ser, mas tambm se exprime como uma tica cuja lgica valoriza a comunicao e a emoo coletiva. O autor afirma, ento, que o ps-moderno simplesmente uma maneira de realar a ligao entre a tica e a esttica(2005.p.12). E esta tica da esttica seria um ethos constitudo a partir de emoes partilhadas e vividas em comum(2005.p.8).

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  • BIBLIOGRAFIA

    LOBATO, Ana Lcia. Como era gostoso o meu francs: um marco na representao do ndio no

    longa-metragem de fico. Artigo s/d.

    Disponvel em http://www.imaginario.com.br/artigo/a0061_a0061_a0090/a0087-02.shtml

    www.imaginario.com.br/artigo/a0061_a0061_a0090/a0087-02.shtml

    Acesso em 8/6/06.

    MAFFESOLI, Michel. O Conhecimento Comum: Compndio de Sociologia Compreensiva. So

    Paulo: Editora Brasiliense, 1988, 295 p.

    ______. O Mistrio da Conjuno: ensaios sobre comunicao, corpo e socialidade. Porto

    Alegre: Sulina, 2005, 104 p.

    ______. Seminrio Sociologia Compreensiva, Razo Sensvel e Conhecimento Comum. (Notas

    de aula). Porto Alegre: PUC, 2006.

    Lcia Bergamaschi Costa Weymarautora

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  • A cidade transformou-se em objeto continuamente presente na produo do imaginrio da humanidade. Juntamente com o advento tecnolgico, a fotografia torna-se um importante instrumento para a realizao deste inventrio imagtico. Propor uma anlise da produo artstica contempornea o ponto inicial deste estudo, que busca encontrar, na produo artstica de Cssio Vasconcellos e a sua relao com a produo fotogrfica do francs Eugne Atget, as transformaes ocorridas no olhar sobre a cidade.

    Palavras-chave: cidade, fotografia, memria, visualidade

    Fabola Alessandra Rodriguesautora

    Mapeamento das cidades atravs da fragmentaodo olhar

    La ciudad se convirti en un objeto continuamente presente en la produccin de la imaginacin de la humanidad. Junto con el advenimiento de la tecnologa, la fotografa se convierte en importante instrumento para llevar a cabo este inventario de imgenes. Proponer un anlisis de la produccin artstica contempornea es el punto de partida de este estudio, que pretende encontrar, en la produccin artstica de Cssio Vasconcellos y en su relacin con la produccin fotogrfica del francs Eugne Atget, los cambios ocurridos en la mirada sobre la ciudad.

    Palabras-clave: ciudad, fotografa, memoria, visualidad

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  • Fabola Alessandra Rodriguesautora

    Em toda a sua extenso, a cidade parece continuar a multiplicar o seu repertrio de imagens: no entanto, no tem espessor, consiste somente de um lado de fora e de um avesso, como uma folha de papel, com uma figura aqui e outra ali, que no podem se separar nem se encarar. (talo Calvino)

    Imagens que falam sobre a cidade, que mapeiam e distanciam o olhar para a paisagem urbana, atualmente esfacelada pela inundao ou produo massiva destas, contribui para a formao de uma sociedade de olhar distante a tudo que a circunda. A sociedade contempornea foi denominada, por Roland Barthes, de civilizao da imagem, exatamente, pelo fato da massificao dos meios de comunicao visual que geram uma inundao de imagens produzidas em diversos mbitos.

    Com este deslocamento do olhar temos a estruturao de uma memria visual desfragmentada. Francis Wolf descreve que as imagens na Idade mdia, ou mesmo no sculo XI e, posteriormente, tinham relaes diferenciadas com o seu receptor, onde o efeito visual era muito mais impactante do que a imagem dos nossos dias. As imagens produzidas por uma sociedade descrevem a sua memria cultural e visual, mas, com o avano tecnolgico e a velocidade de produo acabam gerando um esfacelamento da memria coletiva, na medida em que um grande nmero de imagens produzidas venha substituir as imagens j existentes, desconstituindo desta forma, a memria visual coletiva. Este fato decorrente devido a facilidade de acesso na aquisio de aparelho fotogrfico e a no necessidade de reproduo fsica destas imagens.

    A cidade, como objeto, tornou-se um dos contornos visuais mais mapeados da contemporaneidade. A maioria das produes visuais contemporneas tem como temtica a paisagem urbana, seja ela miditica, tecnolgica ou artstica. A visualidade cultural est condicionada visualidade urbana, negada ou no, este inventrio imagtico da cidade o resultado desta nova visualidade. Dentre os diversos significados do termo cidade, este se apresenta mais adequadamente forma de significao, que a cidade como um habitat humano, que permite que pessoas formem relaes umas com

    as outras em diferentes nveis de intimidade, enquanto permanecem inteiramente annimas. Esses diferentes nveis de intimidade, por sua vez, produziro as imagens cujos significados sero retratados sob diferentes formas por cada indivduo. O resultado, juntamente com a formao do pensamento visual, um acervo imagtico produzido ao longo dos anos, atravs de todo tipo de registro da paisagem urbana, criando um inventrio de imagens e lugares que mapeiam todas as possibilidades visuais desses espaos. Na literatura, a formao do pensamento imagtico nos leva as descries destas cidades. Um dos primeiros relatos so encontrados na Ilada - Homero descreve os desejos dos gregos sobre a cidade troiana. J em As Cidades Invisveis, de talo Calvino, a descrio de Marco Polo traduz os lugares e espaos, paisagens imaginrias, evocadas pelo imperador Kublain Klan, que d novas significaes s cidades descritas pelo viajante no momento em que este descreve sua maneira a cidade que no conhece, mas, que est presente em sua memria.

    Para talo Calvino, a descrio uma das formas de dizer sobre a cidade, uma insero em um atlas, um mapeamento. Segundo Nelson Brissac Peixoto, no mapeamento que a cidade desaparece como paisagem, tornando-se opaca ao olhar: um outro paisagismo requerido para retratar estes horizontes que nunca resplandecem. Esta opacidade remete perda da descrio para a viso imediata. As imagens das cidades so muito explcitas, e provocam o que Peixoto adverte como o esgotamento da capacidade de descrever, que ocorreu principalmente com o advento da fotografia e do cinema. A literatura, e as outras formas de registro do olhar, como a fotografia, se voltam para o menos evidente a fim de resgatar o que, na paisagem, no se destaca imediatamente contra o horizonte.

    Como as imagens na atualidade so produzidas sob vria temticas e suportes, consideramos que um tipo de imagem capaz de narrar uma histria e que contm uma memria realstica mais visvel e mais prxima da realidade, seja a imagem fotogrfica. A fotografia tem seu reconhecimento pela primeira vez, segundo Susan Sontag, atravs da extenso do olho do flneur, de Baudelaire, em que a figura do fotgrafo como uma verso armada do solitrio caminhante

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  • Fabola Alessandra Rodriguesautora

    que perscruta, persegue, percorre o inferno urbano, o errante voyerstico que descobre a cidade como uma paisagem de extremos voluptuosos. Fragmentos de uma realidade marginalizada so os reflexos do olhar do flneur e a sua ligao com estas imagens aproxima-o dos surrealistas. Um dos representantes deste olhar surrealista, longe das tendncias histricas do movimento, foi o fotgrafo francs Eugne Atget (1857-1927), que perambulava pelas ruas de Paris, registrando lugares que normalmente no faziam parte dos famosos cartes-postais. Estas fotografias tm caractersticas peculiares se comparadas com as de seus contemporneos, por se tratarem de imagens que registram paisagens e ambientes vazios; sem a presena de pessoas ou at mesmo o registro de coisas consideradas, em um primeiro momento, sem importncia ou dignas de serem fotografadas.

    Para Atget, a fotografia no era mero registro instantneo, j que anteriormente havia se dedicado pintura, fato que, fez com que suas temticas retratadas fossem intencionais paisagens de uma Paris crepuscular, com ruas degradadas e lojas decadentes. Para Walter Benjamin as fotografias parisienses de Atget so as precursoras da fotografia surrealista, por ser considerado como o primeiro a desinfetar a atmosfera sufocante difundida pela fotografia convencional. Benjamim compara tais imagens com as fotografias de peritos policiais, devido aos indcios que as contem, e que tais imagens orientam a recepo num sentido pr determinado, no permitindo a sua livre contemplao.

    Elas inquietam o observador, que pressente que deve seguir um caminho definido para se aproximar delas.Estas inquietaes do fotgrafo francs, diante do registro de fragmentos de uma paisagem incomum aos olhos burgueses da poca, que o coloca na dimenso surreal da imagem. A mesma dimenso praticada na fotografia contempornea, as quais com as bases posteriores, o surrealismo e dadasmo, se convergem e lanam a fotografia como instrumento e principalmente como conceito na concepo do projeto de produo contempornea.Pensar, na dinmica de produo da arte contempornea pensar na ocupao do espao de produo de imagens, espao circunscrito

    na esfera de ambientes que produzem e vinculam sua massificao. Pensar em imagens contemporaneamente remete ao pensamento de imagens prontas, acabadas, polidas, brilhantes, dentro do contexto tecnolgico de produo. A fotografia engendra esse contexto de produo contempornea. Na nossa civilizao da imagem, imagens urbanas, principalmente as imagens fotogrficas, se deslocam nos movimentos e ritmos urbansticos do cotidiano.

    A relao de colecionismo fotogrfico vem desde o advento da fotografia e, hoje no seria diferente, o acesso dantesco s imagens nos dispem diante de um insacivel inventrio humanstico. Fotografias que representam o mundo, principalmente as cidades, onde irremediavelmente transita a maioria da populao mundial retratos do mundo manifestos atravs de imagens, das mais altas tecnologias de absoro aos implacveis registros virtuais simplistas. Imagens fotogrficas no parecem manifestaes a respeito do mundo, mas sim pedaos dele, miniaturas da realidade que qualquer um pode fazer ou adquirir. Para Susan Sontag, essas imagens so fragmentos do mundo e em sua manipulao acontece o desgaste natural do tempo. A escritora nos alerta para a necessidade de um enfeixamento destas imagens: fotos que enfeixam o mundo, parecem solicitar que as enfeixemos tambm. As fotografias de Cssio Vasconcellos tm a propriedade de nos prender para um rigoroso enfeixar. So fragmentos de uma realidade, e no um inventrio imagtico, mas a transfigurao de paisagem e lugares.

    Para Nelson Brissac Peixoto, as fotografias de Cssio Vasconcellos, mostram uma So Paulo inexistente. Difcil reconhecer a cidade nessas imagens em que velhos tapumes e viadutos, fachadas descascadas e detritos parecem sados de outro tempo, contrapostos cidade atual. Como se os elementos registrados no tivessem uma ligao realstica com a cidade. Ele retira as coisas do tempo e do lugar: tudo parece em suspenso. Segundo Rubens Fernandes Junior, a fotografia contempornea tem o atributo de pertencer ordem dos mistrios no mundo da representao, produzindo desta forma imagens com um grande poder de seduo e persuaso. E no seria diferente com a produo de Cssio Vasconcellos, suas fotografias nos deslocam do tempo e lugar, outra

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    metrpole mapeada atravs de seu olhar, a recepo imediata no nos reporta ao lugar referente.

    O fotgrafo Cssio Vasconcellos, retoma em 1998, sua srie Noturnos, que consiste em registros fotogrficos da cidade de So Paulo, com uma Polaroid SX_70. O artista percorre a megacidade em busca de lugares que no se inserem no cotidiano visual desta so imagens noturnas de uma So Paulo, que no esto contidas na cidade, um olhar sobre estes espaos, que no se configuram no olhar do transeunte habitual.

    As fotografias deslocam o olhar, que nos fazem pensar ou tentar identificar em que lugar se situa essa paisagem, principalmente ao tentar figurar aquilo que poder ser um fragmento de um lugar que se transita todos os dias, mas, que no se v. Lugares vazios. O silncio s enfatiza o mistrio que transpira das cenas. Nem a natureza, que aqui surge como mais um vu obstruindo a viso, escapa deste dispositivo ao mesmo tempo cromtico e opaco, que nos propem um exerccio do olhar e de percepo que se encaixa nos novos paradigmas da fotografia contempornea.

    Cssio nos prope um olhar para um alhures imaginrio, fragmentos de uma memria social, a transfigurao da paisagem. Alm disso, defende que o fascinante na fotografia a possibilidade intrigante que ela oferece, operando nas fronteiras entre o real e o imaginrio. Desta forma, tira-se o peso que foi concebido para a fotografia do seu exclusivo atributo de fixar a realidade. nessa proposta, que a fotografia contempornea se destaca como uma poderosa manifestao imagtica, legitimando sua vinculao precariedade e impreciso ao imaginrio e a fico ao ilusrio e ao simblico.

    A partir dessa proposta, o crtico Rubens Fernandes, coloca o projeto do artista dentro da categoria de fotografia expandida, esclarecendo que a fotografia que rompe paradigmas, que subverte o modelo institudo, que caminha em direo ao um esgaramento de sua especificidade.

    As fotografias da srie Noturnos, foram produzidas a partir da efemeridade da cmera utilizada pelo artista que realizadas com uma polaroid possivelmente se

    apagariam com o tempo. Estas foram produzidas com a ajuda de holofotes ou focos de luz com filtros coloridos, deslocando mais uma vez o olhar para as cores presentes nas paisagens. Cores, que no existem com tanta intensidade em uma metrpole praticamente acinzentada pelas partculas poluentes produzidas pela sociedade de consumo.

    A cor, em Noturnos, contribui para o misticismo da obra; com isto Cssio reinventa a cidade, o lugar, sua existncia se manifesta somente atravs das imagens produzidas pelo artista. A fotografia, quando se fixa na cor e impressa em papel poroso torna-se uma no-fotografia.

    As fotografias exigem o tempo do observador antes de deixar gravar em algum lugar da memria, pois so imagens que no se fixam imediatamente por no existirem na realidade cotidiana, e sim, no imaginrio urbano fragmentado. A legibilidade da paisagem das cidades era relacionada imaginabilidade, capacidade de evocar uma imagem forte no observador. Esta impossibilidade de legitimao advm da incapacidade das pessoas imaginarem ou se situarem em espaos e lugares absolutos. O espao hoje sobrecarregado por dimenses mais abstratas.

    Outro projeto do artista, anterior srie Noturnos, dialoga com este mesmo deslocamento proposto na srie denominada Cavalos, do incio da dcada de 1990. Cssio fotografa esttuas de cavalos nas praas pblicas da cidade de Paris. No so registros habituais de esttuas, essas foram realizadas em meio a folhagens de rvores, gua das fontes, sombras e luzes como se fossem os vultos daqueles ali representados como esculturas, com uma memria e uma histria.

    A srie Cavalos, remete a outras fotografias produzidas justamente de esttuas da cidade de Paris, por Eugne Atget, imagens de uma cidade inabitada, vazia, sendo que atravs das esttuas que vemos a memria e a histria de um lugar que no est ali. Uma paisagem urbana deslocada de seu contexto, algures registrado pelo fotgrafo como uma espcie de inventrio visual de uma Paris invisvel diante dos olhos cotidianos.

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    A cidade vista como uma natureza-morta, e o resultado uma fotografia que contempla a viso do sonho. As fotografias de Atget, e de Cssio so vistas como uma figurao surrealista. Walter Benjamin coloca que as imagens de Atget so coisas perdidas e transviadas. A relao com as imagens de Noturnos no contraria Benjamin, pois Cssio Vasconcellos no pretende inventariar a cidade de So Paulo, mas, deslocar o olhar inventariado para uma paisagem imaginria, um nenhures contemporneo. Um lugar onde forma e cor se confundem na paisagem cida e vazia da cidade. Nelson Brissac, v o artista como um poeta baudelairiano, sensvel s configuraes inditas que podem emergir dos encontros de tapumes, esttuas e fachadas envelhecidas com pontes de alumnio e prdios envidraados.

    Um novo mapeamento, necessrio para se construir a paisagem da cidade, a fragmentao do olhar produzir e conduzir este mapeamento. O enfeixamento dessas produes possibilitar outro olhar sobre a paisagem da cidade, sem nome de ruas, praas, lugares; somente um olhar atento aquilo que normalmente no se percebe, no se v, pois, no existe. A construo imagtica do espao da cidade, a partir de seus fragmentos irreais o que se produz atualmente, para se tentar contornar e descrever o que j deixou de ser visto.

  • BIBLIOGRAFIA

    BARTHES, Roland. Civilizao da imagem In: PERRONE-MOISS, Leyla (org.) Inditos Vol. 3:

    Imagem e Moda. So Paulo: Martins fontes, 2005. p. 65-69.

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    PEIXOTO, ______. Noturnos. In: VASCONCELLOS, Cssio. Noturnos. So Paulo: Bookmark,

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    WOLFF, Francis. Por trs do espetculo: o poder das imagens. Trad. Eric Roland Ren

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  • Incapaz de seguir naturalmente a cultura artesanal do pas, caracterizada primordialmente pelo artesanato indgena, o design no Brasil seguiu um caminho de mltiplas influncias at se afirmar de maneira independente. Dentro deste ambiente multicultural, a Frana teve forte influncia sobre a sociedade brasileira at a primeira metade do sculo XX. Considerando que a busca da identidade do design brasileiro passa pela investigao dos acontecimentos e desenvolvimentos ligados construo da nossa sociedade, importante reconhecer o legado francs que est presente at os dias de hoje na cultura mineira. O presente ensaio examina a ligao cultural entre a Frana e Belo Horizonte atravs de elementos da cultura material presentes na capital.

    Palavras-chave: Design, Cultura, Arquitetura, Identidade

    Breno Pessoa dos Santosautor

    Belo Horizonte ea Frana: relaes culturais no perodo pr-design

    Incapable to follow the artisan culture of the country, characterized for the indigenous craftsmanship, design in Brazil followed a way of limited options until your affirmation in independent way. In this multicultural environment, France had strong influence over the Brazilian society in the first half of century XX. Considering that the search of the identity of Brazilian design, passes for the inquiry of the events and developments related to the construction of our society, it is important to recognize the French legacy that is present until today in the Minas Gerais culture. This essay look over the cultural link between France e Belo Horizonte through elements of the material culture legacy in the capital.

    Keywords: Design, Culture, Architecture, Identity

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  • Breno Pessoa dos Santosautor

    O design como conhecemos hoje no Brasil tem suas origens durante o perodo de industrializao do pas, culminando com a implantao do ensino da atividade durante a dcada de 1960 nos moldes do funcionalismo Alemo.

    Apesar disto, considerando que atividades relativas ao design j eram desenvolvidas no pas j na primeira metade do sculo XX, podemos considerar que as caractersticas culturais anteriores implantao oficial da atividade tiveram um papel importante na formao da base cultural sobre a qual o design se estrutura.

    Alm disto, conforme podemos identificar na definio de design proposta por Barroso Neto (1981) apud Niemeyer (2000, p.25) alm do objetivo de sntese, o design tem ligaes profundas com o modo de viver da sociedade, o ambiente, as relaes humanas, a tecnologia e at mesmo com a economia, dado o fato de ser uma atividade que atua como intermediria entre os setores produtivos e o consumidor.

    (...)uma atividade contempornea que nasceu da necessidade de estabelecer uma relao entre diferentes saberes e diferentes especializaes. Design o equacionamento simultneo de fatores sociais, antropolgicos, ecolgicos, ergonmicos, tecnolgicos e econmicos, na concepo de elementos e sistemas materiais necessrios vida, ao bem-estar e cultura do homem. (BARROSO NETO 1981)

    Mesmo assim, o d