8
355 Posi c ionamento do Insti tuto de Psi qui atri a da UF RJ sobre as estratégi as de redução de danos na abordagem dos problemas rel ac ionados ao uso indevi do de á l cool e outras drogas Marcel o Santos Cruz 1 ; Ana Crist i na Sáad 2 ; Sal ette Mari a Barros Ferrei ra 2 R e s u m o O presente parec er representa uma sí ntese da li teratura sobre as vantagens e desvantagens na ado ç ão da pot i c a proi b i ci on i sta ou das estratég i as de reduç ão de danos na d i mi nui ç ão da soropreval ên ci a de ví rus HIV , das hepat i tes B e C e dos c omportamen- tos de ri sc o entre usuári os de drogas e a ausên ci a de cresci mento do c onsumo de drogas c omo resul tado destas aç ões. evi dên ci as da d i mi nui ç ão de ri sc os e danos pel a ut ili zaç ão de terap i as de subst i tui ç ão no tratamento de usuári os de drogas. Por outro l ado , o reg i me proi b i ci on i sta propõe a resol uç ão dos prob l emas rel at i vos ao uso de drogas através de tát i c as de repressão poli ci al , por mei o de uma c on c ep ç ão moral e cri mi nal , sem se mostrar ef i ci ente para d i mi nui r os prob l emas rel aci onados ao uso de drogas. No que se ref ere à assi stên ci a, reduç ão de danos si gn i f i c a o emprego de téc n i c as que vi ab ili zem as mel hores op ç ões possí vei s para c ada paci ente , evi tando uma exi gên ci a de abst i nên ci a a qual quer c usto . Pel os mot i vos expostos, o I nst i tuto de Psi qui atri a da Un i versi dade F ederal do Ri o de Janei ro é f avorável à ado ç ão das estratég i as de reduç ão de danos na abordagem dos prob l emas rel aci onados ao uso i ndevi do de ál c ool e outras drogas no Brasil . Unitermos á l cool e drogas; reduç ão de danos; pot i c a de saúde; terapi a de subst i tui ç ão; proi bi c i oni smo S u m m a r y We present the synthesis of a li t erature revi ew about advantages and dis advantages of drug prohi bi t i onist poli t i cs versus harm reduc t i on strat egi es. Braz ili an and i nt ernat i ona l rese arc hes show the usef ul ness of harm reduc t i on strat egi es i n reduci ng HIV, hepat i t is B and C soropreva l ence among drug abusers. These strat egi es di mi nish risk behavi ors of drug abusers wi thout resul t i ng i ncre ased drug use. We f ound evi dences that subst i tut i on therapy f or drug abuse resul ts i n reduc t i on of risks and harm. On the contrary, prohi bi t i onist poli t i cs f ocus the resol ut i on of drug probl ems on repressi on usi ng a mora l and cri mi na l concept i on, f a ili ng to sol ve those probl ems. I n he a l th c are cont ext , harm reduc t i on me ans the use of t ec hni ques that ma kes possi bl e to off er bett er opt i ons f or e a c h pat i ent wi thout the requirement of drug abst i nence. Bec ause of the ment i oned re asons, Psyc hi atry I nst i tut e of Uni versi dade Federa l do Ri o de J aneiro supports the adopot i on of harm reduc t i on strat egi es i n the management of drug and a l cohol probl ems i n Braz il . Uniterms drug and a l cohol abuse; harm reduc t i on; hea l th poli t i cs; subst i tut i on therapy; prohi bi t i oni st poli t i cs 1 Coordenador do Programa de Estudos e Assistênci a ao Uso Indevi do de Drogas (Proj ad) , do Inst i tuto de Psi qui atri a da Universi dade Federal do Ri o de Janei ro (I pub/UFRJ) . 2 Professora visi t ante do Proj ad, I pub/UFRJ. J . br a s . p s i qu i a tr . vol . 52 (5) : 355-362, 2003

Posicionamento do nstituto de - site.mppr.mp.br

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

355

Posicionamento do Instituto dePsiquiatria da UFRJ sobre as

estratégias de redução de danosna abordagem dos problemasrelacionados ao uso indevido

de álcool e outras drogas

Marcelo Santos Cruz1; Ana Cristina Sáad2; Salette Maria Barros Ferreira2

R e s u m o

O presente parecer representa uma síntese da literatura sobre as vantagens e desvantagens na adoção da política proib icion istaou das estratég ias de redução de danos na d im inuição da soroprevalência de vírus HIV, das hepatites B e C e dos comportamen-tos de risco entre usuários de drogas e a ausência de crescimento do consumo de drogas como resultado destas ações. Háevidências da d im inuição de riscos e danos pela utilização de terap ias de substituição no tratamento de usuários de drogas. Poroutro lado, o reg ime proib icion ista propõe a resolução dos prob lemas relativos ao uso de drogas através de táticas de repressãopolicial, por meio de uma concepção moral e crim inal, sem se mostrar eficiente para d im inuir os prob lemas relacionados ao usode drogas. No que se refere à assistência, redução de danos sign ifica o emprego de técn icas que viab ilizem as melhores opçõespossíveis para cada paciente, evitando uma exigência de abstinência a qualquer custo. Pelos motivos expostos, o Instituto dePsiquiatria da Un iversidade Federal do Rio de Janeiro é favorável à adoção das estratég ias de redução de danos na abordagemdos prob lemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas no Brasil.

Unitermosálcool e drogas; redução de danos; política de saúde; terapia de substituição; proibicionismo

S u m m a r y

We present the synthesis of a literature review about advantages and disadvantages of drug prohibitionist politics versus harm reductionstrategies. Braz ilian and internationa l researches show the usefulness of harm reduction strategies in reducing HIV, hepatitis B and Csoropreva lence among drug abusers. These strategies diminish risk behaviors of drug abusers without resulting increased drug use. We foundevidences that substitution therapy for drug abuse results in reduction of risks and harm. On the contrary, prohibitionist politics focus theresolution of drug problems on repression using a mora l and crimina l conception, fa iling to solve those problems. In hea lth care context,harm reduction means the use of techniques that makes possible to offer better options for each patient without the requirement of drugabstinence. Because of the mentioned reasons, Psychiatry Institute of Universidade Federa l do Rio de Janeiro supports the adopotion of harmreduction strategies in the management of drug and a lcohol problems in Braz il.

Unitermsdrug and alcohol abuse; harm reduction; health politics; substitution therapy; prohibitionist politics

1Coordenador do Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido de Drogas (Projad), do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Riode Janeiro (Ipub /UFRJ).2Professora visitante do Projad, Ipub /UFRJ.

J . b r a s . p s i q u i a t r . vol. 52 (5): 355-362, 2003

356 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003

As estratég ias de redução de danos partem doprincíp io de que não se pode esperar que se rea-lize o ideal de a human idade um d ia prescind irde substâncias psicoativas e de que é ind ispensá-vel o desenvo lvimento imed iato de ações parad im inuir os danos provocados para cada ind iví-duo e para a coletividade. Assim , a política de re-dução de danos visa ao desenvolvimento de umasérie de ações no sentido de que o ideal é que osind ivíduos não usem drogas, mas, se isto aindanão for possível, que o façam com o menor riscopossível (Marlatt, 1999; Nadelmann , 1997).

Os princíp ios básicos da redução de danos,segundo Marlatt18, são:

1 . a redução de danos é uma alternativa de saú-de púb lica para os modelos moral/crim inal ede doença do uso e da dependência de dro-gas;

2 . a redução de danos reconhece a abstinênciacomo resultado ideal, mas aceita alternativasque reduzam os danos;

3 . a redução de danos surg iu princ ipa l mentecomo uma abordagem de baixo para cima, ba-seada na defesa do dependente, em vez de umapolítica de cima para baixo promovida pelosformuladores de políticas de drogas;

4 . a redução de danos promove acesso a serviçosde baixa exigência como uma alternativa paraabordagens trad icionais de alta exigência;

5 . a redução de danos baseia-se nos princíp iosdo pragmat ismo empát ico versus idea l ismomoralista.

No caso do uso injetável de drogas, por exem-plo, se um indivíduo ainda não consegue deixar deusar uma droga, as ações são no sentido de que eleo faça de forma não-injetável. Se ele ainda não con-segue isto, que o faça sem compartilhar seringas. Seele ainda não consegue, que ele e os parceiros usemmétodos eficientes de esterilização do equipamen-to de injeção e assim por diante. A troca de seringasé apenas uma das ações nesta direção. Junto a estatarefa obrigatoriamente devem ser realizadas outras,como oferecer tratamento para a dependência dasu bs tân c ia , exam es c l í n i c os para d oen çastransmissíveis por via venosa ou sexual, tratamentopara doenças clín icas, ensinamentos e materialeducativo sobre a prevenção de doenças de contá-gio sexual e venoso. Como afirmam Nadelmann,McNeely e Drucker22, “a prioridade é colocada namaximização da quantidade de contato que usuári-

A resposta dos responsáveis pelas políticas paraas drogas no Brasil e no restante do mundo oci-dental é ainda, predom inantemente, a tentativade elim inar a oferta de drogas ilícitas e com issoperseguir o ideal de uma sociedade sem drogas.Durante a última década, alguns países respon-deram aos prob lemas relacionados às drogas comin iciativas d iversas, que envolviam a noção de re-dução de danos16, 26. Essas in iciativas sugerem sermelhor, tanto para a sociedade quanto para o in-d ivíduo, d im inuir os riscos e os prejuízos relacio-nados ao uso contínuo de drogas e à política decontro le de drogas do que restr in g ir o focoob jetivado em uma sociedade livre de drogas. Opresente parecer representa uma síntese do queencontramos na literatura sobre as vantagens edesvantagens na adoção da política de uma soci-edade livre de drogas ou das estratég ias de redu-ção de danos.

As noções contemporâneas de redução de da-nos surg iram na formulação da política de dro-gas holandesa durante o final da década de 1970e início da de 198014, 18. O evento que tornou estapolítica oficial em países como Austrália, Suíça eGrã-Bretanha foi o reconhecimento, durante me-ados dos anos 1980, de que in jetar drogas com-partilhando agulhas d issem ina o vírus HIV: “ O HIVé uma ameaça maior à saúde púb lica e ind ividualdo que o abuso de drogas, e a prevenção da Aidsdeve estar integrada aos esforços antidrogas”1, 31.Com o crescimento da ep idem ia de Aids, nos lo-cais em que já se desenvolviam atividades de re-dução de danos estas in iciativas passaram a sertambém d irig idas para a prevenção do contág iopor todas as doenças transm issíveis por via veno-sa e também sexual.

Figura 1

Posicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJ sobre as estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas Cruz et al.

357J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003

os de drogas problemáticas têm com os serviçoscomunitários sociais, de assistência e outros”.

O risco de contágio de doenças de transmissãopelo uso de drogas injetáveis é uma preocupaçãode saúde pública, sendo esta forma de contamina-ção relevante no contágio entre usuários de drogasinjetáveis assim como a disseminação destes paraseus parceiros pela via do contágio sexual. No Bra-sil, a redução de danos é a abordagem preventivaoficial pela qual a epidemia de Aids vem sendo en-frentada, e a pretensão é que se expanda para a áreade prevenção e tratamento de usuários de drogas8.

Como a preocupação com a transm issão daAids é generalizada, a maior parte dos estudos so-bre os resultados da execução de estratég ias deredução de danos é referente aos riscos de conta-m inação pelo HIV. Esta preocupação é justificadap e l as a l t as t a x as d e p reva l ê n c i a d es oro p o s i t i v i d a d e e n t re u s u ár i o s d e d ro g asin jetáveis. Um estudo realizado nas cidades deItajaí, Porto Alegre, São José do Rio Preto , SãoPau lo e Sorocaba mostra taxas que variam de18,4% a 78% de prevalência de HIV na popula-ção de usuários de drogas in jetáveis27. A méd iano grupo estudado (52 ,3%) é mu ito maior doque a da população em geral, da mesma formaque a prevalência de soropositividade para HTLV(17%)4, 34. Estudos realizados em Santos19, Rio deJaneiro4 e Salvador2 encontraram taxas igualmentealtas para estes vírus e para os das hepatites B eC . O mais importante é que nestas três cidadesestes estudos encontraram importante queda naprevalênc ia destes agentes in fecc iosos quandocomparados com estudos realizados antes da ins-tituição, nestas cidades, de estratég ias de redu-ção de danos para este grupo populacional. Em-bora não se possa afirmar que a queda nas taxasde soropositividade seja resultado da imp lanta-ção das estratég ias de redução de danos, outrosresultados destas pesquisas apontam nesta d ire-ção, como é o caso da d im inuição da freqüênciado uso injetável e do padrão de compartilhamentode seringas (em Santos, Rio de Janeiro e Salva-dor) e do uso de preservativos (Salvador).

Os resultados dos estudos realizados no Brasilsão consistentes com aqueles efetuados nos Esta-dos Un idos, na Grã-Bretanha, na Holanda e naAustrália11, 15, 20. Um estudo de revisão de 14 pro-gramas de troca de seringas mostrou que dez de-les t iveram co m o resu l tado a d i m inu i ção nocompartilhamento de seringas, quatro não mos-

traram nenhuma redução e nenhum programaresultou em aumento15, 20.

O emprego da subst itu ição de drogas por ou-tras substâncias menos associadas a danos, mes-mo quando estas oferecem risco de abuso oudependência, também pode ser compreend idoentre as ações das estratég ias de redução de da-nos. N o Brasil, podem ser inclu ídos nesta cate-goria o uso dos benzod iazep ín icos nas fases in i-c ia is após a interrupção do uso do á lcoo l e aprescrição de metadona para dependentes deop ió ides. A subst itu ição no tratamento de de-pendentes de op ió ides é ut ilizada em outros pa-í s e s d e s d e 1 9 2 3 2 3 . S e g u n d o N a d e l m a n n ,M c N ee ly e Druc ker22, os resu l tados pos i t ivose n c o n t ra d o s n a l i t e ra t u ra s o b re o u s o d emetadona para usuários de hero ína inc luem ad im inu ição no uso de hero ína12 , 24, a d im inu içãodo uso in jetável10, 30, a redução de comportamen-

Figura 2

Cruz et al. Posicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJ sobre as estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas

Figura 3

358 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003

que podem provocar dependência, e com a pos-sib ilidade de ocorrência de troca de uma drogapela outra, há evidências de que não há d im inui-ção da chance de abstinência estável de metadonae outras drogas para pacientes que aderem a pro-gramas de metadona17.

Em oposição à política de redução de danos estáa guerra às drogas ou a ideologia de tolerância zero,adotada principalmente pelo governo norte-ameri-cano e baseada nas p o l í t i cas de pro i b i ção ,criminalização e numa ideologia rígida livre de dro-gas (Nadelmann, 1997). Este projeto, cunhado du-rante o governo Reagan, tem empregado somasvultosas em iniciativas dirigidas fundamentalmentepara a repressão de produção, comercialização econsumo de substâncias ilícitas. O regime internacio-nal de proibição de drogas promovido pelos Esta-dos Unidos desde o início de 1900 está agora firme-mente estabelecido pelo mundo: a Convenção Únicasobre Narcóticos (Single Convention on NarcoticDrugs), de 1961, e a Convenção das Nações Unidascontra o Tráfico Ilegal de Narcóticos e SubstânciasPsicoat ivas (Convent ion against Illic it Traffic inNarcotic Drugs and Psychoactive Substances), de1988, foram ratificadas em mais de cem governos21,

32. As táticas de repressão e sanções desenvolvidaspelos Estados Unidos, incluindo aparato eletrônicode vigilância, testes de drogas, novas leis, prisõescompulsórias relacionadas às drogas, foram adotadasem muitos países, e a proporção de aparato, recur-so policial e espaço em prisões destinados a esse fimaumentou dramaticamente20, inclusive no Brasil9.Como afirmam Nadelmann, McNeely e Drucker22,essas políticas “se mantêm dominantes nos EstadosUnidos, apesar das recomendações em contrário de

Posicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJ sobre as estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas Cruz et al.

Figura 4

Figura 5

to crim inoso e prisões13, a redução nas taxas demortalidade entre dependentes7 e o aumento noemprego5 , 12.

Embora os críticos das estratég ias de substi-tuição se preocupem com o uso de substâncias Figura 6

359J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003

Cruz et al. Posicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJ sobre as estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas

várias instituições de alto nível científico e de con-sultores do governo ao longo de anos”.

Este tipo de abordagem entende o prob lemado uso de drogas através dos modelos moral/cri-m inal e de doença, como cita Marlatt18: “ O mo-delo moral, como expresso na política de contro-le de drogas dos Estados Un idos, é o de que o usoe/ou a d istribuição de certas drogas são crimesque merecem pun ição... no modelo moral o usode drogas ilícitas é moralmente incorreto” . Estesmodelos também foram verificados em nosso paíscomo ideo log ia predom inante, importados dosEUA28, 29. O ob jetivo final dos programas de trata-mento baseados em modelos moral e de doençaé reduzir e elim inar a prevalência do uso de dro-gas, concentrando-se no usuário.

Entre as críticas à política de guerra às drogasencontra-se o predom ín io da destinação de re-cursos púb licos à repressão com resultante escas-sez de recursos e esforços destinados às ativida-d es d e p reve n ç ão e ass i s t ê n c i a . Ta m b é m équestionado o próprio ob jetivo da política, umavez que se d iscute se é possível esperar que umd ia haja alguma sociedade livre de drogas.

As críticas referentes à política de redução dedanos geralmente são calcadas mais em experi-ências pessoais do que em científicas e incluem aidéia de que a redução de danos estimu laria oconsumo de drogas e trabalharia visando à lega-lização das mesmas. Talvez seja este o motivo daescassez de artigos que se contrapõem às estraté-g ias de redução de danos. A preocupação com apossib ilidade de os programas de troca de serin-gas incentivarem o uso de drogas não é corrobo-rada por estudos no exterior25, 35. Embora aindanão existam dados nacionais d ispon íveis para res-ponder a esta questão, conforme Bastos e Mes-quita3 “é preciso afirmar, categoricamente, quenenhum estudo científico até hoje pub licado cor-roborou a formulação de que a imp lantação deprojetos de trocas de seringas daria lugar a umaumento do consumo de drogas nas comun ida-des por eles abrang idas” .

As estratég ias de redução de danos têm sidod issem inadas mund ialmente e atualmente passama ser compreendidas como uma proposta não ape-nas preventiva, mas também como uma das ba-ses que fundamentam a assistência a usuários dedrogas6. No que se refere à assistência, a utiliza-ção do modelo de redução de danos sign ifica o

Figura 7

Figura 8

Figura 9

emprego de técn icas por profissionais e institui-ções que viab ilizem as melhores opções possíveispara cada paciente, evitando uma exigência de

360 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003

Posicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJ sobre as estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas Cruz et al.

Figura 10

Figura 11

abstinência a qualquer custo. Não se trata de des-prezar a importância da abstinência para muitospacientes, mas incluí-la como uma possib ilidade

Figura 12

Figura 13

Figura 14

entre outras. A utilização deste tipo de aborda-gem torna possível que muitos pacientes se vin-culem aos profissionais e à instituição, in iciandotratamento que pode progressivamente trazermod ificações importantes na forma de o pacien-te lidar consigo mesmo e com o mundo à sua

361J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003

Cruz et al. Posicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJ sobre as estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas

vo lta e, inclusive, com o seu uso de drogas. Aexigência de abstinência, por outro lado, selecio-na aquela parcela do grupo de usuários de dro-gas que pode desde o in ício interromper o uso dasubstância, excluindo os demais do tratamento.Como enfatiza Carlin i8, a adoção de uma estraté-g ia de redução de danos não se trata apenas deuma mudança de parad igma, mas também da“adoção de uma política que respeite a pluralidadede modos de vida e que atue a partir da aceitaçãodesta realidade” . Esta autora descreve ainda comovantagens da estratég ia de redução de danos ofato de ser menos custosa do ponto de vista dosrecursos financeiros e mais eficiente se compara-da com as abordagens trad icionais.

A opção por uma estratég ia de redução de da-nos não é contrad itória com a utilização de açõesno sentido de d im inuir a oferta e o consumo dedrogas. Na realidade, como demonstram Stimsone Fitch33, as estratég ias de redução de danos sósão opostas às posturas proib icion istas que se pro-põem a resolver os prob lemas relacionados ao usode drogas pela sua proib ição geral.

A partir do que encontramos na literatura, oposicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJé favorável à utilização das estratég ias de redu-ção de danos na abordagem dos prob lemas rela-cionados ao uso indevido de álcool e outras dro-gas no Brasil. Pe los mot ivos expostos, deve-seafirmar que adm itir a impossib ilidade imed iata deuma sociedade livre de drogas é assum ir, de for-ma responsável, o papel que cada um tem no tra-tamento da dependência de drogas, tratamentoeste adequado a cada ind ivíduo, suas necessida-des e possib ilidades. Investir em políticas púb li-cas de prevenção e tratamento coerentes com arealidade do país e da sociedade é abordar de for-ma coerente os prob lemas relacionados ao usode drogas. Privileg iar as ações repressivas, respon-sab ilizar as substâncias e aqueles que as utilizampelos prob lemas encontrados e estigmatizar usu-ários como moralmente crim inosos ou doentessão formas parciais e preconceituosas de se en-frentar o prob lema do uso de drogas, propostasnão-endossadas pelas estratég ias de redução dedanos.

Referências

1. Advisory Council on the M isuse of Drugs. A ids and drug misuse,part I: report of the Advisory Council on the M isuse of Drugs.London: Her Majesty’s Stationery Office , 1988 .

2 . Andrade TM , Dourado MI, Farias AH , Castro BG . Redução dedanos e redução da prevalência de infecção pelo HIV entreusuários de drogas injetáveis em Salvador, Bahia . In: M inis-tério da Saúde (Secretaria de Políticas de Saúde/Coordena-ção Nacional de DST e A ids). Brasil. A contribuição dos es-tudos multicêntricos frente à epidemia de HIV/A ids entreUDI no Brasil: dez anos de pesquisa e redução de danos.Brasília; 2001 , p . 94-114 .

3. Bastos FI, Mesquita F. Estratégias de redução de danos. In: SeibelSD , Toscano Jr. A . (eds.). Dependência de drogas. São Pau-lo: Editora Atheneu; 2001 , p . 181-90 .

4 . Bastos FI, Telles P, Hacker M . Uma década de pesquisas sobreusuários de drogas injetáveis e HIV/A ids no Rio de Janeiro .Parte I: Rumo a uma epidemia sobre controle? In: M inisté-rio da Saúde (Secretaria de Políticas de Saúde/Coordena-ção Nacional de DST e A ids). Brasil. A contribuição dos es-tudos multicêntricos frente à epidemia de HIV/A ids entreUDI no Brasil: dez anos de pesquisa e redução de danos.Brasília; 2001 , p . 49-78 .

5 . Bertschy G . Methadone maintenance treatment: an update .European Archives of Psychiatry C linical Neuroscience 1995;245(2): 114-24 .

6 . Brasil. M inistério da Saúde (Secretaria de Políticas de Saúde/Coordenação Nacional de DST e A ids). A política do M inis-

tério da Saúde de atenção integral a usuários de álcool eoutras drogas. Brasília; 2003 , p . 1-54 .

7 . Caplehorn JRM , Dalton MSYN , Haldar F, Petrenas AM , NisbetJG . Methadone ma intenance and add icts’ risk of fata lheroine overdose . International Journal of Addiction 1996;31:177-96 .

8 . Carlini B. Apresentação à edição brasileira . In: Marlatt , GA . Re-dução de danos: estratégias práticas para lidar com com-portamentos de alto risco . Tradução Daniel Bueno . PortoA legre: Artes Médicas Sul, IX-XII, 1999 .

9 . Cruz MS, Ferreira SMB. Determinantes socioculturais do usoabusivo de álcool e outras drogas: uma visão panorâmica .In: Cruz MS, Ferreira SMB. (orgs.) Á lcool e drogas: usos,dependência e tratamentos. Rio de Janeiro: Edições Ipub/Cuca; 2001 , p . 95-113 .

10 . Darke S, Hall W, Heather N , Ward J, Wodak A . Reliability andva lid ity of a sca le to measure HIV risk behavior amongintravenous drug users. A ids 1991; 5(2): 181 .

11 . Des Jarlais DC , Firedman SR, Sotheran JL, Wenston J, MarmorM , Yancovitz SR, Frank B, Beatrice S, M ildvan D . Continuityand change w ithin an HIV epidemic: injecting drug usersin New York C ity. JAMA 1994 .

12 . Inst i tute of M ed ic ine . Federa l regu lat ion of methadonetreatment. Washington, DC: National Academy Press, 1995.

13 . Joseph H . The criminal justice system and opiate addiction: ahistorical perspective . In: Leukefeld CG , Tims FM . (eds.).Compulsory treatment of drug abuse: research and clinical

362 J . b r a s . p s i q u i a t r . • Vol. 52 • Nº 5 • 2003

practice . Rockville , MD: National Institute of Drug Abuse;1988 , p . 106-25 .

14. Leuw E, Marshall I.H. Between prohibition and legalization:the Dutch experiment in drug policy. New York: Kugler; 1994.

15. Lurie P, Reingold AL. The public health impact of needle exchangeprograms in the United States and abroad. Berkeley: Universityof California, Institute for Health Policy Studies, 1993, apudNadelmann E, McNeely J, Drucker E. International Perspectives.In: Low inson JH, Ruiz P, M illman RB, Langrod LG . Substanceabuse: a comprehensive textbook. 3. ed. Baltimore: W illiams& W ilkins; 1997, p. 22-39.

16 . MacCoun RJ, Saiger AJ, Kahan JP. Drug policies and problems:the promise and pitfalls of cross-national comparison. In:Heather N , Wodak A , Nade lmann EA , O ´Hare P. (eds.)Psychoac t ive drugs and harm reduc t ion: from fa ith toscience . London: Whurr Publishers; 1993 .

17 . Madux JF, Desmond DP. Methadone maintenance and recoveryfrom opioid dependence . American Journal on Drug andA lcohol Abuse 1992; 18(1): 63-74 .

18 . Marlatt GA . Redução de danos: estratégias práticas para lidarcom comportamentos de alto risco. Tradução Daniel Bueno.Porto A legre: Artes Médicas Sul, 1999 .

19 . Mesquita F, Bueno R, Kral A , Reingold A , Lopes G , Haddad I,Piconez D , Sanches M , Araújo PJ, Buchalla CM . A ids entreusuários de drogas injetáveis na região metropolitana deSantos na década de 1990 . In: M inistério da Saúde (Secre-taria de Políticas de Saúde/Coordenação Nacional de DST eA ids). Brasil. A contribuição dos estudos multicêntricos fren-te à epidemia de HIV/A ids entre UDI no Brasil: dez anos depesquisa e redução de danos. Brasília; 2001 , p . 11-48 .

20 . Nadelmann EA . Cops across borders: the internationalizationof US cr im ina l la w enforcement . Un ivers i ty Park , PA:Pennsylvania State University College Press; 1993 .

21 . Nadelmann EA . G lobal prohibition regimes: the evolution ofnorms in international society. Int Organization 1990; 44(4):470-526 .

22. Nadelmann E, McNeely J, Drucker E. International perspectives.In: Low inson JH, Ruiz P, M illman RB, Langrod LG . Substanceabuse: a comprehensive textbook. 3. ed. Baltimore: W illiams& W ilkins; 1997 , p . 22-39 .

23 . Nadelmann EA . Thinking seriously about alternatives to drugprohibition . Daedalus 1992; 121(3): 85-132 .

24. Newman RG . Methadone treatment in narcotic addiction. NewYork: Academic Press; 1997 .

25 . Normand J, Vlahov D , Moses LE. Preventing HIV transmission:the ro le of sterile need les and b leach . Wash ington , DC:National Academy Press; 1995 .

26 . Office of Technology Assessment . The effectiveness of A idsprevent ion efforts. Wash ington , D C : US G overnmentPrinting Office; 1995 .

27 . Proietti FA , Caiaffa WT, Proietti ABFC , Gonçalves VF, Eller REM ,Guimarães MDC . Estudo soro epidemiológico . In: CaiaffaWT et al. Projeto A jude-Brasil: avaliação epidemiológica dosusuários de drogas injetáveis dos projetos de redução dedanos (PRD) apoiados pela CN-DST/A ids. M inistério da Saú-de (Coordenação Nacional de DST e A ids). Brasil. Brasília;2001 , p . 137-49 .

Posicionamento do Instituto de Psiquiatria da UFRJ sobre as estratégias de redução de danos na abordagem dos problemas relacionados ao uso indevido de álcool e outras drogas Cruz et al.

28 . Sáad AC . Um estudo sobre o atendimento ao toxicômano nacidade do Rio de Janeiro: [dissertação]. Rio de Janeiro: Ins-tituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Ja-neiro; 1993 .

29 . Sáad AC . O discurso da droga e a droga na história de pacien-tes em tratamento no Brasil e nos Estados Unidos. [tese].Rio de Janeiro: Instituto de Psiquiatria da Universidade Fe-deral do Rio de Janeiro; 1998 .

30. Selwyn PA , Feiner C , Cox CP, Lipschutz C , Cohen RL. Know ledgeabout A ids and high risk among intravenous drug users inNew York C ity. A ids 1987; 1(4): 247-54 .

31 . Stap les P. Reduct ion of a lcoho l- and drug-re lated harm inAustralia: a government minister’s perspective. In: HeatherN , Wodak A , Nadelmann EA , O ´Hare P. (eds.) Psychoactivedrugs and harm reduction: from faith to science . London:Whurr Publishers; 1993 .

32. Stares PB. G lobal habit: the drug problem in a borderless world .Washington , DC: Brookings Institution; 1996 .

33 . Stimson GV, Fitch C . Qual a relação entre redução de demandae redução de danos? In: Baptista M , Cruz MS, Matias R.(orgs.). Drogas e pós-modernidade . Rio de Janeiro: Eduerj(no prelo). v. 2.

34 . Szwarcwald CL, Bastos FI, Castilho EA . The dynamic of A idsepidemic in Brazil: a spatio-temporal analysis, 1987-1995 .Braz J Infect Dis 1998; 2: 175-86 , apud Bastos FI, Telles P,Hacker M . Uma década de pesquisas sobre usuários de dro-gas injetáveis e HIV/A ids no Rio de Janeiro . Parte I: Rumo auma epidemia sobre controle? In: M inistério da Saúde (Se-cretaria de Políticas de Saúde/Coordenação Nacional de DSTe A ids). Brasil. A contribuição dos estudos multicêntricosfrente à epidemia de HIV/A ids entre UDI no Brasil: dez anosde pesquisa e redução de danos. Brasília; 2001 , p . 49-78 .

35 . Watters JK, Estilo MJ, C lark GL, Lorvick J. Syringe and needleexchange as HIV/A ids prevention for injection drug users.JAMA 1994; 271(2): 115 .

Jornal Brasileiro de Psiquiatria

Endereço para correspondência

Marcelo Santos CruzAvenida Venceslau Brás 71/fundos – BotafogoCEP 22290-140 – Rio de Janeiro-RJe-ma il: [email protected]