O ANARQUISMO NO MOVIMENTO PUNK: (Cidade de São Paulo, 1980-1990

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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP

VALDIR DA SILVA OLIVEIRA

O ANARQUISMO NO MOVIMENTO PUNK:(Cidade de So Paulo, 1980-1990).

MESTRADO EM HISTRIA

SO PAULO 2007

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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP

VALDIR DA SILVA OLIVEIRA

O ANARQUISMO NO MOVIMENTO PUNK:(Cidade de So Paulo, 1980-1990).

MESTRADO EM HISTRIA

Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Histria sob a orientao da Prof. Doutora Maria do Rosrio Cunha Peixoto.

SO PAULO 20072

Banca Examinadora

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Agradeo a minha companheira, esposa e mulher Kida que teve pacincia, colaborando com sugestes, me suportando e auxiliando nos momentos difceis. Aos amigos Marco, Joo Paulo e Tia pela contribuio nos longos momentos de debates e discusses. Aos amigos e amigas do Movimento Bota pela longa caminhada de aprendizagem. Ao Antonio Carlos, Orlando e Fbio que gentilmente me concederam depoimentos valiosos. Ao Lopes pela reviso do trabalho. A professora Doutora Maria do Rosrio Cunha Peixoto pela eficincia na orientao. A banca de qualificao pelas valiosas contribuies e a todas as pessoas que ajudaram para que essa pesquisa se concretizasse.

Dededico este trabalho ao meu Pai Genival, a minha Me Alice e a meus irmo e irms: Valdemar, Vera, Valdirene, Vanda e Walter que acreditaram em mim e permitiram que eu estudasse.

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RESUMO

O anarquismo no movimento punk: cidade de So Paulo (1980-1990).

A presente dissertao partiu de minhas inquietaes vivenciadas na dcada de 1980. Morando no Parque So Rafael, Zona Leste da cidade de So Paulo, pude presenciar, cotidianamente, a mobilizao punk que emergia com fora e vitalidade na cidade. No entanto, o que mais me chamava ateno era o pequeno, mas crescente, engajamento do movimento punk com o anarquismo. Manifestado em suas prticas e experincias no processo de ocupao e vivncias nos espaos e territrios da cidade. O objeto de pesquisa desse trabalho refletir, discutir e estudar o anarquismo no movimento punk, suas incurses polticas, sociais e culturais na metrpole paulistana. Para isto, utilizamos como fontes os prprios discursos dos remanescentes punks da poca pesquisada, atravs de relatos, textos e artigos publicados nos fanzines (meio de comunicao dos punks), cartas trocadas entre os integrantes do movimento e entrevistas com punks do perodo abordado, onde analisamos as tenses e disputas dos punks enquanto memria de vidas e lutas. Procuramos dar voz e visibilidade aos sujeitos histricos que interagiram, vivenciaram, discutiram e refletiram sobre o anarquismo no movimento punk, na dcada de 1980. O campo da memria foi abordado com a compreenso de que os punks so sujeitos sociais que interagem uns com os outros e com a sociedade como um todo. Compreendendo que essas interaes esto permeadas de lutas, resistncias e interferncias na busca de referncias identitrias nos espaos urbanos da cidade. Esperamos ter contribudo para o debate, as discusses e reflexes sobre o anarquismo no movimento punk. Entretanto, esta dissertao no apresenta concluses e sim sondagens de caminhos que interagem uns com os outros. Pois o ideal punk de uma sociedade anarquista, onde no haja nenhum tipo de dominao e explorao, ainda persiste na postura e atitude de vrios grupos denominados anarco-punks que continuam seu protesto nas ruas e praas da cidade de So Paulo. Palavras-chave: Anarquismo, Movimento Punk, Movimentos Juvenis.

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ABSTRACT

Anarchism in the punk movement: So Paulo city (1980-1990) The present work comes from my experiences and concerns with the decade of the 1980s. When living at Parque So Rafael, a district located on the east side of So Paulo city, I had the opportunity to witness the punk movement that grew in the city. Nevertheless, what really called my attention was the little, but growing, commitment to the punk movement with anarchist ideas which were expressed by its practices and experiences. The main aim of this reasearch is to analyse, discusss and study the anarchism in the punk movement, taking into account its political, social and cultural characteristics in So Paulo city. In order to analyse it, the study is based on documents, texts, enterviews, letters, articles and fanzines published by punk members of the studied historical period. We tried to give voice and visibility to historical individuals which actively integrated the punk movement and had relation to anarchist ideas in the decade of the 1980s. We also bared in mind that the punks are social individuals living and interacting in society. It is known that those interactions are marked by struggles, resistance and interference in their search for indentity references in the city. So our intention is to make a contribuition to the debate and discussion about anarchism in the punk movement. This study does not include conclusions but discusses the ways and interactions in the punk movement related to anarchism as they aimed at an anarchist society. That attitude is still alive in many groups called anarcho-punks which continue their protests in So Paulo. Keywords: anarchism, punk movement, young movement.

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SUMRIO

Lista de abreviaturas e siglas............................................................................................................................ 08.

Introduo..........................................................................................................................................................09.

Biografia dos depoentes (Histria Oral)...........................................................................................................31.

I Um Novo Grito de Rebeldia: Nasciam os Punks.........................................................................................33.

II Praticas do Movimento Punk na Cidade de So Paulo...............................................................................63.

III Anarquia e Movimento Punk.....................................................................................................................90.

Fontes................................................................................................................................................................129.

Acervos................................................................................................................................131.

Referncias Bibliogrficas...............................................................................................................................132.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AI-5 Ato Institucional n5. AIT Associao Internacional do Trabalho. CCS Centro de Cultura Social. CCCS Centre for Contemporary Cultural Studies. CEDIC Centro de Documentao e Informao Cientfica Prof. Casemiro dos Reis Filho. COB Confederao Operria Brasileira. CPC Centro Popular de Cultura. ETAL E.E. Tarciso lvares Sobo. MPA Movimento Punk Alternativo. NCP Ncleo de Conscincia Punk. PUC-SP Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. SESC Servio Social do Comrcio. UGT Unio Geral dos Trabalhadores. UNE Unio Nacional dos Estudantes.

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INTRODUO

A presente dissertao parte de minhas inquietaes vivenciadas na dcada de 1980. Morando no Parque So Rafael, regio de So Mateus, periferia da Zona Leste da cidade de So Paulo, pude presenciar, cotidianamente, as vivncias e experincias do movimento punk1 que emergia com fora e vitalidade na cidade. No Parque So Rafael da dcada de 1980, as opes de lazer, principalmente para os jovens,2 eram poucas. Freqentvamos as quermesses na Igreja So Marcos3 nos perodos de festa junina, organizvamos festinhas na casa de amigos nos finais de semana, jogvamos futebol nos campinhos improvisados em terrenos baldios e na escola,4 muitas vezes amos a festas na Sociedade Amigos do

Movimento juvenil, de contestao musical e comportamental, que surgiu na Inglaterra e Estados Unidos na dcada de 1970 e no Brasil na segunda metade de 1970. [...] movimento ligado a uma faixa da juventude que continuou e continua rebelando-se contra a hipocrisia, a complacncia, o conformismo, o tdio e contra um mundo baseado em pompa e privilgio, no qual o jovem tem pouca chance de manifestar-se e os jovens das classes mais baixas menos chance ainda. [...] No importa que paream diferentes entre eles, os contestadores das ruas, os escapistas e os anarquistas, todos fazem parte de um movimento que deflagra uma rebelio adolescente. A primeira regra do punk que no existem regras. Punk quebrar regras e no cri-las. no estar preocupado em usar a roupa certa ou dizer os clichs certos, mas pensar por si mesmo. Punk liberdade de palavra e espao para mover-se. Por Gary Bushell, editor da revista Punks Not Dead 1981. In: BIVAR, Antonio. O que punk. 4 edio. So Paulo, Ed. Brasiliense, 1998. p. 84,85 e 86. 2 Trabalhamos a idia de jovem e juventude, analisando sua diversidade na cidade, enquanto categoria constituda historicamente. 3 Igreja So Marcos (catlica) Rua Prof. Ciro Formcola, n 17. Parque So Rafael. Zona Leste So Paulo. 4 E.E. Andr Nunes Junior Rua Salvador de Paiva, 145. Parque So Rafael Zona Leste de So Paulo.

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Bairro5 e no Salo de Festas Pedro Sertanejo.6 Nesses espaos de sociabilidade no bairro, comecei a perceber grupos juvenis com jaquetas pretas, coturnos ou tnis cano longo, cabelos curtos ou espetados, calas pretas, correntes e alfinetes pendurados nas roupas e pelo corpo, um visual surrado, rasgado e agressivo - eram os punks.7 Apesar de no ter sido punk, meu contato com eles era estabelecido atravs de amigos e vizinhos que aderiram ao movimento. No entanto, o que mais me chamava ateno era o pequeno, mas crescente, engajamento do movimento punk com o anarquismo.8 atestado, entre outras coisas, pelo uso em suas indumentrias da letra A dentro de um crculo, significando anarquia9 e pela negao das instituies (pblicas ou privadas) que representam o poder.

Sociedade Amigos do Bairro Parque So Rafael Rua Clemente Falco, n 17. Parque So Rafael Zona Leste de So Paulo. No salo dessa entidade aconteciam vrios eventos, tais como: festas de casamentos e de aniversrios, cursos (artes marciais, tric, croch, etc) e shows punks. 6 Salo de festas Pedro Sertanejo Rua Gruqueamas s/n. Parque So Rafael. nico salo de baile do bairro, onde o forr varava noite adentro. De vez em quando, encontrvamos alguns punks no salo. Atualmente, nesse local funciona uma igreja evanglica. 7 Sobre a palavra punk, no Dicionrio Eletrnico Aurlio Sculo XXI, temos a seguinte definio: Membro de movimento no-conformista surgido na Inglaterra ao final dos anos 1970 que adota diversos sinais exteriores de provocao, por completo desprezo aos valores estabelecidos pela sociedade. 8 Do ponto de vista histrico, o anarquismo a doutrina que prope uma crtica sociedade vigente; uma viso da sociedade ideal do futuro e os meios de passar de uma para a outra. [...] o anarquismo preocupa-se, basicamente, com o homem e sua relao com a sociedade. Seu objetivo final sempre a transformao da sociedade; sua atitude no presente sempre de condenao a essa sociedade, mesmo que essa condenao tenha origem numa viso individualista sobre a natureza do homem; seu mtodo sempre de revolta social, seja ela violenta ou no. In: WOODCOCK, George. Histria das idias e movimentos anarquistas V. 9. 1: A idia. Porto Alegre: L&PM,2002. p. 7. 9 Na linguagem popular, anarquia sinnimo de caos. [...] Anarchos, a palavra grega original, significa apenas sem governante e, assim, a palavra anarquia pode ser usada tanto para expressar a condio negativa de ausncia de governo quanto condio positiva de no haver governo por ser ele desnecessrio preservao da ordem. In: WOODCOCK, 2002. p.8.

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Tive, ento, a oportunidade de conviver e interagir com prticas juvenis de contestao ao sistema,10 protestos expressos no visual, na msica e no comportamento, a princpio niilista,11 caracterizando um primeiro momento do movimento (1977-1985), no qual predominaram aqueles punks que queriam destruir tudo, acabar com tudo, e que diziam nada ter sentido na vida.

Ser punk ser contra tudo o que nos imposto, ser rebelde, no dar valor nem prpria vida; ser contra o sistema, o governo e um modo de vida fabricado. Punk ser podre, ser txico-humano, ser contra tudo e todos. Punk no aquele que se veste mal, e sim aquele que sabe por que se veste mal.12

Nesse depoimento, a idia punk de ser contra tudo o que imposto pelo governo e pela sociedade vai se concretizando em uma prtica que se expressa no modo de se vestir sujo, rasgado, denunciando a sujeira e as mazelas sociais. Ao adotar essa atitude, os punks assumem uma postura de extrapolao das

Sistema um conjunto de pensamentos, teses ou doutrinas, desenvolvidas articuladamente e formando uma unidade terica. In: JAPIASS, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionrio bsico de filosofia. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1996. Quando os punks falam de combate ao sistema eles esto se referindo ao sistema capitalista e suas instituies polticas, econmicas, sociais e culturais. 11 Niilismo, palavra que vem do francs nihilisme e que significa, segundo o Dicionrio Eletrnico Aurlio Sculo XXI: 1. Reduo a nada; aniquilamento; 2. Descrena absoluta; 3. Filosofia: Doutrina segundo a qual nada existe de absoluto; 4. tica: Doutrina segundo a qual no h verdade moral nem hierarquia de valores; 5. Poltica: Doutrina segundo a qual s ser possvel o progresso da sociedade aps a destruio do que socialmente existe. 12 Depoimento de Arnout, ex-punk do grupo Punkids Pq. S. Rafael (Z/L SP) entre 1982 e 1983. Conforme documento (n V 76) CEDIC PUC/SP (Centro de Documentao e Informao Cientfica Prof. Casemiro dos Reis Filho). Nos documentos, no encontramos mais informaes sobre o depoente. No decorrer do trabalho, teremos vrias fontes apresentando essa defasagem de informaes, pois, a princpio, os punks no se preocupavam em preservar sua memria. Essa prtica tem influncia desse primeiro momento niilista do movimento.

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convenes sociais, criando uma sensao de exterioridade em relao sociedade na qual vivem. Nesse primeiro momento, nos anos iniciais dos punks brasileiros, um amplo setor do movimento entendia o anarquismo muito mais pelo seu sentido pejorativo de desordem, descontrole, baguna, caos, etc....13 Os punks viviam um processo de disperso, no sentido de ser apoltico, no participante da poltica (mais a fim de msica, do som, etc.).14 Aps 1985, analisamos um segundo momento de estruturao do movimento punk ou essa outra vertente que se pode chamar de anarquista.15 Momento em que o movimento vai se articulando e se organizando de forma mais consistente, com participao em manifestaes como o boicote s multinacionais,16 a chamada para o vote nulo, faa de seu voto sua revolta,17 e a unio de punks e

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Caderno n 1 do CCS (Centro de Cultura Social) p. 3. Nesse caderno, na mesma pgina, encontramos informaes constando que o CCS no um espao de anarquistas, um aparelho, uma casa de cultura, fundada em 1933 por trabalhadores de orientao anarco-sindicalista e que interrompeu suas atividades vrias vezes devido a inmeras ditaduras. Foi fundado por trabalhadores anarco-sindicalistas, porm desde ento um espao livre, aberto a todos, desde que de acordo com seus estatutos. Segundo Costa, o anarco-sindicalismo (do final do sculo XIX e incio do XX) considera a greve geral (organizada pelos sindicatos dos trabalhadores) como o supremo instrumento estratgico revolucionrio (COSTA, 1985). 14 Caderno n 1 do CCS (Centro de Cultura social) p. 3. 15 Entrevista, Revista Kaprikrnio Vintetres Morumbi S.P. (1985), com Helen Rose Pedroso, cientista social e autora de um trabalho (ver bibliografia) sobre o movimento Punk, publicado pela UNICAMP. 16 Manifesto M.P.A. (Movimento Punk/Alternativo) n 1, nov. 1989 (no temos a autoria deste documento). Doc. Disponvel no CEDIC-PUC/SP. 17 Idem. Ibidem.

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anarquistas contra o imperialismo, conforme matria publicada no Jornal do Brasil em dezembro de 1987.18 Nesse processo de politizao e organizao do movimento, a montagem de bandas punks e a produo de eventos musicais e fanzines19 tero papis preponderantes. Eram em eventos musicais, como o show Comeo do Fim do Mundo (SESC Pompia, 1982), onde punks de todas as regies de So Paulo se reuniam, trocavam idias, informaes e experincias. Nesses eventos, circulavam os fanzines, panfletos e manifestos punks. Vejamos o que diz Antonio Bivar sobre a organizao do evento citado:

A esta altura de setembro os punks j esto preparando o primeiro festival do movimento: dois dias no fim de novembro. Sbado e domingo, no SESC da Pompia. Mais de 20 bandas tocaro (15 minutos cada uma), o ingresso ser franqueado a todos, punks e no-punks, haver exposio de fotos, projeo de filmes e vdeos sobre eles, mostra dos desenhos de Meire Martins (uma punka), as bandas j esto providenciando camisetas com estampas dos grupos, e mais botes, discos, fanzines (A Punk Rock armar uma barraca) e um LP comemorativo, com uma faixa para cada banda. Nome do festival: O Comeo do Fim do Mundo. Os organizadores esperam que, ento, os punks mais atiados se comportem e que tudo corra bem.20

Jornal do Brasil 1 caderno Segunda-feira, 7/12/1987. Em matria intitulada: Anarquistas e punks renem-se contra imperialismo em S. Paulo. 19 Fanzine a juno das palavras fan (de f, em portugus) com magazine (revista, em ingls). Fanzine: uma revista do f, feita pelo f e para o f. In: BIVAR, 1982. p. 51. O fanzine era um dos meios de comunicao dos punks. 20 BIVAR, 1982. p. 105.

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O show foi realizado tal como menciona Antonio Bivar e o seu livro O que punk tambm foi lanado nesse festival. Apesar de algumas brigas fora e dentro do SESC, o evento foi importante para os punks, pois conseguiu demonstrar para a opinio pblica a fora e mobilizao do movimento na cidade. Como define Antonio Carlos,21 que vivenciou o movimento punk na dcada de 1980, havia por um lado os punks cavernas, aqueles que estavam no movimento por embalo, modismo, confundindo o punk com vandalismo, violncia e baguna, e por outro lado os punks verdadeiros que compreendiam o movimento punk enquanto contestao e protesto poltico, econmico, social e cultural, levantando a bandeira do anarquismo e tentando compreend-lo e praticlo. Compreendemos a postura de Antonio Carlos, em separar punks cavernas e verdadeiros, como um processo de disputas internas no movimento e uma tentativa de manter a contestao e o protesto punk. No entanto, preferimos analisar o movimento punk com suas disputas e tenses internas sem o julgamento de verdadeiros ou falsos, numa perspectiva de compreender os sujeitos no seu fazerse, nas suas experincias. Para ns, todo comportamento punk contestador.21

Entrevista (concedida ao autor em 20/07/2006) por Antonio Carlos de Oliveira, que estar disponibilizada no CEDIC PUC/SP (Centro de Documentao e Informao Cientfica Prof. Casemiro dos Reis Filho). Antonio Carlos formado em Histria pela PUC/SP, ex-participante do movimento punk (editor de fanzine como o AntiSistema) e hoje se declara anarquista. Prof. Coordenador na Rede Estadual de Ensino de So Paulo e nos forneceu

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Como pudemos verificar no decorrer de nossa pesquisa, essa vertente punk, chamada de niilista ou punk caverna, e que preferimos chamar de um primeiro momento do movimento, predominou at por volta de 1985, perodo de intensa mobilizao poltica e social no Brasil. Na segunda metade da dcada de 80, que chamaremos de um segundo momento do movimento, os punks, paulatinamente, vo se organizando poltica e culturalmente, atravs da msica, da produo de fanzines (revista do f, meio de comunicao dos punks) e da aproximao das idias anarquistas. No entanto, tanto no primeiro, como no segundo momento, havia uma diversidade de posturas e aes. A turma pensava que era anarquia, que era fazer uma revoluo, brigar com militar, passeata, mas no era s isso, o meu objetivo era pura e simplesmente musical.22 Essa fala, de um integrante de uma banda, expressa a diversidade de atuaes do movimento punk. As anlises e reflexes sobre as diversas fontes e bibliografia, permitem a compreenso do movimento histrico em que os punks, em seu primeiro momento, ainda no bojo da ditadura militar,23 confundiam anarquia com baguna e

um vasto material e reflexes sobre o movimento punk. Publicou, entre outros, o livro Os fanzines contam uma histria sobre os punks. Rio de Janeiro: Ed. Achiam, 2006. 22 Depoimento de Valson banda punk AI-5 Documentrio: Botinada! A origem do punk no Brasil (2006). 23 Instaurada no Brasil em 1964 onde governos militares se sucederam no poder implementando um regime autoritrio que perdurou at 1984.

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modismo, e um segundo momento, ps diretas j,24 onde vo tentando estruturar o movimento em torno dos ideais anarquistas, ocorrendo, dessa forma, transformaes do movimento, influenciadas pelo contexto histrico, no decorrer do tempo. So vistos aqui enquanto movimento social de resistncia ao sistema.25 Indo contra as imposies do capitalismo, contestando a ordem estabelecida e propondo uma nova forma de organizao social, o anarquismo. O objetivo de pesquisa deste trabalho refletir, discutir e estudar o anarquismo no movimento punk (Cidade de So Paulo, 1980 1990). Utilizaremos como fontes os prprios discursos dos remanescentes punks da poca pesquisada, por meio de relatos, textos e artigos publicados nos fanzines (meio de comunicao dos punks), cartas trocadas entre os integrantes do movimento e entrevistas com punks do perodo abordado, onde analisaremos as tenses e disputas dos punks enquanto memria de vida e lutas. Pretendemos, ento, dar voz e visibilidade aos sujeitos histricos que interagiram, interferiram, vivenciaram, discutiram e refletiram sobre o anarquismo no movimento punk na dcada de 1980. Alm da bibliografia, trabalhamos com 10 depoimentos do CEDICPUC/SP,26 15 depoimentos de jornais e revistas, 06 depoimentos de vdeo, 0324 25

Movimento de mobilizao poltica no Brasil pelas eleies diretas para presidente em 1984. Segundo o Dicionrio Bsico de Filosofia (ver bibliografia), sistema um conjunto de pensamentos, teses ou doutrinas, desenvolvidas articuladamente e formando uma unidade terica. No caso do movimento punk eles combatem o sistema capitalista e suas instituies polticas, econmicas, sociais e culturais. 26 CEDIC (Centro de Documentao Cientfica Prof. Casemiro dos Reis Filho) PUC/SP.

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entrevistas gravadas pelo autor, 12 relatos no gravados pelo autor, 04 cartas enviadas ao Ncleo de Conscincia Punk (NCP), 05 manifestos punks e 05 fanzines punks. Segundo Terry Eagleton, aquilo que ocupa uma posio oblqua sociedade como um todo o marginal, louco, desviante, perverso, transgressor o mais frtil, politicamente.27 A transgresso da ordem, o ir contra o sistema, faz parte do caminho escolhido pelos punks para a realizao do seu projeto poltico, o anarquismo. Ainda, segundo Eagleton, h poucas outras tarefas mais honrosas para estudantes da cultura do que ajudar a criar um espao no qual o descartado e ignorado possa encontrar uma lngua, uma fala.28 importante estudarmos o movimento punk enquanto contestador da ordem estabelecida, propondo um novo projeto poltico. A grande imprensa,29 enquanto guardi da ordem, repudia os movimentos de contestao. Em algumas matrias da mdia escrita e televisiva, os punks eram associados a marginais e vndalos.

Voc tambm vai escrever que os punks assaltam velhinhas no metr, bebem leite com limo e so a favor do nazismo e da bomba atmica? A pergunta de Calegari reprter Miriam Macedo no tinha

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EAGLETON, Terry. Depois da teoria um olhar sobre os estudos culturais e o ps-modernismo. Traduo de Maria Lucia Oliveira. Rio de Janeiro: Ed. Civilizao Brasileira, 2005. p. 27. 28 Idem. Ibidem. p. 28.

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nada de ameaador. Guitarrista da banda Punk rock Inocentes, cabelos curtos, vestes pretas, dezenove anos, desempregado....30

Calegari, integrante da banda punk Inocentes, relata aqui o que considera a idia que a grande imprensa vinha construindo sobre os punks. Ao fazer a pergunta reprter, reafirma o que a maioria dos grandes jornais e revistas vinha publicando sobre eles. Segundo Nelson Wernek Sodr31, a grande imprensa brasileira executa a tarefa de deformar a realidade, ou de escond-la.32 Todos os meios de comunicao, os meios de massa e a grande imprensa,33 so considerados, segundo o punk Hugo Von Drago, editor do fanzine Lixo Reciclado, como representantes de interesses que no so favorveis aos punks, a bronca que o punk tem com a grande imprensa o fato de passar uma idia errada [...]. No procuram se informar, ou quando tm a informao pem de lado, falam o que querem, e esto a servio de um sistema que no muito simptico ao punk.34

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Nesse trabalho utilizaremos o termo Grande Imprensa como um jornal ou uma revista de grande circulao. In: SODR, Nelson Werneck. Histria da imprensa no Brasil. 4 Edio. So Paulo: Ed. Mauad, 2007. 30 Revista Viso Caderno comportamento 24 de janeiro de 1983. 31 SODR, Nelson Werneck. Histria da imprensa no Brasil. 4 Edio. So Paulo: Ed. Mauad, 2007. 32 Idem. Ibidem. Prembulo. 33 Nelson Werneck Sodr diz que os meios de massa so representados principalmente pela televiso que tem uma grande penetrao, um grande alcance sobre a populao. Enquanto que a grande imprensa um meio de no uso habitual em parcela numerosa de nosso povo. Nossas abordagens, sobre meios de comunicao, iro ao encontro dessas anlises de Sodr. In: SODR, Histria da imprensa no Brasil. 4 Edio. So Paulo: Ed. Mauad, 2007. 34 Entrevista concedida por Hugo Von Drago (punk, 21 anos, desempregado), ao fanzine: Lixo Cultural-Edio especial do fanzine Lixo Reciclado, junho de 1983. Material disponvel no CEDIC-PUC/SP.

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A grande imprensa um espao privilegiado de formulao, articulao e expresso dos modos de pensar das elites paulistanas,35 apresentando uma discusso superficial sobre o movimento punk, omitindo sua diversidade. A imprensa, no seu fazer-se, constitui um campo de disputa extremamente dinmico de diferentes projetos sociais.36 E o movimento punk no condizia com o projeto hegemnico de sociedade que a grande imprensa defendia. Os fanzines, escritos e distribudos pelos prprios punks, utilizando um de seus lemas, o do it yourself (faa voc mesmo), uma das formas que os punks tinham para divulgar suas idias, contrariando e desmascarando a falsa imagem que a chamada grande imprensa e os meios de massa faziam deles. Tais fanzines eram datilografados, escritos mo ou eram recortadas e coladas matrias de outros fanzines, jornais ou revistas. Tudo era confeccionado de forma criativa e artesanal, geralmente em folhas de papel sulfite. Quando prontos, eram copiados clandestinamente nas mquinas copiadoras das empresas onde os punks trabalhavam, ou os exemplares eram vendidos a preo de custo para cobrir as despesas. Nosso trabalho com histria oral tem como base terica os estudos de Alessandro Portelli, autor que, no artigo O momento da minha vida: funes do35

CRUZ, Heloisa de Faria. So Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana 1890-1915. So Paulo: EDUC; FAPESP; Arquivo do Estado de So Paulo; Imprensa Oficial-SP, 2000. p 165.

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tempo na histria oral,37 reconhece as dificuldades do historiador em manter a conformidade ou encaixar em um padro de discurso histrico as narrativas orais, sem perder suas formas e sentidos. Para Portelli, devemos reconhecer esses fatos e trabalhar com eles no nvel de nossa escrita, na qual as palavras dos narradores so apropriadas no texto do historiador e se tornam parte do nosso discurso.38 Ainda para o autor, o problema no pode ser encarado em termos de pureza de salvar a autenticidade das fontes da infeco trazida pelo contato com o historiador.39 Portelli defende que:

Essa fuso de discursos e estilos de narrativa no conseguida simplesmente pela citao dasfontes. , antes disso, uma questo de modificar nosso procedimento narrativo, nosso prprio modo de administrar o tempo e o ponto de vista. Que nossa histria seja autntica, lgica, confivel e documentada como deveria ser um livro de histria. Mas que contenha tambm a histria dialgica da sua formao e a experincia daqueles que a fazem. Que demonstre como os prprios historiadores crescem, mudam e tropeam atravs da pesquisa e no encontro com os sujeitos. Falar sobre o outro como sujeito est longe de ser suficiente, se no nos enxergarmos entre outros e se no colocarmos o tempo em ns mesmos e ns mesmos no tempo.40

36 37

Idem. Ibidem. p.165. PORTELLI, Alessandro. O momento de minha vida: funes do tempo na histria oral. In: ALMEIDA, Paulo Roberto de; FENELON, Da Ribeiro; KHOURY, Yara aun; MACIEL, Laura Antunes (Orgs.). Muitas memrias, outras histrias. So Paulo: Editora Olho dgua, 2005, p. 313. 38 Idem. Ibidem. 39 Idem. ibidem. p. 4. 40 Idem. Ibidem.

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Realizamos trs entrevistas, espontneas e abertas, no trabalho com histria oral. A primeira foi realizada em 20/07/2006 com Antonio Carlos de Oliveira, morador da Zona Leste de So Paulo, no Bairro Parque So Rafael. Antonio Carlos mora no referido bairro desde seu envolvimento com o movimento punk na dcada de 1980. Era editor de fanzine e, durante o incio desta pesquisa, em janeiro de 2005, tomamos conhecimento de sua atuao no movimento, por parte de ex-punks e de amigos pesquisadores, sobre seu o arquivo punk. A partir da, tentamos localiz-lo. No segundo semestre de 2005, analisando o acervo sobre o movimento punk no CEDIC/PUC/SP,41 encontramos vrios documentos em que apareciam menes sobre Antonio Carlos. Em um desses documentos, conseguimos localizar seu endereo. Fiquei surpreso ao perceber que o conhecia, pois morvamos no mesmo bairro na dcada de 80. Descobri tambm que a documentao a qual estava pesquisando tinha sido doada por ele para o CEDIC. Com os dados em mos, entrei em contato e marcamos a entrevista. Durante o seu depoimento, relembramos, em mais de duas horas de dilogo, um pouco de nossas experincias no cotidiano do bairro, da histria do movimento punk e do anarquismo. Depois dessa conversa, registrada e transcrita, tivemos

41

CEDIC/PUC-SP Centro de Documentao e Informao Cientfica Prof. Casemiro dos Reis Filho. Localizado na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Rua Monte Alegre, 984 (sala SB 02). Perdizes So Paulo.

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outras no gravadas e trocas de informaes complementares sobre o movimento por e-mail. A segunda entrevista foi concedida pelo punk Orlando Saltini no dia 19/08/2006. Conheci o Orlando quando fui ao CCS (Centro de Cultura Social) que, na poca, localizava-se na Rua Incio de Arajo, 191 (sobreloja), prximo estao Bresser do metr (Zona Leste de So Paulo). O CCS estava fechado. Ento, me dirigi at o bar ao lado para pedir informaes, foi quando vi Orlando Saltini com uma camiseta preta da banda punk Ramones. Perguntei se ainda curtia o movimento punk. Ele respondeu que sim e, assim, estabelecemos contato para uma possvel entrevista. Entrevistei o Orlando Saltini em janeiro de 2005, em uma calada da rua ao lado do bar onde nos encontramos, mas no foi possvel transcrever a gravao devido a problemas no udio. Desse modo, estabelecemos contato por telefone e agendamos uma nova entrevista. Em uma segunda oportunidade, o depoimento ficou mais espontneo, o gravador no causou constrangimento, e as informaes cedidas pelo depoente foram de fundamental importncia para a realizao da pesquisa. A terceira entrevista foi realizada no dia 16/01/2007 com Fbio, dono da loja denominada Punk Rock, localizada na Galeria 24 de maio, na regio central de So

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Paulo. A loja era referncia para os punks na dcada de 1980 e ainda continua sendo at hoje. local de encontros e compras de produtos punks desde de CDs, DVDs, at fanzines e camisetas com nomes de bandas punks. Fbio nos concedeu entrevista em sua loja. Seu depoimento comeou um pouco tmido, talvez pelo motivo de no nos conhecermos, mas deixamos o gravador discretamente gravando e a conversa foi fluindo, sendo, s vezes, interrompida por clientes. Os critrios de escolha dos depoentes tiveram relao com o fato dos mesmos terem participado do movimento punk na dcada de 1980 e, tambm, pela disponibilidade de tempo para realizao das entrevistas. Estabeleci contato com muitos punks e ex-punks, mas no foi possvel conciliar horrio e locais para a coleta dos depoimentos. No decorrer da pesquisa, tentei preservar a estrutura da oralidade das entrevistas considerando legtima a norma no culta da expresso oral. Utilizo tambm informaes de conversas informais - no gravadas, e algumas questes da minha prpria vivncia e experincia com o movimento punk. O campo da memria aqui ser abordado de forma a dar visibilidade aos punks enquanto sujeitos sociais que interagem uns com os outros e com a sociedade como um todo. Compreendemos que essas interaes esto permeadas de lutas,

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resistncias e interferncias. Suas narrativas sero confrontadas com outras fontes: revistas, jornais, cartas e fanzines. Com relao s outras fontes, importante citar que, no incio da pesquisa (fevereiro de 2005), tivemos muita dificuldade em garimp-las, pois era difcil localizar fanzines e cartas. E uma parcela considervel da grande imprensa que, em matrias de jornais e revistas, defendia interesses da sociedade hegemnica, geralmente retratava os punks como marginais, violentos, desordeiros, imundos e vagabundos, como poderemos constatar no decorrer do trabalho. Chegamos a pensar em trabalhar apenas com os relatos orais dos remanescentes punks. Mas, em novembro de 2005, tivemos contato com uma vasta documentao sobre o movimento punk no CEDIC/PUC-SP. Documentao esta, organizada, catalogada e doada ao CEDIC por Antonio Carlos de Oliveira.42 Desde ento, nossos esforos se concentraram em vasculhar as mais de quarenta caixas contendo milhares de documentos tais como: fanzines, informativos, manifestos, cartas e matrias produzidas pela imprensa. Nosso processo de seleo do material foi pautado em critrios que possibilitassem reflexes e anlises sobre o anarquismo no movimento punk na dcada de 1980. As possibilidades de pesquisa no acervo de documentos sobre o movimento punk no CEDIC foram de fundamental importncia para a realizao desta

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pesquisa. Tais possibilidades apontavam tambm alguns limites, como nos diz Antonio Carlos de Oliveira, organizador do arquivo punk:

O mrito por ajuntar esse material no meu, de muitas pessoas, [...] de muitos punks em todo o Brasil e alguns do exterior com quem mantive intensa correspondncia. Foram todos esses punks com quem me correspondi durante muito tempo e troquei muito material que forneceram a maior parte do material do arquivo. Infelizmente joguei fora caixas cheias de correspondncias, do Brasil e do exterior, principalmente por desconhecer a sua importncia. [...] Muitas reportagens ou mesmo alguns fanzines esto sem algum item importante para sua identificao. Ocorria na maioria das vezes quando ia recortar o artigo de um jornal ou revista, simplesmente recortava o que queria, negligenciando a identificao, por isso em alguns documentos faltam datas, locais de origem e s vezes at ttulo.43

Por esses motivos, alguns documentos utilizados na dissertao apresentam dificuldades de identificao, seja por falta de ttulos, de datas e locais de origem e at por ausncia de autoria. Apesar das dificuldades e algumas defasagens de ordem tcnica, Antonio Carlos contribuiu e est contribuindo para a preservao da memria punk em So Paulo. Estamos analisando aqui um movimento histrico em que os sujeitos sociais, no caso os punks, com suas semelhanas e diferenas, articulam prticas sociais que geram tenses, mudanas e transformaes, que por sua vez, constituem outros

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Antonio Carlos de Oliveira graduado em Histria pela PUC/SP e nos concedeu entrevista (dia 20/07/2006). Documento de Antonio Carlos de Oliveira referente Relao do Material do Arquivo Punk. CEDIC/PUC-SP.

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sujeitos sociais. Nossas fontes so a expresso desses sujeitos em suas relaes e articulaes com o presente, o passado e o futuro. As buscas de compreenso das prticas sociais de diferentes sujeitos nos remetem incorporao de novas fontes. A cultura concebida como uma forma de luta e modos de vida prtica dos vrios agentes sociais. Nesse sentido, busca-se realizar uma histria scio-cultural, das tenses, distenses, prticas, aes, reaes, construes sociais e culturais do movimento punk na Cidade de So Paulo (1980 1990) e suas relaes com o anarquismo. Interessa-nos, portanto, as anlises e reflexes sobre os punks que se consideravam anarquistas. Ressaltamos a contribuio de Stuart Hall para os estudos culturais onde, em 1964, participou da fundao do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS). Foi no perodo sob a direo de Stuart Hall, de 1968 a 1979, que se consolidaram os Estudos Culturais a partir de uma preocupao poltica e do projeto de colocar em bases tericas mais slidas as leituras de textos da cultura, que incluam, entre outras temticas, as subculturas (contraculturas)44 juvenis britnicas (leia-se teds, mods, skinheads, rastas) s vsperas do movimento punk.45

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Quando falamos em contracultura estamos nos referindo a alguma coisa mais geral, mais abstrata, um certo esprito, um certo modo de contestao, de enfrentamento diante da ordem vigente de carter profundamente radical e bastante estranho s formas mais tradicionais de oposio a esta mesma ordem dominante. Um tipo de crtica anrquica. In: PEREIRA, Carlos Messeder. O que contracultura. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1983. 45 HALL, Stuart. Da dispora identidades e mediaes culturais. Liv Sovik (Org.). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. p. 11.

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A produo cultural dos punks na dcada de 1980 em So Paulo emerge dos testemunhos escritos (fanzines, cartas, letras musicais) e testemunhos orais impressos nas entrevistas. Os punks estabeleciam territrios e formas de sociabilidade em espaos pblicos da cidade, resignificando seus usos, experienciando relaes de solidariedade e prticas de resistncias: ao transformar os espaos, as pessoas transformavam-se pelo estabelecimento de novos cdigos de existncia social e de comportamento, isto , novas formas de vida.46 Era dessa maneira que os punks se reuniam na Galeria 24 de Maio (Rua 24 de Maio, n 36) e no Metr So Bento, ambos no centro da Cidade de So Paulo. Reuniam-se tambm em diversos outros lugares da periferia da cidade,47 principalmente em sales das associaes de moradores como na Sociedade amigos do Bairro Parque So Rafael na Zona Leste, no Salo Construo (Sociedade Amigos do Bairro Vila Masei) Zona Oeste e no Salo denominado Templo (Associao de Surdos e Mudos) na Vila Carolina, Freguesia do , Zona Norte e em escolas pblicas como a ETAL (E.E. Tarciso lvares Sobo) tambm na Vila Carolina.46

AZEVEDO, Amailton Magno. No ritmo do rap: cotidiano e sociabilidade negra So Paulo (1980-1997). Dissertao de Mestrado, PUC/SP, 2000. 47 Refletimos e analisamos a Cidade de So Paulo como um todo, um lugar da pluralidade e da diferena, rompendo com a idia de dicotomia (cidade/periferia). Compreendendo essa dicotomia enquanto diviso poltica e cultural onde os bairros mais distantes do centro da cidade (periferia) apresentam defasagens e carncias de infra-estrutura material urbana. Nesse sentido, a cidade ser compreendida como lugar onde as transformaes ocorrem, como fruto de relaes sociais que se estabelecem entre os mais variados segmentos sociais, fazendo emergir as mltiplas contradies que se encontram presentes no urbano.

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Nesses espaos pblicos, eram realizados e organizados eventos musicais, reunies e encontros ocasionais, proporcionando a troca de idias, experincias e socializao de materiais, tais como panfletos de outros eventos punks na cidade, fanzines e manifestos. Dessa forma, eram estabelecidas redes de comunicao e estratgias prticas de resistncia e mobilizao do movimento punk na cidade. A delimitao espao/tempo tem relao com a exploso punk que toma conta de So Paulo por volta de 1977, e que teve seu auge e efervescncia na dcada de 1980. Como diz Bivar, por ser a maior cidade do pas, [...] nela que se tem acesso a um nmero maior de informaes e, por ter uma vida urbana mais acentuada, iremos ter as condies adequadas para a ecloso de um movimento de rebeldia jovem urbana, como o caso do punk.48

Destrua o sistema, antes que ele o destrua. Liberdade criatividade anarquia isto me lembra a juventude em luta para a conquista de um pas sem Estado, no qual as pessoas se auto-governam, e essa juventude rebelde que luta para obter esse objetivo, que a maioria da populao no apia, so os: PUNKS.49

As palavras desta carta expressam o engajamento de jovens, que se autodenominavam rebeldes, com as idias de anarquia e com uma proposta de48

BIVAR, Antonio. O que punk. 1 ed. So Paulo, Ed. Brasiliense, 1982.

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autogesto. Expressam tambm o estabelecimento de relaes entre diferentes sujeitos nas diferentes regies da Cidade de So Paulo, ou seja, Creonice, moradora do Butant, na Zona Oeste, remeteu a carta para o Ncleo de Conscincia Punkespao de discusses e difuso do movimento punk - na regio do Itaim Paulista, Zona Leste. Analisar e discutir as relaes estabelecidas entre os punks das diversas regies da cidade e o seu engajamento com as idias anarquistas faz parte de minhas preocupaes com a delimitao espacial da pesquisa. No primeiro captulo, intitulado: Um novo grito de rebeldia: nasciam os punks iremos refletir sobre a idia de diversidade juvenil no decorrer da histria, principalmente no sculo XX, tentando sempre elucidar a condio dos movimentos de contracultura, at a ecloso do movimento punk e seus ideais anarquistas, no final da dcada de 1970 na cidade de So Paulo. Prticas do Movimento Punk na Cidade de So Paulo o ttulo do segundo captulo. Nele, refletiremos sobre onde e como o movimento surgiu, quais seus protagonistas, culminando com as vivncias, experincias e prticas sociais e anarquistas dos punks na cidade e suas relaes com outros sujeitos e a sociedade. Seguindo nossa dissertao, no terceiro captulo Anarquia e Movimento Punk, discutiremos e aprofundaremos a temtica do anarquismo no movimento49

Carta de Creonice, moradora do bairro de So Domingos Butant/SP, para o Ncleo de Conscincia Punk (liderado pelo punk Gurgel): uma organizao que discutia e disseminava os ideais do movimento punk localizada

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punk, utilizando principalmente os contedos dos fanzines produzidos pelos punks, os depoimentos orais e as cartas que eles trocavam uns com os outros. As fontes, ento, so trabalhadas como expresso da ao de sujeitos, numa rede de acontecimentos e relaes permeadas de valores e tenses. Indagaremos ento sobre as condies histricas de produo das fontes. A partir da sondagem das fontes, acervos e bibliografia proposta, acreditamos ser possvel realizar as ponderaes a seguir, que incluem, tambm, nossas problematizaes especficas. Entretanto, o que segue no so concluses e sim sondagens de caminhos que interagem uns com os outros.

no Jd. Das Oliveiras Itaim Paulista/SP. Documento disponvel no CEDIC-PUC/SP.

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BIOGRAFIA DOS DEPOENTES (HISTRIA ORAL)

Antonio Carlos de Oliveira: formado em Histria pela PUC-SP, ex-participante do movimento punk, onde era editor dos fanzines Anti-Sistema e Aborto Imediato para o Renascer de um Novo Espermatozide. Desde a dcada de 1980, quando atuou no movimento punk, mora no Parque So Rafael So Mateus, Zona Leste da Cidade de So Paulo. Atualmente, declara-se anarquista e Professor Coordenador na Rede Estadual de Ensino de So Paulo. Foi organizador e doador do arquivo sobre o movimento punk para o CEDIC/PUC-SP, e nos forneceu um vasto material e reflexes sobre os punks e o anarquismo. Publicou, entre outros, o livro - Os fanzines contam uma histria sobre os punks. Rio de Janeiro: Editora Achiam, 2006.

Orlando Saltini: Atualmente bancrio, morador do bairro Bresser na Zona Leste da Cidade de So Paulo. Considera-se punk desde 1977. Quando nos concedeu entrevista em 19/08/2006, tinha 47 anos de idade e faz questo de dizer que punk at hoje.

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Fbio R. Sampaio: Atualmente dono de uma das lojas de produtos punks mais importantes para o movimento punk em So Paulo, localizada na rua 24 de maio na regio central da cidade. Organizou vrios eventos punks e integrante da banda punk Olho Seco.

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I UM NOVO GRITO DE REBELDIA: NASCIAM OS PUNKS

Ns estamos aqui para revolucionar a msica popular brasileira: para pintar de negro a asa branca. Atrasar o trem das onze, pisar sobre as flores de Geraldo Vandr e fazer da Amlia uma mulher qualquer. (Manifesto de Clemente, integrante da banda punk Inocentes)50

Abordaremos as noes de juventude com o entendimento de que so constitudas e construdas historicamente, e que variam de cultura para cultura.51 Falar em juventude implica considerar que no h uma homogeneidade capaz de dar conta do social como um todo e que ela expressa uma pluralidade de expresses e de experincias sociais. Paulo Srgio do Carmo destaca que as reflexes sobre o jovem e suas manifestaes especficas intensificaram-se na dcada de 50 do sculo XX. Tal destaque deve-se sua relativa autonomia com relao aos pais, ao alongamento do

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Revista Planeta n 128 Maio de 1983. ARIS, Philippe. Histria Social da Criana e da Famlia. Traduo de Dora Flaksman. Rio de janeiro: Ed. Guanabara, 1984.

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perodo escolar e ao adiamento da entrada para a vida adulta e o mundo do emprego.52 Porm, quando falamos da autonomia em relao aos pais, do alongamento do perodo escolar e adiamento da entrada no mundo do emprego, estamos nos referindo a uma juventude privilegiada, cujas condies econmicas assim o permitiam. A maioria dos jovens punks da cidade de So Paulo, no perodo abordado, lutava para sobreviver, tendo muitas vezes que encurtar a permanncia nos bancos escolares em funo do trabalho. [...] historicamente, trabalho, para esses jovens, significava explorao, inutilidade, subservincia.53 Vejamos o que disse Falco54em palestra sobre o movimento punk proferida em dezembro de 1987:

Teve uma poca que era melhor ficar desempregado do que ganhar 3 ou 4 mil cruzados, trabalhando 8 horas por dia, para no ter compensao nenhuma, preferia ficar desempregado. [...] Outro problema que muitos punks abandonam a escola muito cedo, com 10 ou 12 anos tem que trabalhar, o pai e a me no conseguem dar uma alimentao adequada ou comprar caderno, ento ele para de estudar.55

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CARMO, Paulo Srgio do. Cultura da rebeldia: a juventude em questo. So Paulo: Senac, 2001. LEITE, Ligia Costa. A razo dos invencveis: meninos de rua o rompimento da ordem (1554-1994). Rio de Janeiro: Editora UFRJ/IPUB,1998. p.51. 54 Marcos Falco era estudante de histria na USP (dcada de 80) e integrante da banda punk Excomungados. 55 Palestra proferida (em 05/12/1987) no CCS (Centro de Cultura Social), uma casa de cultura, de orientao anarcosindicalista, fundada em 1933 por trabalhadores, e que, teve que interromper suas atividades no decorrer das inmeras ditaduras que assolaram o Brasil. O CCS foi refundado em Abril de 1985, sendo um espao de discusses libertrias. Essa palestra foi organizada por punks e militantes da CCS.

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Apesar do palestrante no citar a poca em que esses jovens brasileiros ficavam na condio de sair da escola56 por causa das dificuldades econmicas, tendo muitas vezes que se submeter a empregos degradantes e mal remunerados para ajudarem na economia domstica, ou melhor, para no passar fome, podemos supor que Falco est se referindo aos jovens pobres moradores das periferias da cidade de So Paulo (Zonas Norte, Sul, Leste e Oeste) na dcada de 1980, pois esse o perodo por ele abordado na palestra. Outra questo, levantada por Marcos Falco, o fato de muitos jovens preferirem o desemprego a ganhar salrios miserveis. Nesses casos, o jovem ficava sem emprego e sem escola. Muitos desses jovens aderiram ao movimento punk.

No sou nem eu que to te dizendo no, se voc for ler nos fanzines, na literatura, essa a resposta, n/?! O que te atraiu no movimento punk? A assim, quando a gente fala de excluso, a excluso diz respeito uma forma de vestir, a essa coisa do danar, aos espaos que voc freqenta, ao tipo de pessoa que voc , ao tipo de famlia que voc tem, a maioria dos punks com quem eu convivi tinha um alcolatra em casa, o nmero de famlias desestruturadas ou em vias de se desestruturar era muito grande, ento, no a famlia bonitinha, tranqila, legalzinha, no era , n/ meu? [...] Mas acho que pra ns a coisa pegava mais ainda por essa questo tanto do alcoolismo, da violncia, da excluso, de no conseguir se enquadra naquele esquema que tava ali, tanto que antes do movimento punk eu gostava de samba e gostava de soul, no

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Em 1980, a populao brasileira em idade escolar (de 7 a 14 anos) era de 22 968 515, da qual 7 540 451 no freqentavam escola (cerca de um tero). Na rea rural este ndice de excluso aumenta para metade (4 816 806 em um total de 9 229 511). (Dados do Censo de 1980, FIBGE).

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gostava de discoteca, porque eu me identificava mais com a coisa do negro do que com, p, chega ali e ficar rebolando no salo, naquela coisa assim muito, no tinha muito a ver comigo....57

O depoente Antonio Carlos atribui a atrao dos jovens para o movimento punk a fatores mltiplos: problemas familiares, alcoolismo dos pais, violncia, falta de espaos e opes de lazer e desiluses com as perspectivas de futuro, sem possibilidades de estudos e sem trabalho digno. Ele fala de um lugar, que define como o lugar de excluso, referindo-se ao bairro Parque So Rafael, local onde mora, caracterizado pela excluso social, cultural e econmica. Vejamos como foi o ingresso do punk Orlando Saltini58 no movimento:

Algumas pessoas comearam por influncia de outros jovens, da turma deles. No meu caso e, da maioria das pessoas que conheo, que esto na minha faixa de idade, 47 anos, que completo agora em novembro, foi um pouco diferente... Ento assim, eu vim de uma famlia problemtica, brigas quase todos os dias e tive muitos problemas de sade quando era pequeno, curtia muito rock, Black Sabbah, Led Zeppelin, Uriah Heep, Rolling Stones, Kiss, curtia tudo isso, mas, em paralelo, sempre gostei de coisas estranhas e sempre me senti um alienado nesse mundo idiota, ou seja, sempre gostei de Stooges, MC5 e outra bandas que no me recordo o nome.59

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Entrevista concedida ao autor, por Antonio Carlos, em julho de 2006. Doc. disponibilizado no CEDIC-PUC/SP. Orlando Saltini nos concedeu entrevista em 19/08/2006. Atualmente bancrio e curte o movimento punk desde a dcada de 70. 59 Entrevista concedida ao autor, por Orlando Saltini, em agosto de 2006. Em todas as entrevistas tentei preservar a estrutura da oralidade. Considero legtima a norma no culta. Doc. Disponibilizado no CEDIC/PUC-SP.

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A influncia de outros jovens, denotando certa identificao com o grupo, juntamente com problemas familiares e desiluso com a falta de perspectivas em relao ao mundo em que vivem foram fatores preponderantes para o ingresso dos jovens no movimento punk. Podemos dizer que o termo juventude se aplica a diferentes grupos, frutos da prpria diviso e excluso social, tornando-se inadequado traar tipologias. A idia de grupo ou grupismo, segundo Michel Maffesoli, tem o mrito de sublinhar a fora desse processo de identificao, que possibilita o devotamento graas ao qual se refora aquilo que comum a todos.60 A juventude punk, para o mesmo autor, fruto do aprofundamento das diferenas de classe, da represso no mbito poltico, cultural e social. O que era comum aos jovens punks estava relacionado sua prpria condio de excluso social, a falta de perspectivas de futuro e a negao das formas de dominao poltica, econmica e social vigentes. Uma jovem punk, chamada Creonice, enviou uma carta ao Ncleo de Conscincia Punk,61 defendendo que o punk destrua o sistema antes que ele o destrua, e segue dizendo que essa juventude punk que est em luta para a

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MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: O declnio do individualismo na Sociedade de massas. Traduo de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2002. 61 O Ncleo de Conscincia Punk era um espao de discusses e difuso do movimento punk. Localizado na Rua Nicanor Nogueira, n 252 Jd. Das Oliveiras Itaim Paulista SP. Punks de todo o Brasil trocavam cartas e informaes com o ncleo.

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conquista de um pas sem Estado, no qual as pessoas se auto-governam.62 A perspectiva do movimento punk para ela que os jovens excludos lutem em defesa de uma nova sociedade, nos ideais anarquistas, sem governo e sem Estado. Philippe Aris, em sua obra Histria Social da Criana e da Famlia63 reflete sobre a histria da juventude burguesa europia durante a Idade Mdia e Moderna, onde, segundo ele, as idades da vida no correspondiam apenas a etapas biolgicas, mas a funes sociais; sabemos que havia homens da lei muito jovens, mas, consoante a imagem popular, o estudo era uma ocupao dos velhos.64 No existiam, ento, espaos definidos, recortados, separando a famlia e o convvio em sociedade. Os jovens se preparavam para o mundo adulto, relacionando-se e trocando experincias com outras pessoas de seu convvio social. Ainda segundo Aris, no espao intermedirio entre famlia e sociedade, a escola ter papel preponderante. O advento e ascenso da burguesia e do mundo industrial, principalmente com o aprofundamento das diferenciaes entre classes sociais e a inaugurao da escola primria e posteriormente secundria, permitir ao jovem um espao de socializao de idias e vivncias com outros jovens, longe da vigilncia e dos cuidados da famlia, mas sob o olhar disciplinador dos mestres.62

Carta de Creonice (dcada de 80), moradora do bairro de So Domingos Butant/SP, para o Ncleo de Conscincia Punk. Documento disponvel no CEDIC/PUC-SP. 63 ARIS, Philippe. Histria Social da Criana e da Famlia. Traduo de Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara,1984. 64 Idem, ibidem. p. 40.

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A escola, ento, aparece como esse espao privilegiado, vigiado e controlado de intermediao entre a famlia e a vida social adulta. O ideal de famlia e sociedade estar na contra-mo das perspectivas dos jovens punks paulistanos, pois muitos estavam fora da escola e faziam parte de famlias desestruturadas. A partir do sculo XVIII, a chamada famlia nuclear burguesa, composta por pai, me e filhos contribuir para a criao de dois mundos antes inexistentes: de um lado os adultos, utilizando-se de mtodos autoritrios e repressivos para educar, havendo restries, interdies, excluses e castigos no universo dos jovens e, de outro, a juventude vista como incapaz, ineficiente, necessitando de correo e orientao. Essa nova famlia vem em oposio famlia anterior, mais ampliada, com um convvio educacional mais comunitrio, envolvendo parentes, vizinhos e outros jovens, possibilitando uma situao de autonomia do jovem e da criana no mundo adulto, estabelecendo-se limites fsicos e no poltico. De acordo com Aris, foi entre meados do sculo XVII e o incio do XX que moralistas, educadores e polticos comearam a se preocupar seriamente com o que pensava a juventude. Preocupao motivada pelo desenvolvimento do capitalismo industrial, havendo a necessidade de adaptar a juventude ao mundo do trabalho, controlando suas mentes e comportamentos para que pudessem servir ao sistema imposto pelas elites capitalistas emergentes.

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Para o mesmo autor, aps a Primeira Guerra Mundial:

A juventude apareceu como depositria de valores novos, capazes de reavivar uma sociedade velha e esclerosada. Havia-se experimentado um sentimento semelhante no perodo romntico, mas sem uma referncia to precisa a uma classe de idade. Sobretudo, esse sentimento romntico se limitava literatura e queles que a liam. Ao contrrio, a conscincia da juventude tornou-se um fenmeno geral e banal aps a guerra de 1914, em que os combatentes da frente de batalha se opuseram em massa s velhas geraes da retaguarda.65

Eisenstadt, em seu estudo - De gerao em gerao traa uma explicao terica e funcionalista sobre as condies de existncia da juventude como categoria social. Explicita um quadro dos tipos de sociedade em que esses fenmenos ocorrem, havendo uma delimitao de faixas etrias, etapas do ciclo vital (crescimento e envelhecimento) onde cada sociedade define tais etapas, podendo no haver grupos homogeneamente etrios. Eisenstadt aponta tambm critrios universalistas, diferentes daqueles que regem o mbito familiar, em que a passagem do universo infantil (famlia de orientao) para o adulto (famlia de procriao) necessita de um outro grupo de socializao. Os grupos etrios

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ARIS, Philippe. Histria social da criana e da famlia. Traduo de Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1984. P. 46 e 47.

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interagem com a famlia, com outros grupos institucionalizados e com sua estrutura interna, e suas funes variam de sociedade para sociedade.66 Nas sociedades modernas, a segmentao dos espaos, a elaborao de identidades e as relaes solidrias para a transio etria aparecem como funo atribuda escola, atrasando o amadurecimento e aprofundando a segregao do mundo adulto. Este fenmeno, porm, no universalizado, varia de sociedade para sociedade, pois de um lado temos grupos etrios, populaes que, em funo de uma condio scio-econmica, se dedicam exclusivamente aos estudos, enquanto que outros grupos sociais acabam por entrar na vida adulta muito cedo, tendo que trabalhar para contribuir no oramento e sobrevivncia do grupo familiar. O mundo industrial, o acesso escola, o crescimento das metrpoles, a desorganizao social e o desenvolvimento tecnolgico do sculo XX possibilitaram que o jovem se elevasse categoria social de juventude,67 ocupando praas, bares, sales, organizando-se em movimentos como os Beat, termo que significava no s beatitude, mas tambm a batida do jazz, o improviso, manifestando tambm a saturao frente a sociedade do ps-guerra dos Estados

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EISENSTADT, S. N. De gerao em gerao. Traduo de Srgio P. O. Pomerancblum. So Paulo: Perspectiva, 1968. 67 MORIN, Edgard. Cultura de Massas no Sculo XX: o esprito do tempo. Vol.I Neurose.2 Ed. Traduo de Maura Ribeiro Sardinha. Rio de Janeiro: Forense, 1969.

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Unidos. Foi um movimento juvenil de literatura e poesia que tambm influenciou o nome da banda de rock The Beatles, uma fuso das palavras beat e beetles (besouro). Ao rejeitarem os valores burgueses, a juventude beat dos Estados Unidos reinventava um jeito diferente de viver o mito do vagabundo,68 buscando viver emoes fortes atravs da literatura, do jazz, das estradas e caronas, das drogas, sexo e festas. A imprensa norte-americana, na tentativa de descaracterizar o movimento beat, cunhou o termo beatnik, fuso de beat mais nik, terminao da palavra Sputnik, 69 o primeiro satlite russo lanado no espao em 1957, fazendo aluso provvel simpatia desses jovens americanos por ideais revolucionrios de esquerda. Segundo Carmo,70 esse movimento recluso nos bares e estradas nos anos 50 ir influenciar as manifestaes de contracultura dos anos 60, como os grandes festivais de msica, as mobilizaes contra a guerra no Vietn e o pacifismo antinuclear. E ento, quando a crise juvenil se combina com a crise social, a juventude emerge como uma categoria social, produzindo uma revolta que questiona a ordem.71

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CARMO, 2001. Idem. Ibidem. 70 Idem. Ibidem.. 71 FORACCHI, Marialice Mencarini. A juventude na sociedade moderna. So Paulo. Pioneira/Edusp, 1972.

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Nos Estados Unidos (anos 20 e 30), perodo entre guerras, temos um dos primeiros e importantes trabalhos sociolgicos conduzidos pela chamada Escola de Chicago, pesquisando grupos de jovens delinqentes ou ligados criminalidade nos subrbios dos Estados Unidos. A questo da delinqncia, por um lado, e da revolta, por outro, ser a chave das problematizaes da juventude ao longo de todo o sculo XX, com possibilidades de descontinuidade e ruptura das regras sociais. Enquanto o movimento beat era protagonizado por jovens americanos de classe mdia, na Inglaterra dos anos 50 podemos citar os Teddy Boys, onde jovens pobres, atravs do rock e por meio de suas roupas, debochavam e criticavam a aristocracia inglesa. Foi tambm nos anos 50 que o rocknroll, unio de duas grias: rock (sacudir) e roll (rolar), ir se espalhar pelo mundo, expressando o descontentamento e a revolta juvenil. Na dcada de 50, a classe mdia brasileira, juntamente com sua juventude, vai transformando, aos poucos, atravs de seus hbitos e costumes, o cenrio urbano brasileiro: aparecem cadillacs, lambretas, jaquetas de couro e topete nos cabelos, imitando o roqueiro Elvis Presley. Isso foi possvel devido ao crescente contingente urbano que se desenvolvia no nosso pas e tambm ao desenvolvimento dos meios de comunicao (rdio, jornais e televiso), possibilitando a circulao de novos hbitos e valores.

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Essas transformaes no so parte inerente da sociedade, mas so produzidas historicamente. A adoo de novos padres de consumo e comportamento expressava os interesses da expanso capitalista daqueles anos. No caso dos veculos cadillac, lambreta tem relao com a indstria automobilstica que se instalava no pas. Sobre a influencia do rock no comportamento do jovem brasileiro, vejamos o depoimento do cantor e compositor Raul Seixas:

O que me pegou foi tudo, no s a msica. Foi todo o comportamento rock. Eu era o prprio rock, o teddy boy da esquina, eu e minha turma. Porque antes a garotada no era garotada, seguia o padro do adulto, aquela imitao do homenzinho, sem identidade.72

O rock despertou Raul Seixas para a sua condio de jovem, diferente dos adultos. Sobre a expresso que se refere ao jovem como imitao do homenzinho vale comentar, refletir e citar alguns trechos de Aris onde, discutindo os trajes de crianas e jovens medievais na Europa, ele diz que nada, no traje medieval, separava a criana do adulto. Agora, comentando o traje de um garoto de dez anos (sculo XVIII) Aris diz que j se veste como um homenzinho [...] na aparncia, pertence ao mundo dos adultos e, ainda no sculo XVIII, o autor comenta que as

72

RAUL SEIXAS, Raul Seixas por ele mesmo (So Paulo: Martin Claret, 1990), p. 14.

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crianas das famlias nobres ou burguesas no eram mais vestidas como adultos, elas tinham trajes reservados para sua idade, porm, as crianas do povo, os filhos dos camponeses e dos artesos [...] continuaram a usar o mesmo traje dos adultos.73 Vestir a criana de forma diferente do adulto significou que os adultos estavam construindo o lugar da criana na sociedade, e a roupa, juntamente com outros elementos, fazia parte desse processo. A partir da concepo de criana que estava sendo proposta, que os educadores e os pais criavam roupas adequadas nova situao da criana e do jovem. Isso ocorre a partir do sculo XVIII. Nesse sentido, para Aris, vestir a criana diferente tinha relao com represso e restrio. O traje e a indumentria usada pelos punks, ou seja, o seu visual, trabalhado em nossa pesquisa como um fator de diferenciao, expresso de sentimentos e de pertena, sendo expresses importantes na construo de referncias identitrias e protesto social. Os punks usavam bottons, jaquetas de couro com arrebites, coturno, cala rasgada, camiseta de pano tambm rasgada, cabelo todo colorido,74 espetado ou em forma de moicano. Quando no tinham gel para espetar o cabelo, utilizavam sabo de pedra. E as mulheres pintando o olho

73 74

ARIS, 1984. op. cit., p.70 e 81. Entrevista concedida ao autor por Orlando Saltini em 19/08/2006.

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assim, formando aquelas coisas saindo do olho aqui, umas figuras saindo do olho entendeu? Aquelas meias de odalisca, [...] isso tudo para chocar o povo.75 Muitos, porm, adotaram esse modo de se vestir como uma maneira de vida, eu no creio que o cara queria fazer isso pra chocar os outros, eu acho que as pessoas se sentiam e ainda se sentem bem assim.76 No entanto, se voc pegar toda a literatura que existe, todos os depoimentos que existam, pra chocar,77 demonstrar, atravs da indumentria, das nossas roupas, das nossas palavras, do nosso som, [...] o quanto doente estava a sociedade.78 As referncias identitrias se constroem tambm na participao, nas experincias do social e do poltico, na formulao e criao de suas realidades, seus smbolos, na constituio do punk enquanto movimento que se constri nas prticas cotidianas.79 O processo de desenvolvimento das comunicaes permitir a troca de informaes entre os acontecimentos e movimentos juvenis dos principais centros mundiais. Os jovens que tinham acesso s informaes veiculadas pelo rdio, jornais e, posteriormente, pela televiso, sero vistos pelas indstrias do entretenimento, da moda e automobilstica como um grande potencial de consumo

75 76

Idem. Ibidem. Idem ibidem. 77 Entrevista concedida ao autor por Antonio Carlos em 20/07/2006. 78 Depoimento de Ariel da banda punk Restos de Nada Vdeo documentrio Botinadas: a origem do punk no Brasil de Gasto Moreira, 2006. 79 VELHO, G. Subjetividade e sociedade: uma experincia de gerao. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

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de mercadorias. A grande imprensa ser veculo de imposio de modas e comportamentos no processo de desenvolvimento consumista capitalista. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a desiluso com a grande quantidade de jovens mortos nas batalhas, parcela da juventude dos pases capitalistas ocidentais, intensifica as mobilizaes contra as decises polticas e militares que so tomadas nos bastidores do poder institucional e que interferem nos processos sociais e culturais. Esses jovens expressam novos desejos, anseios e esperanas por meio da produo de sua prpria cultura ou a chamada contracultura.80 Em meados dos anos 50, percebe-se a emergncia de uma cultura jovem, dentro e fora dos Estados Unidos, ligada ao lazer e ao tempo livre; esta pode ser vista como expresso da expanso capitalista,81 onde os meios de comunicao tm um papel preponderante na difuso e conquista de novos mercados

80

O termo contracultura foi inventado pela imprensa norte-americana, nos anos 60, para designar um conjunto de manifestaes culturais novas que floresceram, no s nos Estados Unidos, como em vrios outros pases, especialmente na Europa e, embora com menor intensidade e repercusso, na Amrica Latina. Na verdade, um termo adequado porque uma das caractersticas bsicas do fenmeno o fato de se opor, de diferentes maneiras, cultura vigente e oficializada pelas principais instituies das sociedades do ocidente. Contracultura a cultura marginal, independente do reconhecimento oficial. Por Lus Carlos Maciel. Revista Careta, ano LIII, N 2736 de 20/07/1981, p.19. in: PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que Contracultura. So Paulo. Editora Brasiliense, 1983. 81 PEDERIVA, Ana Brbara Aparecida. Jovem Guarda: Cronistas sentimentais da juventude. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 2000. p. 17.

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consumidores. Essa cultura jovem abarcou padres de comportamento, produzindo conflitos com normas e instituies.82 A compreenso do significado de ser jovem para os punks, no entanto, no se configura como um embate contra os mais velhos e os adultos, mas contra o que esses adultos significavam, como se comportavam, se vestiam e se relacionavam, manifestando autoritariamente que caminhos deveriam seguir. Marcos Falco, integrante da banda punk Excomungados na dcada de 1980, diz que:Sobre a idade, no h limite, tem punk com 14 anos, como tem com 30 ou 32, uma questo da pessoa terdentro de si essa revolta e estar identificado com a causa que gira em torno da msica e do comportamento. Quanto a esses que dizem j fui punk e depois parei de ser, posso dizer que no esteve imbudo no movimento; punk no como jogador de futebol que joga durante 15 anos e para, punk no isso, (...). Antes de 77, punk era prostituta, trombadinhas, cheirador de cola, mendigos, aleijados; a partir de 77, esse pessoal que estava sendo marginalizado e querendo mudar a situao se uniu em torno desse movimento que se espalhou pelo mundo. (...) Um punk de 27 anos e outro de 14 conversam a mesma coisa sobre o imperialismo, desemprego, misria, fome, violncia, guerra, a garotada vai trocando essas idias e levando isso pra frente.83

Nesse depoimento, aparece claramente a idia de mudana norteando a prtica cultural dos jovens punks, pois eles estavam sofrendo um processo de excluso social, conversavam sobre diversos assuntos de ordem econmica, poltica82

Idem. Ibidem. p. 17.

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e social imperialismo, desemprego, misria, fome, violncia, guerra - e, atravs de suas prprias prticas, iam trocando essas idias e levando isso pra frente, isto , a idia de mudana da sociedade. Nesse sentido, o ser punk se configura como um movimento de contracultura, na medida em que adota como prtica a anlise e a crtica da cultura dominante de inspirao capitalista, que produzia a excluso social. O ser jovem para o punk no uma questo etria, uma atitude de protesto, de prticas sociais prprias e de repdio contra as instituies polticas, os governos e um modo de vida fabricado e excludente. A causa que propiciava a unio e a identificao de jovens na cidade paulistana era a idia de transformao da sociedade na perspectiva da superao das desigualdades sociais e culturais. Sobre essa temtica da contracultura juvenil vejamos o que diz Terry Eagleton:

...por volta de 1965 a 1980[...] que a teoria cultural apareceu no nico perodo, desde a SegundaGuerra Mundial, no qual a extrema esquerda poltica desfrutou breve proeminncia, antes de afundar at quase desaparecer de vista. As novas idias culturais tinham suas razes profundamente fincadas na era dos direitos civis e das rebelies estudantis, das frentes de libertao nacional, das campanhas antiguerra e antinuclear, do surgimento do movimento das mulheres e do apogeu da liberao cultural. Foi uma poca na qual a sociedade de consumo estava sendo lanada com fanfarras; na qual a mdia, a cultura popular, as

83

Marcos Falco, em palestra no Centro de Cultura Social (CCS) em 05/12/1987.

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subculturas (contraculturas) e o culto da juventude surgiram pela primeira vez como foras sociais a serem levadas em conta.84

A categoria juventude constituda historicamente no bojo das transformaes polticas, econmicas e sociais ocorridas entre os anos de 1965 a 1980, firma-se como uma fora social que se opunha aos valores da sociedade de consumo. No entanto, para ser punk, no h limite, so jovens de 14 a 38 anos, uma questo da pessoa ter dentro de si essa revolta e estar identificado com a causa,85 que a transformao da sociedade com a superao das desigualdades econmicas, sociais, polticas e culturais. Concebendo a cultura enquanto espao onde a luta de classes se expressa. As desiluses com a poltica institucionalizada e autoritria, a guerra fria,86 a morte de Che Guevara,87 a guerra do Vietn88 e, no Brasil, a ditadura militar (ps 1964) contribuir para que grande parte da juventude dos centros urbanos capitalistas, se organize em movimentos juvenis. Na dcada de 1960, em quase todo o mundo capitalista, temos a ecloso dos movimentos estudantis, que se84 85

EAGLETON, 2005. Op. cit., p. 44. Fala de Falco (Banda Excomungados). Transcrio de palestra proferida em dez. de 1987 no Centro de Cultura Social (CCS-organizao anarquista). 86 A guerra fria foi caracterizada, aps a segunda guerra mundial, pela disputa entre o bloco socialista representado pela Ex-Unio das Repblicas Socialistas Soviticas e, por outro lado, o bloco capitalista liderado pelos Estados Unidos da Amrica, pela hegemonia poltica, econmica, social, cultural e ideolgica em relao aos outros pases. 87 Ernesto Che Guevara foi um dos lderes da revoluo cubana de 1959. Che Guevara ser exemplo de luta para jovens revolucionrios, principalmente aps a sua morte (1967) em batalha no territrio boliviano.

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destacaram contestando a poltica, a sociedade, o sistema escolar e universitrio, colocando em questo a cultura em seus aspectos sexuais, morais, estticos e de costumes. Na Frana e na Itlia a agitao estudantil ajudou [...] os maiores protestos [...] da classe trabalhadora do perodo ps-guerra.89 Os jovens militantes do movimento estudantil francs no faziam questo de se integrar de imediato na vida adulta e profissional. Antes, representavam a contestao radical ao princpio de seleo competitiva e de hierarquia do poder. Contestavam uma educao voltada para a formao de quadros a ser ajustado mquina social e empresarial.90 Em 1968, o Brasil tinha pouco mais de 270 mil universitrios, correspondente a apenas 0,3% da populao,91 jovens oriundos da classe mdia urbana. Boa parte desses universitrios envolvidos com o movimento estudantil tornaram-se porta-vozes do descontentamento contra a ditadura militar.92 No entanto, com a decretao do AI-5, o regime brasileiro intensificou a represso e os estudantes foram varridos das ruas. Fechadas todas as vias de participao

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Guerra travada pelos Estados Unidos da Amrica e o Vietn no bojo da guerra fria. Apesar de ter se libertado do domnio colonial francs, o Vietn era um pas dividido entre Vietn do Norte (comunista) e Vietn do Sul (capitalista). Os EUA enviam suas tropas para o Vietn em 1965 e a guerra prossegue at 1973. 89 EAGLETON, 2005. Op. cit., p. 46 90 CARMO, 2002. 91 Idem. Ibidem. 92 Idem. Ibidem.

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poltica, muitos aderiram s organizaes de guerrilha e viveram na clandestinidade.93 No Brasil da dcada de 60, temos tambm uma intensa mobilizao cultural contra a influncia estrangeira, principalmente na msica brasileira. Os estudantes se mobilizam atravs do Centro Popular de Cultura (CPC)94 da Unio Nacional dos Estudantes (UNE); o objetivo desse grupo era conscientizar os trabalhadores, por meio da msica, do teatro, do cinema e da literatura, sobre a necessidade da conscincia revolucionria. As atuaes do CPC foram prejudicadas pela ditadura militar instaurada no Brasil em 1964, pois a partir da, a UNE comea a atuar na clandestinidade, havendo uma forte represso aos movimentos estudantis. J na segunda metade da dcada de 60, o Movimento Tropicalista95 utilizava guitarras em suas msicas, tendo a inteno de romper com as divises simples da poca entre arte engajada versus arte alienada ou cultura nacional versus internacional. Sobre essas discusses, vejamos a opinio de Jos Ramos Tinhoro, membro da velha guarda comunista e pesquisador da msica brasileira:

93 94

Idem. Ibidem. Criado em 1961, no Rio de Janeiro, o CPC era ligado UNE, buscavam definir estratgias para a construo de uma cultura nacional, popular e democrtica. Defendiam a opo pela arte revolucionria, definida como instrumento a servio da revoluo social. Encenavam peas em portas de fbricas, favelas e sindicatos; publicavam cadernos de poesias vendidos a preos populares e iniciavam a realizao pioneira de filmes autofinanciados. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque.Cultura e participao nos anos 60. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1982. 95 O Tropicalismo foi um movimento de renovao da cano popular (1967/68) propondo uma reviso do nacionalismo e da idealizao populista da pureza popular, em favor da idia de uma cultura brasileira moderna, capaz de elaborar criticamente a diversidade das informaes inclusive as de origem internacional atualizadas pela nova dinmica da dependncia. In: HOLLANDA, 1982. p. 52.

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Os jovens realmente cultos gostavam de bossa nova, jazz e tal. A o Caetano entra, correndo por fora, e atrai esses jovens para a guitarra. Portanto, ele estava dentro do conceito econmico dos militares de 64 [...] proposta desnacionalizante da economia [...] eu cito o papel hediondo do Roberto Carlos [...] aquele rapazinho que todas as mes de famlias militares gostariam que fosse o namorado da filha. Por qu? Enquanto havia outros rapazes revoltados, que andavam fazendo msicas pregando a revoluo social, indo explodir bombas e seqestrar embaixadores, ele, com aquele cabelo to bonito, cantava coisas de consumo.96

Nessa entrevista, concedida Folha de So Paulo, Tinhoro cita Geraldo Vandr como o autor da nica msica de protesto no Brasil, pois sua msica Pra no dizer que no falei das flores foi proibida e msica de protesto que passa na censura no msica de protesto,97 segundo sua opinio. Em outra perspectiva, ao discutir o tropicalismo, Heloisa Buarque de Holanda coloca este movimento como um catalisador das inquietaes e impasses da situao ps-64, culminando com um movimento de renovao da cano popular, sendo que, praticamente a totalidade da produo dita revolucionria que se engendrou no Brasil nesse perodo vincula-se emergncia da classe mdia.

Sei que a arte que eu fao agora no pode pertencer verdadeiramente ao povo. Sei tambm que a arte no salva nada nem ningum, mas que uma de nossas faces, diria em 1966, Caetano Veloso. Uma concepo

96 97

Entrevista a Pedro Alexandre Sanches, Folha de So Paulo, Ilustrada, 14 de fevereiro de 1998, p.4. Idem, Ibidem. p. 4.

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bastante diversa daquelas que na fase Goulart povoavam manifestos e discusses, quando se pretendia estar elaborando um projeto cultural capaz de decidir um processo de transformao da estrutura social. Essa distncia que os tropicalistas iro experimentar em relao ao projeto revolucionrio pr-64 estar implicada com a reviso do nacionalismo e da idealizao populista da pureza popular, em favor da idia de uma cultura brasileira moderna, capaz de elaborar criticamente a diversidade das informaes inclusive as de origem internacional atualizadas pela nova dinmica da dependncia.98

Diferentemente de Tinhoro, Heloisa Buarque de Holanda concebe os movimentos culturais juvenis da dcada de 60, inclusive o movimento hippie, como conseqncias da diversidade de conflitos e contradies presentes na sociedade moderna, soprava um vento libertrio, um desejo de responsabilidade existencial contra um sistema de vida fechado e controlado por elites, onde o destino surgia como imposio exterior.99 Aps 1968, as sugestes da revoluo individual que estiveram presentes no tropicalismo, encontram um solo frtil. A descrena em relao s alternativas do sistema e poltica das esquerdas d lugar ao florescimento, em reas da juventude, de uma postura contracultural.100 Salientamos que o movimento punk concebe a msica enquanto um instrumento de divulgao de suas idias, de resistncia e luta contra o sistema, representado pelas instituies polticas, econmicas, sociais e culturais do capitalismo que imprimem desigualdades e excluso social, ou seja, o Estado, suas98

HOLANDA, Heloisa Buarque. Cultura e participao nos anos 60. So Paulo: Editora Brasiliense, 1982. p.52.

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instituies e as representaes de poder impostas pelas elites paulistanas. O pessoal costuma dizer que enquanto tiver uma banda punk tocando em garagem, vai existir o movimento punk, pois este grupo[...]no foi assimilado, est ali discutindo, contestando, no quer fazer parte desse jogo podre, diz Antonio Carlos, referindo-se a uma das prticas de contestao punk, em palestra proferida no CCS sobre o movimento101. As letras das msicas falam do sistema que quer acabar com a gente; de situaes cotidianas: Se algum me encontrar por a a vadiar e vier me assaltar, no vai ter o que roubar; de poltica: Dou meu grito a favor dos guerrilheiros de El Salvador.102 As bandas punks, alm de serem ncleos organizadores de eventos musicais que permitiam o encontro, a troca de idias e experincia entre os punks, tambm eram disseminadoras dos ideais do movimento. Ainda refletindo sobre os movimentos juvenis do Brasil na dcada de 60, vejamos a opinio de Renato Russo (1960-1996), integrante da extinta banda de rock Legio Urbana, que se destacou no cenrio musical principalmente na dcada de 80. Renato Russo tambm iniciou sua carreira musical com uma banda punk chamada Aborto Eltrico:

99

Idem. Ibidem. P. 70. Idem. Ibidem. P. 95. 101 Palestra proferida em 1987 no Centro de Cultura Social (CCS). 102 Revista Viso caderno comportamento 24/01/1983.100

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Se voc prestar bastante ateno no discurso punk, voc percebe que eles falavam a mesma coisa que o pessoal dos 60. [...] Isso eu sei por que o Legio Urbana usou o mesmo discurso punk no incio. Uma coisa totalmente niilista, destrutiva e anarquista, mas que no fundo estava falando que queria paz e harmonia no mundo. Aconteceu que, na nossa cabea, as pessoas dos 60 tinham falado disso da maneira mais claro possvel, atravs de flores e de amor. No deu certo, ento vamos falar de outra maneira, mais dura.103

Para Renato Russo, o movimento hippie e o movimento punk possuem afinidades discursivas, no sentido de rompimento com as formas de explorao e injustias sociais do mundo capitalista. No entanto, suas aes e prticas diferenciavam-se. Enquanto os hippies pregavam a paz e o amor, os punks defendiam a destruio do sistema capitalista e a implantao dos ideais anarquistas. Os hippies pecaram por isso, eram violentados e respondiam paz e amor.104 Segundo o punk Carlos, o movimento hippie se desdobrou em um movimento musical, negando a sociedade, porm, no objetivando transform-la de fato105, enquanto que o punk o nico movimento de contracultura que pregou a necessidade da destruio da sociedade capitalista e a criao de uma nova ordem social em seu lugar.106 A dificuldade do movimento punk em colocar em prtica esse novo modelo de sociedade com alicerces no anarquismo ser o103 104

Renato Russo, Conversaes com Renato Russo (Campo Grande: Revista Letra Livre, 1996), p.78. Entrevista cedida por Hugo Von Drago ao fanzine Lixo Cultural (em junho de 1983).

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gerador de conflitos, contradies e tenses no decorrer da histria do movimento, pois havia vrias tendncias no interior do punk, aqueles que gostavam somente da msica, outros da indumentria e do comportamento, e a ala que lutava para manter o vis contestador e anrquico, objetivando transformaes reais na sociedade. Paulo Sergio do Carmo107 sugere que o punk a ressaca hippie, quer dizer, uma forma mais agressiva, rude e escrachada de dizer no sociedade vigente, dirigida e governada por uma Ditadura Militar desde o golpe de 1964 at as eleies indiretas de 1985. Segundo Rafael Lopes de Sousa:

Em meados dos anos 70 o jovem subitamente se v rfo de idias e perde poder de ao. Seusdolos, os que no morreram de overdose, estavam enclausurados em castelos na Sua, e no cantavam mais a sua realidade cotidiana; quando tudo parecia estar acabado, ecoou na Inglaterra um novo grito de rebeldia: nascia os punks. Os punks so, pois, filhos da desiluso expressa por John Lennon (O sonho acabou) no fim dos anos 60 e da falta de perspectiva que a juventude vivia em meados dos anos 70. A nova luz de anlise sobre o fenmeno juvenil brasileiro aparece em incio dos anos 80, quando os pesquisadores preocupados com o crescente contingente de excludos sociais, percebem nestes uma proposta inteiramente indita de enfrentar as adversidades da vida cotidiana [...] o incio dos anos 80

Carta remetida de Carlos (So Mateus) para o Ncleo de Conscincia Punk, dezembro de 87. Doc. disponvel no CEDIC-PUC/SP. 106 Ibidem. 107 CARMO, Paulo Srgio do. Cultura da Rebeldia: a juventude em questo. So Paulo: Senac, 2001.

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transformam-se, assim, no marco da mudana de fulcro nas anlises sobre o comportamento social da juventude brasileira.108

Esta posio de Rafael Lopes de Souza sugere uma reflexo sobre a importncia dos estudos culturais no tocante valorizao das temticas juvenis, compreendendo-as enquanto manifestaes polticas e sociais, reconhecendo o jovem como uma categoria social que vivencia e constri suas experincias historicamente em contato com o todo social. Ainda analisando a citao de Sousa, ele se refere de forma vaga, nova luz de anlise sobre o fenmeno juvenil brasileiro na dcada de 1980, fala sobre a preocupao dos pesquisadores com o crescente contingente de excludos. Mais uma vez, os estudos culturais, no caso da histria, tm papel preponderante nas anlises dos movimentos juvenis, pois como diz Terry Eagleton: os estudos culturais fizeram um trabalho vital, ao resgatar o que a cultura ortodoxa empurrou para as margens.109 Na dcada de 1970, na Inglaterra, os jovens pobres, filhos de operrios ingleses dos arredores de Londres estavam revoltados por ficarem de fora da participao econmica do pas, sem opo, j que o rock se transformou numa

SOUSA, Rafael Lopes de. Punk: cultura e protesto, as mutaes ideolgicas de uma comunidade juvenil subversiva. So Paulo: Edies Pulsar, 2002. 109 EAGLETON, 2005. p. 28.

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coisa [...] multinacional e milionria,110 grandes bandas e astros do rock comeam a surgir. Paralelamente, no interior dos subrbios da Inglaterra,111 surgiram bandas que repetem o que faziam os primeiros roqueiros da dcada de 60, [...] a moada conseguia uma guitarra, um baixo, duas cordas em cada era suficiente, uma bateria e um microfone, cada um comea a fazer sua forma de tocar o instrumento, da surgindo um som super agressivo.112 Era a prtica Do it Yourself (faa voc mesmo), voc pode montar sua banda, fazer o seu som, compor suas letras e suas prprias msicas. Essa garotada, filhos de operrios, para quem no tem emprego, comea a ser mal vista [...] comea a provocar uma reao por parte da burguesia que vai utilizar justamente a palavra punk para design-los como os imprestveis que invadem a cidade, os quebrados, os vagabundos [...] filhos dos carvoeiros, que esto enfeando Londres.113 Repetindo ainda a citao anterior de Rafael Lopes de Sousa: ecoou na Inglaterra um novo grito de rebeldia: nasciam os punks. Os grupos punks chamavam ateno pela agressividade real e simblica do seu comportamento: o punk violento no visual, porque um movimento de contestao, e contesta at visualmente, [...] um bando de caras de preto pode

110 111

Palestra proferida por Marcos Falco (Banda Excomungados) no Centro de Cultura Social (CCS) em 1987. Idem. Ibidem. 112 Idem. Ibidem. 113 Idem. Ibidem.

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chocar o policial, ento ele j entra dando porrada, quem comeou no foi o punk que estava na dele.114 Usamos aquele visual sujo e agressivo pra mostrar o quanto fome e a misria violenta.115 A violncia era produzida e reproduzida pela excluso social. O visual, a indumentria dos punks era uma forma de protesto contra as injustias sociais e motivo de agresses por parte da polcia. Os punks tambm chamavam ateno pela negatividade de suas representaes do presente e do futuro:

Olho pra um lado s vejo misria, mendigos, moleques te trombando, outros correndo da polcia. Olho pro outro lado vejo pio ganhando merda de salrio, favelas, vida-merda, polticos roubando. Olho pra traz s vejo milhes de coitados mortos pela fome, pela polcia, pelo sistema. Olho pra frente e d de cara com o futuro do Brasil: + misria, + fome, + desemprego, + ladres de palet em Braslia, + povo otrio. Vmo cair na real! Vmo nos juntar e mostrar pra esses polticos filhos-da-puta o caminho do cemitrio. Revoluo anarquista! A nica capaz de destruir esses parasitas do poder, a nica capaz de libertar nossas mentes dessa alienao miservel. Mostremos pra eles que somos pobres mais no otrios. Acorda proletrio! Foda-se capitalismo! O anarquismo o futuro!.116

Para os editores do Movimento Punk/Alternativo (MPA), sistema o conjunto de instituies polticas, militares, sociais, econmicas e culturais do capitalismo burgus, juntamente com suas regras e normas. Segundo o MPA, as114 115

Entrevista concedida por Antnio Carlos para o autor em 20/07/2006. Manifesto M.P.A. (Movimento Punk/Alternativo). N 1. Nov. 1989. Sem autoria. 116 Idem. Ibidem. (Tanto neste documento, como em outros pesquisados procurei manter a escrita grafada).

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representaes do presente, do passado e do futuro so pessimistas e negativas, pois so produzidas e reproduzidas pelo sistema capitalista. Acreditam que todas as instituies so ruins e que o povo vtima delas. Defendem que a nica sada seria a unio dos proletrios para a destruio do capitalismo e a consolidao da revoluo anarquista. As questes colocadas neste manifesto so imagens, expresses da vivncia e experincia de punks no ano de 1989. As temticas polticas e sociais emergem em forma de protesto e apontam o anarquismo enquanto arma para a luta libertria. A represso imposta pela ditadura militar sobre os movimentos sociais, polticos, estudantis e culturais ps 1964, caracterizados por um contexto histrico marcado por anos de perseguies a qualquer tipo de expresso crtica ou organizaes que questionassem a sociedade vigente, sero fatores preponderantes para a revolta e o protesto punk. A gente vivia numa ditadura pura, a gente no podia se agrupar em 3 ou 4 pessoas que a gente era parado pela polcia117 e mesmo assim, em plena ditadura militar ns rompemos com tudo, rompemos com uma esttica visual, rompemos com uma esttica musical, rompemos com uma esttica comportamental.118

Depoimento de Tina (Punk SP) Vdeo documentrio Botinadas: a origem do punk no Brasil De Gasto Moreira, 2006. 118 Depoimento de Zorro da banda punk M 19 Vdeo documentrio Botinadas: a origem do punk no Brasil De Gasto Moreira, 2006.

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Interessa-nos, portanto, discutir, refletir e aprofundar os estudos sobre o anarq