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HVMANITAS- Vol. L (1998) MARCIAL E O AMOR DA LIBERDADE JosÉ Luis LoPES BRANDÃO Universidade de Coimbra Non est, crede mihi, sapientis dicere 'uiuam ': sera nimis uita est crastina: uiue hodie. (MARCIAL, 1.15.11-12.) Na obra do poeta de Roma e de Bílbilis encontramos frequentemente expressa a ânsia de libertação do Homem do jugo que o domina. O poeta visa, em última análise, a felicidade. Este grito pela liberdade é uma constante em todos os tempos. Hoje mais do que nunca o homem se vê prisioneiro das influências nefastas da vida urbana, de uma vida social e profissional demasiado absorvente que provoca sofrimento e destrói as famílias, de uma economia que reduz o indivíduo a consumidor I contribuinte e o enreda até ao desespero. Cabe neste ponto uma referência às filosofias que, no século de Marcial, propunham um caminho de libertação e felicidade: o cinismo, o estoicismo e o epicurismo. O poeta demonstra desprezo pelos cínicos, bem como por algumas doutrinas estóicas que considera hipócritas. Em relação ao epicurismo o poeta não ridiculariza, antes adopta certos princípios desta filosofia no sentido de uma uita beatior. 1 De resto, o poeta fazia eco à política imperial: por oposição ao regime, os cínicos e os estóicos foram objecto de perseguição durante a dinastia dos Flávios, especialmente sob Domiciano.2 *Aqui deixo expresso os meus sinceros agradecimentos ao Prof. Doutor Walter de Medeiros pela sua amabilidade em rever o texto e pelas oportunas sugestões. Incorrecções que porventura subsistam são da minha inteira responsabilidade. 1 Cf. T. ADAMIK, "Martial and the uita beatior": AUB 3 (1975) 55-64. 2 Cf. DCass. 66, 67.12-13; Suet. Vesp. 15, Dom. 10.

MARCIAL E O AMOR DA LIBERDADE - leandro marshall · 152 JOSÉ LUÍS LOPES BRANDÃO Um cínico é ridicularizado por Marcial, como já nos epigramas de Lucílio,3 através da associação

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HVMANITAS- Vol. L (1998)

MARCIAL E O AMOR DA LIBERDADE

JosÉ Luis LoPES BRANDÃO Universidade de Coimbra

Non est, crede mihi, sapientis dicere 'uiuam ': sera nimis uita est crastina: uiue hodie.

(MARCIAL, 1.15.11-12.)

Na obra do poeta de Roma e de Bílbilis encontramos frequentemente

expressa a ânsia de libertação do Homem do jugo que o domina. O poeta visa,

em última análise, a felicidade. Este grito pela liberdade é uma constante em

todos os tempos. Hoje mais do que nunca o homem se vê prisioneiro das

influências nefastas da vida urbana, de uma vida social e profissional demasiado

absorvente que provoca sofrimento e destrói as famílias, de uma economia que

reduz o indivíduo a consumidor I contribuinte e o enreda até ao desespero.

Cabe neste ponto uma referência às filosofias que, no século de Marcial,

propunham um caminho de libertação e felicidade: o cinismo, o estoicismo e o

epicurismo. O poeta demonstra desprezo pelos cínicos, bem como por algumas

doutrinas estóicas que considera hipócritas. Em relação ao epicurismo o poeta

não ridiculariza, antes adopta certos princípios desta filosofia no sentido de

uma uita beatior. 1 De resto, o poeta fazia eco à política imperial: por oposição

ao regime, os cínicos e os estóicos foram objecto de perseguição durante a

dinastia dos Flávios, especialmente sob Domiciano.2

*Aqui deixo expresso os meus sinceros agradecimentos ao Prof. Doutor Walter de Medeiros pela sua amabilidade em rever o texto e pelas oportunas sugestões. Incorrecções que porventura subsistam são da minha inteira responsabilidade.

1 Cf. T. ADAMIK, "Martial and the uita beatior": AUB 3 (1975) 55-64. 2 Cf. DCass. 66, 67.12-13; Suet. Vesp. 15, Dom. 10.

152 JOSÉ LUÍS LOPES BRANDÃO

Um cínico é ridicularizado por Marcial, como já nos epigramas de

Lucílio,3 através da associação do seu aspecto à origem do nome:

Hunc, quem saepe uides intra penetra/ia nostrae

Paliados et templi limina, Cosme, noui

cum baculo peraque senem, cui cana putrisque

stat coma et in pectus sordida barba cadit

cerea quem nudi tegit uxor abolia grabatti,

cui dat latratos obuia turba cibos,

esse putas Cynicum deceptus imagine fi c ta:

non est hic Cynicus, Cosme: quid ergo? Canis.4

Este que frequente vês no recinto da nossa I Palas e à entrada do novo templo,

Cosmo, I um velho com um cajado e um alforge, que tem branca e pútrida I a cabeleira

e sobre o peito lhe cai a barba imunda, I a quem aconchega, como esposa, a manta

sebenta do catre nu, I aos latidos de quem a multidão responde com alimentos. I Cuidas

que é um cínico, enganado pela falsa aparência: I não é este um cínico, Cosmo: então o

que é? Um cão.

Com efeito, Marcial não consegue contemporizar com esta forma de

protesto, em relação à sociedade, materializada em velhos de aspecto sebento.

Por isso os ridiculariza e os associa às situações mais caricatas: usa-os como

objecto de comparação do sexo de uma velha decrépita e pretensiosaS e como

pacientes ideais, juntamente com os estóicos, para o terrível barbeiro Antíoco. 6

Para Marcial, portanto, a solução não passa por esta filosofia de vida.

Em relação aos estóicos, como acabamos de ver, Marcial, em certa

medida, associa-os, na sua troça, aos cínicos. Há sobretudo um aspecto que o

poeta contesta: o desprezo da morte e o suícidio estóico, tão louvado por Séneca. 7

Para Marcial há maior mérito em enfrentar a vida no meio da adversidade:

Quod nimium mm·tem, Chaeremon Stoice, laudas,

uis animum mirer suspiciamque tuum?

Hanc tibi uirtutem fracta facit urceus ansa,

3 Cf. A. P. 11.153. 4 Mart. 4. 53; cf. 1.92.1 0: et bibis inmundam cum canis aquam. Doravante os epigramas

de Marcial serão citados apenas pelo número. 5 3. 93.13 : (Cum) senemque Cynicum uincat osseus cunnus ... 6 11.84. 7: Tondeat hic inopes Cynicos et Stoica menta; cf. 7.64.8. 7 Sén. Ad Luci!. 69.6; 70.6; 70.25. Sobre os princípios da filosofia estóica, cf. Jean BRUN,

Le stoiCisme, trad. port. de João Amado, Lisboa, Ed. 70, 1986, 75-91.

MARCIAL E O AMOR DA LIBERDADE

et tristis nullo qui tepet igne focus

et teges et cimex et nudi sponda grabati,

et breuis atque eadem nocte dieque toga.

Rebus in angustis facile est contemnere uitam:

fortiter i!! e facit qui miser esse potest. 8

153

Lá porque louvas com veemência a morte, estóico Quéremon, I queres que ad­

mire e apoie a tua coragem? Esta virtude ta dá um jarro de asa partida I e uma triste

lareira que nenhum fogo aquece I e uma esteira e os percevejos e a armação do catre nu

I e a mesma parca toga, quer de dia quer de noite ... / Na adversidade, fácil é menosprezar

a vida: I com maior coragem procede quem sabe suportar a infelicidade.

Pelo contrário louva o amigo Deciano, que embora siga os princípios

estóicos, coloca a vida acima de uma morte insensata:

Quod magni Thraseae consummatique Catonis

dogmata sic sequeris, saluos ut esse uelis,

pectore nec nudo strictos incurris in ensis,

quod fecisse uelim te, Deciane, facis.

No lo uirum facili redemit qui sanguine famam,

hunc uolo, laudari qui sine morte potest. 9

Pois que do grande Trásea e do perfeito Catão I segues as doutrinas, mas de jeito

tal que continues vivo, I e não te lanças de peito aberto sobre espadas nuas, I fazes,

Deciano, o que eu desejaria que fizesses. I Não considero herói quem com sangue fácil

comprou a sua glória, I mas quem pode ser louvado sem morrer.

De resto, o amigo Deciano incarna o protótipo do que Marcial considera

um sábio coerente: culto, leal, defensor da rectidão, respeitador dos deuses,

magnânimo:

Si quis erit raros inter numerandos amicos,

quales prisca fides famaque nouit anus,

si quis Cecropiae madidus Latiaeque Mineruae

artibus et uera simplicitate bonus,

siquis erit recti custos, mirator honesti

et nihil arcano qui roget ore deos,

8 11.56. 9 1.8.

154 JOSÉ LUÍS LOPES BRANDÃO

si quis erit magnae subnixus robore mentis:

dispeream, si non hic Decianus erit. lO

Se alguém houver que deva ser contado entre os raros amigos, I como os que o

testemunho ancestral e a velha fama conhece; I se alguém houver dotado da Minerva

cecrópia e da latina I nas artes, e bom homem com verdadeira lealdade; I se alguém

houver paladino da rectidão, admirador da virtude, I que nada peça aos deuses com

secreta voz; I se alguém houver apoiado na solidez de um grande espírito, I raios me

partam, se este não for Deciano.

Para o poeta não contam as aparências e tende a considerar os estóicos,

demasiado austeros, suspeitos de hipocrisia. Há um limite dentro do razoável

para a virtude e para uma vida austera. O que vai além disso não é próprio do

sábio e pode ser sintoma de desequilíbrio. Confronta o próprio amigo Deciano

com esta evidência:

Aspicis incomptis illum, Deciane, capillis,

cuius et ipse times triste supercilium,

qui loquitur Curios adsertoresque Camillos?

nolito fronti credere: nupsit heri. 11

Vês, Deciano, aquele tipo de cabelos desgrenhados, I de quem até tu temes o

sobrecenho austero, I que fala dos cúrios e dos camilos libertadores? Não te fies na cara

dele: ontem casou com um homem.

Marcial apresenta, nos epigramas de carácter moral, muitas ideias comuns

a Séneca. Mas são sobretudo ideais mais próximos do epicurismo do que do

estoicismo.12 Os princípios estóicos não eram de todo alheios a Marcial, como

a qualquer bom cidadão romano, !3 mas não respondiam às suas necessidades.

A escolha de Marcial tem que ver com uma concepção mais epicurista

da vida. Basta verificar o que é que, no entender do poeta, lhe retirava a liberdade

1 O 1.39. Por outro lado, o conceito de rectum (v. 5) e honestum são reminiscências epicuristas, segundo ADAMIK," Martial and the uita beatior" cit. 63.

11 1.24.

12 Cf. ADAMIK, "Martial and the uita beatior" cit. 58-60, onde se faz um vasto elenco de ideias comuns a Séneca e Marcial. Cf. Jean-Marie ANDRÉ, La philosophie à Rome, Paris, PUF, 1977, 167-191.

13 Cf. 1.13: alusão ao suicídio de Árria Maior e seu marido Cecina Peto. Este tinha participado em 42, numa revolta frustrada contra Cláudio, vendo-se, por isso, obrigado ao suicídio. A mulher dá o exemplo cravando a espada em si própria ao mesmo tempo que diz as célebres palavras: Paete, non dolet (Cf. Plínio, Epist. 3.16).

MARCIAL E O AMOR DA LIBERDADE 155

e o escravizava e quais as suas verdadeiras aspirações. E desde o livro primeiro

dos epigramas é uma ideia clara para o leitor:

Vota tui breuiter si uis cognoscere Marci,

clarum militiae, Fronto, togaeque decus,

hoc petit, esse sui nec magni ruris arator,

sordidaque in paruis o tia rebus amat.

Quisquam picta colit Spartani frigora saxi

et matutinum portat ineptus haue,

cui licet exuuiis nemoris rurisque beato

ante focum plenas explicuisse plagas

et pise em tremula salientem ducere saeta

flauaque de rubro promere mella cado?

Pinguis inaequales onerat cui uilica mensas

et sua non emptus praeparat oua cinis?

Non amet hanc uitam quisquis me non amat, opto,

uiuat et urbanis albus in officiis. 14

As aspirações do teu Marco, se as queres em resumo conhecer,/ ó Frontão, ilustre

em campanha e honra da toga, /são estas as que persegue: ser o lavrador de um campo

seu não muito grande, I pois ama a singeleza do ócio em um modesto viver. I Quem vai

admirar as frias pinturas de mármore espartano I e levar, desmotivado, a matutina

saudação, I se pode, feliz com as colheitas do bosque e do campo, I desdobrar as redes

repletas diante do lume I e retirar o peixe saltitante da linha trémula I e extrair os méis

doirados de um jarro vermelho? I E se uma caseira bem nutrida lhe enche as mesas

toscas I e a cinza não comprada lhe prepara ovos de sua casa? I Não goste desta vida

quem de mim não gosta - é o meu desejo; I e que viva pálido entre as obrigações

urbanas.

Bem clara a oposição de duas ideias antagónicas: por um lado, a rejeição

das obrigações sociais que a vida de cliente impunha; por outro, o desejo de

uma vida simples e frugal num campo que pudesse cultivar e donde extraísse a

sua subsistência.

A vida de cliente em Roma, aqui representada pelas frias pinturas de

mármore espartano dos átrios dos poderosos e pelo matutinum haue, era o

obstáculo à realização desse sonho: um peso do qual o poeta ansiava por se

libertar. É um verdadeiro manancial de inspiração para o poeta.

14 1.55.

156 JOSÉ LUÍS LOPES BRANDÃO

Este jovem provinciano sem grandes recursos chegara a Roma nos

últimos anos de Nero. Para sobreviver nesta cidade, só havia um caminho:

submeter-se à vida de cliente- era uma verdadeira instituição em Roma e, ao

mesmo tempo, a forma mais honrosa de um poeta pobre ganhar a vida.15 Marcial

rende-se a esta prática, que juridicamente tem uma origem servil, 16 e suporta-a

muito a custo. Mal rompe a aurora, ou ainda antes, lá vai a turba dos clientes,

tremente de frio, para a salutatio matutina ao seu patronus. 17 Saúdam-no com

o título de dominus et rex, 18 na esperança de obterem o prémio do seu sacrifício

matinal: a sportula - uma pequena quantia em dinheiro, que dá para cem

banhos, 19 já que estes, como serviço público, ficam muito baratos. De qualquer

modo, à excepção dos dias especiais, como o aniversário do patrono, em que a

quantia pode aumentar consideravelmente,20 a sportula mal dá para sobreviver;

e o estafado cliente vê-se obrigado a correr, para saudar vários patronos. Cano

morreu depois de receber a sportula: foi esta que o matou ... porque foi só

uma.21

O certo é que, por vezes, alguns patronos se esquivavam, como é o caso

de Paulo, que se finge doente para pôr os convidados em jejum e não dar a

sportula;22 ·e de Mário, que não dá nem jantares nem presentes, porque está

arruinado, e no entanto continua a ser cortejado por uma turba de clientes -

Eheu! Quam fatuae sunt tibi, Roma, togaef23 A um tal Afro, regressado da Líbia,

que evitava a saudação do poeta, este responde-lhe:

Iam satis est. Non uis, Afer, hauere: ualef24

Já chega! Não queres, Afro, os meus bons-dias: adeus para sempre!"

Marcial procura reagir contra este estado de coisas, mas sente-se

manietado. A subserviência é de rigor. Certa vez saudou o patrono pelo nome,

15 MARACHE, René, "La revendication sociale chez Martial et Juvenal": RCCM 3

(1961) 38-53. 16 Sobre a origem da clientela vd. AUGELLO, "Roma e la vita romana testimoniata da

Marziale": A L GP 5-6 (1968-69) 259-260, e n.l56. 17 Cf. 9.92. 18 Cf.2.68.2; e 10.10.5 19 Cf.8.42. 20 Cf. 10.27. 21 1.80. 22 9.85. 23 10.19. 24 9.6.

MARCIAL E O AMOR DA LIBERDADE 157

em vez de o tratar por dominus: o lapso ficou-lhe caro. Foi o preço a pagar pelo

sabor, ainda que efémero, da libertas:

Mane salutaui uero te nomine casu

nec dixi dominum, Caeciliane, meum.

Quanti libertas constat mihi tanta, requiris?

Centum quadrantes abstulit illa mihi. 25

De manhã, por distracção, saudei-te pelo nome próprio I e não te chamei meu

senhor, Ceciliano, I Queres saber quanto me custa tamanha liberdade? I Cem quadrantes

me roubou ela.

Ora um cliente não é livre, à partida, de dizer o que lhe parece. A

conivência é essencial:

Cenes, Canthare, cum foris libenter,

clamas et maledicis et minaris.

Deponas animas truces monemus: I

liber non potes et gulosus esse. 26

Embora jantes fora, Cântaro, de boa vontade, I gritas, dizes mal e ameaças. I

Aconselho-te a pôr de lado esse mau génio: I Não podes ser livre e glutão.

O remédio é ir pactuando com o sistema, por muito que lhe custe, mesmo

em prejuizo, no caso do poeta, da sua produção literária: ocupado em servir

Labulo, só escreveu uma página, em um mês.27 Tudo seria diferente se tivesse

um mecenas. Por isso diz ao amigo Lúcio Júlio que lhe pede para escrever

aliquid magnum:

Otia da nobis, sed qual ia fecerat olim

Maecenas Flacco Vergilioque suo.28

Dá-me uma vida tranquila, como aquela que dera outrora I Mecenas ao seu Flaco

e ao seu Virgílio.

Segundo a praxe, depois da salutatio matinal, há que acompanhar a

liteira do patrono pelas ruas ou aplaudi-lo no foro; se tiver sorte, talvez consiga

um convite para a cena. Em suma, o poeta vê-se confrontado com uma série de

humilhações diárias para conseguir sobreviver. E tem de acautelar o seu

25 6.88. 26 9.9. 27 11.24, cf. 10.70. 28 1.107 .3-4.

158 JOSÉ LUÍS LOPES BRANDÃO

descontentamento e frustração. Para um poeta tão cioso da sua liberdade, é

ainda mais humilhante ser cliente de alguém que também é cliente; é o mesmo

que ser servo de servos. Estas palavras dirige a um suposto Máximo que, de

modo algum, é o máximo entre os reges:

Capto tuam, pudet heu, sed capto, Maxime, cena,m,

tu captas aliam: iam sumus ergo pares.

Mane salutatum uenio, tu diceris isse

ante salutatum: iam sumus ergo pares.

Sum comes ipse tuus tumidique anteambulo regis,

tu comes alterius: iam sumus ergo pares.

Esse sat est seruum, iam no lo uicarius esse.

Qui rex est regem, Maxime, non habeat.29

Tento sacar, com que vergonha, mas tento sacar, Máximo, o teu jantar; I tu tentas

sacar outro: portanto nisto somos iguais. I De manhã venho para te saudar, dizem-me

que já tu saíste/ antes para saudar: portanto nisto somos iguais. I Sou eu próprio do teu

séquito e marcho à frente de um soberbo rei, I tu és do séquito de outro: portanto nisto

somos iguais. I Já basta ser servo, não quero agora ser servo de um servo! I Quem é rei,

Máximo, não tenha rei .

A vida de cliente é um obstáculo à verdadeira amizade que Marcial tanto

preza. Reconhece, pois, que é incapaz de se dizer amigo daquele a quem corteja:

das duas uma, ou é cliente ou é amigo.

Vis te Sexte, coli: uolebam amare.

Parendum est tibi: quo iubes, colere:

sed si te colo, Sexte, non amabo. 30

Queres ser cortejado, Sexto, eu queria ser teu amigo. I Tenho de obedecer-te: já que

o ordenas, serás cortejado: I Mas se te cortejo, Sexto, não serei teu amigo.

Pelo contrário, quando há amizade, o cliente Marcial pode dar-se ao

luxo de descurar as suas obrigações. 31 Muitas vezes assume-se como um cliente

especial- um poeta tem certos direitos -, que, em vez de se deslocar a casa

do patrono para o haue matinal, manda o livro como embaixador. 32

29 Cf.2.18; a mesma ideia em 2.32.7-8: Non bene, crede mihi, seruo seruitur amico: /sit liber, dominus qui uolet esse meus.

30 2.55. 31 Cf. 10.58: iuro deos: et non officiosus amo. 32 Cf. 1. 70; 1.1 08; 3.4.

MARCIAL E O AMOR DA LIBERDADE 159

Mandava o protocolo que o cliente envergasse a toga logo pela manhã,

sempre impecável e branca. A uana toga, a sudatrix toga, 33 como lhe chama, é

mais um peso para o poeta. O uso excessivo e as constantes lavagens depressa

a deterioravam. Parténio ofereceu um toga a Marcial; uma toga excelente, digna

do nome do benfeitor. Agora está velha; o poeta já pode dizer: mea est. 34 Por

isso, fica sempre muito agradecido, quando lhe dão uma nova.35 A toga era

indispensável em Roma: era o símbolo da vida pública e de todas as agruras do

poeta.

Já no livro III Marcial dava sinais de cansaço e saturação: nessa altura,

suportava aquela vida há trinta anos. 36 E, com a desculpa de não poder suportar

as fadigas da uana toga, trocara Roma pelo Forum Cornelii (Ímola)_37 Contudo,

a razão da saída do poeta não terá sido só essa. Asportula, cuja tarifa remontava

a Nero, fora abolida38 por Domiciano, na sua tentativa de apagar de Roma os

traços neronianos.39 Em vez dela, o patrono ficava com a obrigação de oferecer

o jantar ao cliente. Centum miselli iam ualete quadrantes! -gritava Marcial

desgostoso -Iam salarium dandum est. 40 Túcio, proveniente da Hispânia,

dirigia-se a Roma. Quando, à entrada da ponte Mílvio, ficou ao corrente da

abolição, voltou logo para trás: assim já não valia a pena vir para a Urbe.41 É evidente que esta prática favorecia o parasitismo, vício muito censurado pelo

poeta. Mas o assunto é sério: sem esta quantia diária, um cliente não poderia

sobreviver em Roma, nem comprar a toga.42

Esta lei não terá durado muito tempo: a sportula foi reposta e Marcial,

que afirmara em 3.4, que só regressaria quando fosse citaredo, deu o escrito por

33 Respectivamente 3.4.6 e 12.18.6. 34 9.49. Sobre o uso da toga: AUGELLO, "Moda e vanità a Roma nella testimonianza di

Marziale": Studi classici in onore de Quintino Cataudella. Catania, Università, 1972, Til, 372-374. 35 10.73. 36 3.36. 37 3.4.6. 38 Cf. 3.60. Efectivamente o afastamento do poeta de Roma terá coincidido com a abolição

temporária da sportula, pois é um dos temas reincidentes neste livro, cf 3.7, 3.14, 3.30, 3.60. Talvez o hispano Túcio de 3.14 incarne a frustração do poeta. Em 3.30 sugere que o conviva, ao permanecer em Roma, não demonstra grande inteligência. Cf. SULLIVAN, Martia/: the unex­pected classic. A literary and historical study, Cambridge, University Press, 1991, 31.

39 Cf. AUGELLO, "Roma e la vi ta romana testimoniata da Marziale" cit. 263. 40 3.7. 41 3.14. 42 Cf. 3.30: Vnde tibi togula est etfuscae pensio cellae? Vnde datur quadrans? Vnde uir

es Chiones? '

160 JOSÉ LUÍS LOPES BRANDÃO

não escrito e voltou a Roma. O resultado desta primeira tentativa de fuga foi

um libro Gallus, escrito longe da Urbe, a grande inspiradora, e que, por isso,

pode parecer menos bom ao leitor.43

No livro VII, publicado em Dezembro de 92, Marcial apresenta-nos um

suposto Célio como protótipo do resistente e vítima da vida de cliente: não

podendo suportar por mais tempo esta correria matutina e a saudação aos

poderosos, fingiu sofrer de gota nos pés; e, à força de tanto fingir, acabou mesmo

gotoso.44 Mas no livro X, é o próprio poeta que parece atingir a exaustão: está

farto de suportar o frio e a neve.45 Devido a todo este vaivém o poeta sente-se

ruptus e, para isso, não encontra remédio.46 Ou melhor, há um remédio; e é a

única coisa que ele deseja: dormir. O protesto do poeta é agora uma súplica e

um lamento indignado, o canto da saciedade:

Iam parce lasso, Roma, gratulatori,

lasso clienti. Quamdiu salutator

anteambulones et togatulos inter

centum merebor plumbeos die toto,

cum Scorpus una quindecim graues hora

feruentis auri uictor auferat saccos?

Non ego meorum praemium libellorum

- quid enim merentur?-Apulos uelim campos;

non Hybla, non me spicifer capit Nilus,

nec quae paludes delicata Pomptinas

ex arce diui spectat uua Stini.

Quid concupiscam quaeris ergo? Dormire.47

Tem piedade, Roma, de um cansado felicitador, I de um cansado cliente. Por

quanto tempo eu, saudador, I entre batedores e zé-ninguéns de toga, I receberei cem

soldos em todo o dia, I quando Escorpo, em uma hora, quinze pesados I sacos de ouro

fresco, triunfante, arrecada? I Como prémio dos meus livrinhos I- que valem eles?­

não quereria eu os campos de Apúlia; I nem o Hibla, nem o fértil Nilo me seduzem, I

43 1.1.3-6: Hunc legis et laudas librum fartasse pri01·em./ !lia uel haec mea sunt, quae meliora putas. I Plus sane placeat domina qui natus in urbe est: I debet enim Gal/um uincere uerna libe1:

44 7.39. 45 I 0.82. note-se que a primeira edição deste livro é do ano 95, mas a segunda, revista

(segundo 10.2.3), é de 98, ano do retomo a Bílbilis, cf. SULLIVAN, Martial cit. 44. 46 I 0.56: ( ... )Qui sanet ruptos dic mihi, Galle, quis est? 47 10.74.

MARCIAL E O AMOR DA LIBERDADE 161

nem a delicada uva que sobre os paúis de Pontino I lança o olhar, lá das alturas de Séc ia.

I Perguntas que desejo eu então? Dormir.

Voltando ao epigrama 1.55, a par da reacção contra a vida de cliente,

encontramos também do desejo de um vida simples, uma mediania dourada

que perpassa toda a obra de Marcial.

Continuamente violentado pelas formalidades hipócritas da vida citadina,

o poeta procura manter o espírito livre. Ao requinte dos jantares faustosos onde

se vê obrigado a ouvir recitar volumes imensos e aplaudir contrafeito os caprichos

de trimalquiões como Zoilo ou Ligurino,48 contrapõe o poeta a simplicidade da

mesa, que oferece a Torânio, onde abundam os frutos simples da terra:49

Parua est cenula, - quis potest negare?­

sed finges nihil audiesue fie tum

et uoltu placidus tuo recumbes;

nec crassum dominus leget uolumen. 50

O jantar é modesto, quem o pode negar? I Mas não vais precisar de dizer mentiras

ou ouvir patranhas, I e reclinar-te-ás em boa paz com a cara de todos os dias; /e o dono

da casa não lerá um grosso volume.

É em nome desta simplicidade que o poeta recusa o jantar de luxo que

um amigo lhe propusera, porque lhe agrada o jantar que pode retribuir. 51 Para

um poeta sem grandes recursos, em Roma, saciar a fome custa caro e o mercado

leva à ruína. 52

A neurastenia citadina, tão conhecida dos nossos dias, encontra expressão

eloquente na pena de Marcial. 53 O ambiente é doentio ao ponto de tomar o

rosto descorado. Apesar de lhe custar separar-se do amigo Domício, o poeta

aconselha-o a afastar-se do urbanum iugum:

48 Cf. 3.82; 3.45; 3.50. 49 5.78.1-21: o poeta faz o elenco: alface, alhos, peixe salgado recoberto de ovo, uma

couve verde colhida há pouco no horto fresco, um chouriço, favas amarelas com toucinho vennelho. Como sobremesa, uvas secas e peras da Síria, castanhas de Nápoles cozidas em vapor lento. O vinho, o amigo torná-lo-á bom, quando o beber. Se, depois disto, Baco lhe abrir o apetite, há azeitonas, grão-de-bico quente e tremoços mornos. Cf. 9.54; 11.52: Cenabis bel/e, lu/i Cerialis. apud me.

50 5.78.22-25; cf. 11.52.16: plus ego polliceor: nil recitabo tibi. 51 12.48.18: Haec mi h i quam possum reddere cena placet. 52 10.96.9: Hic pretiosafames conturbatorque mace/lus. 53 O pregão dos vendedores: 1.41; cheiros nauseabundos: 6.64.18-21; confusão nocturna:

12.57. Cf. AUGELLO, "Roma e la vita romana testimoniata da Marziale"cit. 242-244.

162 JOSÉ LUÍS LOPES BRANDÃO

O quam formosus, dum peregrinus eris I

Et uenies albis non adgnoscendus amicis

liuebitque tuis pallida turba genis.

Sed uia quam dederit rapiet cito Roma colorem,

Niliaco redeas tu licet ore niger.54

Oh, que bela aparência terás, enquanto estiveres fora! I E, quando regressares,

não serás reconhecido pelos amigos descorados, I e a turba pálida terá inveja das tuas

faces./ Mas Roma roubará rapidamente a cor que a viagem te tiver dado, I mesmo que tu

regresses negro com uma tez do Nilo.

No "período de férias" o poeta louva o sossego, longe da confusão dos

locais que estão na moda. Com a chegada da época balnear, o jet-set romano

procura as água de Baías para uns tempos de descanso e devaneio. 55 Marcial,

pelo contrário, foge ao sol abrasador destas praias, prefere a frescura de Tíbur. 56

E para o outono da vida, o poeta deseja as praias de Altino, rivais de Baías, na

Gália Cisalpina:

Vos eritis nostra requies portusque senectae,

si iurisfuerint o tia nostra sui. 57

Vós sereis o repouso e o porto da minha velhice, I se os meus lazeres eu os puder

usufruir como um direito.

Também ele outrora acorrera às laudatae undae, sem medo de uma

longa jornada. Mas agora ao poeta, que se assume como preguiçoso, agradam

os faciles recessus: quer afastar-se da cidade, mas não quer ficar muito longe

dela. Talvez, mesmo sem saber, já não passe sem Roma. Nomento não está

muito longe: é fácil regressar. Para lá se dirige o poeta em busca da libertação

da vida citadina e do sono tranquilo.58 Aí procura o otium, na sua casa de campo,

a sua "praia" eleita:

Dum tibi felices indulgent, Castrice, Baiae

canaque sulphureis nympha natatur aquis,

me Nomentani confirmant otia ruris

et casa iugeribus non oneroso suis.

54 10.12.8-12. 55 Cf. 1.62; 3.20.19; 3.58.1; 10.14.3. 56 Cf.4.57. 57 4.25.7-8. 58 Cf. 2.38; 12.57.

MARCIAL E O AMOR DA LIBERDADE

Hoc mihi Baiani soles mollisque Lucrinus,

hoc uestrae mihi sunt, Castrice, diuitiae.

Quondam laudatas quocumque libebat ad undas

currerre nec longas pertimuisse uias,

nunc urbis uicina iuvant facilesque recessus,

et satis est pigro, si licet esse mihi. 59

163

Enquanto te comprazes, Cástrico, com os deleites Baías, I e nadas nas águas

sulfurosas de uma branca ninfa, I a mim, restabelece-me a paz do campo de Nomento I

e uma quinta não pesada para as suasjeiras. I Este é para mim o sol de Baías e o voluptuoso

Lucrino, I estas são para mim, Cástrico, as vossas riquezas. I Apetecia-me outrora para

quaisquer águas famosas I correr, e não receava as longas jornadas. I Agora agrada-me a

proximidade da Urbe e os cómodos retiros, I e é o bastante para um preguiçoso, se me é

lícito sê-lo.

Para um poeta de origem provinciana, como Marcial, a vida simples é

considerada um ideal em oposição aos requintados costumes da cidade. As

riquezas não as deseja e, se as pede, são só para dar presentes aos amigos e para

construir.60 A aurea mediocritas toma-se para este poeta uma filosofia de vida.

Prefere a felicidade de uma vida simples com noites tranquilas e dias sem

disputas:

Mefocus et nigros non indignantiafumos

tecta iuuant et fons uiuus et herba rudis.

Sit mihi uerna satur, sit non doctissima coniunx,

sit nox cum somno, sit sine lite dies. 61

Quanto a mim, agrada-me o lume e um tecto I que se não aborrece com fumos

negros, uma fonte viva e uma relva por tratar. I Tenha eu um escravo bem nutrido, tenha

uma mulher não muito instruída, I tenha a noite com sono, tenha os dias sem querelas.

Ao contrário do comum dos cidadãos, o poeta trocaria as seduções

citadinas por esta vida campestre sem grandes riquezas nem grandes

preocupações. Ao amigo Júlio Marcial, o poeta propõe um estilo de vida que é

uma típica versão romana da filosofia epicurista:

59 6.43.5-6. Mas em 11.80, para comprazer Flaco, faz o elogio de Baías. 60 Cf. 9.22.16: Vt danem ... et aedificem. 6l 2.90.7-10.

164 JOSÉ LUÍS LOPES BRANDÃO

Vitam quae faciant beatiorem,

iucundissime Martialis, haec sunt:

res non parta labore, sed relicta;

non ingratus ager, focus perennis;

!is nunquam, toga rara, mens quieta;

uires ingenuae, salubre corpus;

prudens simplicitas, pares amici;

conuictus facilis, sine arte mensa;

nox non ebria, sed soluta curis;

non tristis torus et tamen pudicus;

somnus qui faciat breues tenebras:

quod si~ esse uelis nihilque malis;

summum nec metuas di em nec optes. 62

Os bens que tomam a vida mais feliz, I ó Marcial, modelo de simpatia, são estes:

I riquezas não produzidas pelo trabalho, mas herdadas; /um campo não ingrato, um fogo

nunca extinto;/ querelas, nunca; toga, raras vezes; espírito sossegado; I vigor inato, corpo

saudável; I franqueza prudente, amigos de condição semelhante; I convívio simples,

mesa sem artifícios; I noite sem embriaguez, mas livre de preocupações; I um leito não

austero, sem deixar de ser casto; I um sono que tome breves as trevas; I aceitares-te tal

como és, sem preferires ser outra coisa; I o último dia, não o temer nem o desejar.

Isto afirmava prestes a rumar à Hispânia. A toga rara representa o

almejado afastamento da vida publica, um princípio epicurista. 63 A toga, símbolo

da vida social romana, da !is e da clientela, como vimos atrás, é o impedimento

para tudo o que o poeta deseja: não permite a mens quieta, porque enreda o

poeta numa trama de compromissos sociais; arruína as uires ingenuae e o salubre

corpus, porque o leva a suportar o frio matinal, as vigílias e o ambiente doentio

da Urbe; toma impossível a prudens simplicitas e os pares amici, porque o

obriga a usar de deferência para com os patronos e a simular amizade onde esta

não pode existir; é contrária ao conuictus facilis, sine arte mensa, porque implica

banquetes cheios de requinte, onde o poeta se vê obrigado a ouvir ler e louvar

os grossos volumes das produções literárias do anfitrião. Por consequência, o

62 10.47; Cf. Horácio, Epodo 2. Sobre o paralelismo o epigrama acima transcrito e a filosofia epicurista, cf. SULLIVAN, Martial cit. 215-217. Para uma sintese da ética epicurista, cf. Jean BRUN, L 'épicurisme, trad. port. de Rui Pacheco, Lisboa, Ed. 70, 1987, 95-116.

63 Cf. T. ADAMIK, " Martial and the uita beatior" cit. 62.

MARCIAL E O AMOR DA LIBERDADE 165

poeta não pode ter uma nox non eh ria, mas também não soluta cu ris, porque no

dia seguinte novas obrigações o esperam. No entanto, ao deitar-se, deduzimos,

por antífrase, que ele não encontrará um non tristis torus et tamen pudicus, mas

talvez um non pudicus torus et tamen tristis (perdoe-se a ruína da métrica).

Depois vem o somnus, deseja o poeta quifaciat breues tenebras, mas, no dia

seguinte, há que partir antes que estas se dissipem. A toga é também símbolo de

ambição, contrária à filosofia epicurista, que torna os homens insatisfeitos. O

poeta postula uma verdadeira aurea mediocritas, em que cada um se contenta

com o que é, sem desejar ser outra coisa, de modo a não viver na angústia da

morte, sob a espada de Dâmocles, nem a desejá-la, como defendiam os estóicos.

O poeta é, por outro lado, confrontado com a consciência da fugacidade

da vida: já no livro I advertira o amigo de que estava a desperdiçar os melhores

dias. 64 Do mesmo modo, no livro V, lamenta que o fluir dos anos lhe roube os

bons momentos na comapanhia de Júlio Marcial. O tema do carpe di em surge,

assim, ligado à partilha da amizade:

Si tecum mihi, care Martialis,

securis liceat frui diebus,

si disponere tempus otiosum

et uerae pariter uacare uitae:

nec nos atria nec domas potentum

nec litis tetricasforumque triste

nossemus nec imagines superbas;

sed gestatio, fabulae, libelli,

campus, porticus, umbra, Virgo, thermae,

haec essent loca semper, hi labores.

Nunc uiuit necuter sibi, bonosque

soles effugere atque abire senti!,

qui nobis pereunt et inputantur.

Quisquam uiuere cum sciat, moratur?65

64 Cf. 1.15 ( ... )bis iam paene tibi consul tricensimus insta!. I et numeral paucos uix tua uita dies. ( ... ) et solum hoc ducas, quod fuit, esse tuum. ( ... )gaudia non remanent, sed.fugitiua uolant. (. . .) Non est, crede mihi, sapientis dicere 'uiuam ':I sera nimis uita est crastina: uiue hodie. Outros exemplos de sentenças de espírito epicurista em SULLIVAN, Martial cit. 225.

65 5.20, cf. 11.80.

12

166 JOSÉ LUÍS LOPES BRANDÃO

Se eu contigo, caro amigo Marcial, I pudesse gozar os dias sem cuidados, I se

pudesse dispor de tempo livre I e desfrutar em tua companhia a verdadeira vida, I nem os

átrios nem as casas dos poderosos, I nem litígios sinistros nem o foro odioso I nós

conheceríamos, nem as estátuas arrogantes; /mas passeios de liteira, conversas, livros, I

o Campo de Marte, o pórtico, a sombra, o aqueduto da Água Virgem, as termas, I estes

seriam sempre os lugares, estes os trabalhos. I Agora nenhum dos dois vive para si

mesmo, e os melhores I dias sente fugir e desvanecer-se, I dias que para nós morrem e

entram na nossa conta. I Quem é que, sabendo viver, anda a perder tempo?

O poeta sabe, ou pensa saber, onde pode realizar os desejos de uma vida

simples e de liberdade. Perante as crescentes dificuldades políticas, sociais e

económicas da vida em Roma, a saudade e a poesia juntam-se para lhe apontarem

agora novo rumo:66

Saepe loquar nimium gentes quod, Avite, remotas

miraris, Latiafactus in urbe senex,

auriferumque Tagum sitiam patriumque SaZonem

et repetam saturae sordida rura casae.

Illa placet tellus in qua res parua beatum

me facit et tenues luxuriantur opes:

pascitur hic, ibi pascit ager; tepet igne maligno

hic focus, ingenti lumine lucet ibi;

hic pretiosa fames conturbatorque macellus,

mensa ibi diuitis ruris aperta sui;

quattuor hic aestate togae pluresue teruntur

autumnis ibi me quattuor una tegit.

L cole nunc reges, quidquid non praestat amicus

cum praestare tibi possit, Avi te, locus. 67

Que eu fale sempre, Avi to, de gentes demasiado remotas, I te admiras, -logo

eu que me tomei velho na Urbe do Lácio--, I que eu tenha sede do aurífero Tago e do

pátrio Salão I e que procure de novo os campos pobres de uma fecunda quinta. I Agrada­

me a terra em que um pequeno pé-de-meia feliz I me toma e os magros recursos são

abundância. I Aqui o campo come, lá dá de comer; morna, com um fraco lume, I é a

lareira aqui; lá resplandece de enorme luz; I aqui é cara a fome e ruinoso o mercado, I lá

a mesa cobre-se de riquezas do seu campo; I quatro togas ou mais se gastam aqui num

66 Cf. SULLIVAN, Mm·tial cit. 44-52. 67 10.96.

MARCIAL E O AMOR DA LIBERDADE 167

verão, I lá uma única me cobre quatro outonos. I Anda, corteja agora os patronos, quando

aquilo que te não dá um amigo I to pode dar, Avito, a terra.

A partida para Bílbilis toma-se iminente. O poeta prepara o seu regresso

na expectativa de um bom acolhimento por parte dos seus patrícios. Aos

munícipes da Augusta Bilbilis dirige um epigrama em que apela à própria fama:

Verona não deve mais a Catulo do que Bíbilis ao seu vate encanecido em terras

itálicas. 68

Finalmente chega a hora do regresso. Em breve vamos encontrar o poeta

a fruir o modo de vida e a liberdade que tanto desejara. No livro XII, num longo

epigrama, dirigido ao seu amigo Juvenal, que continua em Roma, estabelece o

contraste:

Dum tu forsitan inquietus erras

clamosa, Iuvenalis, in Subura

aut collem dominae teris Dianae;

dum per limina te potentiorum

sudatrix toga uentilat uagumque

maior Caelius et minor fatigant:

me multas repetita Decembres

accepit mea rusticumque fecit

aura Bilbilis et superba ferro.

Hic pigri colimus labore dulci

Boterdum Plateamque- Celtiberis

haec sunt no mina crassiora terris -:

ingenti fruo r inproboque somno

quem nec tertia saepe rumpit hora,

et totum mihi nunc repono quidquid

ter denos uigilaueram per annos.

ignota est toga, sed datur petenti

rupta proxima uestis a cathedra.

68 10.103: ( ... ) ecquid /a ela iuuat uetri uos gloria uatis? I Nam decus et nomenfamaque uestras sumus, I nec plus sua debet tenui Verona Catulo I meque uelit dici non minus i/la suum. I Quattuor accessit tricesima messibus aestas, I ut sine me Cereri rustica liba datis, I moenia dum colimus dominae pulcherrima Romae: I mutauere meas !tala regna comas. I Excipitis placida reducem si mentem uenimus; I aspera si geritis corda, redire licet. Com efeito, Marcial muitas vezes cantara os louvores da sua pátria: cf. 1.49; 1.61; 2.90; 4.55; 1 0.65; 1 0.96. Em 10.104, pede ao livro, o garante da sua fama, que vá à frente a preparar-lhe o regresso.

168 JOSÉ LUÍS LOPES BRANDÃO

Surgentem focus excipit superba

uicini strue cultus iliceti

multa uilica quem carona olla.

Venator sequitur, sed ille quem tu

secreta cupias habere silua;

dispensat pueris ragatque longos

leuis ponere uilicus capillos.

sic me uiuere, sic iuuat perire. 69

Enquanto tu vagueias talvez atarefado I pela barulhenta Suburra, Juvenal; I e

gastas a colina da soberana Diana; enquanto pelas portas dos poderosos I te ventila a

toga suadora e a ti, errante, I te estafam o Célio maior e o menor: I a mim, depois de

muitos Dezembros desejada, I acolheu-me e camponês me tomou I Bílbilis rica em ouro

e ferro. I Aqui cultivo preguiçosamente, com suave labor, I os campos de Boterdo e

Plateia - as celtibéricas I terras têm estes nomes grosseiros -: gozo um sono

descaradamente longo I que, muitas vezes nem a terceira hora quebra, I e refaço-me

agora por completo de quanto I não dormi durante trinta anos. I A toga é desconhecida,

mas dão-me, quando a peço, I uma túnica de uma cadeira desengonçada. I Quando me

levanto, acolhe-me o lume- de uma soberba I pilha de lenha do vizinho azinhal- I

que a caseira coroa de muitas panelas. I Depois vem o caçador, que I tu desejarias

apanhar num bosque secreto; I um caseiro imberbe distribui o trabalho pelos escravos e

pede licença para lhes cortar os cabelos, quando longos. I Assim me agrada viver, assim

me agrada morrer.

Este modo de vida deve-o o poeta à generosidade de Marcela, uma

mullher cuja cultura poderia rivalizar com a de uma matrona de Roma_? O Agora

possui uma casa e uma propriedade:

munera sunt dominae: post septima lustra reuerso

has Marcellas damos paruaque regna dedit.

Si mihi Nausicaa patrios concederet hortos,

Alcinoo passem dicere: 'mala meos '_71

69 12.18. Segundo FRASSINETTI, "Marzia1e poeta serio":Argentea aetas. ln memoriam Entii V. Marmorale. Genova, Istituto di Filologia Classica e Medievale, 1973, 173 - 180, Marcial ostenta, neste epigrama, um falso entusiasmo: trata-se já do desfazer do sonho de paz. Seja como for, o certo é que o poeta descreve agora como real aquilo que em Roma era apenas um sonho.

70 12.21. 71 12.31.7-10.

MARCIAL E O AMOR DA LIBERDADE 169

São presentes da senhora: a mim que regressei, depois de sete lustros, I deu-me

Marcela esta casa e estes pequenos domínios. I Se Nausícaa me concedesse os jardins de

seu pai, I a Alcínoo eu poderia dizer: «Prefiro os meus.»

Em Roma, o poeta desejara ter um mecenas que lhe financiasse o ócio

necessário à sua produção literária. Esse mecenas vai encontrá-lo aqui na pessoa

de Terêncio Prisco que lhe faculta o ingenuae ius pigritiae , necessário ao

exercício do ingenium. 72 A ele se deve a composição do livro XII: depois de

uma desidia de três anos, o poeta resolve publicar de novo, a pedido de Prisco

que regressava de Roma. 73

Mas o paraíso ensombra-se. A sensação de bem-aventurança, reflectida

nos dois epigramas atrás referidos (12.18 e 12.31), não se mantém por muito

tempo num espírito habituado à grandeza e à azáfama de Roma e agora encerrado

na monotonia e pequenez de Bílbilis. Na carta-prefácio do livro XII, dirigida a

Prisco, reconhecemos acima de tudo um poeta melancólico.

Que um escravo pode amar o senhor que o maltrata, já Marcial sabia. 74

O que talvez não esperasse era sentir saudade de quem o subjugou durante

trinta e quatro anos. Marcela, com a sua urbana liberalidade, consegue mitigar

um pouco este desiderium, 75 mas não por muito tempo: o poeta parece dizê-lo

mais por simpatia e gratidão do que por o sentir realmente (de resto, não o

repete, o que, em Marcial, é significativo). Começa a perceber que cometeu um

erro: a humilhação da vida de cliente em Roma, a ânsia de liberdade levou-o a

avaliar mal os seus desejos e a precipitar-se. A alegria proveniente da nova

liberdade não supre a necessidade da grandeza de Roma, da sua universalidade,

que lhe concedera a alegria irrepetível de se sentir romano. 76 Agora, em Bílbilis,

sente a falta dos argumentos que Roma oferecia, durante três décadas, como

estímulo para a criação dos epigramas:

( .. .) illam iudiciorum subtilitatem, illud materiarum ingenium,

bibliothecas, theatra, conuictus, in quibus studere se uoluptates non sentiunt,

ad summam omnium illa quae delicati reliquimus desideramus, quasi destituti.

inuidia.

72 12.3. Cf. 12.14. 73 Cf. XII, Pref 74 Cf. 3.21: Proscriptumfamulus seruauitji-onte notatus./ Nonfidt haec domini uita, sed

75 12.21.9-10: a saudade da Urbe está bem explícita. Dirigindo-se a Marcela, afirma: Tu desiderium dominae mihi mitius urbis I esse iubes: Romam tu mihi solafacis.

76 Cf.AUGELLO, "Roma e la vita romana testimoniata da Marziale" cit. 234-270.

170 JOSÉ LUÍS LOPES BRANDÃO

Aquela subtileza da crítica, a inspiração dos argumentos, as bibliotecas, os teatros,

o convívio, onde o prazer não se sente como trabalho, em suma, todas aquelas coisas

que por enjoo abandonei, agora as desejo como se delas fora despojado.

A reforçar a saudade de Roma conta-se certamente a recordação dos

velhos amigos que deixara. Embora o poeta não o refira de forma explícita

neste prefácio, podemos percebê-lo. Os locais de que diz sentir agora a falta,

são semelhantes aos lugares onde gostaria de gozar o ócio na companhia de

Júlio MarcialJ7 Em Bílbilis, Marcial pode gozar o ócio e liberdade que sempre

desejou, mas o amigo está longe. Filtrados pela grata recordação de Júlio Marcial,

os trinta e quantro anos que passou em Roma parecem-lhe agora mais felizes.

Mas é esta amizade que, pela ausência, lhe traz agora sofrimento. O canto tem

agora um tom definitivo de quem sente que não voltará a ver o amigo:

Triginta mihi quattuorque messes

tecum, si memini, fuere, lu li.

Quarum dulcia mixta sunt amaris,

sed iucunda tamen fuere plura;

et si calculus omnis huc et illuc

diuersus bicolorque digeratur,

uincet candida turba nigriorem.

Si uitare uelis acerba quaedam

et tristis animi cauere morsus,

nu !li te facias nimis sodalem:

gaudebis minus et minus dolebis. 78

Trinta e quatro colheitas passei eu I contigo, se bem me recordo, Júlio. I Dessas,

os prazeres andaram misturados com os amargores, I mas as alegrias foram, apesar de

tudo, mais; I e se uma pedrinha aqui e outra ali I formassem grupos distintos de duas

cores, I o conjunto das brancas venceria o das mais negras. I Se queres fugir a alguns

dissabores I e evitar as tristes mordeduras da alma, I não te tomes demasiado amigo de

ninguém: I terás menos alegrias e menos sofrimentos.

Não terá encontrado em Bílbilis uma alternativa a esta amizade. À parte

os casos de Marcela e de Prisco, Marcial não encontrou o acolhimento caloroso

que esperava da parte dos conterrâneos. Pelo contrário, encontra a maledicência

77 Cf. 5.20.8-10 (atrás referido): sed gestatio,fabulae, libelli, I campus, porticus, umbra, Virgo, thermae, I haec essent loca semper, hi labores.

78 12.34.

MARCIAL E O AMOR DA LIBERDADE 171

e inveja de alguns, que se tomam muitos num meio pequeno. 79 Além disso, de

cliente que era, vê-se agora transformado em patrono: alguns oportunistas locais

procuram aproveitar, em benefício próprio, a posição social que a fama conferiu

ao poeta. Marcial constacta que, mesmo aqui, na Hispânia, lhe querem negar

aquilo que Roma lhe proibia: o ócio, o sono e a ausência de pleitos (as fites que

ele detestava) . Afinal foi por isso que regressou:

Matutine cliens, urbis mihi causa relictae,

atria, si sapias, ambitiosa colas.

Non sum ego causidicus nec amaris litibus aptus

sed piger et senior Pieridumque comes;

atia me somnusque iuuant, quae magna negauit

Roma mihi: redeo si uigilatur et hic. 80

Cliente matutino, para mim causa do abandono da Urbe, I frequenta, se és avisado,

os átrios pretensiosos. I Eu não sou advogado nem dado a pleitos amargos, I mas um

preguiçoso e velho amigo das Musas; I agradam-me o ócio e o sono, que me negou a

grande I Roma: regresso, se também aqui se não dorme.

Vigília por vigília, prefere as de Roma. Com efeito, os anos que passou

no Lácio mudaram-lhe a cor dos cabelos, SI mas também lhe moldaram a alma.

Em Roma, recordava a sua pátria com símbolo da liberdade e da verdadeira

vida que sempre desejou; agora, em Bílbilis, sente-se desterrado numa pátria

que se tomou estrangeira para ele. 82 O resultado foi o livro XII, que, embora

escrito em Bílbilis, está cheio de reminiscências qu~ o poeta guardou da Urbe:

os habituais temas satíricos como a hipocrisia dos patronos,83 a decadência do

rico, 84 a captatio, 85 as pretensões dos clientes, 86 a má conduta social, 87

a pederastia, 88 a crítica às mulheres, 89 os defeitos físicos,90 a poesia e os

79 Cf. 12. Pref ( ... ) Accedit h is municipalium robigo dentium et iudici loco liuor et unus aut alter ma/i, in pusillo loco multi.

80 12.68. 81 10.103.10: mutauere meas !tala regna comas; cf.10.96.2: Latiafactus in urbe senex. 82 Cf. PAOLI, "II poeta di Roma vivente": Avventure e segreti de/mondo greco e romano,

Firenze, Le Monnier, 1956, 562. 83 Cf. 12.12;13; 25; 26; 36; 40; 48; 81. 84 Cf. 12.27; 50; 53; 56; 70; 90. 85 Cf. 12.10; 48.2-4; 73. 86 Cf. 12.19. 87 12.28; 30; 32; 41; 59; 66; 7; 82; 87; 89. 88 Cf.12.16; 33; 71; 75; 84. 89 12.20; 26; 49; 52; 58; 65; 91; 93; 97. 90 Cf. 12.7; 22; 23; 45; 54.

172 JOSÉ LUÍS LOPES BRANDÃO

críticos,91 os plagiários ,92 enfim, um livro não de assunto hispânico, mas apenas

escrito na Hispânia.93

O poeta compreendeu e deixou a sua lição para quem desejar entender:

concebeu um ideal de vida e foi ao seu encontro, sem pensar preço que pagava.

Conseguiu fugir da Urbe, mas não da sua alma. Acorreu a Bílbilis, mas não foi

Bílbilis que encontrou, não a Bílbilis do seu canto. A Bílbilis real não o inspirava,

nem o queria. Sentia-se agora desenraizado, a "litigar num foro estranho", longe

do seu público, longe dos amigos. Voltou a viver do sonho, a voar para a Urbe

longe. Mas era tarde de mais. Já não regressou a Roma: a morte, acaso apressada

pelas mordeduras da alma, veio libertá-lo.

91 Cf. 12.2; 37; 43; 47, 61; 78; 88; 94; 95. 92 Cf. 12.63. 93 12. Prol: non Hispaniensem librum mittamus, sed Hispanum. Sobre o conteúdo do

livro XII, cf. SULLIVAN, Martial cit. 52-55: Tratar-se-ia inicialmente de um breu is libellus, enviado a Roma em I O I ou I 02, ao qual foram depois acrescentados outros epigramas, como os dirigidos a Nerva e Parténio (12.5; 6; 1 I) que há muito tinham morrido.