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Lévi strauss, c. as estruturas elementares do parentesco

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  1. 1. AS ESTRUTURAS ELEMENTARES DO PARENTESCO
  2. 2. FICHA CATALOGRFICA (Preparada pelo Centro de Catalogao-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RI) Lvi-Strauss, Claude, 1908- L644e As Estruturas elementares do parentesco; tra- 76-0059 duo de Mariano Ferreira. Petrpolis, Vozes, 1982. 540p. ilust. 23cm. Do original em francs: Les structures l- mentaires de la parent. Bibliografia. 1. Parentesco. I. Ttulo. 11. Srie. CDD - 301.442 CDU - 301.185
  3. 3. A memria de LEWIS H. MORGAN
  4. 4. tI I L Entre os que desejarem dar-se ao trabalho de compreender os princpios gerais da religio primitiva, sero bem poucos, sem dvida, os que voltaro algum dia a acreditar que se trata nesse' assunto de fatos ridculos, cujo conhecimento no pode. trazer nenhum proveito para o resto da humanidade. Longe dessas crenas e prticas se reduzirem a um acmulo de resduos, vestgios de alguma loucura coletiva, so to coerentes e lgicas que, logo assim que comeamos {li classific-las, mesmo grosseiramente, podemos aprender os princpios que regeram seu desenvolvimento. Vi-se, ento, que esses principias so essencialmente racionais, f!mbora atuem sob o vu de uma profunda e inveterada ignordncia... A cincia moderna tende cada vez mais a concluir que, se em algum lugar hd leis, estas devem existir em toda parte. E. B. TVLOR, Primitive Culture, Londres, 1871, p. 20-22.
  5. 5. Pre/delo da Primeira Edio Pre!dcio da Segunda Edio INTRODUAO CAP!TULO I. NATUREZA E CULTURA / Estado de natureza e estado de sociedade. O problema da passagem de um ao outro. As "crianas selvagens". As fermas superiores / L da vida animal. O critrio da universalidade. A proibio do incesto como regra universal CAP!TULO n. O PROBLEMA DO INCESTO Teorias racionalistas: Maine, Morgan; concluses da gentica. Teorias psicolgicas: Westermarck, Havelock Ellis. Teorias sociolgicas, I: McLennan. Spencer, Averbury. Teorias sociolgicas, lI: Durkheim. As antinomias do problema do incesto. PRIMEIRA PARTE A TROCA RESTRITA I. Os fundamentos da troca CAP!TULO III. o UNIVERSO DAS REGRAS Consanginidade e aliana. A SUMARIO 19 24 41 50 69 proibio do incesto, "regra como regra", O regime do produto escasso: regras de distribuio alimentar. Passagem s regras matrimoniais: casamento e celibato. CAP!TULO IV. ENDOGAMIA E EXOGAMIA 82 A poligamia. forma especial de reciprocidade. Endogamia verdadeira e endogamia funcional. Os limites do grupo social. O caso dos Apinag. Exogamia e proibio do incesto. CAP!TULO V. O PRINCIPIO DE RECIPROCIDADE O Essai SUT le Don. A troca nas sociedades primitivas e nas sociedades contemporneas. Extenso s leis do casamento. A noo de arcaismo e suas implicaes. Da troca dos bens troca das mulheres. CAP!TULO VI. A ORGANIZAAO DUALISTA Caracteres gerais das organizaes dualistas. Distribuio. Natureza: cls e classes. A organizao dualista como instituio e como principio. Discusso de trs exemplos: Nova Guin, Assam, Califrnia. Concluso: a organizac}o 92 108
  6. 6. dualista reduz-se a um mtodo para a soluo de certos problemas da vida social. CAPTULO VII. A ILUSAO ARCAICA Origem da noo de reciprocidade. Dados da psicologia infantil. Sua interpretao. A criana e o primitivo segundo Freud e segundo Piaget. Critica de S. Isaacs. O pensamento da criana representa uma experincia mais geral que a do adulto. O principio de reCiprocidade no pensamento infantil. A ampliao da experincia psicolgica e social. CAPTULO VIII. 123 A ALIANA E A FILIAAO 137 Retorno organizao dualista. Relaes entre a organizao dualista e o casamento dos primos cruzados. Os postuladOS filosficos das interpretaes clssicas: a noo de relao. Sistemas de classes e sistemas de relaes. Passagem filiao: o problema da filiao bilateral. Os ashantis e os todas. A noo de dicotomia e suas analogias genticas: o problema das geraes alternadas. O indgena e o terico. Aplicao a alguns sistemas africanos e australianos. Filiao patrilinear e filiao matrilinear. O primadO do principio patrilinear. CAPTULO IX. o CASAMENTO DOS PRIMOS 159 Casamento dos primos cruzados e sistema classificatrio. A unio preferencial e a noo de estrutura. Proximidade biolgica e proximidade social. Valor terico do casamento dos primos cruzados. Sua origem: teses de Swanton, Gifford. Lowie. Discusso: o sistema de parentesco deve ser concebido como uma estrutura global. O casamento dos primos cruzados como estrutura elementar da troca. CAPTULO X. A TROCA MATRIMONIAL Exposio da concepo de Frazer e de seus limites: primos cruzados e primos paralelos; troca e mercado; papel da organizao dualista. Diferenas com relao concepo proposta. lI. A Austrlia CAPTULO XI. OS SISTEMAS CLSSICOS Importncia dos fatos australianos: o problema da troca das irms. Classificao dos sistemas australianos; suas dificuldades. Dicotomia patrilinear e dicotomia matrilinear. Teses de Radcliffe- Brown. Lawrence. Kroeber. O exemplo dos rnarinbatas, ou a gnese de um sistema. Descrio do sistema Kariera. Descrio do sistema Aranda. Estes dois sistemas fornecem uma base insuficiente para uma classificao geral. CAPTULO XII. O SISTEMA MURNGIN Descrio. Caracteres anormais do sistema. Impossibilidade de toda reduo a um sistema Aranda. Classes e graus. Hiptese sobre a natureza do sistema Murngin. Conseqncias tericas. Definio da troca restrita. Definio da troca generalizada. Aplicao nomenclatura Murngin; discusso da interpretao psicolgica de Lloyd Warner. A estrutura do sistema Murngin; confirmao tirada do sistema Wikmunkan. 173 187 209 ..
  7. 7. CAPITULO XIII. REGIMES HARMONICOS E REGIMES DESARMONICOS 237 Os sistemas ditos aberrantes: Karadjeri, Tiwi, Mara, Arabana, Aluridja, Southem Cross, Dier!, Wikmunkan. Comparao destes ltimos sistemas com o sistema Mandchu. Difinio dos regimes harmnicos e dos regimes desarmnicos. Suas relaes com as duas formas fundamentais da troca. Integrao dos sistemas aberrantes numa classificao geral. A troca restrita, caso particular da troca generalizada. CAPITULO XIV. APG:NDICE A PRIMEIRA PARTE 266 I. Sobre o estudo algbrico de certos tipos de leis de casamento (sistema Murngin), por Andr Weil, professor da Universidade de Chicago. lI. Comentrio; interpretao das lacunas aparentes do sistema Murngin. Endogamia e troca generalizada. SEGUNDA PARTE A TROCA GENERALIZADA I. Frmula simples da troca generalizada CAPITULO xv. OS DOADORES DE MULHERES Da necessidade terica da troca generalizada a seu estudo experimental. A descoberta de Hodson. O sistema Katchin. Nomenclatura de parentesco. Regra do casamento. Mayu-ni e dama-ni. O ciclo da troca. Hiptese de Granet. Discusso: as origens mitolgicas da sociedade Katchin. Cls, linhagens, casas. 279 CAPITULO XVI. A TROCA E A COMPRA Simplicidade aparente do sistema Katchin; seu carter ilusrio. A casustica da compra. Paternos e maternos. O problema dos termos de denominao. Interpretao destas diculdades: especulao e feudalismo. CAPITULO XVII. LIMITES EXTERNOS DE TROCA 300 GENERALIZADA 313 Outros sistemas de troca generalizada: Kuki, Aimol, Chiru, Chawte, Tarau. Estudo das formas alteradas pelo mtodo do modelo reduzido: Mikir, Garo, Lakher. Mistura da troca restrita e da troca generalizada no Assam: sistemas Konyak, Rengma Naga, Lhota Naga, Sema Naga, Ao Naga, Angami Naga. Relao entre as organizaes dualistas e as organizaes tripartidas no Assam. CAPITULO XVIII. LIMITES INTERNOS DA TROCA GENERALIZADA O sistema Gilyak: nomenclatura, organizao social, regra do casamento. A interpretao de Sternberg; discusso. Comparao com o sistema Katchin; o papel da compra. O sistema Gold. Papel do tio materno nos sitemas simples de troca generalizada. A orientao matrilateral e a reao patrilateral. A contradio inerente aos sistemas de troca generalizada. H um eixo birmano-siberiano? lI. O sistema chins CAPITULO XIX. 335 A TEORIA DE GRANET 357 Caracteres gerais da interpretao de Granet; aplicao ao sistema
  8. 8. ", I Chins. O casamento dos primos cruzados na China antiga. Passagem do casamento bilateral ao casamento unilateral. Construo de um sistema arcaico com oito classes. Suas impossibilidades. CAPTULO XX. A ORDEM TCHAO MaU Anlise da nomenclatura chinesa. Graus de parentesco e graus de luto. Interpretao de Fng. Problemas que levanta. A questo da ordem tehao mau; tese de Granet; crtica de Hsu. Discusso geral: ordem tehao mau e geraes alternadas. CAPITULO XXI, 371 O CASAMENTO MATRILATERAL 391 As indicaes terminolgicas em favor do casamento matrilateral. Sua interpretao pela tecnonmia; discusso. O casamento com a filha do irmo da me na China contempornea. Suas implicaes tericas. Conseqncias do ponto de vista da histria do sistema Chins. O casamento oblquo; sua antiguidade; crtica de Granet e de Fng. Suas sobrevivncias modernas. CAPITULO XXII. O CASAMENTO OBLlQUO 404 Teoria do casamento oblquo no sistema Miwok. A nomenclatura do parentesco. Interpretao de Gifford. Linhagens e metades. O casamento oblquo como fenmeno de estrutura. Demonstrao pelo mtodo dos moldes reduzidos. Sistema Chins e sistema Miwok. CAPITULO XXIII. OS SISTEMAS PERIFRICOS O sistema Tibetano; "parentes do osso" e "parentes da carne"; 416 importncia desta classificao. O sistema LoIo. O sistema Tounguse; comparao com os sistemas Katchin e Naga. O sistema Mandchu; caracteres gerais; organizao social; terminologia; interpretao; comparao com os sistemas siberianos. Quadro geral dos sistemas do Extremo Oriente; problemas te6ricos que levantam. IH. A lndia CAPTULO XXIV. o OSSO E A CARNE Extenso da distino entre "parentes do osso" e "parentes da carne"; seu valor terico. A troca generalizada na 1ndia: sistema Gond. Lugar da noo de casta num sistema de troca generalizada. A hipergamia. O casamento dito "por dom". A exogamia das sapindas; comparao com a ordem ichao mou. O casamento matrilateral na 1ndia. Interpretao de Held. CAPITULO XXV. 439 CLAS E CASTAS 451 Teoria de Held; exposio e discusso. O bilateralismo hindu. Condies tericas da existncia de um sistema de classes matrimoniais. Casta e (lotra; o (lotra considerado como um antigo cl. Natureza verdadeira da exogamia do (lotra; os dois tipos de gotra. Hipteses sobre a estrutura social arcaica da 1ndia. CAPITULO XXVI. AS ESTRUTURAS ASSIMTRICAS 466 Consideraes tericas sobre a relao entre a troca restrita e a troca generalizada; carter privilegiado da 1ndia para definir as relaes entre os diferentes tipos do casamento dos primos cruzados. J
  9. 9. I' L o casamento bilateral; sua raridade. O sistema Munda. O problema do tio materno; seu papel nos sistemas de casamento matrilateral. O privilgio avuncular. CAP1TUW XXVII, OS CICLOS DE RECIPROCIDADE 481 Problemas tericos do casamento dos primos cruzados; solues propostas; discusso. Casamento matrilateral e casamento patrnateral~ ciclos curtos e ciclos longos. Interpretao definitiva da troca generalizada. CONCLUSO CAP1TUW XXVIII. PASSAGEM AS ESTRUTURAS COMPLEXAS SOl A rea das estruturas elementares. O eixo birmano-siberiano; limites da troca generalizada; difuso e limites da troca restrita. Relaes definitivas entre troca restrita e troca generalizada. Consideraes rpidas sobre a rea Beeano- americana; por que faz parte do estudo das estruturas complexas. Consideraes rpidas sobre a Mrica; o casamento por compra como forma complexa da troca generalizada. Consideraes rpidas sobre o mundo indoeuropeu; das formas simples da troca generalizada s formas complexas; e casamento moderno. CAP1TUW XXIX. OS PRINC!PIOS DO PARENTESCO 519 A troca, base universal das proibies do casamento. Naturem da exogarnia. O mundo do parentesco. Fraternidade e compadrio. A teoria de Malinowski e sua refutao; o incesto e o casamento. Sintese histrica e anlise estrutural; o exemplo da psicanlise e o da lingUistica. O Universo da comunicao.
  10. 10. Indice das Figuras 1, Retalhadura cerimonial de um bfalo na Birmnia 74 2. Distribuio da carne entre parentes 75 3. Trocas matrimoniais na Polinsia 104 4. Trocas cerimoniais nas ilhas Salomo 106 5. Diagrama traado pelos indfgenas de Ambrym para explicar seu sistema de parentesco 166 6. O casamento dos primos cruzados 171 7. A noo de cruzamento 184 8. Regras do casamento Murimbata 195 9. Regras do casamento Kariera 197 10. Sistema Kariera 200 11. Ilustrao do sistema Kariera 202 12. Filiao e residncia no sistema Kariera 203 13. Regras do casamento Arenda. 204 14. Ilustrao do sistema Aranda 205 15. Sistema Aranda 206 16. Casamento entre primos descendentes de cruzados 206 17. Estrutura do sistema Murngin 211 18. Regras do casamento Murngin, segundo Warner 212 19. Regras do casamento Murngin 212 20. Sistema Murngin e sistema Aranda 212 21. Regra do casamento Murngin em sistema normal 213 22. Regra do casamento Murngin em sistema optativo 213 23. Combinao do sistema narmal com o sistema optativo 216 2425. Esquema da troca generalizada 220 26. Casais. ciclos e pares 221 27. Casamento matrilateral 221 28. Trocas generalizadas entre quatro classes 222 29. Nomenclatura do parentesco Murngin 224 30. Expresso do sistema Murngin em termos de troca generalizada 227 31. Filiao e residncia na troca generalizada 228 32. Diagrama definitivo do sistema Murngin 229 33. Ciclo com quatro classes 231 34. Projeo plana de um sistema cclico 232 35. Sistema Karadjen 237 36. Sistema Mara, segundo Warner 239 37. Sistema Aluridja 242 38. Sistema Southern Cross 243 39. Sistema Dieri, segundo Elkin 244/245 40. Expresso simplificada do sistema Dieri 247 41. Evoluo do sistema Dieri 248 42. Sistema Wikmunkan, segunda U. MeConne1 250/251 43. Sistema Mandchu e sistema Wlkmunkan 254/255 44. Classificao dos principais tipos de sistema de parentesco 258 45. Sistema Katchin 282 46. Ciclo feudal do casamento entre os Katchins 294 47. Ciclos do casamento e.ntre os Chirus, Chawtes e Taraus 314 48. Sistema Lakher (modelo reduzido) 318 49. Sistema Rengna Naga 321 50. Sistema Lhota Naga (modelO redUZido) 322 51. OUtro aspecto do sistema Lhola Naga 323 52. Sistema Sema Naga (modelo reduzido) 325 53. Sistema Ao Naga (modelo reduzido) 329 54. Sistema Gilyak 341 55. Troca generalizada com trs cls 342
  11. 11. r 56. Troca generalizada com quatro cls 343 57. Sistema Chins, segundo Granet 366 58. Outro aspecto da hiptese de Granet 370 59. Quadro simplificado dos graus de luto 377 60. Representao diagramtica do sistema de parentesco Chins 378 61. A ordem teMo mau 382 62. O templo ancestral. segundo Hsu 384 63. premutao dos antepassados na ordem tchao mau 385 64. Fileiras e colunas 386 65. Sistema das posies na ordem tchao mau 387 66. Regras do casamento Murngin comparadas com as regras chinesas, segundo Granet 388 67. Sistema Miwok (modelo reduzido) 407 68. Sistema Mlwok: correlaes entre as genealogias e o modelo reduzido 411 69. Sistemas Tibetano e Kuki 417 70. Regras do casamento Tunguse 421 71. Regras do casamento Mao Naga 422 72. Aspecto do sistema Mandchu 428 73. Comparao entre os sistemas Mandchu e Ao Naga 431 74. Distribuio das formas elementares da troca no Extremo Oriente 433 75. Aspecto do sistema Gond 440 76. Sistema hindu, segundo Held 450 77. Proibies do casamento entre os Bais 459 78. Os sete MuI 460 79. Graus proibidos no norte da ndia 461 80. Sistema Munda 471 81. Casamento Munda transcrito em termos do sistema Araruta 471 82. Irm do pai e irmo da me 474 83. O privilgio avuncular 476 84. Filha do irmo da me e filha da irm do pai 486 85. Os ciclos de reciprocidade 495 86. Contorno aproximado da rea considerada o eixo da troca generalizada 503 87. Sistema das oposies entre as formas elementares do casamento 507
  12. 12. PREFACIO DA PRIMEIRA EDIO Entendemos por estruturas elementares do parentesco os sistemas nos quais a nomenclatura permite determinar imediatamente o crculo dos parentes e os dos aliados, isto , os sistemas que prescrevem o ca- samento com um certo tipo de parente. Ou, se preferirmos, os sistemas que, embora definindo todos os membros do grupo como parentes, di- videmnos em duas categorias, a dos cnjuges possveis e a dos cnjuges proibidos. Reservamos o nome de estruturas complexas para os sistemas que se limitam a definir o circulo dos parentes e que deixam a ou- tros mecanismos, econmicos ou psicolgicos, a tarefa de proceder determinao do cnjuge. A expresso "estruturas elementares" corres ponde, portanto, neste trabalho, ao que os socilogos chamam habitual- mente casamento preferencial. No pudemos conservar esta terminologia porque o objeto fundamental deste livro mostrar que as regras do casamento, a nomenclatura, o sistema dos privilgiOS e das proibies so aspectos inseparveis de uma mesma realidade, que a estrutura do sistema considerado. A definio precedente conduziria, por conseguinte, a reservar o no- me de estrutura elementar aos sistemas que, como o casamento dos primos cruzados, procedem a uma determinao quase automtica do cnjuge preferido, ao passo que os sistemas fundados sobre a trans- ferncia de riqueza ou sobre a livre escolha, como vrios sistemas afri- canos e o de nOssa sociedade contempornea, entrariam na categoria das estruturas complexas. Atemo-nos, em suas grandes linhas, a esta dis- tino, mas entretanto impemse algumas ressalvas. Primeiramente, no existe estrutura absolutamente elementar, no sen- tido de que um sistema, qualquer que seja sua preciso, no tenha fi- nalmente como resultado - ou s tenha excepcionalmente - a determi- nao de um nico Indivduo como cnjuge prescrito. As estruturas elementares permitem definir classes ou determinar relaes. Mas, em regra geral, vrios indivduos so igualmente aptos a constiturem a classe ou a satisfazerem a relao, sendo freqentemente em grande nffiem. Mesmo nas estruturas elementares, por conseguinte, h sempre uma cer- ta liberdade de escolha. Inversamente, nenhuma estrutura complexa au- toriza uma escolha absolutamente livre, consistindo a regra, no em que algum possa casar-se com quem quiser relativamente ao sistema, mas que possvel casar-se com os acupantes das posies da nomenclatura que no so expressamente proibidas. O limite das estruturas elemen- 19
  13. 13. tares encontra-se nas possibilidades biolgicas, que podem sempre fazer aparecer solues mltiplas, em forma de irmos, irms ou primos, para um problema dado_ O limite das estruturas complexas est na proibio do incesto, que exclui, em nome da regra social, certas solues que, entretanto so biologicamente abertas_ Mesmo na estrutura elementar mais rigorosa conserva-se certa liberdade de escolha, e mesmo na estru- tura complexa mais vaga a escolha permanece sujeita a certas limitaes_ No possvel, portanto, estabelecer uma completa oposio entre as estruturas elementares e as estruturas complexas. Igualmente difcil traar a linha divisria que as separa. Entre os sistemas que indicam o cnjuge e aqueles que o deixam indeterminado, h formas hbridas e equvocas, quer porque privilgios econmicos permitem efetuar uma escolha secundria dentro de uma categoria prescrita (casamento por compra associado ao casamento por troca), quer porque haja vrias so- lues preferenciais (casamento com a filha do irmo da me e com a filha do irmo da mulher; casamento com a filha do irmo da me e com a mulher do irmo da me, etc.>. Alguns destes casos sero exa- minados neste livro porque julgamos que podem esclarecer casos mais simples que eles. Outros, ao contrrio, que marcam a passagem para as formas complexas, sero provisoriamente deixados de lado. Propriamente falando, o presente trabalho constitui, pois, uma in- troduo a uma teoria geral dos sistemas de parentesco. Isto certo, se considerarmos que, depOis deste estudo das estruturas elementares, continua aberto o lugar para um outro, reservado s estruturas comple- xas, e talvez mesmo para um terceiro, consagrado s atitudes familiares que exprimem ou sobrepujam, mediante comportamentos estilizados, con- flitos ou contradies inerentes estrutura lgica, tal como se revela no sistema das denominaes. Se nos decidirmos, contudo, a publicar este livro em sua forma atual foi essencialmente por duas razes. Acre- ditamos, primeiramente, que, sem ser exaustivo, nosso "estudo completo, no sentido em que trata dos princpiOS. Mesmo se devssemos consi- derar o desenvolvimento de tal ou qual aspecto do problema a que nosso estudo consagrado, no teramos que introduzir nenhuma noo nova. Se o leitor desejar elucidar uma questo especial bastar que apli- que ao caso considerado nossas definies e distines, procedendo se- gundo o mesmo mtodo. Em segundo lugar, no esperamos, mesmo nos limites que nos im~ pusemos, estar livres de inexatides materiais e de erros de interpreta- o. As cincias sociais chegaram a um tal grau de interpenetrao, e cada uma delas tornou-se to complexa pela enorme massa de fatos e documentos sobre os quais repousa, que seu progresso s pode provir de um trabalho coletivo. Fomos obrigados a abordar terrenos para o estudo dos quais estvamos mal preparados, a aventurar hipteses que no pOdamos imediatamente verificar e tambm a deixar provisoriamen- te de lado, por falta de informao, problemas cuja soluo teria sido contudo essencial para a nossa finalidade. Se nosso trabalho encontrar ressonncia somente junto de poucas pessoas, entre elas quem, como etn- logo ou socilogo, pSiclogo ou lingista, arquelogo ou historiador, par- ticipa, no laboratrio, no gabinete de trabalho ou no terreno, do mesmo estudo do fenmeno humano, e se algumas das lacunas, de cuja exten- so e gravidade somos ns os primeiros a ter conscincia, pOdem ser 20
  14. 14. I L preenchidas como consequencia dos co~entrios daqueles especialistas e em resposta a suas objees. ento, sem dvida, teremos tido razes para estabelecer um perodo de pausa em nossa pesquisa e propor seus primeiros resultados antes de procurar extrair suas mais longnquas implicaes. Atualmente. um estudo de sociologia comparada esbarra em duas dificuldades principais. a escolha das fontes e a utlzao dos fatos. Nos dois casos o problema deriva. sobretudo. da abundncia dos materiais e da imperiosa necessidade de estabelecer um limite. No que se refere ao primeiro ponto, no quisemos esconder que, tendo sido escrito nos Estados Unidos. pelo contato dirio com nossos colegas norteamericanos. 'este livro estava exposto a ter de usar predominantemente fontes de ln gua inglesa. Se procurssemos ocultar esta orientao, incorreramos na culpa de ingratido com relao ao pas que nos ofereceu generoso aco lhimento e excepcionais possibldades de trabalho; e em relao a nossos colegas franceses. interessados sobretudo nos recentes progressos de sua cincia no estrangeiro, teramos malogrado na misso de informao que nos tinham tacitamente confiado. Ao mesmo tempo. e sem nos negarmos a apelar para as fontes antigas todas as vezes que nos eram absoluta mente necessrias, procuramos renovar a base tradicional dos problemas do parentesco e do casamento. evitando limitarnos a uma nova tritura o de exemplos j fatigados pelas discusses anteriores de Frazer. Briffault. Crawley e Westermarck. A bibliografia de nosso trabalho revela- r. de maneira no fortuita. uma elevada porcentagem de artigos e tra- balhos,_ publicados durante os ltimos trinta anos. Esperamos assim que nos perdoem um empreendimento terico, talvez em vo, devido ao aces- so mais fcil. preparado por este livro. a fontes s vezes raras e sempre dispersas. O segundo ponto constitua um problema mais delicado. Ao empre- gar seus materiais o estudioso da sociologia comparada est constante- mente exposto a duas censuras, a saber. ou que, acumulando exemplos, desencarna-os e os faz perder toda substncia e significao. porque os isola arbitrariamente da totalidade da qual cada um deles um ele- mento, ou que, ao contrrio, para conservar o carter concreto dos fa- tos e manter vivo o elo que os une a todos os outros aspectos da cultura da qual foram tomados. o socilogo seja levado a s considerar um pequeno nmero de fatos. sendo-lhe negado. por motivo desta base de- masiado frgil. o direito de generalizar. Associa-se habitualmente o nome de Westermarck ao primeiro defeito. e o nome de Durkheim ao segundo. Mas. seguindo o caminho to rigorosamente traado por Mareei Mauss. possvel. segundo nos parece. evitar esses dois perigos. Neste livro concebemos os dois mtodos no como procedimentos mutuamente ex- clusivos. e sim correspondendo a dois momentos diferentes da demons- trao. Nas primeiras etapas da sintese defrontamo-nos com verdades to gerais que a funo da pesquisa consiste em suscitar a hiptese. guiar a intuio e ilustrar os princpios mais do que verificar a de- monstrao. Enquanto os fenmenos considerados so ao mesmo tempo to Simples e to universais que a experincia vivida basta para fun- dament-los com relao a cada observador. sem dvida legtimo - uma vez que, no se exige ainda que exeram nenhuma funo demons- trativa - acumular os exemplos, sem se preocupar demasiadamente com 21
  15. 15. I I I l o contexto que d a cada um sua significao particular. Porque, nessa fase, a significao, com poucas diferenas, a mesma para todos, e o confronto com a experincia prpria do sujeito, por sua vez membro de um grupo social, basta quase sempre para reconstituila. Os exem pios isolados e tomados de culturas muito diversas recebem mesmo, com este uso, um valor suplementar, o de atestarem, com uma fora tirada do nmero e da surpresa, a presena do semelhante que se acha por debaixo do diferente. Seu papel sobretudo alimentar a impresso e definir mepos as prprias verdades do que a atmosfera e a cor que as impregnam' no momento em que surgem nas crenas, nos temores e de- sejos dos 'homens. Mas, medida que a sintese progride e que se pretende atingir re- laes mais complexas, este primeiro mtodo deixa de ser legitimo. preciso limitar o nmero dos exemplos para aprofundar o sentido parti cular de cada um. Neste momento da demonstrao, todo seu peso re- pousa sobre um nmero muito pequeno de exemplos cuidadosamente escolhidos. A generalizao que se seguir permanecer vlida com a con dio dos exemplos serem tpicos, isto , de cada um deles permitir realizar uma experincia que corresponda a todas as condies do pro- blema, segundo a marcha do raciocnio permitir que sejam determina- das. Assim que o progresso de nossa argumentao, em todo este tra- balho, acompanhado por uma mudana de mtodo. Partindo de uma exposio sistemtica, na qual exemplos eclticos, escolhidos com a ni- ca preocupao de seu valor evocativo, tm por funo principal ilustrar o raciocnio e levar o leitor a reviver em sua prpria experincia situa- es do mesmo tipo, restringimos pouco a pouco nosso horizonte para permitir aprofundar a pesquisa, de tal modo que nossa segunda parte - excetuada a concluso - apresentase quase como um grupo de trs monografias, dedicadas respectivamente organizao matrimonial do sul da sia, da China e da ndia. Estas explicaes preliminares eram, sem dvida, necessrias para justificar o procedimento. Este livro no poderia ter sido publicado sem o auxlio recebido, por diversas formas, de pessoas e instituies. Primeiramente, a Fundao Rockefeller, que nos deu os meios morais e materiais de empreendlo, em seguida, a New School for Social Research, que nos permtiu escla- recer e formular, graas prtica do ensino, algumas de nossas idias, e enfim todos os nossos mestres e colegas com os quais pudemos, em contato pessoal ou por correspondncia, verificar fatos e precisar hip- teses, ou que nos dispensaram encorajamentos. Contamos entre estes os senhores Robert H. Lowie, A. L. Kroeber e Ralph Linton, o Dr. Paul Rivet, Georges Davy, Maurice Leenhardt, Gabriel Le Bras, Alexandre Koyr, Raymond de Saussure, Alfred Mtraux e Andr Weil, que teve a genti- leza de acrescentar um apndice matemtico primeira parte. Agrade- cemos a todos eles e muito particularmente a Roman Jakobson, cuja insistncia amiga constrangeunos quase a levar a termo um esforo cuja inspirao terica fica a dever-lhe ainda muito mais. Ao dedicar nosso trabalho memria de Lewis H. Morgan, fomos guiados por um trplice objetivo: prestar homenagem ao grande inicia- dor de Ulla ordem de pesqUisas em que, seguindo suas pegadas, modes- tamente nos empenhamos; inclinar-nos, atravs dele, diante dessa escola antropolgica norte-americana que fundou e que durante quatro anos nos 22
  16. 16. associou to fraternalmente a seus trabalhos e debates; e tambm talvez tentar devolver-lhe em pequena extenso o servio que lhe devemos, lem- brando que essa extenso foi sobretudo grande numa poca em que o escrpulo cientfico e a exatido da observao no lhe pareciam incom- patveis com um pensamento que no se envergonhava de se confessar terico, e com um gosto filosfico audacioso. Porque a sociologia no progredir de maneira diferente de suas predecessoras, e convm tanto menos esquecer esta observao no momento em que comeamos a en- trever, "como atravs de uma nuvem", o terreno no qual se realizar o encontro. Depois de ter citado Eddington: "a fsica torna-se o estudo das organizaes", Kohler escrevia quase h vinte anos: "Neste cami- nho. .. ela encontrar a biologia e a psicologia". Este trabalho ter atingido seu Objetivo se, depois de t-lo terminado, o leitor sentir-se in- clinado a acrescentar: e a sociologia. Nova Iorque, 23 de fevereiro de 1947. W. Khler. La perception humaine. Journal de Psychologfe. voI. 27, 1930, _p. 30. 23
  17. 17. PREFACIO DA SEGUNDA EDIO Passaram-se dezessete anos desde a publicao deste livro, e mais de vinte depois que foi terminada a redao dele_ Durante estes vinte anos apareceram tantos materiais novos, a teoria do parentesco tornou-se to cientifica e complicada, que para atualiz-Ia seria preciso reescrev-lo in- teiramente_ Quando o releio hoje, a documentao me parece coberta de poeira e a expresso antiquada_ Se tivesse sido mais prudente e menos vacilante sob o fardo de meu empreendimento, sem dvida teria per- cebido desde o comeo que a enormidade dele incluiria fraquezas, so- bre as quais os criticos maldosamente insistiram_ Teria tambm com- preendido melhor a discreta atitude de desconfiana dissimulada por trs do elogio, primeira vista lisonjeiro, que Robert Lowie me fez quando me devolveu o manuscrito que tivera a bondade de percorrer. Disse-me, com efeito, que a obra era in the grand style... E contudo, no renego nada quanto inspirao terica, ao mtodo e aos principios de inter- pretao. Isto explica a deciso que finalmente tomei de reduzir as cor- rees e acrscimos estritamente no minimo. Afinal, um livro publi- cado em 1949, e no outro, que o editor desejou reimprimir. Em primeiro lugar corrigi um certo nmero de enganos tipogrficos nos quais esplritos pouco caritativos quiseram ver outros tantos erros por mim cometidos. o caso do sr. Lucien Malson, em seu excelente livrinho sobre Les Entants sauvages (Unlon Gnrale d'Edltions, collection 10/18, Paris 1964), onde me censura por informaes de que no sou responsvel, pois provm de autores que cito e com os quais no est de acordo. Entretanto dou-lhe razo quandO considera que as duas ou trs rpidas pginas consagradas ao problema que o Interessa tinham pouca utilidade e que a soluo, boa ou m, que adoto no acrescenta quase nada demonstrao. Confesso ser um execrvel leitor de provas, no sendo inspirado, em presena de textos terminados, nem pela terna solicitude de um au- tor nem pelas agressivas disposies que fazem os bons corretores. Uma vez terminado, o livro torna-se um corpo estranho, um ser morto in- capaz de prender minha ateno e menos ainda meu Interesse. Este mundo no qual vivi to ardentemente fecha-se, excluindo-me de sua in- timidade. As vezes com dificuldade que consigo compreend-Io_ A apre- sentao tipogrfica da primeira edio tanto mais Incorreta quanto na poca no podia me beneficiar de nenhuma ajuda. Para a segunda edio, renunciei completamente a reler as provas e expresso minha In- 24 I ~
  18. 18. L teira gratido sra. Noele Imbert-Vier e srta. Nicole Belmont que - sobretudo a ltima - tiveram a bondade de se encarregar dessa tarefa. Sem dvida eram inevitveis erros de fato em um trabalho que, con- forme meu fichrio documenta, exigiu o escrutinio de mais de sete mil livros e artigos. Corrigi alguns desses erros que, na maioria das vezes, tinham escapado aos meus censores. Em compensao, estes encamia- ram-se com gosto sobre passagens cujo sentido exato no podiam al- canar por falta de familiaridade com a lngua francesa. Censuraram- me, tambm, como errOs etnogrficos, testemunhos provenientes de afa- mados observadores que citava sem empregar aspas porque a referncia fonte era dada logo aps. Sem dvida teriam sido recebidos com mais ateno se no me fossem atribudos. Deixando de lado estas retificaes de detalhes, no modifiquei subs- tancialmente, nem desenvolvi o texto primitivo a no ser em trs pontos, tomando sempre o cuidado de colocar entre colchetes retos as novas passagens, para assinal-las ateno do leitor. Convinha, primeiramente, mesmO se eu prprio no fizesse, incluir um estudo de conjunto sobre os sistemas de descendncia chamados "bi- laterais" ou "indiferenciados", mais numerosos do que se acreditava na poca em que escrevi meu livro, embora, por efeito de uma reao le- gtima, tenha havido talvez demasiada pressa em incluir nesses novos gneros sistemas a respeito dos quais comeamos agora a perceber que poderiam reduzir-se a formas unilaterais. Em segundo e terceiro lugares, refiz todo o exame dos sistemas Mumgin (captulo XII) e Katchin (captulos XV-XVII). Apesar das cri- ticas que me foram feitas e que devia refutar, julgo que as interpreta- es por mim propostas em 1949, sem serem definitivas, nada perderam em validade_ Se deixei de modificar as seces H e IH da segunda parte, consa- gradas China e ndia, a razo completamente diferente, a saber, para atacar agora peas to grandes no tenho mais nem a coragem nem o apetite que seriam necessrios. Por volta de 1945 os trabalhos sobre os sistemas de parentesco da China e da ndia eram relativamente pouco numerosos. Podia-se sem demasiada presuno pretender abrang-los to- dos, fazer a sntese deles e extrair sua significao_ Hoje em dia isso no mais permitido, porque os sinlogos e os indianistas prosseguem esses estudos apoiando-se em conhecimentos histricos e filosficos que um comparatismo apressado no tem condies de dominar. claro que as pesquisas magistrais de Louis Dumont e de sua escola sobre o paren- tesco na ndia tomaram de agora em diante este vasto conjunto um terreno especializado. Resignei-me portanto a manter as seces sobre a China e a ndia, rogando ao leitor que as aceite como aquilo que so, isto , etapas ultrapassadas pelo progresso da etnologia, mas que os competentes colegas que tiveram a amabilidade de as rever, antes desta reedio - o prprio Louis Dumont e Alexandre Rygaloff -, com in- dUlgncia julgaram que ainda ofereciam algum interesse. Sobre os problemas fundamentais tratados na introduo, muitos fa- tos novos e a evoluo do meu pensamento fazem com que no me ex- primisse mais hoje em dia nos mesmos termos. Continuo a crer que a proibio do incesto explica-se inteiramente por causas sociolgicas, mas certo quI! tratei do aspecto gentico de maneira excessivamente ligeira_ 25
  19. 19. r L Uma apreciao mais justa da taxa muito elevada das mutaes e da proporo das que so nocivas levaria a afirmaes mais atenuadas, mes- mo se as conseqncias deletrias das unies consangneas no tiveram papel na origem ou na persistncia das regras da exogamia. A respeito da causalidade biolgica, limitar-me-ei agora a dizer, repetindo uma fr- mula clebre, que, para explicar as proibies do casamento, a etnologia no tem necessidade dessa hiptese. No que diz respeito oposio entre natureza e cultura, o estado atual dos conhecimentos e o da minha prpria reflexo (um, alis, se- guindo-se ao outro) oferecem em vrios sentidos um aspecto paradoxal. Propunha traar a linha de demarcao entre as duas ordens guiandome pela presena ou ausncia da linguagem articulada, e poder-seia pensar que o progresso dos estudos de anatomia e fisiologia cerebrais conferem a este critrio um fundamento absoluto, porque certas estruturas do siso tema nervoso central, prprias exclusivamente do homem, parecem gover nar a capacidade de denominar os objetos. Mas, por outro lado, apareceram diversos fenmenos que tornam a linha de demarcao, seno menos real, em todo caso mais tnue e tor- tuosa do que se poderia imaginar h vinte anos. Processos complexos de comunicao, pondo em ao s vezes verdadeiros smbolos, foram descobertos nos insetos, peixes, aves e mamferos. Sabe-se, tambm, que algumas aves e mamferos, principalmente os Chimpanzs no estado sel- vagem, sabem confeccionar e utilizar instrumentos. Nessa poca cada vez mais recuada, quando teria comeado o que convm chamar sempre o paleoltico inferior, espCies e mesmo gneros diferentes de homindeos, talhadores de pedras e de ossos, parecem ter coabitado nos mesmos lugares. Somos assim levados a perguntar qual o verdadeiro alcance da oposio entre a cultura e a natureza. Sua simplicidade seria ilusria se, em grande parte, tivesse sido obra de uma espcie do gnero H orno chamada por antfrase sapiens, que se esforava ferozmente em eliminar formas ambglias, julgadas prximas do animal, porque teria sido ins- pirada, h centenas de milhares de anos, pelO mesmo esprito obtuso e destruidor que a impele hoje em dia a aniquilar outras formas vi vas, depois de tantas sociedades humanas falsamente repelidas para o lado da natureza, porque no a repudiavam (NaturvOlkern). como se ela tivesse primeiramente pretendido ser a nica a personificar a cul tura em face da natureza, e permanecer agora, exceto em casos nos quais pOde submetla totalmente, a exclusiva encarnao da vida em face da matria inanimada. Nesta hiptese, a oposio entre cultura e natureza no seria nem um dado primitivo nem um aspecto objetivo da ordem do mundo. Se ria preciso ver nela uma criao artificial da cultura, uma obra defen siva que esta ltima teria cavado em redor de si porque no se sentia capaz de afirmar sua existncia e originalidade a no ser cortando to das as passagens adequadas a demonstrar sua conivncia originria com as outras manifestaes da vida. Para compreender a essncia da cul tura seria preciso, portanto, remontar at fonte e contrariar-lhe o m peto, reatar todos os fios rompidos, procurando a extremidade livre de- les em outras famlias animais e mesmo vegetais. Finalmente, poder-se- talvez descobrir que a articulao da natureza com a cultura no se 26
  20. 20. l reveste da aparncia interessada de um reino hierarquicamente super- posto a outro, sendo irredutivel a este, mas tem antes a aparncia de uma repetio sinttica, permitida pela emergncia de certas estruturas cerebrais, dependentes da natureza, de mecanismos j montados mas s ilustrados pela vida animal em forma desconexa e que concede em or- dem espalhada. Entre os desenvolvimentos a que este livro deu lugar, o mais ines- perado para mim foi sem dvida aquele que acarretou a distino, que se tornou quase clssica na Inglaterra, entre as noes de "casamento prescritivo" e "casamento preferencial", Tenho certo embarao em dis- cuti-la, to grande a divida de gratido que contra com o autor dela, Rodney Needham, que soube, com muita penetrao e vigor, tornar-se meu intrprete (e s vezes tambm meu crtico) junto do pblico an- glo-saxo em um livro, Structure and Sentiment (Chicago 1962), com o qual preferiria no exprimir um desacordo, mesmo se, como o caso, este se refira a um problema limitado. Contudo, a soluo proposta por Needham acarreta uma alterao to completa do ponto de vista em que me tinha colocado que parece indispensvel retomar aqui alguns temas que, por deferncia para com meus colegas britnicos, tinha pre- ferido apresentar primeiramente em sua lingua e em seu pais, porque foram eles que me ofereceram a ocasio de faz-lo, ao me confiarem a Huxley Memorial Lecture para o ano de 1965. Desde muito se sabe, e as simulaes realizadas em computadores empreendidas por Kumdstadter e sua equipe' acabaram de demonstr-lo, que as sociedades que preconizam o casamento entre certos tipos de parentes no conseguem submeter-se norma seno em um pequeno nmero de casos. As taxas de fecundidade e de reproduo, o equilbrio demogrfiCO dos sexos, a pirmide das idades nunca oferecem a bela harmonia e a regularidade exigida para que, no grau prescrito, cada individuo esteja seguro de encontrar no momento do casamento um cn- juge apropriado, inesmo se a nomenclatura do parentesco suficiente- mente extensa para confundir graus do mesmo tipo, mas desigualmente afastados, o que freqentemente acontece a ponto da noo de descen- dncia comum tornar-se totalmente terica. Da a idia de dar a estes sistemas a qualificao de "preferenciais". Acabamos de ver que esta qualificao traduz a realidade. Mas existem sistemas que confundem vrios graus em categorias ma- trimoniais prescritas, nas quais no mesmo inconcebvel que figurem pessoas que no so parentes. o caso das sociedades australianas de tipo clssico, e de outras, mais freqentemente encontradas no sudeste da sia, onde o casamento se trava entre grupos que so chamados, e eles prprios assim se chamam, "tomadores" ou "doadores" de mulheres. A regra que um grupo qualquer s pode receber mulheres de seus "doadores", dando-as a seus "tomadores". Como o nmero desses grupos parece sempre multo elevado, existe uma certa liberdade de escolha para qualquer indivduo, e nada obriga, de uma gerao outra, e mesmo para os casamentos contraidos por vrios homens da mesma gerao, a recorrer sempre ao mesmo "doador". De modo que as mulheres ca 1. P. Kundstadler, R. Buler, F. F. Slephan, Ch. F. Westoff, "Demography and Preferential Marriage Patterns", American Journal 01 Physical Anthropology, 1963. 27
  21. 21. sadas com dois homens que pertenam a geraes consecutivas (por exemplo, o pai e o filho) podem, se descenderem de grupos "doadores" diferentes, no ter entre si nenhum lao de parentesco. A regra pois muito malevel e as sociedades que a adotam no encontram dificuldade sria em observ-Ia. Exceto casos excepcionais, fazem o que dizem dever ser feito. Tal a razo pela qual foi proposto chamar "prescritivo" este sistema de casamento. Em continuao a Needham, vrios autores afirmam hoje que meu livro s se ocupa dos sistemas prescritivos, ou mais exatamente (porque basta percorr-lo para se ter a certeza do contrriO), que tal deveria ter sido minha inteno se no tivesse confundido as duas formas. Mas co- mo, segundo os adeptos desta distino, os sistemas prescritivos so pou- co numerosos, o resultado, se tivessem razo, seria uma curiosa conse- qncia: eu teria escrito um livro muito grosso que, desde 1952 (data da publicao do trabalho de J. P. B. de Josselin de Jong, Lvi-Strauss's Theory on Kinship and Marriage, Leiden 1952), despertou todo tipo de comentrios e discusses, quando se referia a fatos to raros e se apli- caria a um domnio to limitado que de modo algum se compreende o interesse que poderia oferecer para uma teoria geral do parentesco. No entanto, a participao que Needham teve a amabilidade de exer- cer na edio inglesa deste livro, e que cria um titulo a mais em minha gratido para com ele, mostra que no perdeu a seus olhos todo o interesse terico. Como isso teria sido possvel se apenas discutisse ca- sos isolados? Seria preciso ento dar razo a Leach, quandO disse: Since the "elementary structures" which he discusses are decidedly unusual they seem to provide a rather flimsy base for a general theory, [Desde que as "estruturas elementares" so decididamente raras parecem oferecer uma base muito inconsistente para uma teoria geral: N. do A.] e quando fala de splendid failure ["esplndido malogro"] a este respeito. "Claude Lvi- Strauss - Anthropologist and Philosopher", New Left Review, 34, 1965, p. 20). Mas ao mesmo tempo fica-se perplexo diante dos motivos que levaram os editores a republicarem, um em francs, outro em ingls, uma obra que teria se encerrado com o insucesso, mesmo esplndido, cerca de vinte anos depois de seu primeiro aparecimento. Ora, se empreguei indiferentemente as noes de preferncia e de obrigao, associando-as mesmo s vezes, conforme me foi objetado, na mesma frase, porque no meu modo de entender no denotam realidades sociais diferentes, mas correspondem mais a maneiras pouco diferentes que os homens adotam para pensar a mesma realidade. Definindo os sistemas chamados prescritivos da maneira como acabamos de fazer, a exemplo de seus inventores, a concluso que se impe que por este lado tais sistemas no prescreveriam grande coisa. Aqueles que os pra- ticam sabem bem que o esprito desses sistemas no se reduz propo- sio tautolgica segundo a qual cada grupo obtm suas mulheres de "doadores" e d suas filhas a "tomadores". Tm tambm conscincia de que o casamento com a prima cruzada matrilateral (filha do irmo da me) oferece a mais simples ilustrao da regra, a frmula mais apro- priada para garantir-lhe a perpetuao, ao passo que o casamento com a prima cruzada patrilateral (filha d irm do pai) violaria a regra sem apelo. Porque o sistema falaria em termOs de grau de parentesco, se estivesse no caso ideal em que o nmerO dos grupos que fazem trocas, 28 1
  22. 22. I L reduzido ao minimo, proibisse abrirem-se ou fecharem-se provisoriamente ciclos secundrios. No novidade saberse que existe uma distncia entre este modelo terico e a realidade emprica. Gilhodes, um dos primeiros observado res dos Katchin, acentuou isso vrias vezes, ao descrever como se pas- savam as coisas, e mesmo os esquemas de Granet fazem destacar a pluralidade dos ciclos. Minha primitiva redao levava cuidadosamente em conta esta complexidade. No resta dvida, entretanto, que a reali dade emprica dos sistemas chamados prescritivos s tem sentido quando relacionada a um modelo terico elaborado pelos prprios indgenas antes dos etnlogos, e este modelo no pOde evitar recorrer noo de grau. No alis o que Needham faz quando intitula um artigo "The For mal Analysis of Prescriptive Patrilateral CrossCousin Marriage" (South western Journal of Anthropology, vol. 14, 2, 1958), mas confundindo ainda uma vez, segundo me parece, o plano do modelo e o da realidade em prica? Porque se algum pretende demonstrar que nenhuma sociedade pOderia pr em prtica de maneira durvel a regra de casamento com a prima patrilinear, por motivo dos insuportveis constrangimentos resul tantes da inverso do sentido das trocas matrimoniais em cada gerao, a no ser que se satisfaa com uma fraca proporo de casamentos regulares, nada acrescenta, ou s pouca coisa, s consideraes do meu captulo XXVII. Mas se quiser concluir que o modelo deste tipo de casamento contraditrio, ento certamente se enganar. Com efeito, a causa no seria defensvel (e mesmo assim com certas ressalvas) a no ser que as trocas matrimoniais se fizessem sempre entre cls, hiptese que de modo algum exigida, sendo arbitrariamente formulada. Come- ase portanto introduzindo uma condio impossvel conforme eu tinha estabelecido ao mostrar (p. 553554 da primeira edio) que o casamento com a prima patrilateral sempre incapaz de "realizar uma estrutura global", e que "no existe lei" - pelo exclusivo prazer de voltar a en contrar esta impossibilidade. Mas, alm de nada excluir a priori que siso temas patrilaterais possam manterse em condies precrias, o modelo adequado de tais sistemas existe ao menos no esprito das numerosas popUlaes que os proscrevem, devendo portanto fazer alguma idia a respeito deles. melhor reconhecermos que as noes de casamento prescritivo e de casamento preferencial so relativas. Um sistema preferencial preso critivo quando o consideramos no nvel do modelo, um sistema pres- critivo no poderia ser seno preferencial quando o consideramos no nvel da realidade, a menos que no saiba acomodar a tal ponto sua regra que, se nos obstinarmos a darlhe a denominao chamada preso critiva (em vez de, conforme convm, considerar seu aspecto preferen cial sempre dado), acabar por no significar nada mais. Porque de duas coisas uma: ou, ao mudar de grupo "doador", restabelece-se uma aliana antiga, e a considerao do grau preferido continuar sendo pertinente (por exemplo, a nova esposa ser uma filha do bisneto do irmo da bisav, por conseguinte prima matrilateraD, ou ser o caso de uma ali ana inteiramente nova. Dois casos podem ento apresentar-se, conforme esta aliana anunciar outras do mesmo tipo e, pelO mesmo raciocinio anterior, tornarse causa de prefernCias futuras, exprimveis em termos de 29
  23. 23. I I' graus, ou ento no tem conseqncias, tornando-se simples efeito de uma escolha livre e sem motivo. Por conseguinte, se o sistema pode ser cha- mado prescritivo, na medida em que primeiramente preferencial, e se no for tambm preferencial o aspecto prescritivo desaparece. Reciprocamente, um sistema que preconiza o casamento com a filha do irmo da me pode ser chamado prescritivo, mesmo se a regra for raramente obedecida, porque diz o que se deve fazer. A questo de sa- ber at que ponto e em que proporo os membros de determinada so- ciedade respeitam a norma muito interessante, mas diferente da questo do lugar que convm dar a esta sociedade em uma tipologia. Porque basta admitir, de acordo com a probabilidade, que a conscincia da re- gra inclina, ainda que pouco, as escolhas no sentido prescrito e que a porcentagem dos casamentos ortodoxos superior que se verificaria se as unies fossem feitas ao acaso, para reconhecer que est em ao nessa sociedade aquilo que se pOderia chamar um "operador" matrilate- ral, desempenhando o papel de piloto. Certas alianas pelo menos en- tram pelo caminho que o operador lhes traa, e basta isso para imprimir uma curvatura especifica ao espao genealgico. Sem dvida, haver um grande nmero de curvaturas locais, e no uma s. Sem dvida, estas curvaturas locais reduzir-se-o freqentemente a esboos, e no formaro ciclos fechados seno em casos faros e excepcionais. Mas os esboos de estruturas que surgiro aqui e ali bastaro para fazer do sistema uma verso probabilista de sistemas mais rijOS, cuja noo inteiramente te- rica, nos quais os casamentos seriam rigorosamente conformes com a regra que agrada ao grupo social enunciar. Lounsbury tinha compreendido muito bem, ao fazer a resenha de Structure and Sentiment (American Anthropologist, 64, 6, 1962, p. 1308), que o malentendido fundamental provm de se ter igualado a oposio entre "estruturas elementares" e "estruturas complexas" com a oposio entre "casamento prescritivo" e "casamento preferencial", e em seguida de apoiar-se nessa confuso para substituir uma outra.' Sustento, ao contrrio, que uma estrutura elementar pode ser indiferentemente pre- ferencial ou prescritiva. O critrio de uma estrutura elementar no se acha a, mas reside inteiramente no fato do cnjuge, quer preferido quer prescrito, ser tal pela exclusiva razo de pertencer a uma categoria de afinidade ou de possuir com Ego uma certa relao de parentesco. Nou tras palavras, a relao imperativa ou desejvel uma funo da estru- tura social. Entramos no domnio das estruturas complexas quando a razo da preferncia ou da prescrio depende de outras consideraes. Por exemplo, quando se explica pelo fato da esposa desejada ser loura, ou esbelta, ou inteligente, ou porque pertence a uma famlia rica e po derosa. Neste ltimo caso tratase sem dvida de um critrio social, cuja apreciao relativa, no sendo estruturalmente definida pelo sistema Tanto no caso dos sistemas elementares quanto no dos sistemas com- plexos, por conseguinte, o emprego do termo "preferencial" no se re 2. O mesmo pode dizer-se da equiparao da troca restrita solidariedade me- cnica, e da troca generalizada solidariedade orgnica, admitida sem discusso por Homans e Schneider. Porque, se considerarmos a sociedade como um todo, tanto na troca restrita quanto na troca generalizada, cada segmento desempenha uma funo idntica dos Qutros segmentos. Trata-se, portanto, de duas formas diferentes da solidariedade mecnica. Sem dvida, eu prprio, vrias vezes, utilizei os termos "mecnico" e "orgnico", mas numa acepo mais frouxa que a acepo que lhes foi dada por Durkheim e que houve quem pretendesse reconhecer. 30
  24. 24. fere a uma inclinao subjetiva, que levaria os individuos a procurar o casamento com um certo tipo de parente. A "preferncia" traduz uma situao objetiva. Se tivesse o poder de fixar a terminologia, chamaria "preferencial" todo sistema no qual, na falta de uma prescrio clara mente formulada, a proporo dos casamentos entre um certo tipo de parentes reais ou classificatrios (tomando esta palavra no sentido mais vago que o definido por Morgan), quer os membros do grupo o saibam ou ignorem, mais elevada do que resultaria se fosse devida ao acaso. Esta proporo objetiva reflete certas propriedades estruturais do siso tema. Se chegssemos a apreendlas, estas propriedades se revelariam isomrficas das que nos so diretamente cognoscveis em sociedades que ostentam a mesma "preferncia", mas dandolhe o aspecto de uma preso crio, e admitindo na prtica obter exatamente o mesmo resultado, a saber, na hiptese do casamento com a prima cruzada matrilateral, assim como com mulheres provenientes de grupos exclusivamente "doadores", de um lado redes de aliana que tendem idealmente a se fecharem (em- bora no o faam necessariamente), de outro lado e sobretudo, redes relativamente longas em comparao com as que se poderia observar ou imaginar em sociedades onde o casamento fosse preferencial com a filha da irm do pai, acarretando (mesmo na ausncia de regra pres- critiva) um encurtamento correlativo dos ciclos.' Em outras palavras, no contesto que entre as formas prescritiva ou preferencial de um tipo qualquer de casamento no se possa fazer uma distino de ordem ideolgica. Mas os termos extremos sempre admitem uma srie contnua de aplicaes intermedirias. Fao o postu- lado de que esta srie constitui um grupo e que a teoria geral do sistema s possvel no nvel do grupo e no no nvel de tal ou qual aplicao. No se deve dissolver o sistema, reduzi-lo pela anlise s diversas ma- neiras pelas quais, aqui ou ali, os homens preferem represent-lo. Sua natureza decorre objetivamente do tipo de distncia criada entre a for- ma que se impe rede de aliana de uma sociedade e a que se ob- servaria nessa sociedade se as unies fossem feitas ao acaso. No fundo, a nica diferena entre o matrimnio prescritivo e o preferencial si- tuase no plano do modelo. Corresponde diferena que antigamente propus traar entre o que chamava "modelo mecnico" e Umodelo esta- tstico" (Anthropologie Structurale, p. 311-317), isto , em um caso um modelo cujos elementos encontramse na mesma escala que as coisas 3. l!: verdade que, acompanhando Josselin de Jong, que j tinha feito uma obser- vao do mesmo tipo h muito tempo (l. c.), Maybury-Lewis ("Prescriptive Marriage Systems" Southwestern JO'Urnal 01 Anthropology, 21, 3, 1965) acredita poder afirmar que o modelo terico de um sistema patrilateral contm ciclos to longos quanto o modelo matrilateral. A nica derena seria que os ciclos se invertem regular- mente no primeiro caso, ao passo que conservam a mesma orientao no segundo_ Mas, ao ler desse modo o diagrama, somos simplesmente vtimas de uma iluso de tica. Que os ciclos curtos, exprimindo o desejo do retorno to rpidO quanto possivel da mulher dada em troca da mulher cedida gerao anterior (filha da irm pela irm do pai), constituem o trao caracterfstico do sistema patrilateral. fato amplamente comprovado pela filosofia no somente daqueles que o aprovam mas tambm daqueles, em nmero muito maior, que o condenam. E vale mais concordar com o julgamento universal dos interessados do que contradizer ao mesmo tempo os fatos e a si mesmo, afirmando simultaneamente que um sistema patrila- teral forma ciclos longos porque os percebemos no diagrama, mas que sua natureza tal que no consegue fechar mesmo os ciclos mais curtos. Raciocinando dessa maneira, confunde-se a realidade empfrica no mais somente com o modelo, mas com o diagrama. 31
  25. 25. cujas relaes so por ele definidas, classes, linhagens, graus. No outro caso, preciso abstrair o modelo partindo de fatores significativos, dis- simulados por trs das distribuies na aparncia regidas pelo jogo das probabilidades. Esta procura de uma estrutura significativa das trocas matrimoniais sobre as quais a sociedade considerada nada diz, quer diretamente por intermdio de regras, quer indiretamente graas s inferncias que pos- slvel tirar da terminologia do parentesco ou por qualquer outro meio, posslvel quando se trata de um grupo pouco numeroso e relativamente fechado. Faz-se ento as genealogias falarem. Mas, quando crescem a di- menso e a fluidez do grupo e at seus limites se tomam imprecisos, o problema complica-se singularmente. O grupo continua a dizer o que no faz, ao menos em nome somente da proibio do incesto. Mas como saber se, sem perceber, faz alguma coisa a mais (ou a menos) do que seria o caso se seus membros escolhessem o cnjuge em funo de sua histria pessoal, ambies e gostos? nestes termos, segundo me parece, que se levanta o problema da passagem das estruturas elemen- tares s estruturas complexas, ou, se preferirmos, da extenso da teoria etnolgica do parentesco s sociedades contemporneas. Na ocasio em que escrevia meu livro o mtodo a seguir parecia- me simples. Dever-se-ia decidir primeiramente reduzir as sociedades con temporneas aos casos privilegiados do ponto de vista da pesquisa, que constituem os isolados demogrficos com forte coeficiente de endogamia, nos quais possvel esperar obter cadeias genealgicas e redes de aliana que se entrecruzam vrias vezes. Na medida em que uma determinvel proporo de casamentos se produziria entre parentes, seria possvel sa ber se estes ciclos so orientados ao acaso ou se uma proporo signifi cativa depende mais de uma forma que da outra. Por exemplO, os cn- juges aparentados (freqentemente sem saberem) so tais em linha pa- terna ou em linha materna, e, em cada caso, descendem de uma relao entre primos cruzada ou paralela? Supondo-se que aparea uma orien- tao, seria possvel ento classific-la em um tipo ao lado das estrutu- ras anlogas, porm melhor definidas, que os etnlogos j estudaram nas pequenas sociedades. Entretanto, a distncia entre sistemas indeterministas, que julgam ou desejam ser tais, e os sistemas bem determinados que designei com o nome de estruturas elementares, demasiado grande para que a apro- ximao seja decisiva. Felizmente (pelo menos acreditava poder diz-lo), a etnografia fornece um tipo intermdio, com sistemas que apenas procla- mam impedimentos ao casamento, mas estendendo-os to longe por efeito das coaes inerentes sua nomenclatura de parentesco, que por motivo do nmero relativamente fraco da populao, no excedendo em geral alguns milhares de indivduos, possvel esperar obter o inverso, a sa- ber, um sistema de prescries inconscientes que reprOduziria exatamen- te, mas em cheio, os contornos do molde oco formado pelo sistema das proibies conscientes. Se esta operao fosse possvel, teramos nossa disposio um mtodo aplicvel a casos nos quais a margem de liberda- de torna-se maior entre o que proibido fazer e o que se faz, tomando aleatria a obteno do positivo de acordo com o negativo, que o nico a ser dado. 32
  26. 26. r l Os sistemas que acabamos de mencionar so conhecidos em etnogra- fia pelo nome de sistemas Crow-Omaha, porque nessas duas tribos da Amrica do Norte que foram pela primeira vez identificadas suas va- riantes, respectivamente matrilinear e patrilinear_ por eles que em 1947-1948 propunha-me a abordar o estudo das estruturas de parentesco complexas, em um segundO volume, ao qual vrias vezes fao aluso e que sem dvida nunca escreverei. Convm, portanto, explicar por que abandonei este projeto_ Embora convencido de que no se pode genera- lizar a teoria do parentesco sem passar pelos sistemas Crow-Omaha, fui progressivamente verificando que a anlise deles levanta imensas dificul- dades, que no so da alada dos etnlogos mas dos matemticos_ As pessoas com quem ocasionalmente discuti o problema, h dez anos, esto convencidas disso_ Algumas declararam que o problema tinha soluo, e outras no, por uma razo de ordem lgica que indicarei adiante_ Em todo caso ningum sentiu desejo de ocupar o tempo que seria neces- srio para esclarecer a questo_ Radcliffe Brown e Eggan ensinaram-nos muitas coisas a respeito des- ses problemas, mostrando que um dos caracteres essenciais deles consis- te em fazer passar a situao de pertencer a uma linhagem frente da relao de pertencer gerao_ Mas, ao que parece, houve demasiada pressa em classificar os sistemas Crow-Omaha juntamente com outros, que tambm designam por um nico termo vrios representantes, masculi- nos ou femininos, de uma linhagem, embora relacionem-se com geraes consecutivas, e que, como os sistemas Crow-Omaha fazem subir ou descer de uma ou de duas geraes certos membros de duas linhagens, dispos- tas simetricamente de um e de outro lado de uma terceira linhagem, na qual o observador decide colocar-se_ Com efeito, so numerosos os au- tores que classificam em conjunto as nomenclaturas Crow-Omaha e a das sociedades chamadas de casamento assimtrico, isto , prescrltivo ou pre- ferencial com a prima cruzada matrilateraL Como a teoria desses sis- temas no levanta nenhum problema, o mesmo aconteceria com os outros. No entanto, uma curiosa anomalia deve chamar a ateno_ fcil desenhar o diagrama de um sistema assimtrico_ Tem o aspecto de uma cadeia de ligaes sucessivas, cUja orientao permanece a mesma em cada nvel de gerao, formando assim ciclos fechados superpostos que possvel traar na superfcie de um cilindro e projetar sobre um plano_ Por outro lado, ningum conseguiu ainda dar uma representao grfica satisfatria de um sistema Crow-Omaha em um espao de duas ou mes- mo de trs dimenses_ A medida que as geraes se sucedem, surgem novas linhagens, cuja representao exige outros tantos planos mantidos de reserva_ Na falta de informaes genealgicas que completem as que so explicitamente fornecidas pelo sistema, s temos o direito, durante o lapso de trs ou quatro geraes, de fazer uma nica vez estes planos se recortarem_ Como a regra vale para os dois sexos e uma linhagem inclui pelo menos um homem e uma mulher em cada gerao (seno o modelo no estaria em equilbrio), o resultado que mesmo um dia- grama limitado a algumas geraes exige muito mais dimenses espa- ciais do que possvel projetar no papel. acrescentando-se a elas uma dimenso temporal que no levada em conta no modelo de um sistema assimtrico_ Radcllffe Brown e Eggan contornaram a dificuldade, mas 33
  27. 27. l justapondo vrios diagramas, cada um dos quais s ilustra um aspecto ou um momento dos sistemas, no sendo a totalidade expressa no conjunto. Vejamos agora como um observador to perspicaz quanto Deacon procedeu para descrever um sistema Crow da Melansia. Entre os Se- niang, diz ele, "a escolha de um cnjuge determinada por numerosas proibies, mas no por prescries", e acrescenta: "ao menos em teo- ria, o casamento com uma mulher de determinado cl impossvel se, tanto quanto algum se lembre, j houve um matrimnio do mesmo ti- po durante as geraes anteriores" (Malekula, A Vanishing People of the New Hebrides, Londres 1934, p. 134). Basta inverter estas duas frmulas para obter uma definio inteiramente satisfatria do casamento assim- trico. Neste caso, com efeito, uma nica prescrio basta para deter- minar a escolha do cnjuge, a prescrio feita ao indivduo masculino de casar-se com uma filha do irmo da me ou com uma mulher prove- niente de um grupo "doador". Ademais, o grupo "doador" reconhecido pelo fato de imemorialmente alianas anlogas j terem sido contral- das com ele. No lcito concluir de quanto foi dito que todos os sistemas cha- mados Crow-Omaha se abstm necessariamente de promulgar prescries ou de enunciar preferncias matrimoniais, nem que, no limite dos cls autorizados, a liberdade de escolha seja total. Os Cherokee matrilineares probem somente dois cls, os da me e do pai, e preconizam o casa- mento com uma "av", isto , com uma filha do cl do pai da me ou do cl do pai do pai. Entre os Hopi o casamento era teoricamente proibido com toda mulher proveniente de uma fratria que se relacio- nasse com o cl da me, do pai ou do pai da me. Se estas sociedades compreendessem somente quatro cls ou fratrias, ou seja, uma para ca- da tipo de avs, seu sistema de casamento se aproximaria muito do sistema dos Kariera e dos Aranda da Austrlia, onde, para encontrar um cnjuge conveniente, um indivduo rejeita duas ou trs linhagens e se dirige s restantes, que podem ser uma ou duas. Mas os sistemas Crow- Omaha contm sempre mais de quatro linhas. Havia sete cls entre os Cherokee, dez entre os Omaha, treze entre os Crow e sem dvida mais outrora, doze fratrias e cerca de cinqenta cls entre os Hopi, trinta a quarenta cls entre os Seniang. Sendo o casamento llcito, em regra ge- ral, com todos os cls que no so Objeto de proibio formal, a estru- tura de tipo Aranda, para a qual tenderia todo sistema Crow-Omaha se o nmero dos cls se aproximasse de quatro, ficar como alagada em uma onda de acontecimentos aleatrios. Nunca se cristalizar em forma estvel. De modo sempre fugitivo e indistinto, .unicamente seu espectro transparecer aqui e ali em um meio fluido e indiferenciado. Na maioria das vezes, alis, o fenmeno nem mesmo se produzir, se verdade que a maneira mais cmoda de definir um sistema Crow- Omaha consiste em dizer que cada vez que se escolhe uma linha para obter dela um cnjuge, todos os seus membros ficam automaticamente excludos do nmero dos cnjuges disponiveis para a linha de referncia, e isso durante vrias geraes. Como a mesma operao se repete por ocasio de cada casamento, o sistema permanece em um estado de tur- bulncia que o ope ao modelo ideal de um sistema assimtrico, onde o mecanismo das trocas regularmente ordenado. Este assemelha-se mais 34
  28. 28. a um relgio, com todas suas engrenagens includas em uma caixa i; o outro sistema assemelha-se mais a uma bomba aspirante e calcante, ali- mentada por uma fonte externa, em cuja bacia lana a gua excessiva que no pode distribuir. Nada seria, pois, mais enganador do que equiparar os sistemas CrowOmaha aos sistemas assimtricos, sob o pretexto de que, nos dois casos, um dos tipos de primo cruzado elevado uma gerao e o outro rebaixado. Porque se desprezaria uma diferena essencial. Os sistemas assimtricos fazem de um primo cruzado um "sogro", e do outro um "genro", ou seja, sempre um membro de uma linha com a qual posso contrair casamento ou que pode casar-se com a minha. Ao passo que, forando ligeiramente as coisas, pOde dizerse que os sistemas CrowOmaha transformam respectivamente estes mesmos indivduos em "pai" e "fi lho", proclamando assim que o casamento tornou-se impossvel entre nossas linhagens. Por conseguinte, um sistema assimtrico esfora-se por transformar parentes em afins, ao contrrio de um sistema CrowOmaha que procura transformar afins em parentes. Mas, assim procedendo, amo bos visam a efeitos simtricos e inversos, a saber, tomar pOSSvel ou necessrio que a aliana matrimonial se perpetue entre pessoas unidas por um grau de parentesco aproximado, ou tornar possvel ou neces srio que os laos de aliana e de parentesco passem a ser mutuamente exclusivos, exceto (e mesma assim nada sabemos a este respeito) para os graus afastados. neste sentido que os sistemas CrowOmaha fornecem a dobradia graas qual as estruturas de parentesco elementares e as estruturas complexas podem articularse. Estes sistemas dependem das estruturas elementares pelos impedimentos ao casamento que formulam em termos sociolgicos e dependem das estruturas complexas pelo carter aleatrio da rede de alianas que resulta indiretamente de condies negativas, as nicas estabelecidas. Retomando uma distino que j mencionamos, diremos que, como sempre acontece nas estruturas elementares, estes sistemas exigem um modelo mecnico no plano das normas, mas quan do os observamos nas estruturas complexas contentamse com um mo delo estatstico no plano dos fatos. Poderia algum objetarnos, sem dvida, que a mesma coisa ver. dade nas estruturas complexas, porque julgamos que a proibio do in. cesto oferece uma garantia suficiente para que uma rede de alianas, resultante pelos demais aspectos de escolhas livres, no comprometa a coeso social. Ora, a proibio do incesto persiste nas sociedades con temporneas em forma de modelo mecnico. H. no entanto, uma di ferena: este modelo, do qual continuamos a nos servir, muito mais tnue que o dos sistemas CrowOmaba, que engloba linhagens inteiras, ao passo que o nosso apela para um pequeno nmero de graus muito aproximados. Por oposio, possvel supor que a distribuio das ali- anas gerada pelos sistemas Crow-Omaba oferece um carter menos alea- trio que a nossa, tratando-se de pequenas sociedades, nas quais a mis- 4. Ou, levando em conta preciosas anlises de Needham, vrios relgios, cada um dos quais pode engrenar-se na pea conveniente de qualquer outra de suas rodas mas todas contidas na mesma caixa e funcionando de tal maneira que haja sempr pelo .menos um relgio andando, mesmo se pores inteiras de engrenagens de cada relgIO permanecem temporariamente imobilizadas. 35
  29. 29. tura consecutiva a proibies macias no parece poder evitar que um certo parentesco aparea entre os cnjuges, desde que o sistema tenha regularmente funcionado durante o lapso de vrias geraes. Ser isso verdade, e, caso afirmativo, que forma tem este vestgio e qual o afas tamento mdio do grau? Eis a um certo nmero de questes de grande interesse terico, mas difceis de responder por motivos que devemos agora determinar com exatido. Quando se estudam os sistemas de classes matrimoniais (sem dar sentido demasiado tcnico a esta noo), sempre possvel e geralmente fcil definir tipos de casamento. Cada tipo ser representado pela unio de um homem de uma classe determinada com uma mulher de uma classe igualmente determinada. Se convencionarmos designar cada classe por um indice (letra, nmero ou combinao de ambas), haver, por tanto, tantos tipos de casamento permitidos quantos pares de indices, com a condio de excluir previamente todos os que correspondem a alianas proibidas. No caso das estruturas elementares, a operao consideravelmente simplificada pelo fato de existir uma regra positiva que enumera ou permite deduzir os tipos. Com os sistemas Crow-Omaha as coisas com plicam-se duplamente. Em primeiro lugar, o nmero das classes (se, por convenincia, decidirmos designar assim as unidades exgamas) eleva-se de maneira aprecivel, pOdendo s vezes chegar a vrias dezenas. Sobre- tudo, o sistema no prescreve (ou s6 prescreve rara e parcialmente), mas probe dois ou trs tipos e autoriza todos os outros, sem nada nos Informar quanto sua forma e nmero. possvel, entretanto, pedir aos matemticos que traduzam, por assim dizer, os sistemas CrowOmaha em termos de estruturas elementa res. Convencionaramos representar cada indivduo por um vetor contando tantos indices quantas as relaes pelas quais o indivduo pertena a cls, e que se tornam pertinentes devido s proibies do sistema. To- dos os pares de vetores que no apresentam duas vezes o mesmo ndice constituiro ento a lista dos tipos de casamento permitido, os quais de- terminaro os tipos que se tornaro lcitos ou ilcitos para as crianas nascidas das unies precedentes e para seus prprios filhos. Bernard Jaulin, chefe do Centro de Clculo da Casa das Cincias do Homem, teve a amabilidade de tratar do problema, pelo que muito lhe agradeo. Com a ressalva das incertezas exclusivamente atribuveis maneira vaga e ca- nhestra como um etnlogo apresenta seus dados, veriflcase que um sis- tema Crow-Omaha que promulgasse somente duas proibies, atingindo o cl da me e o do pai, autorizaria com isso 23.436 tipos de casamento diferentes, se o nmero dos cls igual a sete; 3.766.140 tipos se este nmero igual a quinze; e 297.423.855 tipos se igual a trinta. Com trs proibies clnicas as coaes seriam mais fortes, mas o nmero dos tipos permaneceria na mesma ordem de grandeza, 20.181, 3.516.345 e 287.521.515, respectivamente.' Estes nmeros elevados do motivo a vrias reflexes. Primeiramente, claro que com os sistemas Crow-Ohama estamos diante de mecanis mos muito diferentes dos que Ilustram as sociedades de classes matri- 5. Esta ltima srie de nmeros foi tambm calculada. por J. P. Schellhorn, a quem igualmente agradeo. 36
  30. 30. moniais, onde o nmero dos tipos de casamento no tem medida comum com os que acabam de ser citados. A primeira vista estes parecem ter mais relao com a situao que possvel esperar encontrar em certos setores das sociedades contemporneas, caracterizadas por forte coeficien te de endogamia. Se as pesquisas nesse sentido confirmarem a aproxi mao, do ponto de vista exclusivamente numrico, os sistemas Crow- Omaha formariam, conforme supusemos, uma ponte entre as estruturas de parentesco elementares e as estruturas complexas. Por sua extenso os recursos combinatrios dos sistemas Crow-Omaha lembram tambm os jogos complicados como os de cartas, o de damas e o xadrez, nos quais o nmero das possveis combinaes, teoricamente finito, to elevado que, para todos os fins teis e colocando-se na es- cala humana, tudo se passa como se fosse ilimitado. Em princpio, estes jogos so indiferentes histria, porque as mesmas configuraes sin- crnicas (nas distribuies) ou diacrnicas (no desenrolar das partidas), pOderiam reaparecer, mesmo que fosse depois de milhares ou milhes de milnios, desde que os jogadores imaginrios se dedicassem a eles p'or um tempo suficientemente longo. Entretanto, tais jogos permanecem praticamente imersos no devenir, conforme se v pelo fato de se escre- verem obras sobre a histria da estratgia do xadrez. Embora virtual- mente presente a todo instante, o conjunto das possveis combinaes demasiado grande para poder atualizar-se, a no ser graas a um tem- po prolongado e somente por fragmentos. Da mesma maneira, os siste- mas Crow-Omaha servem de ilustrao do compromisso entre a periodi- cidade das estruturas elementares e seu prprio determinismo, que depen- de da probabilidade. Os recursos combinatrios so to vastos que as escolhas individuais conservam sempre, inerente estrutura, uma certa margem. O uso consciente ou inconsciente que dela feito poderia mes- mo desviar a estrutura, se revelasse, conforme sugerem algumas indica- es, que esta margem de liberdade varia de acordo com a composio dos vetores que definem o lugar de cada indivduo no sistema. Seria preciso dizer ento que, com os sistemas Crow-Omaha, a histria penetra nas estruturas elementares, embora tudo se passe como se a misso de- les fosse anular seus efeitos. Infelizmente, no se sabe como proceder para medir esta margem de liberdade e os limiares entre os quais capaz de oscilar. Em razo do nmero muito elevado das combinaes, deveramos recorrer a si- mulaes em mquinas. Mas para isso seria necessrio determinar um estado inicial, a fim de comear as operaes. Ora, arriscamo-nos a cair prisioneiros de um crculo, porque, no sistema Crow-Omaha, o estado dos casamentos possveis ou proibidos a todo instante funo dos casa- mentos realizados durante as geraes precedentes. Para determinar um estado inicial que tivesse a certeza de no violar nenhuma regra do sis- tema, no haveria outra sada seno o regresso ao infinito. A menos que se fizesse a conveno de que, apesar da aparncia aleatria, o sistema Crow-Omaha produz retornos peridicos, de modo que, partindo de um estado inicial qualquer, aps algumas geraes uma estrutura de deter- minado tipo deveria necessariamente predominar. Porm, mesmo na hiptese dos dados empricos permitirem verificar a posteriori que as coisas se passam dessa maneira, o problema no estaria resolvido. Com efeito, preciso levar em conta uma dificuldade 37
  31. 31. de ordem numrica. Quase todas as sociedades dotadas de um sistema Crow-Omaha foram pouco numerosas. Os exemplos norte-americanos, me- lhor estudados, correspondem a populao de menos de 5.000 individuos. Por conseguinte, em cada gerao os tipos de casamento efetivamente celebrados no podiam representar seno uma proporo irrisria dos tipos possiveis. O resultado que num sistema Crow-Omaha os tipos de casamentos no se realizam somente de maneira aleatria, levando em conta apenas as linhagens proibidas. Entra em ao um acaso segunda potncia, que escolhe, entre todos os tipos de casamentos virtualmente possveis, o pequeno nmero daqueles que se tornaro atuais e que de- finiro, para as geraes que deles nasceram, um outro conjunto de es- colhas possveis, condenadas a ficarem virtuais por sua vez em larga maioria. Afinal de contas, uma nomenclatura muito rigida e regras ne- gativas que operam mecanicamente combinam-se com dois tipos de acaso, um distributivo e outro seletivo, para criar uma rede de alianas cujas propriedades ignoramos. Esta rede de alianas provavelmente no di- ferente daquela que gerada pelas nomenclaturas do tipo chamado "Ha- vaiano", que contudo d prioridade aos nveis de gerao sobre as li- nhagens, e que definem os impedimentos ao casamento levando em considerao mais os graus individuais de parentesco do que estabele- cendo proibies para classes interinas. A diferena em relao aos sis- temas Crow-Omaha provm de que os "sistemas havaianos" justapem trs tcnicas heterogneas, caracterizadas pelo emprego de uma nomen- clatura restrita, cuja fluidez corrigida por uma determinao mais exa- ta dos graus proibidos, e por uma distribuio aleatria das alianas garantida por impedimentos que se estendem at o quarto grau cola- teral, e s vezes mesmo alm, ao passo que os sistemas Crow-Omaha, que recorrem s mesmas tcnicas. sabem dar-lhes uma expresso mais sistemtica, integrando-as em um corpo de regras solidrias, que deveriam permitir melhor fazer a teoria desses jogos. At que nasa essa teoria com a ajuda dos matemticos, sem os quais nada possvel, os estu- dos do parentesco marcaro passo, apesar das engenhosas tentativas sur- gidas nos ltimos dez anos, s quais porm, repelidas para a anlise emprica ou para o formalismo, ignoram igualmente que a nomenclatura do parentesco e as regras do casamento so os aspectos complementares de um sistema de trocas, por meio do qual se estabelece a reciprocidade, que mantida entre as unidades constitutivas do grupo. Paris, 23 de fevereiro de 1966 38
  32. 32. Introduo "Um parente por aliana uma perna de elefante" Rev. A. L. Bishop, A Selection of Sironga Proverbs, The Sou/hem AITlcan Journal 01 Science, voI. 19, 1922, n. 80.
  33. 33. CAPiTULO I Natureza e Cultura De todos os principios propostos pelos precursores da sociologia nenhum sem dvida foi repudiado com tanta firmeza quanto o que diz respeito distino entre ~stado de natureza e e~tado de sociedade. No se pode, com efeito, fazer referncia sem contradio a uma fase da evoluo da humanidade durante a qual esta, na ausncia de toda organizao social, nem por isso tivesse deixado de desenvolver formas de atividade que so parte integrante da cultura. Mas a distino proposta pode admitir inter pretaes mais vlidas. Os etnlogos da escola de Elliot Smith e de perry retomaramna para edificar uma teoria discutvel mas que, fora do detalhe arbitrrio do esquema histrico, deixa aparecer claramente a profunda oposio entre dois nveis da cultura humana e o carter revolucionrio da transforma o neoltica. O Homem de Neanderthal, com seu provvel conhecimento da linguagem, suas indstrias ltlcas e ritos funerrios, no pode ser con siderado como vivendo no estado de natureza. Seu nvel cultural o ope, no entanto, a seus sucessores neolticos com um rigor comparvel - embora em sentido diferente - ao que os autores do sculo XVII ou do sculo XVIII atribuam sua prpria distino. Mas, sobretudo, co- meamos a compreender que a distino entre estado de natureza e es tado de sociedade', na falta de Significao histrica aceitvel, apresen ta um valor lgico que justifica plenamente sua utilizao pela socio- logia moderna, como instrumento de mtodo. O homem um ser biol- gico ao mesmo tempo que um individuo social. Entre as respostas que d s excitaes exteriores ou interiores, algumas dependem inteiramente de sua natureza, outras de sua condio. Por isso no h dificuldade alguma em encontrar a origem respectiva do reflexo pupilar e da posi o tomada pela mo do cavaleiro ao simples contato das rdeas. Mas nem sempre a distino to fcil assim. Freqentemente o estimulo fsicobiolgico e o estmulo psicossocial despertam reaes do mesmo tipo, sendo possvel perguntar, como j fazia Locke, se o medo da criana na escurido explicase como manifestao de sua natureza animal ou co- mo resultado das histrias contadas pela ama.' Mais ainda, na maioria dos casos, as causas no so realmente distintas e a resposta do sujeito constitui verdadeira integrao das fontes biolgicas e das fontes sociais 1. Dirfamos hoje preferivelmente estado de natureza e estado de cultura. 2. Parece. com efeito, que o medo do escuro no aparece antes do vigsimo quinto ms. Cf. C. W. Valentine, "The Innate Basis of Fear", Journal 01 Genetic Psychology, vol. 37, 1930. 41
  34. 34. de seu comportamento. Assim, o que se verifica na atitude da me com relao ao filho ou nas emoes complexas do espectador de uma parada militar. : que a cultura no pode ser considerada nem simples mente justaposta nem simplesmente superposta vida. Em certo sentido substitui-se vida, e em outro sentido utiliza-a e a transforma para rea- lizar uma sintese de nova ordem. Se relativamente fcil estabelecer a distino de princpio, a di- ficuldade comea quando se quer realizar a anlise. Esta dificuldade dupla, de um lado pOdendo tentar-se definir, para cada atitude, uma causa de ordem biolgica ou social, e de outro lado, procurando por que mecanismo atitudes de origem cultural podem enxertar-se em compor- tamentos que so de natureza biolgica, e conseguir integr-los a si. Ne- gar ou subestimar a oposio privar-se de toda compreenso dos fe- nmenos sociais, e ao lhe darmos seu inteiro alcance metodolgico cor- remos o risco de converter em mistrio insolvel o prOblema da passagem entre as duas ordens. Onde acaba a natureza? Onde comea a cultura? : possvel conceber vrios meios de responder a esta dupla questo. Mas todos mostraram-se at agora singularmente decepcionantes. O mtodo mais simples consistiria em isolar uma criana recm-nas- cida e observar suas reaes a diferentes excitaes durante as primeiras horas ou os primeiros dias depois do nascimento. Poder-se-ia ento su- por que as respostas fornecidas nessas condies so de origem psi- cobiolgicas, e no dependem de snteses culturais ulteriores. A psicolO- gia contempornea 'obteve por este mtodo resultados cujo interesse no deve levar a esquecer seu carter fragmentrio e limitado. Em primeiro lugar. as nicas observaes vlidas devem ser precoces, porque podem surgir condicionamentos ao cabo de poucas semanas, talvez mesmo de dias. Assim, somente tipos de reao muito elementares, como certas expresses emocionais, podem na prtica ser estudados. Por outro lado, as experincias negativas apresentam sempre carter equvoco. Porque per- manece sempre aberta a questo de saber se a reao estudada est ausente por causa de sua origem cultural ou porque os mecanismos fi- Siolgicos que condicionam seu aparecimento no se acham ainda mon- tados, devido precocidade da observao. O fato de uma criancinha no andar no poderia levar concluso da necessidade da aprendizagem, porque se sabe, ao contrrio, que a criana anda espontaneamente desde que organicamente for capaz de fazlo. ' Uma situao anloga pode apre- sentar-se em outros terrenos. O nico meio de eliminar estas incertezas seria prolongar a observao alm de alguns meses, ou mesmo de al- guns anos. Mas nesse caso ficamos s voltas com dificuldades insolveis, porque o meio que satisfizesse as condies rigorosas de isolamento exi- gido pela experincia no menos artificial do que o meio cultural ao qual se pretende substitu-lo. Por exemplo, os cuidados da me durante os primeiros anos da vida humana constituem condio natural do de- senvolvimento do indivduo. O experimentador acha-se portanto encerra- do em um crculo vicioso. : verdade que o acaso parece ter conseguido s vezes aquilo que o artifcio incapaz de fazer. A imaginao dos homens do sculo XVIII 3. M. B. McGraw, The Neuromu8cular Maturation Df the Humen In/ant, Nova . 1rque 1944. 42
  35. 35. r foi fortemente abalada pelo caso dessas "crianas selvagens", perdidas no campo desde seus primeiros anos, as quais, por um excepcional con- curso de probabilidades, tiveram a possibilidade de subsistir e desenvol- ver-se fora de toda influncia do meio sociaL Mas, conforme se nota muito claramente pelos antigos relatos, a maioria dessas crianas foram anormais congnitos, -sendo preciso procurar na imbecilidade de que pa- recem, quase unanimemente, ter dado prova, a causa inicial de seu aban- dono, e no, como s vezes se pretenderia, ter sido o resultado. 4 Observaes recentes confirmam esta maneira de ver. Os pretensos "meninos-lobos" encontrados na ndia nunca chegaram a alcanar o nvel normaL Um deles - Sanichar - jamais pde falar, mesmo adulto_ Kellog relata que, de duas crianas descobertas juntas, h cerca de vinte anos, o mais moo permaneceu incapaz de falar e o mais velho viveu at os seis anos, mas com o nvel mental de uma criana de dois anos e meio e um vocabulrio de cem palavras apenas_' Um relatrio de 1939 con- sidera como idiota congnito uma "criana-babuno" da frica do Sul, descoberta em 1903 com a idade provvel de doze a quatorze anos_' Na maioria das vezes, alis, as circunstncias da descoberta so duvidosas. Alm disso, estes exemplos devem ser afastados por uma razo de princpio, que nos coloca imediatamente no corao dos problemas cuja discusso o objeto desta Introduo_ Desde 1811 Blumenbach, em um estudo dedicado a uma dessas crianas, o Selvagem Peter, observava que nada se poderia esperar de fenmenos desta ordem_ Porque, dizia ele com profundidade, se o homem um animal domstico o nico que se domesticou a si prprio. 7 Assim, possvel esperar ver um animal domstico, por exemplo, um gato, um cachorro ou uma ave de galinheiro, quando se acha perdido ou isolado, voltar ao comportamento natural que era o da espcie antes da interveno exterior da domesticao_ Mas nada de semelhante pode se produzir com o homem, porque no caso deste ltimo no existe comportamento natural da espcie ao qual o indivduo isolado possa voltar mediante regresso. Conforme dizia Voltaire, mais ou menos nestes termos, uma abelha extraviada longe de sua colmeia e incapaz de encontr~la urna abelha perdida, mas nem por isso se tor~ nou urna abelha mais selvagem. As "crianas selvagens", quer sejam pro~ duto do acaso quer da experimentao, podem ser monstruosidades cul- turais, mas em nenhum caso testemunhas fiis de um estado anterior_ impossvel, portanto, esperar no homem a ilustrao de tipos de comportamento de carter pr-culturaL Ser possvel ento tentar um caminho inverso e procurar atingir, nos nveis superiores da vida animal, atitudes e manifestaes nas quais se possam reconhecer o esboo, os sinais precursores da cultura? Na aparncia, a 'oposio entre comporta- 4. J. M. G. Itard, Rapports et mmories sur le sauvage de Z'AveyrDn, etc., Pa ris 1894. A. von Feuerbach, Caspar Hauser, Trad. ingI. Londres 1833, 2 vols. 5. G. C. Ferfi,s, Sanichar, the Wolfboy 01 India, Nova Iorque 1902. P. Squires, "Wolf-children" of India. American Journal of Psychology, voI. 38, 1927, p. 313. W. N. Kellog, More about the "Wolf-children" of India. Ibid., voI. 43, 1931, p. 508-509; A Further Note on the "Wolf-children" Df India. Ibid., voI. 46, 1934, p. 149. - Ver tambm, sobre esta polmica, J. A. L. Singh e -R. M. Zingg, Woll-children and FeraZ Men, Nova Iorque 1942, e A. Gesell, Woll-child and Human Child, Nova Iorque 194!. 6. J. P.. Foley, Jr., The "Baboon-boy" of South Afriea. American Journal 01 Psycho- logy, vol. 53, 1940. R. M. Zingg, More about the "Baboonboy" of South Afriea, lbid. 7. J. F. Blumenbaeh, Beitriige zur Naturgeschichte, Gt>ttingen 1811, em Anthropolo- gical Treatises 01 J. F. Blumenbach, Londres 1865, p. 339. 43
  36. 36. r mento humano e o comportamento animal que fornece a mais notvel ilustrao da antinomia entre a cultura e a natureza. A passagem - se existe - no poderia pois ser procurada na etapa das supostas socie- dades animais, tais como so encontradas entre alguns insetos. Porque em nenhum lugar melhor que nesses exemplos encontram-se reunidos os atributos, impossveis de ignorar, da natureza, a saber, o instinto, o equipamento anatmico, nico que pode permitir o exerccio do instinto, e a transmisso hereditria das condutas essenciais sobrevivncia do individuo e da espcie. No h nessas estruturas coletivas nenhum lugar mesmo para um esboo do que se pUdesse chamar o modelo cultural universal, isto , linguagem, instrumentos, instituies sociais e sistema de valores estticos, morais ou religiosos. outra extremidade da es- cal animal que devemos nos dirigir, se quisermos descobrir o esboo desses comportamentos humanos. Ser com relao aos mamiferos su- periores, mais especialmente os macacos antropides. c Ora, as pesquisas realizadas h mais de trinta anos com os grandes macacos so particularmente'desencorajantes a este respeito. No que os componentes fundamentais do modelo cultural universal estejam ri- gorosamente ausentes, pois possvel, custa de infinitos cuidados, con duzir certos sujeitos a articularem alguns monosslabos ou disslabos, aos quais alis no ligam nunca qualquer sentido. Dentro de certos li mites, o chimpanz pOde utilizar instrumentos elementares e eventual mente improvis-los.' Relaes temporrias de solidariedade ou de SUo bordinao podem aparecer e desfazer-se no interior de um determinado grupo. Finalmente, possvel que algum se divirta em reconhecer em algumas atitudes singulares o esboo de formas desinteressadas de ativi dade ou de contemplao. Um fato notvel que so sobretudo os senti mentos que associamos de preferncia p~rte mais nobre de nossa na tureza, cuja expresso parece poder ser mais facilmente identificada nos antropides, como o terror religioso e a ambigidade