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DADO COLETADO, SUJEITO FABRICADO: DROGAS E OBJETIVIDADE EM UM EMPREENDIMENTO DE PESQUISA MÉDICO- CIENTÍFICO 1 EDUARDO DOERING ZANELLA 2 INTRODUÇÃO O presente artigo propõe uma intersecção entre uma antro- pologia da ciência e a temática das drogas em nossa sociedade contemporânea. Trata-se de abordar, etnograficamente, as ma- neiras pelas quais as ciências da saúde em geral e aquelas do campo médico em particular – arena de onde provém os dis- cursos aos quais se confere, na atualidade, maior legitimidade para discorrer sobre as drogas e sobre como devemos lidar com o seu consumo – apreendem estas substâncias na qualidade de objetos de estudo científico. 1 Agradeço aos membros que formaram a banca examinadora na ocasião da defesa da dissertação de mestrado que deu origem a este artigo, cujas contribuições foram fundamentais para a sua elaboração: Cláudia Fonseca, Emerson Giumbelli, Fabíola Rohden (orientadora) e Frederico Viana Machado. Também foram importantes para o aperfeiçoamento deste texto os pareceristas e a revisora técnica da revista Pós - Re- vista Brasiliense de Pós-Graduação em Ciências Sociais. 2 Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropolo- gia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS. E-mail: zanellad@ hotmail.com

Zanella, Eduardo. DADO COLETADO, SUJEITO FABRICADO. Drogas e Ojetividade Em Um Empreendimento de Pesquisa Médico-científico

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  • DADO COLETADO, SUJEITO FABRICADO:DROGAS E OBJETIVIDADE EM UM

    EMPREENDIMENTO DE PESQUISA MDICO-

    CIENTFICO1

    EDUARDO DOERING ZANELLA2

    INTRODUO

    O presente artigo prope uma interseco entre uma antro-pologia da cincia e a temtica das drogas em nossa sociedade contempornea. Trata-se de abordar, etnograficamente, as ma-neiras pelas quais as cincias da sade em geral e aquelas do campo mdico em particular arena de onde provm os dis-cursos aos quais se confere, na atualidade, maior legitimidade para discorrer sobre as drogas e sobre como devemos lidar com o seu consumo apreendem estas substncias na qualidade de objetos de estudo cientfico.

    1 Agradeo aos membros que formaram a banca examinadora na ocasio da defesa da dissertao de mestrado que deu origem a este artigo, cujas contribuies foram fundamentais para a sua elaborao: Cludia Fonseca, Emerson Giumbelli, Fabola Rohden (orientadora) e Frederico Viana Machado. Tambm foram importantes para o aperfeioamento deste texto os pareceristas e a revisora tcnica da revista Ps - Re-vista Brasiliense de Ps-Graduao em Cincias Sociais.

    2 Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Ps-graduao em Antropolo-gia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS. E-mail: [email protected]

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    Para isto, apresenta-se uma descrio das prticas de coleta de dados3 de um estudo em especfico. Trata-se de uma pesquisa desenvolvida por um coletivo de cientistas especializados no tema lcool e drogas4, realizada com pacientes internados para tratamento de dependncia qumica em um hospital geral. Ob-jetiva-se compreender como os procedimentos que constituem este momento da atividade cientfica, ao produzirem as infor-maes que sero armazenadas e posteriormente analisadas, fa-bricam os sujeitos participantes da pesquisa, construindo assim uma objetividade prpria e especfica. Trata-se de elaborar uma narrativa sobre a produo de dados em pesquisas mdico-cien-tficas sobre drogas, de modo a compreender tanto as transfor-maes que este processo implica para os sujeitos pesquisados quanto o ideal de objetividade pretendido nesta modalidade de produo de conhecimento.

    O coletivo de pesquisadores em questo, junto ao qual desen-volvi trabalho de campo etnogrfico, o Centro de Pesquisa em lcool e Drogas (CPAD), vinculado ao Departamento de Psiquia-tria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e localizado no Hospital de Clnicas de Porto Alegre (HCPA). Este grupo de pesquisa envolve uma rede composta por cerca de 40 pesquisa-dores5, majoritariamente psiquiatras e psiclogos, embora haja tambm a presena de profissionais com formao nos campos

    3 Utilizo a expresso coleta de dados em itlico pois este um termo especfico do universo de pesquisa onde realizei o trabalho de campo para a elaborao deste arti-go. A nfase em itlico objetiva explicitar que esta no uma categoria analtica, mas sim uma categoria descritiva, problematizada na anlise aqui empreendida.

    4 Droga uma expresso polissmica, que opera de diferentes formas em distintos registros, de tal modo que definir o que entra e o que sai desta categoria um exerccio fundamentalmente poltico. Apesar de reconhecer a ambivalncia do termo, ao longo deste artigo, no o menciono com aspas. Tal referncia levaria problematizao de outras categorias de substncias, tais como lcool e medicamentos, o que escapa ao escopo do presente trabalho. Deste modo, explicito que neste texto o termo droga designa aquelas substncias de uso ilcito maconha, crack, cocana, ecstasy etc. , pois esta a classificao que opera no coletivo de pesquisadores junto ao qual de-senvolvi o presente estudo, o Centro de Pesquisa em lcool e Drogas.

    5 Em seus projetos mais amplos, geralmente desenvolvidos em cooperao com outras instituies de pesquisa e financiamento, o CPAD chega a envolver redes com-postas por 100 ou at 200 pesquisadores.

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    de biomedicina, enfermagem e assistncia social. Trata-se de um centro de pesquisa com relevante participao no campo das cincias da sade que estuda lcool e drogas o que se ex-pressa, por exemplo, nos prmios recebidos por seus integran-tes em funo de trabalhos acadmicos desenvolvidos na rea6.

    Os projetos de pesquisa do CPAD so desenvolvidos principal-mente nos campos da psiquiatria, epidemiologia, gentica, neu-rocincias e toxicologia. Deste modo, so diversos os objetivos destas pesquisas com relao s drogas, tais como: aferir asso-ciaes entre comorbidades psiquitricas e o consumo destas substncias; estimar as suas relaes com polimorfismos ge-nticos; definir padres de uso e perfis sociodemogrficos para determinadas regies e populaes de consumidores de drogas; validar instrumentos de pesquisa e de avaliao clnica de usu-rios; indicar fatores de risco e custos econmicos relacionados s prticas de uso de drogas; entre muitos outros. Estas pesqui-sas so desenvolvidas com relao a variadas substncias: lcool, crack, cocana, maconha, drogas sintticas (em especial o ecstasy), havendo tambm investigaes sobre o consumo de tabaco.

    A expresso coleta de dados amplamente mobilizada nestes es-tudos, em especfico, para aludir ao momento em que question-rios, testes, entrevistas padronizadas, instrumentos de extrao de material biolgico (basicamente sangue, saliva e urina) ou psi-comtricos em geral so aplicados sobre os sujeitos participantes

    6 Em 2013, os integrantes do CPAD receberam trs congratulaes: prmio Cyro Martins (melhor pster) na XI Jornada de Psiquiatria da APRS (Associao de Psi-quiatria do Rio Grande do Sul), segundo lugar na categoria pster no XXII Congresso da Associao Brasileira de Estudos do lcool e Outras Drogas (ABEAD) e melhor apresentao oral no XVIII Congresso Brasileiro de Toxicologia. Desde o ano de 2010, os membros do centro de pesquisa ainda receberam as seguintes premiaes: Prmio Professor Oswald Moraes Andrade (melhor trabalho escrito), do XXVIII Congresso Bra-sileiro de Psiquiatria; Prmio Volvo de Segurana no Trnsito, de 2010 (concedido pela companhia fabricante de veculos sueca Volvo s melhores aes desenvolvidas para segurana no trnsito); melhor pster no XIX International Council on Alcohol, Drugs and Traffic Safety (ICADTS); melhor trabalho na XXV Jornada Sul-Rio-Grandense de Psiquiatria Dinmica; melhor pster no XIII Simpsio Internacional sobre Tratamento de Tabagismo (promovido pela ABEAD); Prmio Denatran de Educao no Trnsito, de 2010; Meno Honrosa no Prmio Cincia e Inovao em Psiquiatria, na Jornada do Centro de Estudos Lus Guedes do ano de 2012.

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    de uma dada pesquisa. Este um evento de suma importncia para os estudos deste coletivo de cientistas, visto que nesta oca-sio em que produzida a sua prpria matria-prima: os dados cientficos que sero armazenados, analisados e inscritos sobre artigos, dissertaes, teses e demais textos de cunho acadmico.

    No presente artigo, irei me deter sobre as coletas de dados da pesquisa Preditores clnicos, biolgicos e psicossociais de reca-da precoce em usurios de crack, desenvolvido com pacientes usurios de drogas em especfico, crack que se encontram internados na Unidade de Adio do Hospital de Clnicas de Porto Alegre, submetidos a tratamento para dependncia qumica. Este um projeto amplo, que contava com o registro de mais de 200 e 60 entrevistas no incio do ano de 2014, de modo que era conside-rado prioritrio na agenda de pesquisa do CPAD.

    Este estudo busca verificar as possveis associaes entre a re-cada ao uso de drogas ou o abandono de tratamento, por parte dos pacientes da Unidade de Adio do HCPA, com referncia a trs fatores: clnicos e psicossociais (variveis demogrficas, co-morbidades psiquitricas, transtornos de personalidade, escores de gravidade de dependncia, impulsividade, vnculo parental, agressividade e abstinncia); neurocognitivos (funes executivas e de controle inibitrio); e biolgicos, em especfico as dosagens sricas de: Neuropeptdeo Y (grupo de peptdeos que modulam a atividade do sistema nervoso central, inibindo estresse e sinto-mas de ansiedade), Brain Derived Neurotrophic Factor (marcador biolgico de plasticidade cerebral) e Estresse Oxidativo (condio biolgica caracterizada pelo desequilbrio entre a formao e a reduo de agentes oxidantes do organismo).

    Em resumo, os participantes da pesquisa so avaliados a partir destes trs eixos: neurocognitivo, biolgico e clnico/psicossocial. Trata-se de aplicar vrios instrumentos e realizar duas extraes de sangue, com intervalo de 15 dias entre uma e outra, com os pa-cientes. Em um segundo momento, verificado se os parmetros obtidos esto ou no relacionados adeso/abandono de trata-mento ou recada ao uso de drogas. Para isto, os instrumentos de pesquisa so novamente aplicados, bem como so realizados

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    testes de deteco do uso de drogas na urina. Esta segunda fase da pesquisa ainda no havia sido iniciada no perodo em que re-alizei o trabalho de campo, de modo que no abordada no pre-sente artigo.

    O trabalho de campo realizado foi pautado pela minha observa-o e participao nas atividades do CPAD, durante o perodo de um ano (2013), em sua sede no Hospital de Clnicas de Porto Alegre. Esta insero no grupo me possibilitou acompanhar as sesses de coletas de dados com os pacientes usurios de drogas do HCPA, o treinamento dos entrevistadores para a realizao das mesmas, bem como as reunies semanais destinadas coordenao da re-ferida pesquisa.

    Foi possvel assim atentar para elementos que no esto contidos, tal como o mtodo etnogrfico os apreende, nas narrativas oficiais do fazer cientfico (como teses, artigos, dissertaes etc.), com o objetivo de compreender as maneiras pelas quais a cincia efe-tivamente produzida, para alm das regras e normas que buscam instituir qual deve ser a sua conduo correta. Entretanto, apesar do acompanhamento prximo e contnuo dos fenmenos de inte-resse, deve ser ressaltado que no foi permitida a minha interao com os pacientes usurios de drogas do HCPA, nem durante nem aps a aplicao dos instrumentos7. Por este motivo, este trabalho no aborda em profundidade as impresses ou percepes destes sujeitos acerca do estudo em que estavam implicados.

    pertinente tambm referir que documentos vinculados s co-letas de dados aqui em questo foram importantes para a ela-borao da descrio que segue. Na medida em que o CPAD est essencialmente envolvido com pesquisas acadmicas, a elabora-o de textos uma atividade central do grupo, que constitui a prpria materialidade de sua produo. Desta forma, nestes

    7 Os pesquisadores do CPAD compreendiam que o meu trabalho de campo deveria intervir o menos possvel nas coletas de dados, motivo pelo qual no era possvel in-teragir com os pacientes nestas ocasies. Uma vez que a participao dos pacientes neste empreendimento cientfico implicava sua ausncia em algumas atividades do tratamento, tambm no pude acess-los aps as entrevistas, com a justificativa de que isto poderia prejudicar a recuperao teraputica destes sujeitos.

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    objetos esto presentes de modo concentrado ou estendido, em forma de enunciados vrios procedimentos que descrevem as dinmicas de seus empreendimentos de pesquisa. Assim, proje-tos, pareceres do comit de tica do HCPA e manuais de aplicao de instrumentos de pesquisa se revelaram importantes fontes de informao para a consecuo do presente trabalho.

    A partir da realizao de trabalho de campo nos moldes men-cionados, apresento uma narrativa centrada nos procedimentos que envolvem a produo dos dados da pesquisa Preditores cl-nicos, biolgicos e psicossociais de recada precoce em usurios de crack. Trata-se de descrever um conjunto de prticas de coleta de dados, com a pretenso de compreender de que maneira tais metodologias e tcnicas agem sobre e assim transformam os pa-cientes usurios de drogas que participam da referida pesquisa. Por meio desta discusso, lano algumas consideraes acerca do processo de fabricao dos sujeitos participantes da pesquisa e do ideal de objetividade pretendida no mbito deste empreendimento cientfico.

    Estas questes so informadas por perspectivas tericas do campo dos estudos sociais em cincia e tecnologia. Sobretudo, a proble-matizao aqui proposta desenvolvida a partir do conceito de mediao, tal como elaborado nas obras de Bruno Latour, John Law e Annemarie Mol, ponto delineado em maiores detalhes no tpico seguinte.

    MEDIAES E PRTICAS CIENTFICAS

    Autores como Bruno Latour (2001; 2012), John Law (1992; 2001) e An-nemarie Mol (2005), entre outros, argumentam que os objetos cien-tficos no so entidades preexistentes ao trabalho que se realiza sobre eles, no sentido de que tais objetos em nenhum momento se encontram desvinculados das tcnicas, relaes ou procedimentos mobilizados em sua constituio. Objetos seriam performativos e no ostensivos. Tal como prope a distino de Latour

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    [o] objeto de uma definio ostensiva permanece a, no importa o que acontea ao dedo indicador de quem assiste. Mas o objeto de uma defi-nio performativa desaparece quando no mais representado ou, caso permanea, isso significa que outros atores entraram em cena. (LATOUR, 2012, p. 63)

    Law (2001) argumenta de maneira semelhante, por exemplo, em um texto que analisa a constituio do design de uma aeronave militar, produzida pela English Electric Company para o governo britnico em 1958. Ao comentar a apropriao que faz das ferra-mentas da semitica para a sua anlise, este autor afirma que termos, objetos, entidades, so formados nas diferenas entre uns e outros. O argumento que eles no possuem atributos es-senciais, mas ao contrrio, alcanam a sua significao a partir de relaes, relaes de diferena (LAW, 2001, p. 118).

    Ou seja, os objetos no estariam localizados de maneira esttica em um plano transcendental, fora daquilo que envolve a sua re-presentao (nos termos do enunciado de Latour) ou a sua sig-nificao (nos termos do enunciado de Law). Por outro lado, tais objetos somente existiriam, e ganhariam uma forma especfica, a partir das prticas de representao dos atores (tal como expres-so por Latour), ou a partir das relaes de diferena estabelecidas com outros objetos (tal como expresso por Law).

    O enunciado de Latour ao qual fiz referncia (2012, p. 63) no faz dos objetos, sejam eles cientficos ou no, entidades menos reais. Est em questo um princpio que Annemarie Mol (2005) explicitou de maneira bastante clara: se a realidade no precede s prticas tambm no pode servir de acesso a elas. Compreendo que o prin-cpio de irreduo de Latour (1994) faz referncia mesma ideia. Ao no utilizar palavras cuja vocao revelar a verdade por detrs dos fenmenos, este autor objetiva no reduzi-los a esferas transcendentes fora do alcance analtico, de modo a consider-los e descrev-los sempre por meio das situaes nas quais emergem. Ou seja, so as realidades propriamente ditas dos fenmenos, on-tologias nos termos de Mol (2005), que so trazidas existncia por meio de um conjunto de prticas e no o contrrio.

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    Se os objetos de ateno cientfica somente existem a partir e em consequncia das prticas que os sustentam, ento tambm deve ser destacado que tais objetos no possuem contornos fixos: se diferenciam na medida em que se alteram os procedimentos por meio dos quais so performados. Procedimentos estes que Mol (2005) e demais autores designam por sociomateriais, visto que so intrinsecamente heterogneos no que diz respeito qualidade variada dos materiais ou entidades que mobilizam. A noo de me-diao tem sido utilizada no campo dos estudos sociais em cincia e tecnologia para fazer referncia a estes processos de diferencia-o, em que entram em questo materiais/entidade de tipos muito diferentes.

    Latour (2012) define o conceito de mediador em contraposio ao de intermedirio. Enquanto os segundos transportam significa-dos sem a fora de transform-los, os primeiros transformam, traduzem, distorcem e modificam o significado ou os elementos que supostamente veiculam (p. 64). Apesar de o autor utilizar as expresses mediador/intermedirio tal como se denotassem um tipo especfico de agente, importante destacar que, nesta pers-pectiva, entidades isoladas no so dotadas de uma capacidade de ao inerente ou intrnseca. Ao contrrio, a ao sempre considerada enquanto propriedade de uma srie de associaes que vem a envolver variados agentes, de modo que se trata de um trabalho essencialmente coletivo.

    Portanto, antes de aludir a mediadores propriamente ditos, faz mais sentido falar em processos de mediao. Admitir tais pro-cessos nas tramas da prtica (LATOUR, 2001, p. 351) constitui uma maneira de encarar os mecanismos de produo dos fen-menos de interesse (sejam eles objetos, grupos, entidades, concei-tos, instituies etc.). Trata-se de reconhecer a importncia das transformaes e da heterogeneidade em suma, do movimen-to na conformao destes fenmenos, em detrimento de uma perspectiva linear, uniforme ou homognea dos mesmos8.

    8 Esta perspectiva retoma sua posio filosfica de compreenso dos fenmenos da obra de Gabriel Tarde (2007). Para este autor, a harmonia e a estabilidade seriam somente um instante provisrio dentro de uma variao e diferenciao universal.

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    Assim, possvel definir que mediaes constituem aes de efeitos transformativos ou diferenciadores, realizadas por meio do estabelecimento de associaes entre uma srie de atores que no esto determinados a priori. Ou seja, tratam-se de proces-sos de associao que alteram a natureza dos entes associados mudanas estas provocadas pelo prprio ato de conexo. Estas mediaes so fundamentais para a atualizao e para a confor-mao dos objetos em termos gerais, sejam eles elementos da sociedade sejam eles fenmenos da natureza.

    Autores como Law, Latour e Mol, entre outros do campo, argu-mentam que sem tais mediaes, que atravessam de uma s vez os domnios do social e do natural ao associar materiais de diferentes tipos, estas esferas no se sustentariam por muito tempo enquanto entidades purificadas. Por exemplo, em Jamais Fomos Modernos, Latour (1994) argumenta que a purificao cada vez mais circunscrita dos cantes ontolgicos da sociedade e da natureza somente se realiza na contrapartida das mediaes, que misturam elementos do social e do natural na produo, tambm cada vez mais intensiva, de seres hbridos. Purificao, neste con-texto terico, deve ser entendida enquanto um esforo por deli-mitar e instituir fronteiras, por alcanar a pureza ontolgica de fenmenos necessariamente hbridos de natureza e cultura (LA-TOUR, 1994). Para o que diz respeito ao problema de pesquisa que aqui pretendo delinear, destaco que por meio de mediaes que grupos sociais, entidades naturais ou objetos novamente, em termos gerais , adquirem uma unidade, ou seja, so purificados.

    A partir desta perspectiva, objetivo explorar os processos de me-diao em operao no mbito da pesquisa do CPAD Preditores clnicos, biolgicos e psicossociais de recada precoce em usu-rios de crack. Trata-se de atentar para as transformaes que passam os objetos e as entidades deste empreendimento cientfi-co em meio s prticas de sua realizao. Em especfico, este arti-go trata do momento da coleta de dados, enfocando os pacientes usurios de drogas que participam da pesquisa. Uma vez que a coleta de dados um momento fundamental do referido estudo instante de produo das informaes que constituem o seu elemento essencial , pode ser tomada enquanto via de acesso

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    para a compreenso do ideal de objetividade que este persegue, objetivo que procuro cumprir no tpico final do presente artigo.

    Passo para a descrio das prticas que envolvem a coleta de da-dos com os pacientes da Unidade de Adio do HCPA, atentando para a forma como tais procedimentos agem, transformam ou diferenciam os sujeitos que so o centro de sua ateno. O texto est organizado de tal maneira que busca correspondncia com o desenvolvimento das coletas de dados. Ou seja, a descrio dos procedimentos de pesquisa pretende seguir a sequncia de sua realizao com os sujeitos participantes do estudo. Deste modo, a descrio assume a forma de uma narrativa direta e sistemtica das prticas de coletas de dados, expondo sua execuo e logs-tica. Optei por este modelo de narrativa em detrimento, por exemplo, de uma descrio que enfocasse densamente situaes especficas vividas em campo , pois considerei que assim pode-ria proporcionar uma viso abrangente do processo de coleta de dados, finalidade do presente artigo e ponto importante para a construo de seus argumentos.

    COLETA DE DADOS

    A coleta de dados com os pacientes da Unidade de Adio do HCPA tem incio com o exame de sangue, procedimento que tam-bm parte do protocolo de assistncia geral deste servio de sade. As amostras extradas so analisadas em dois laborat-rios, ambos localizados e pertencentes ao Hospital de Clnicas de Porto Alegre: o de qumica e o de psiquiatria molecular.

    No laboratrio de qumica, o sangue analisado para os fins do tratamento e da assistncia teraputica. Ali se verificam nos pacientes, entre outras ocorrncias, os seus nveis de glicose, colesterol, leuccitos, plaquetas, triglicerdeos e hemoglobina, bem como as incidncias de HIV, hepatites C e B. J no laborat-rio de psiquiatria molecular, o sangue avaliado exclusivamen-te para as finalidades da pesquisa. Em especfico, neste local so determinadas as dosagens sricas de Neuropeptdeo Y, Brain Derived Neurotrophic Factor e Estresse Oxidativo.

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    Esta extrao de sangue objetiva verificar a ao da droga, no caso o crack, sobre os organismos dos participantes da pesqui-sa. por este motivo que o sangue coletado logo na manh seguinte ao dia da internao dos pacientes, quando estes ainda estariam sob efeito de crack tal como expresso no projeto da pesquisa Preditores clnicos, biolgicos...: isto [a extrao de sangue na manh seguinte ao dia da internao] permite que possamos analisar variveis biolgicas de pacientes enquanto ainda esto sob o efeito de crack (PECHANSKY, et al., 2013, p. 10).

    Depois da extrao de sangue, o chefe do Departamento de En-fermagem do HCPA inscreve o nome do paciente, o nmero de seu protocolo, o dia de sua internao e o dia da coleta de seu sangue em uma planilha, fixada na Unidade de Adio do HPCA. Esta planilha deve informar quais so os pacientes que esto disponveis para receber o convite de participao na pesquisa, processo denominado de aplicao do Termo de Consentimen-to Livre e Esclarecido (TCLE). Caso o paciente esteja clinicamen-te estvel, este convite realizado no mesmo dia da extrao de sangue, ou seja, no segundo dia de internao. A aplicao do TCLE caracterizada por uma srie de procedimentos, que devem ser executados pelo entrevistador de forma padronizada.

    Basicamente, o entrevistador deve ler ao paciente, de maneira pausada e clara, todo o texto contido neste instrumento. Depois desta leitura, deve reforar quais so os objetivos da pesquisa; informar ao paciente tanto sobre os riscos quanto sobre a vo-luntariedade de sua participao; deixar claro que a sua desis-tncia no necessita ser justificada e tampouco ir interferir na qualidade do tratamento que lhe oferecido; informar que os seus dados pessoais sero tratados de forma sigilosa, bem como deve lhe entregar um folder do Hospital de Clnicas de Porto Alegre, com informaes relativas aos direitos do participante de pesquisa. necessrio, ainda e por fim, que o paciente aceite participar da pesquisa, o que raras vezes deixa de acontecer.

    por meio desta sequncia de procedimentos que o paciente adquire uma posio especfica neste empreendimento cient-fico, que corresponde sua identidade enquanto participante

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    de pesquisa. Tal situao revela que as identidades formais do empreendimento cientfico no esto dadas de antemo e tam-pouco so estabelecidas em suas esferas conceituais ou epist-micas. Pelo contrrio, tais identidades so feitas na imanncia das prticas de pesquisa propriamente ditas, por meio da mobi-lizao de objetos especficos em interaes concretas motivo pelo qual tambm no so estticas, de modo que necessitam ser refeitas a todo o tempo9.

    Desta forma, os pacientes ainda tero de ser fabricados enquan-to participantes de pesquisa no sentido que continuaro sujei-tos a novas intervenes por meio de outros procedimentos. Em especfico, estes sero relativos s peculiaridades destes sujeitos enquanto usurios de drogas. O primeiro destes proce-dimentos a espera por mais alguns dias para o incio da apli-cao dos instrumentos.

    DESINTOXICANDO OS SUJEITOS PARTICIPANTES DA PESQUISA

    A realizao das entrevistas propriamente ditas no deve iniciar no segundo dia de internao dos pacientes, junto extrao de sangue e aplicao do TCLE, mas somente a partir do quinto dia em que estes se encontram na Unidade de Adio do HCPA. Eu estranhei bastante este procedimento, visto que um dos maio-res problemas das coletas de dados consistia em cumprir com a aplicao de todos os instrumentos de pesquisa. A dificuldade para conseguir horrios disponveis com os pacientes dentro do programa teraputico do HCPA, somada a uma dinmica de alta rotatividade dos mesmos neste hospital, entre outros imprevis-tos, provocava muitas vezes a suspenso das entrevistas sem a

    9 Guilherme S argumentou de maneira semelhante para o caso dos primatlogos que estudou em sua tese de doutorwado. Tambm neste contexto, a constituio dos objetos de pesquisa, em especfico a transubstanciao do macaco-sujeito-floresta em macaco-objeto-laboratrio, se constitua em funo de uma relao de experi-ncia ntima no interior das dinmicas dos coletivos e no por contingncia genrica de um macroprocesso que se consolida nas esferas epistmicas, histricas e polticas de uma cadeia de transcries ( 2009, p. 31).

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    aplicao de todos os instrumentos (o que no vinha a invalidar os dados obtidos). Deste modo, eu considerava que o quanto antes as entrevistas fossem iniciadas melhor seria para este empre-endimento de pesquisa, pois assim maiores eram as chances de finalizar a coleta de dados com os pacientes.

    Os instrumentos so aplicados somente no quinto dia de interna-o dos pacientes a fim de que ele [o paciente] j tenha passado pelos primeiros dias de desintoxicao (PECHANSKY et al., 2013, p. 10), tal como informa o projeto da pesquisa Preditores clnicos, biolgicos.... A intoxicao recente por uso de drogas (ou a sua interrupo sbita) poderia destituir os pacientes das condies clnicas mnimas e necessrias para a participao nas entrevis-tas. Nesse sentido, era importante esperar pelos primeiros dias de desintoxicao, j que neste perodo os pacientes poderiam apresentar, entre outras alteraes, sono intenso, hipertenso, taquicardia, nuseas, delrio, convulses, alucinaes, paranoia ou mesmo um quadro de deliruim tremens.

    A ausncia de condies clnicas mnimas, contudo, no o nico motivo pelo qual o uso recente de drogas impede a participao do paciente recm-internado nas entrevistas. A aplicao dos instrumentos tambm no ocorre nos primeiros dias de inter-nao a fim de diminuir o vis do prejuzo cognitivo decorrente da intoxicao [por uso de drogas] (PECHANSKY et al., 2013b). Ou seja, at o quinto dia de internao os pacientes ainda poderiam estar sob efeito de drogas, o que comprometeria a confiabilida-de de suas respostas aos instrumentos de pesquisa.

    Para alm de provocar prejuzo cognitivo e vis nas respostas dos pacientes, o uso recente de drogas tambm pode dificultar o entendimento correto das questes da entrevista, de modo que as respostas que os entrevistados oferecem nestas situaes seriam confusas tal como informa o Manual de Aplicao da Escala de Gravidade de Dependncia (ASI6), instrumento va-lidado em pesquisa desenvolvida pelo CPAD e utilizado nestas coletas de dados. Nestes casos, tambm importante aguardar um dia ou mais para a aplicao do instrumento.

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    No caso do paciente parecer ter dificuldades de entender muitas questes, pode ser vantajoso interromper a entrevista. Neste caso, melhor esperar um dia ou mais para que o paciente se recupere da confuso inicial e efeitos desorientadores do abuso recente de lcool ou outras drogas, do que registrar respostas confusas. (KESSLER; PE-CHANSKY, 2011, p. 19)

    Ou seja, o abuso recente de lcool ou outras drogas provocaria confuso e efeitos desorientadores nos pacientes, o que faz com que estes ofeream respostas confusas aos instrumentos. Problema este que pode ser solucionado caso sejam aguardados alguns dias para a realizao da entrevista. Por estes motivos (efeitos desorientadores e respostas confusas), a Escala de Gravidade de Dependncia (ASI6) tambm no deve ser aplicada com pacientes que apresentem sintomas de abstinncia graves ou efeitos agudos do uso de substncias (KESSLER, 2011, p. 48). Este , na verdade, um procedimento bastante convencional do campo das cincias mdicas que realiza pesquisas com usurios de drogas: a instituio do uso recente destas substncias en-quanto critrio de excluso para a seleo da amostra do estudo.

    Deste modo, se com a aplicao do TCLE o paciente passa a es-tar disponvel para a concesso de entrevistas, o uso recente de drogas impede o exerccio desta participao na pesquisa duran-te os primeiros dias de internao. Estas substncias podem ge-rar alucinaes, delrios ou convulses sobre os pacientes, bem como podem prejudic-los cognitivamente, desorient-los e confundi-los, de modo que as suas respostas aos instrumentos seriam igualmente confusas ou carregadas de vis. Para ate-nuar tais efeitos decorrentes do uso de drogas, de modo a garan-tir que o paciente fornea informaes confiveis e fidedignas, espera-se alguns dias desde a sua internao para o incio da aplicao dos instrumentos. Trata-se de abrandar os efeitos des-tas substncias e de desintoxicar os participantes da pesquisa.

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    INSTRUMENTOS AUTOAPLICVEIS QUE NO SO

    AUTOAPLICADOS

    A maioria dos instrumentos utilizados nas coletas de dados com os pacientes da Unidade de Adio do HCPA de estilo autoa-plicvel, ou seja, com perguntas inscritas na primeira pessoa do singular (por exemplo, sou uma pessoa distrada?). Contudo, mesmo que vrias destas ferramentas apresentem este forma-to, todas as questes de todos os instrumentos so lidas a todos os pacientes. Tal orientao faz com que esta fase da coleta de dados assuma o formato de uma entrevista padronizada.

    Entre outros motivos, isto acontece, pois, alguns pacientes, de-vido s suas prticas de uso recente ou continuado de drogas, seriam dotados de ateno prejudicada, tal como fui informa-do pelos meus interlocutores. Esta condio dificultaria a total compreenso das questes contidas nestas ferramentas, o que pode tornar a sua autoadministrao displicente ou dispersa de modo a tambm comprometer a veracidade das informaes registradas.

    Nesse sentido, a entrevista padronizada no somente caracte-rizada pela leitura das perguntas que esto contidas nos instru-mentos de pesquisa aos pacientes. O entrevistador deve tambm e mais importante certificar-se de que o entrevistado com-preendeu a inteno de cada questo que lhe foi dirigida, para que dessa maneira possa oferecer as respostas mais corretas possveis10.

    Tal como expresso no Manual de Aplicao da Escala de Gravida-de de Dependncia (ASI6), para que o paciente compreenda ade-quadamente a informao que lhe solicitada, o entrevistador deve estar disposto a repetir, mudar as palavras e questionar at que sinta que o paciente entende a questo e que a respos-ta reflete o melhor julgamento do paciente, consistente com a

    10 Este procedimento no implica que no haja instrumentos autoaplicveis vlidos para usurios de drogas.

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    inteno da pergunta (KESSLER; PECHANSKY, 2011, p. 12). Para isso, preciso primeiramente que o entrevistador, ele prprio, compreenda a finalidade subjacente a cada questo do instru-mento: importante que o entrevistador entenda a inteno da pergunta para dispor da informao mais completa disponvel pelo paciente e, ento, registrar a resposta mais apropriada, in-cluindo comentrios (KESSLER; PECHANSKY, 2011, p. 12)11.

    Ou seja, assumir a coleta de dados na forma de uma entrevista padronizada, a fim de que os entrevistados compreendam inte-gralmente as suas questes, parece ser particularmente impor-tante para pesquisas com usurios de drogas, visto que estes seriam dotados de ateno prejudicada. Uma vez mais, o Ma-nual de Aplicao da Escala de Gravidade de Dependncia (ASI6) faz uma referncia esclarecedora, relativa tanto importncia do paciente usurio de drogas em compreender plenamente as questes contidas nos instrumentos, quanto validade da en-trevista padronizada para que este objetivo seja atingido.

    Tem-se notado que o formato padronizado de entrevista o nico mtodo vivel para assegurar a plena compreenso das questes per-guntadas, o que particularmente importante para alguns segmentos da populao que abusa de substncias (isto , pacientes psiquiatri-camente comprometidos, idosos, pacientes confusos ou com doenas clnicas). (KESSLER; PECHANSKY, 2011, p. 26)

    Quero apontar neste tpico que, tal como o aguardo por cinco dias para o incio das entrevistas, o prprio formato desta etapa da coleta de dados (uma entrevista padronizada) objetiva tam-bm, entre outras coisas, atenuar os efeitos das drogas sobre os pacientes. O uso de drogas prejudicaria a ateno, compro-meteria a condio psiquitrica e confundiria os pacientes. Tais efeitos dificultariam o completo entendimento das ques-tes dos instrumentos, o que inviabiliza a sua autoaplicao. A fim de contornar estes efeitos, de modo a registrar informaes

    11 Apesar de estas citaes se referirem aplicao da Escala de Gravidade de Dependncia (ASI6) em especfico, so tambm vlidas para o que diz respeito aos demais instrumentos utilizados nestas entrevistas.

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    fidedignas sobre os instrumentos de pesquisa, a coleta de da-dos toma a forma de uma entrevista padronizada.

    Tal dificuldade dos pacientes usurios de drogas em compreen-der as questes dos instrumentos de pesquisa pode, inclusive, levar o entrevistador a encerrar a entrevista.

    Os entrevistadores podem encontrar pacientes que simplesmente so incapazes de entender os conceitos bsicos da entrevista ou de se con-centrar em questes especficas, geralmente por causa dos efeitos de abstinncia de lcool ou outras drogas ou devido a transtornos men-tais. Quando isto se torna aparente, a entrevista deve ser finalizada e outra sesso agendada. (KESSLER; PECHANSKY, 2011, p. 31)

    Ainda alm, as entrevistas no somente podem ser finalizadas ou reagendadas, mas os pacientes podem tambm ser excludos da pesquisa. Nesse sentido, durante o perodo em que realizei o trabalho de campo, os dados coletados com dois pacientes fo-ram removidos dos registros deste empreendimento cientfico. Os participantes excludos eram pacientes alcoolistas que, se-gundo os entrevistadores e coordenadores desta pesquisa, apre-sentavam demncia devido ao uso intenso, antigo e continuado de bebidas alcolicas condio que lhes impossibilitava o en-tendimento das questes contidas nos instrumentos.

    CONTORNANDO O PREJUZO DE AUTOAVALIAO

    Contudo, caso a coleta de dados no seja finalizada ou o paciente excludo da pesquisa, a entrevista segue um padro geral de procedimentos. O entrevistador e o paciente dirigem-se at a sala de atendimento individual, localizada ao final do corredor onde esto os leitos da Unidade de Adio. Sentam-se um de frente para o outro, e ambos de frente para uma mesa. Nesta mesa, o entrevistador posiciona os instrumentos que traz con-sigo e l ao paciente as perguntas que ali esto ordenadas. O paciente responde. A partir destas respostas, o entrevistador marca uma inscrio no instrumento de pesquisa e passa para a prxima questo, e assim repetidamente.

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    Caso os pacientes cumpram todas as fases da coleta de dados, chegam a participar da aplicao de treze os instrumentos de pesquisa. Com a insero dos testes neurocognitivos, no ms de setembro do ano de 2013, esta entrevista passou a contar com de-zessete instrumentos. As questes contidas nestas ferramentas tratavam de temas diversos: relaes sexuais, histria familiar, envolvimento com a justia, consumo de lcool e drogas, traba-lho, histrico teraputico, infncia, relaes de amizade etc.

    Aqui interessante comentar certo estranhamento que, nas si-tuaes em que acompanhei as coletas de dados, percebi da par-te de alguns pacientes com relao a estas perguntas. Duran-te as entrevistas, estes frequentemente se surpreendiam que uma mesma questo lhes fosse dirigida repetidas vezes. Havia momentos em que os pacientes eram solicitados a responder a trs ou a quatro indagaes bastante semelhantes entre si, que se diferenciavam somente a partir de uma pequena alterao dos termos de enunciao. Outras vezes, tinham de responder a diferentes questes, mas que buscavam registrar uma mesma informao. Tambm podiam ser feitas perguntas gerais ou am-plas, que eram especificadas por meio de perguntas posteriores, mais circunscritas. Embora este fenmeno seja relativo a vrios instrumentos de pesquisa, os pacientes o reparavam principal-mente quando da aplicao das ferramentas que abordavam o uso de drogas.

    Por exemplo, no questionrio Perfil do Consumo de Cocana, a questo 16-D pergunta se o paciente isolou-se dos outros por meio do consumo de cocana; ao que especificada pelas questes 20-C e 20-H, que perguntam se o uso desta substncia promoveu, respectivamente, o isolamento da famlia e o iso-lamento dos amigos. A questo 17-B, por sua vez, questiona se a perda de dia de escola/trabalho foi uma consequncia do uso de cocana, e a questo 20-E indaga se ocorreu ausncia do tra-balho em funo do mesmo motivo. J a questo 20-F pergunta

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    se a cocana motivou brigas fsicas com outras pessoas, en-quanto a pergunta seguinte, 20-G, indaga se devido ao consumo desta substncia o paciente feriu fisicamente outra pessoa.

    No roteiro de perguntas da Escala de Gravidade de Dependn-cia de Crack, tambm h questes que, de certa forma, so pr-ximas ou se assemelham. Por exemplo, a fim de investigar o domnio do paciente acerca das suas prticas de consumo de crack, este instrumento lhe dirige as seguintes perguntas (o en-trevistado deve posicionar a sua resposta nas opes concordo muito, concordo, discordo e discordo muito): 11 No tenho nenhum controle sobre meu consumo de crack; 02- No resis-to ao crack quando tenho oportunidade de us-lo.

    O descontrole do entrevistado perante o uso de crack tambm especificado de forma parecida nestas duas prximas questes, que fazem referncia situao na qual o usurio no consegue ou tem dificuldade em interromper o consumo da substncia: 17 Sempre uso maior quantidade de crack do que planejo inicial-mente; 08 A quantidade de crack que eu uso nunca suficien-te, pois sempre quero fumar mais.

    Este questionrio ainda pergunta: 22 Tenho dificuldade em aceitar que o crack um problema pra mim; e 23 No consigo perceber os problemas que o crack j me causou, evocando a ausncia de reconhecimento, por parte do entrevistado, acerca da ocorrncia de problemas relacionados ao uso de crack. Ou ainda, 19 No tenho interesse por atividades que no se relacionam ao crack; e 32 No sinto mais prazer nas coisas do dia a dia por causa do crack, aludindo a uma mesma forma pela qual o crack assume centralidade na vida do paciente.

    Quando perguntei aos entrevistadores os motivos pelos quais os instrumentos de pesquisa eram compostos de perguntas pare-cidas ou semelhantes, fui informado que, dentre outras razes, por meio deste procedimento possvel contornar o prejuzo de autoavaliao dos entrevistados, condio que seria derivada de um histrico de uso frequente e estendido de drogas. O uso abusivo destas substncias, por um longo perodo, provocaria

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    determinados danos para a percepo do paciente acerca de si e da sua relao com as drogas, o que lhe causaria tambm certa dificuldade para avaliar adequadamente a sua condio atual e passada de vida.

    Uma das manifestaes deste prejuzo de autoavaliao seria a ocorrncia de respostas inconsistentes e contraditrias, por par-te dos pacientes, durante as sesses de entrevista. Deste modo, meus interlocutores compreendiam que instrumentos de pes-quisa compostos por perguntas similares permitiriam revelar as incongruncias e as contradies nas respostas dos entrevista-dos, de maneira a obter os dados mais fidedignos possveis. Em suma, trata-se de mais uma forma de atenuar os efeitos do uso de drogas sobre os pacientes, de modo a garantir que a sua partici-pao nas sesses de entrevista resulte na inscrio de respostas corretas sobre os instrumentos.

    Para alm de instrumentos compostos por perguntas prximas ou semelhantes, os entrevistadores tambm so orientados, pe-los coordenadores da pesquisa, a confrontar as informaes do paciente ao longo de toda a entrevista. Ou seja, o entrevistador deve ficar a todo o momento bastante atento s respostas que o paciente lhe apresenta, conferindo se entram ou no em con-tradio com as informaes disponibilizadas na ocasio de per-guntas anteriores. Este procedimento tambm objetiva colocar prova a veracidade das respostas dos entrevistados aos instru-mentos, a fim de garantir a integridade dos dados coletados12.

    Nesse sentido, a Escala de Gravidade de Dependncia (ASI6), que como j referido mobilizada nestas coletas de dados, foi conce-bida de tal modo que vrias de suas perguntas demandam infor-maes pontuais, exigidas por diferentes questes ao longo da entrevista com este instrumento. Ou seja, em vrios momentos de sua aplicao, o paciente tem de reafirmar as informaes que concedeu na ocasio de questes anteriores. A fim de auxiliar o

    12 Evidentemente, esta no uma orientao exclusiva para pesquisas das cincias mdicas com pacientes usurios de drogas, mas sim um procedimento destacado com especial nfase para estudos que envolvam esta populao.

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    trabalho do entrevistador em conferir a consistncia das respos-tas do entrevistado, o Manual de Aplicao deste instrumento apresenta uma lista de itens para checagem cruzada da acur-cia da entrevista. Trata-se de um inventrio das perguntas cujas respostas demandam informaes semelhantes. Ou seja, uma lista de questes que cruzam as informaes oferecidas pelos pacientes.

    Por exemplo, o item 19 desta lista informa que, quando o paciente diz em L21 estar aguardando sentena ou julgamento, a infrao que ocasionou tal situao tem que constar na listagem L7-L14. J o item 30 avisa que, quando o paciente relata comportamen-to violento em P13 e P14, isso deveria constar em L (Legal) na forma de ameaas ou agresses, ou em F (Famlia/Social), como conflitos com outras pessoas. De maneira semelhante, quando o paciente no teve problemas psiquitricos nos ltimos 30 dias em P18, mas aparecem anteriormente problemas psiquitricos de P8 a P17, o entrevistador deve revisar isso com o paciente (item 27). Tambm se o paciente casado ou vive como casado, deve aparecer em H (Habitao/Moradia) que vive com parceira; em E (Emprego/Sustento), isso pode constar como ajuda no sustento; em F1 (Famlia/Social) tambm deve ser relatado relacionamento amoroso nos ltimos 30 dias (item 1).

    Esta lista tambm apresenta os procedimentos que o entrevis-tador deve adotar nos casos em que as respostas do entrevista-do parecem incoerentes com os demais dados oferecidos. Deste modo, o entrevistador pode verificar se as respostas dos pacien-tes, de fato, refletem a sua percepo acerca dos acontecimen-tos e das condies de sua vida.

    Nesse sentido, nesta lista informado ao entrevistador que, s vezes, pacientes informaro na seo lcool e outras Drogas (item D1) sobre uma overdose que necessitou de hospitalizao, que eles esqueceram de contar na seo Mdica, ao que segue a orientao: Volte e esclarea os itens M25 e M26 na seo m-dica (item 17). Tambm nas situaes nas quais o paciente rela-tou no ter tido problemas com lcool nos ltimos 30 dias, mas diz estar incomodado com problemas com lcool ou precisar de

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    tratamento para esses problemas, o entrevistador deve voltar ao D21 e perguntar novamente o nmero de dias que [o paciente] se sentiu incomodado com problemas com lcool (item 14). Ou para o paciente que no acha que o lcool um problema para o qual precisa tratamento e, no entanto, consumiu lcool 15 dias no ltimo ms, o entrevistador deve revisar isto com ele e se mantiver a posio negativa, anotar comentrio (item 10). A Escala de Gravidade de Dependncia (ASI6) possui 31 itens deste tipo.

    Ainda no sentido dos procedimentos que objetivam assegurar a integridade dos dados obtidos nas sesses de entrevista, importante referir que, depois de preenchidos, os instrumentos so regularmente revisados por um assistente de pesquisa. Este deve ter experincia prvia como entrevistador, de modo a ser familiarizado com os instrumentos mobilizados neste empreen-dimento cientfico. Esta reviso consiste em observar se faltam informaes de identificao dos pacientes, se os instrumentos esto completamente preenchidos e sem erros de codificao e se existem contradies entre os dados registrados.

    Caso haja incoerncias, o assistente de pesquisa que faz esta reviso deve contatar o entrevistador para explicao. Espera--se que faa isto o mais rpido possvel, logo aps o trmino da coleta dos dados, para que o entrevistador ainda tenha recente na memria as informaes do paciente que entrevistou. Caso o entrevistador no consiga resolver a contradio identificada, deve ento verificar se o referido paciente ainda se encontra na Unidade de Adio do Hospital de Clnicas de Porto Alegre, para que a dvida possa ser elucidada pessoalmente pelo entrevista-do. Se isto no for possvel, as questes inconsistentes devem ser anuladas.

    CONSIDERAES FINAIS

    Em funo do uso de drogas, tanto recente quanto de longo pra-zo, ou devido sua interrupo abrupta, os pacientes da Unida-de de Adio do HCPA se encontrariam clinicamente instveis,

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    confusos, desorientados ou psiquiatricamente comprome-tidos; estariam com a ateno prejudicada e sofreriam de prejuzos, tanto cognitivos quanto de autoavaliao. Desta forma, no apresentariam condies clnicas para conceder entrevistas, bem como as informaes que forneceriam nestas situaes seriam confusas, inconsistentes ou contradit-rias. Assim, uma srie de precaues adotada para que seja vivel a coleta de dados com estes pacientes.

    Primeiramente, a aplicao dos instrumentos de pesquisa tem incio somente no quinto dia de internao dos pacientes, a fim de que os mesmos j tenham passado pelos primeiros dias de desintoxicao. Isto possibilita a consolidao de condies clnicas para a participao dos pacientes nas entrevistas, assim como atenua os prejuzos cognitivos, os efeitos deso-rientadores e a confuso que derivam do uso de drogas e que comprometem a credibilidade de suas respostas.

    Para que os entrevistados tenham plena compreenso das in-formaes que lhes so solicitadas, tambm a coleta de dados assume a forma de uma entrevista padronizada. Isto significa que todas as questes, de todos os instrumentos, so lidas pelos entrevistadores a todos os pacientes procedimento importan-te para aqueles cujo uso de drogas prejudicou a ateno. Por fim, com o intuito de contornar o prejuzo de autoavaliao, prprio a usurios de drogas, os instrumentos de pesquisa so dotados de mecanismos para a identificao de informaes contraditrias; bem como o entrevistador deve estar atento, durante toda a entrevista, a possveis inconsistncias nas res-postas dos pacientes. Se aps todos estes mtodos e tcnicas, o paciente ainda continuar sob efeito de drogas, ento deve ser excludo dos registros da pesquisa.

    Considero que o conjunto destes procedimentos de pesquisa coloca em operao um processo de mediao, em que esto implicados os usurios de drogas participantes do estudo; pro-cesso este que, tal como irei argumentar, relativo ao ideal de objetividade pretendido no mbito destas coletas de dados. Para

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    abordar estes pontos, fao referncia a uma considerao de Gil-berto Velho (1987), acerca do papel que cumprem e da posio que ocupam as drogas e os seus usurios em nossa sociedade.

    Este autor, em um clssico artigo no qual toma para reflexo duas categorias de acusao prprias do contexto brasileiro (anos de 1980), a de subversivo e a de drogado, afirma que este ltimo funciona para a nossa sociedade como um smbolo diferenciador, que, por meio desta figura define aquilo ela que no , ou aquilo que no quer ser. Para Velho, o subversivo e o drogado ameaam uma certa ordem social estabelecida, pois ferem a concepo de mundo que lhe subjacente. So figuras desviantes, constitudas a partir da criao primeira de uma dada norma social, e que funcionam para a manuteno e reifi-cao desta mesma norma e de seus valores fundantes.

    Para o caso que tomei para anlise no presente artigo, argu-mento que as drogas tambm esto instituindo determinadas fronteiras e demarcando valores especficos. Estas substncias operam enquanto uma espcie de marco delimitador da obje-tividade explorada por este empreendimento de pesquisa, que definida em contraposio quilo que as drogas representam: incerteza, instabilidade, desorientao, confuso, incoerncia etc. Ou seja, as drogas, uma vez que associadas a estas repre-sentaes, se constituem enquanto um smbolo diferenciador da objetividade cientfica pretendida nas coletas de dados: reve-lam pelo negativo os valores que constituem este atributo enquanto tal, quais sejam, certeza, estabilidade, segurana, confiabilidade13. Em outras palavras, as drogas ameaam uma certa concepo de cincia, fundada na busca por uma objeti-vidade cujos valores constituintes so antagnicos quilo que estas substncias representam.

    E uma vez que drogas e objetividade cientfica esto asso-ciadas a qualidades simetricamente opostas, a fim de garantir

    13 Para uma apropriao semelhante das consideraes citadas de Gilberto Velho, ver Stlio Marras (2008).

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    a confiabilidade e a integridade das informaes produzidas nas coletas de dados, torna-se necessrio purificar o empreen-dimento cientfico da ao destas substncias objetivo cujo limite a prpria excluso de pacientes que, devido s consequ-ncias de seus histricos de uso de drogas, estariam incapaci-tados de fornecer respostas confiveis. Ou seja, quanto menos os efeitos das drogas se fizerem presentes nos participantes do estudo, mais objetivo ser este empreendimento cientfico. Trata-se, portanto, de purificar as informaes produzidas nas coletas de dados, de modo a lhes conferir o estatuto mais ob-jetivo possvel, por meio da eliminao dos efeitos subjetivos atribudos ao das drogas.

    Este processo de purificao feito por meio da srie de proce-dimentos descritos no presente artigo. nesse sentido que as prticas de coletas de dados encontram nos pacientes o objeto central de sua ao: so meios de atenuar, diminuir ou de abran-dar os efeitos das drogas sobre os entrevistados, de maneira a viabilizar a participao dos mesmos no estudo e registrar as informaes mais fidedignas possveis sobre os instrumentos de pesquisa.

    Ao agir sobre os pacientes entrevistados, estes procedimentos de pesquisa tambm os esto transformando: ao longo do empreen-dimento cientfico, os pacientes deixam de ser sujeitos intoxica-dos, confusos e sob efeito de drogas tal como no momento em que realizam o primeiro procedimento da coleta de dados, a extrao de sangue para se tornarem participantes de pesqui-sa que respondem adequadamente aos instrumentos. A busca por assegurar condies em que os sujeitos entrevistados pos-sam oferecer dados ntegros e verdicos constitui, deste modo, um processo de diferenciao dos mesmos.

    Este um processo de mediao (LATOUR, 2012), voltado para a produo simultnea de sujeitos de pesquisa coerentes e de da-dos objetivos. Deste modo, as transformaes com as quais es-to implicados os pacientes usurios de drogas do HCPA esto intimamente conectadas com a busca por dados imaculados do

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    vis decorrente dos efeitos das drogas: mediao e purificao so processos intercalados, em relao de coproduo.

    Portanto, a produo de dados coerentes depende de um proces-so de mediao, que almeja a fabricao de um sujeito entrevista-do igualmente coerente, que no seja confuso, desorientado, incerto. Este objetivo parece adquirir particular importncia na medida em que os participantes da pesquisa so usurios de drogas substncias que, no registro das sociedades modernas ocidentais, seriam eminentemente qualificadas pela produo de comportamentos instveis, tal como argumentou Stlio Marras (2008).

    Interpretaes como estas colocam em questo a prpria expres-so coleta de dados, tal como implicada nos procedimentos de pesquisa aqui abordados: em que medida possvel apreender um dado por coletado remetendo assim a uma informao pronta e acabada, cujo o acesso imediato somente exigiria do pesquisador a sua coleta se o prprio sujeito que fornece o dado no vem pronto, mas construdo durante o empreendimento cientfico, por meio de procedimentos inerentes a este?

    Deste modo, importante ressaltar que os procedimentos de cole-ta de dados aqui abordados so mais do que simples regras para a conduo apropriada do empreendimento cientfico: constituem formas de agir sobre os pacientes participantes do estudo. E uma vez que a ao esta capacidade de transformar a outros seres, tal como definiu Latour (2001), agir sobre os pacientes tambm, consequentemente, transform-los: a cincia no representa a realidade de seus objetos sem intervir sobre os mesmos.

    Contudo, tambm no deve ser dada pouca importncia ao fato de que esta mediao realizada, ao final das contas, com o objetivo de conduzir o empreendimento cientfico da maneira compreendida como aquela que a mais adequada possvel. Os procedimentos de pesquisa aqui destacados so concebidos en-quanto meios de garantir a fidedignidade das respostas dos pa-cientes; so como que estratgias para diminuir o vis de suas

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    respostas, o prejuzo cognitivo, a ateno prejudicada e o pre-juzo de autoavaliao que decorrem de sua intoxicao por uso de drogas. Em outras palavras, so meios de produzir algo muito valorizado pelo coletivo de pesquisadores que empreende a coleta de dados que tomei para investigao etnogrfica neste trabalho, denominado de objetividade cientfica.

    Portanto, argumento por fim que tal objetividade cientfica no caracterizada por manter uma relao distante, neutra ou mesmo passiva para com os objetos que busca apreender tal como po-deria ser depreendido da busca incessante por dados confiveis, ntegros e verdicos que motiva. Diferentemente, a persecuo desta objetividade depende, de maneira intrnseca, de uma rela-o ativa para com os pacientes usurios de drogas, no sentido que comprometida com a transformao destes sujeitos: um processo de mediao, que busca purificar os dados coletados das drogas e de seus efeitos.

    na medida em que todo o processo de purificao instvel, in-completo e sujeito a limites, que tal ideal objetividade se constitui enquanto um horizonte normativo, ao qual sempre necessrio e

    desejvel aproximar-se, mas cujo alcance absoluto no possvel.

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  • 149PSvolume 13 | 2 | 2014

    RESUMO

    Este artigo descreve as coletas de dados de uma pesquisa mdico-cien-

    tfica, realizada com pacientes usurios de drogas. Analisam-se os meios

    pelos quais as prticas desta pesquisa agem sobre estes sujeitos, a fim de

    compreender qual ideal de objetividade pretende-se alcanar no mbito des-

    te empreendimento. Afirmo que a produo de um dado confivel envolve

    um processo que almeja diminuir ou contornar os efeitos do uso de drogas

    sobre os participantes do estudo, de modo que a coleta do dado depende da

    fabricao do sujeito que ir fornecer este dado. Esta no uma objetividade

    passiva ou neutra com os sujeitos que so o centro de sua ateno, mas sim

    ativa e empenhada na transformao dos mesmos.

    Palavras-chave: Coleta de dados, Objetividade, Drogas, Antropologia da

    Cincia.

    ABSTRACT | COLLECTED DATA, FABRICATED SUBJECT: DRUGS AND OBJECTIVITY IN A MEDICAL-SCIENTIFIC RESEARCH

    This article describes data collection of a scientific and medical research,

    conducted with drug users. Analyzes the ways these research practices act

    upon these subjects, in order to understand what is the ideal of objectivity de-

    sired under this project. I affirm that the production of trusted data involves

    a process that aims to reduce or overcome the effects of drug use on the par-

    ticipants, in a way that the collection of the data depends on the production of

    a subject that will provide this data. This is not a passive or neutral objectivity

    regarding the subjects that are the center of its attention. On the contrary, this

    objectivity is active and involves the transformation of those subjects.

    Keywords: Data collection, Objectivity, Drugs, Anthropology of Science.

  • 150DADO COLETADO, SUJEITO FABRICADO: DROGAS E OBJETIVIDADE...Eduardo Doering Zanella

    RESUMEN | RESUMEN DATO RECOGIDO, SUJEITO FABRICADO: DROGAS Y OBJETIVIDAD EN UNA INVESTIGACIN MDICO-CIENTFICA

    En este artculo se describe la recoleccin de datos de una investigacin

    mdico-cientfica, realizada con usuarios de drogas. La intencin es exami-

    nar cmo los procedimientos de este estudio actan sobre los sujetos par-

    ticipantes, con el fin de entender que ideal de objetividad se busca en este

    proyecto. Argumento que la produccin de un dato seguro objetiva reducir

    o mitigar los efectos del uso de drogas en los participantes del estudio, de

    modo que la recoleccin del dato depende de la fabricacin del sujeto que

    proporcionar el dato. Esto no es una objetividad pasiva o neutral en relacin

    a los sujetos que son el centro de su atencin, pero activa y comprometida

    con la transformacin de estos sujetos.

    Palabras clave: Recoleccin de Datos, Objetividad, Drogas, Antropologa

    de la Ciencia.