12
VERBOS DE TRANSPORTE E A FOCALIZACÁO DE LUGARES Luis Fernando Dias Moreira Renato Ferreira da Silva Hardarik Blühdorn* Resumo: Os verbos de transporte causam dificuldadespersistentes tanto no aprendizado do alemao por aiunos brasileiros quanlo do portugués por aiunos alemaes. Este artigo aprésenla alguns concei- tos básicos, como foco e perspectiva, utilizados na descriqao lin- güistica desses verbos. Nossa análise pode ajudar o professor a ex- plicar melhor o uso idiomático dos verbos de transporte aos seus aiunos. Palavras-chave: Verbos de transporte, Foco, Perspectiva, Prefixo verbal. Introdu 9 ao Em Sao Paulo, cxistem atualmente dez escolas de segundo grau que ofere- ccm cnsino de alemao como lingua cstrangcira. Nos estados do sul do Brasil, Rio Grande do Sul, Santa Catarina c Paraná, onde houve urna imigratjao alema consi- derável durante o século XIX e a primeira metade do século XX, o alemáo ainda é urna lingua córtente no ensino escolar. Também em outros estados do Brasil, p.ex. Rio de Janeiro, Minas Gerais, entre outros, temos ensino de alemao em algumas escolas. Ñas universidades, particularmente no sul e sudeste, o estudo académico da lingua alemS é relativamente difundido. Na Alcmanha, provavelmente, cxistem pouquíssimas escolas com ensino de portugués como lingua estrangeira. Entretanto, o portugués pode ser estudado num número considerável de universidades. Tanto para estudantes de alemáo, quanto de portugués, como linguas es- trangeiras, verificamos que o emprego dos verbos de transporte constituí urna difi- culdade que se mantérn mesmo nos níveis mais avanzados de dominio da lingua. * Os dois primeiros autores sao estudantes de graduado da Área de Alemao, Departamento de Letras Modernas, FFLCH/USP. O terceiro autor c Professor Doutor dessa mesma Área. O projeto apresen- lado conta com duas bolsas de iniciacao científica concedidas pela FAPESP (processos: 96/3305-0 c 96/3306-6). Erschienen in: Linha D'Água (1997) Nr. 12, S. 39-50.

VERBOS DE TRANSPORTE E A FOCALIZACÁO DE LUGARES · Observamos que, dos 23 verbos da tabela, apenas 5 estabelecem o foco inequívocamente no LOP. Portanto, o LDP parece ser o foco

Embed Size (px)

Citation preview

VERBOS DE TRANSPORTE E A FOCALIZACÁO DE LUGARES

Luis Fernando Dias Moreira Renato Ferreira da Silva

Hardarik Blühdorn*

Resumo: Os verbos de transporte causam dificuldadespersistentes tanto no aprendizado do alemao por aiunos brasileiros quanlo do portugués por aiunos alemaes. Este artigo aprésenla alguns concei- tos básicos, como foco e perspectiva, utilizados na descriqao lin-güistica desses verbos. Nossa análise pode ajudar o professor a ex-plicar melhor o uso idiomático dos verbos de transporte aos seus aiunos.Palavras-chave: Verbos de transporte, Foco, Perspectiva, Prefixo verbal.

In trodu9ao

Em Sao Paulo, cxistem atualmente dez escolas de segundo grau que ofere- ccm cnsino de alemao como lingua cstrangcira. Nos estados do sul do Brasil, Rio Grande do Sul, Santa Catarina c Paraná, onde houve urna imigratjao alema consi- derável durante o século XIX e a primeira metade do século XX, o alemáo ainda é urna lingua córtente no ensino escolar. Também em outros estados do Brasil, p.ex. Rio de Janeiro, Minas Gerais, entre outros, temos ensino de alemao em algumas escolas. Ñas universidades, particularmente no sul e sudeste, o estudo académico da lingua alemS é relativamente difundido.

Na Alcmanha, provavelmente, cxistem pouquíssimas escolas com ensino de portugués como lingua estrangeira. Entretanto, o portugués pode ser estudado num número considerável de universidades.

Tanto para estudantes de alemáo, quanto de portugués, como linguas es- trangeiras, verificamos que o emprego dos verbos de transporte constituí urna difi- culdade que se mantérn mesmo nos níveis mais avanzados de dominio da lingua.

* Os dois primeiros autores sao estudantes de graduado da Área de Alemao, Departamento de Letras Modernas, FFLCH/USP. O terceiro autor c Professor Doutor dessa mesma Área. O projeto apresen- lado conta com duas bolsas de iniciacao científica concedidas pela FAPESP (processos: 96/3305-0 c 96/3306-6).

Erschienen in: Linha D'Água (1997) Nr. 12, S. 39-50.

No presente artigo, apresentamos alguns resultados de urna pesquisa sobre esses verbos no alemao e no portugués do Brasil, cujo objetivo é elaborar melhores des-c rib e s desses verbos, a fim de auxiliar os professores no seu ensino.

A nossa pesquisa visa a urna describo gramatical, semántica e pragmática dos verbos de transporte, baseando-se num corpus de dados por nós colctado junto a informantes alemaes e brasileños cm suas línguas maternas, e ñas duas como línguas estrangeiras. O primeiro volume desse corpus, intitulado Corpus de Ale-mao e Portugués como Línguas Estrangeiras (CAPLE), foi publicado em 1997 como manuscrito junto á Arca de Alemáo, da Faculdade de Filosofía, Letras e Ciencias Humanas da USP-

Entendemos como verbos de transporte aqueles que designam o desloca- mento de um paciente A de um local x para um local y sob a a?ao de um agente B. Um exemplo no portugués seria o verbo levar:

(1) Ontem o Renato levou o Otto ao veterinario.

Nesse exemplo, temos o paciente Otto, que sofre um deslocamcnto a partir de um local de origem nao especificado até o veterinario (local de destino), provo-cado pelo Renato (agente).

Em (1), o agente também realiza um dcslocamento, o que todavía nao ocor-re necessariamente em todo transporte. Por exemplo, urna pessoa sentada á mesa, que passa o saleiro para urna outra, nao precisa se deslocar de seu assento.

Para a describo dos locáis de origem e destino do agente e do paciente, utilizaremos as seguintes siglas: LOA - Local de Origem do Agente, LOP - Local de Origem do Paciente, LDA - Local de Destino do Agente, LDP - Local de Destino do Paciente.

O emprego dos verbos de transporte traz dificuldades especificas de cunho gramatical, semántico e pragmático. A lingua alema, por exemplo, apresenta um vasto uso de prefixos verbais como hin-, her-, weg-, ab- etc., inexistentes no portu-gués (dificuldade gramatical). No campo semántico, o alemao preve, geralmentc, urna especifica?ao detalhada do LOP e LDP, locáis definidores da trajetória do paciente, enquanto, no portugués, freqüentemente nao se faz nccessária tal especificagáo.' Quanto á pragmática, grande parte dos verbos de transporte apre-senta características déiticas (como levar vs. trazer) que muitas vezes nao sao aná-logas entre as línguas.

1 Em trabalho anterior (Blühdom, 1997), verificamos que no alemao os informantes tendem a usar adjuntos adverbiais para determinaren! os locáis da trajetória. Por exemplo, Er liat mir aus París viele Gescltenke miigebracht. [Ele me trouxc de París muilos presentes.) 60% das frases no nosso corpus produzidas por alemaes na lingua materna contém esse tipo de especificares. No portugués, por outro lado, o emprego de adjuntos adverbiais, para determinar locáis da trajetória, ocorreu em apenas 40% das frases produzidas por falantes nativos. Nossa pesquisa tem indicado que os informantes brasileiros tendem a usar outros recursos lingüísticos na especificado dos caminhos do transporte.

40

A metodología de análise lingüistica dos verbos de transporte nao foi ainda suficientemente desenvolvida. Nos dicionários de valéncias verbais das duas lín- guas (Fe r n an d e s 1991, Bo r ba et al. 1991-, Lu f t 1995; He l b io & Sc h en k e l 1973, En g e l & ScmiMACHER 1978, Sc h u ma c h e r 1986), encontramos propostas nesse sen-tido nos campos gramatical e semántico. Para o alemáo, dispomos tambám de al- guns estudos monográficos (Ge r l in g & Or t h en 1979, E ic h in o er 1989), enquanto, para o portugués, pesquisas nesse ámbito permaneccm inéditas. A pragmática dos verbos de transporte, em geral, tem sido urna área pouco estudada. Essa situado nos obrigou a desenvolver um modelo próprio de análise, englobando, entre ou- tros, conceitos como foco e perspectiva, que ora apresentamos.

O conceito de foco

Ao descrever um deslocamento, o falante se insere num contexto comuni-cativo que o leva a explicitar ou nao determinados constituintes da informaíáo. Por exemplo, com o verbo trazer, seria perfeitamente aceitável urna oraijáo como a seguinte:

(2a) Traga o dicionário, por favor!

O falante pressupbe que seu interlocutor possa identificar o lugar para onde deve trazer o dicionário e, portanto, ele opta por nao mencioná-lo. Caso o falante queira buscar maior precisáo a esse respeito, fará men?ao do LDP:

(2b) Traga o dicionário para a sala, por favor!

Da mesma forma, o LOP, ou ambos - LOP e LDP - podem ser cxplicitados:

(2c) Traga o dicionário da biblioteca, por favor!(2d) Traga o dicionário da biblioteca para a sala, por favor!

Ao observarmos as quatro variantes da oraijao, verificamos, porcm, que a importancia da explicitapao do LOP e do LDP nao é a mesma. No exemplo (2b), em que se menciona apenas o LDP, o LOP pode ser ¡rrelevante, ou o falante pres-supbe que já seja conhecido pelo interlocutor. Em (2c), em que se menciona apenas o LOP, o LDP precisa ser conhecido pelo interlocutor e nao pode ser irrelevante nocontexto. A mesma assimetria entre LOP e LDP vale também para o exemplo (2a). Podemos perceber, portanto, que, em rela9§o ao verbo trazer, o LDP é de maior importancia, sendo que seu conhecimento é imprescindívcl em qualquer contexto.

Um local da trajetória, que precisa ser de conhecimento do destinatário, quando do uso de um determinado verbo de transporte, definimos como o foco

41

cstabelecido por esse verbo. Teóricamente, cada verbo de transporte pode estabele- cer um, dois ou mesmo nenhum foco, porém a nossa pesquisa tem indicado, que a focalizado de um único local da trajetóría é urna característica da maioría dos verbos de transporte.

O foco estabelecido por alguns verbos do portugués

Vejamos como se aplica o concedo de foco para alguns verbos de transpor-te do portugués. Comecemos com o verbo levar:

(3a) Vocé levou a torta?(3b) Vocé levou a torta para a festa?(3c) Vocé levou a torta da geladeira?(3d) Vocé levou a torta da geladeira para a festa?

Em (3a), nao há especificado de LOP, nem de LDP. Aparentemente, o fa- lante parte do pressuposto de que é de conhecimento do seu interlocutor o local para onde a torta foi levada. Quanto ao LOP, este também pode ser conhecido pelo destinatário, ou ser irrelevante, situado que se repete em (3b). Observamos que nem sempre a procedéncia é de interesse quando do uso do verbo levar.

Em (3c), temos a menpao exclusiva do LOP, pressupondo-se o conheci-mento do LDP pelo receptor. É interessante notar que (3c) permite duas interpreta- ?6es: a especificado da geladeira poderia indicar a procedencia da torta (de onde a torta foi levada) ou distinguir entre dois referentes possiveis (qual torta foi leva-da). Essa ambigüidade toma-se possivel pelo fato da preposido de poder indicar nao somente procedéncia, mas também outros tipos de relacionamento como, por exemplo, posse.

Caso o LOP seja irrelevante, passa a valer a segunda interpretado- Para assegurar a interpretado da geladeira como LOP, pode-se inverter a scqüéncia dos elementos na senten?a:

(3c) Vocc levou da geladeira a torta?

Em (3d), a explicitado do LDP enflaquece aínda mais a possivel relevan-cia do LOP. Concluimos que o foco estabelecido pelo verbo levar também é o LDP.

42

Apresentamos, a seguir, urna breve lista de verbos de transporte do portu-gués com seus respectivos focos:

apanhar LDPbotar T Í 5 Fbuscar LDPcarregar LDP ou nenhumcatar T D Fcolher LDPcolocar LDPdar LDPdeslocar LOPempuñar LDP ou nenhumentregar T D Fjogar LDP

levantar nenhumlevar LDPpegar LDPpuxar nenhumreceber T D Fremover LOPretirar LOPtirar LOPtomar (tirar) LOP e LDPtransportar nenhumtrazer LDP

Observamos que, dos 23 verbos da tabela, apenas 5 estabelecem o foco inequívocamente no LOP. Portanto, o LDP parece ser o foco nao-marcado dos verbos de transporte no portugués. 3 verbos (levantar, puxar e transportar) nao estabelecem foco:

(4a) O caminhao transporta os bens.(4b) O caminhao transporta os bens para a feira.(4c) O caminhao transporta da fábrica os bens.(4d) O caminhao transporta os bens da fábrica para a feira.

Em (4a), (4b) c (4c), tanto o LOP quanto o LDP náo-mencionados podem ser conhecidos ou inelevantes. Em (4c), a inversao dos termos assegura a inter-pretado da fabrica como LOP.

Os verbos canegar e empuñar, em muitos casos, comportam-se como trans-portar, isto é, nao estabelecem foco. Em outros contextos, porém, estabelecem o foco no LDP:

(5a) Empurraram a mesa.(5b) Empurraram a mesa para a varanda.(5c) Empun-aram a mesa para fora da casa. (?da casa)(5d) Empurraram a mesa da sala para a varanda.

Em vez de (5c), nao seria possivel dizer:

(5e) ‘ Empurraram da casa a mesa.

43

Ou seja, urna espccificaqáo do LOP junto ao verbo empurrar nao seria acei- tável, se nao houvesse simultáneamente urna especifícaijao do LDP, como em (5d). Em (5c), ocorre urna reintcrprcta$áo do LOP (da casa) como LDP (para fora da casa). Isso demonstra que o LDP precisa ser de conhecimento do receptor e nao pode ser irrelevante. Em outras palavras, nessa condisao, o LDP é focalizado.

Um outro caso interessante ó o do verbo tomar com o sentido de “tirar/ roubar”. Com esse verbo é pouco provávcl a explicitapao do LDP através de adjun-to adverbial, mas, de qualquer mancira, ele deve ser de conhecimento do receptor. Assim, a frase;

(6a) O ladreo tomou a carteira da velhinha.

implica obligatoriamente a localizado do LDP junto ao ladreo. Portanto, o LDP é focalizado, Porém, o LOP também nao pode ser irrelevante, sendo que ele precisa ser mencionado, quando nio conhecido:

(6b) A - O que o ladráo tomou da velhinha?B - Ele tomou a carteira.

Concluimos que o verbo tomar com o sentido de “tirar” determina doisfocos.

O foco estabelecido por alguns verbos do alemáo

Para o alemáo aplicamos a mesma metodología de análisc. Tomemos como exemplo o verbo geben:

(7a) Die Großmutter gibt ein Kleid.[A avó dá um vestido.]

(7b) Die Großmutter gibt ein Kleid an die Armen.[A avó dá um vestido aos pobres.]

(7c) Die Großmutter gibt ein Kleid aus ihrem Schrank.[A avó dá um vestido de seu armário.]

(7d) Die Großmutter gibt ein Kleid aus ihrem Schrank an die Armen.[A avó dá um vestido de seu armário aos pobres.]

Verificamos que, em (7a) e (7c), o LDP näo-mencionado precisa ser de conhecimento do receptor. No caso de (7a), por exemplo, um contexto adequado de uso seria como resposta á pergunta Was geben wir den Armen? [O que vamos

44

dar aos pobres?]. 0 LOP em (7a) e (7b), todavía, pode ser irrelevante. Conseqüen- temente, o LDP é o foco determinado pelo verbo geben.

Como segundo exemplo, consideremos o verbo tragen [carregar]:

(8a) Die Mutter trägt das Kind.[A mäe carrcga a crianza.]

(8b) Die Mutter tragt das Kind ins Schlafzimmer.[A mäe carTega a crianza para o quarto.]

(8c) Die Mutter trägt das Kind aus dem Badezimmer.[A mäe cancga a crianpa para fora do banheiro.]

(8d) Die Mutter trägt das Kind aus dem Badezimmer ins Schlafzimmer.[A mäe cancga a crianza do banheiro para o quarto.]

Observamos que, em (8a), tanto o LOP quanto o LDP podem ser conheci- dos pelo destinatário ou ser inelevantes. O mesmo é válido para (8b) e (8c), ou seja, o verbo tragen näo focaliza nenhum local da trajetória.

Seguc-se urna breve lista de verbos alemäes com seus respectivos focos:

bekommen LDPbringen LDPfangen LDPfuhren nenhumgeben LDPheben nenhumholen LDPsetzen LDPstecken LDPstellen LDP

kriegen LDPlegen LDPnehmen LDPpacken LDPpflücken LDPschieben nenhumschleppen nenhumtragen nenhumtransportieren nenhumziehen nenhum

Dcsses 19 verbos, nenhum estabelece o foco no LOP. Na verdade, nüo en-contramos nenhum verbo de transporte nao-aprefixado no alemao, que cstabele$a o foco no LOP. Observamos também que nossa lista contém muitos verbos que nao determinam o foco. No entanto, a impressáo de que a quantidade dcsses verbos seja maior no alemao do que no portugués parece precipitada, urna vez que as amostragens ora apresentadas nao refletem representativamente os conjuntos to- tais dos verbos de transporte ñas duas linguas.

45

A relevancia do conceito de foco

Na nossa pesquisa, observamos que o conceito de foco se relaciona com a interpretado de objetos indiretos pronominais. Tanto no portugués como no ale- mao, podemos usar objetos indiretos substituindo adjuntos advcrbiais, para espe- cificarmos locáis da trajetória. Por exemplo:

(9a) O gar?om trouxe os talhcres até a mesa.(9b) O gar<;om trouxe os talheres para o cliente.(9c) O garcjom Ihe trouxe os talheres.

Ncsse caso, o objeto indireto determina o LDP. A determinado de um LOP através de um objeto indireto nao seria possível:

(9d) O gar<;om trouxe os talheres da copa. (LOP)(9e) O ganjom trouxe os talheres do imperador. (??? LOP)(9f) O ganjom Ihe trouxe os talheres. (*LOP)

Em re la jo ao verbo tirar, porém, encontramos a situado inversa:

(10a) O Luisinho tirou o brinqucdo do seu irm io.(10b) O Luisinho Ihe tirou o brinqucdo.

O objeto indireto cm (10b) apenas pode se referir ao LOP, c nao ao LDP.

Em geral, a interpretado de objetos indiretos pronominais junto aos verbos de transporte no portugués parece ocorrer paralelamente á a locado do foco, de modo que o referente do objeto indireto pronominal, junto a um verbo que focaliza o LOP, esteja no LOP, e do objeto indireto pronominal, junto a um verbo que focaliza o LDP, no LDP.

Quanto ao verbo tomar com o sentido de “tirar”, o objeto será automática-mente interpretado como LOP, pois o LDP, em geral, nao é mencionado quando do uso desse verbo:

(11) O ladráo Ihe tomou a carteira.

Na língua alema, a interpretado dos objetos indiretos pronominais segue as mesmas regras. Assim, os objetos indiretos, junto aos verbos halen [ir buscar], bringen [levar] e geben [dar], indicam o LDP. Apenas com o verbo nehrnen [pegar] temos um caso mais complexo. Se o objeto indireto for correferente do sujeito da frase, ele indicará o LDP:

46

(12a) Ich nehme m ir ein Stück Kuchen.[Eu pego para mim um pedapo de bolo.]

Sc o objeto indireto e o sujeito näoforem correferenciais, toma-sc possivel que o objeto indique o LOP. Na frase:

(12b) Ich nehme d ir ein Stück Kuchen.(Eu pego para/de voce um pedazo de bolo.],

o objeto dir [para/de vocé] permite duas interpretares: ou indica o LDP ou (numa Iinguagem mais literária) pode também indicar o LOP. No primeiro caso, o emprego da prcposi?äo fiir [para] junto ao pronome eliminaría a ambigüidade; no segundo, o emprego do verbo aprefixado wegnehmen deixaria o enunciado menos ambiguo, mesmo nao eliminando completamente a dupla interpretado.

O foco estab lecido por aiguns prefixos verbais do alemäo

Näo apenas os verbos podem focalizar um local da trajetória de um trans-porte, mas também aiguns prefixos tém essa capacidade. Os principáis prefixos verbais da lingua alema que determinam foco säo: ab-, auf-, her-, hin- e weg-.

Na frase:

(13) Ich nehme einen Stuhl her.[Eu pego urna cadcira para cá.],

o prefixo her- (do verbo hernehmen) indica o deslocamento do paciente (ieinen Stuhl) de um LOP, irrevelante ou conhecido pelo interlocutor, para um LDP próximo ao falante. Esse LDP deve ser conhecido pelo dcstinatário c näo pode ser irrelevante. Portanto, o prefixo her- focaliza o LDP.

No exemplo:

(14) Ich bringe dich hin.[Eu levo vocé para lá.],

o prefixo hin- (do verbo hinbringen) também determina o deslocamento do paciente (dich) de um LOP conhecido ou irrelevante, para um LDP, necessaria- mente conhecido pelo destinatario. O prefixo hin-, entäo, também focaliza o LDP.

Os focos estabelecidos por aiguns prefixos verbais do alemäo sao:

ab LOPou nenhumauf LDPher “ T d p

hin LDPmit nenhumweg LOP

47

Para o prefixo ab- existem duas possibilidades: junto a alguns verbos como bringen [levar],yí/Aren [guiar], heben [erguer] e nehmen [pegar], estabelece o foco no LOP; junto a outros como stellen [pör em pé], setzen [por sentado] e legen [pör deitado], nao estabelece foco algum.

Concorrencia de focos e dificuldades com a interpretagao de objetos ¡ndiretos

Em combinagoes de verbos de transporte com prefixos, podemos distinguir quatro possibilidades quanto á alocagao do foco:

(a) o prefixo estabelece foco, mas a base verbal nao; nesse caso, o verbo aprefixado, como um todo, adota o foco estabclecido pelo prefixo, p.ex.; hin- (LDP) + tragen (nenhum) => hintragen (LDP);

(b) a base verbal estabelece foco, mas o prefixo nao; o verbo assume o foco da base verbal, p.ex.: ab- (nenhum) + stellen (LDP) => abstellen (LDP);

(c) tanto o prefixo quanto a base verbal estabelecem o mesmo foco, p.ex.: her- (LDP) + holen (LDP) => herholen (LDP);

(d) o prefixo estabelece o foco no LOP c a base verbal no LDP, p.ex.: weg- (LOP) + bringen (LDP) => wegbringen (LOP).

Em (c), temos a convergencia, em (d), a concorréncia dos dois focos. Em casos de convergéncia, como herholen, o prefixo funciona como intensificador. Em casos de concorréncia, o receptor pode encontrar dificuldades na interpreta- gao. Ás vezes toma-se dominante o foco estabelecido pelo prefixo, como acontece com o verbo wegbringen. Em outros casos, a interpretagao dependerá de fatores pragmáticos.e/ou contextuáis. Um exemplo é o verbo wegnehmen [tirar], que é composto pelo prefixo weg- (LOP) e a base verbal nehmen (LDP). Numa frase como:

(15) Hardarik nimmt Luis das Spielzeug weg.[Hardarik tira do Luis o brinquedo.],

há a dominancia do foco estabelecido pelo prefixo (LOP). Já em excmplos como:

(16) Hardarik nimmt sich noch ein Stück Kuchen weg.[Hardarik pega para si mais um pedago de bolo.],

prefere-se a dominancia do foco estabelecido pela base verbal (LDP), por ser pouco provável que alguém tome alguma coisa de si mesmo.

Vemos que, nesse caso, a rcfcréncia do objeto indireto influencia na alocagáo do foco. Se o objeto indireto for correfente do sujeito, o foco recairá no LDP; se o

48

sujeito e o objeto näo forem correferenciais, cntäo recairá no LOP. Urna análise mais detalhada, contudo, demonstraría que a corrcferencialidade entre o sujeito e o objeto indireto nao excluí completamente a possibilidade de se estabelecer o foco no LOP. No exemplo:

(17) Er nahm ihr noch ein Stück Kuchen weg.[Eie tomou/pegou dela/para ela mais um pedazo de bolo.],

temos, conforme o contexto, as duas possibilidades de alocasao do foco.

O conceito de perspectiva

O verbo wegnehmen 6 um bom exemplo para introducir brevemente mais um conceito teórico da nossa pesquisa; o conceito de perspectiva. Na verdade, fariamos urna simplificaijSo se afirmásssemos que existe nesses verbos apenas urna concorréncia entre dois focos. Verificamos que o prefixo weg- e a base nehmen indicam também determinadas perpcctivas, sob as quais o deslocamento do paci-ente é observado. Tanto no alemao quanto no portugués, existem duas possibilida-des, a saber, a perspectiva conforme o c a oposta ao sentido do deslocamento.

O prefixo weg- determina a perspectiva conforme o sentido do deslocamen-to, ou seja, orienta o receptor a posicionar-se, ao imaginar o evento, no LOP e a conceber o transporte a partir desse lugar. A base nehmen, pelo contrário, determi-na a perspectiva oposta, ou seja, orienta o receptor a posicionar-se, em sua imagi- na9§o, no LDP. Dessa forma, verificamos que, além de urna concon-éncia de focos, há urna concorréncia de perspectivas, que também precisa ser resolvida conforme fatores pragmáticos e contextuáis. A mesma situadlo encontramos com o verbo wegholen. A semántica desses dois verbos é especialmente complexa, o que leva a urna grande variedade de interpretai;óes possiveis.

C o n sid erares fináis

N o presente artigo nao podemos, por motivos de espa90, aprofimdar o tópi-co da intera9ao entre foco e perspectiva. O nosso objetivo foi apenas introduzir esses dois conceitos, que orientam parte decisiva da nossa pesquisa. Apresenta9oes mais detalhadas, incluindo análises empíricas, estao previstas para outras publica9oes.

Acreditamos, contudo, ter demonstrado que o campo dos verbos de trans-porte, tanto no portugués como no alemao, constituí um objeto multifacetado de pesquisa, cujos diversos aspectos tém sido, ainda, pouco estudados pela lingüística.

49

Esperamos que o nosso trabalho auxilie professores de alemáo e portugués ao explicarem o uso dos verbos de transporte aos seus alvinos.

R E F E R É N C IA S B IB L IO G R Á F IC A S

B l ü h d o r n , Hardarik, “Zur Verwendung einiger Transportverben im Brasilianischen und im Deutschen", ln: International Review o f AppliedLinguistics in Language Learning, 1997 (no prelo).

B l ü h d o r n , Hardarik; M o r e ir a , Luis Femando Dias & S il v a , Renato Ferreira da Corpus Aleinäo e Portugués como Linguas Eslrangeiras. Volume I: Verbos de Transporte. Säo Paulo, FFLCH-DLM-Área de Alemäo, 1997

B o r b a , Francisco da Silva et al. Dicionário Gramatical de Verbos do Portugués Contemporáneo do Brasil, 2 \ cd., Säo Paulo: UNESP, 1991.

E ic h in g e r , Ludwig M. Raum und Zeit im Verbwortschalz des Deutschen. Eine valenzgrammatische Studie, Tübingen: Niemeyer, 1989.

En g e l , Ulrich & Sc h u m a c h e r , Helmut. Kleines Valenzlexikon deutscher Verben, Tübingen: Narr, 1978.

Fe rn and es , Francisco. Dicionário de verbos e regimes, 38’. ed., Säo Paulo: Globo, 1991.G e r u n g , Martin & O r t h e n , Norbert. Deutsche Zustands- und Bewegungsverben.

Eine Untersuchung zu ihrer semantischen Struktur und Valenz, Tübingen: Narr, 1979.H e l b ig , Gerhard & Sc h e n k e l , Wolfgang Wörterbuch zur Valenz und Distribution

deutscher Verben, 2*. ed., Leipzig: VEB Bibliographisches Institut, 1973.Lu f t , Celso Pedro. Dicionário Prático de Regencia Verbat, 3*. ed., Säo Paulo:

Ática, 199S.Sc h u m a c h e r , Helmut (org.). Verben in Feldern. Valenzwörterbuoh zur Syntax und

Semantik deutscher Verben, Berlin: de Gruyter, 1986.

Abstract: Verbs oftransportation cause persistent difficulties in the acquisition o f German by Brazilian learners as well as in the acquisition o f Portuguese by Germans. This paper presents some basic concepts, such as focus and perspective, used in the linguistic description o f those verbs. Our analysis can help teachers to explain more efficiently the idiomatic use o f transportation verbs to their students.Key-words: Verbs 'of transportation, Focus, Perspective, Verbal prefix.

50