O que é anarquismo cristão? – uma leitura de Tiago 4.4 ... · PDF fileSANTANA, D. O que é anarquismo cristão?: uma leitura de Tiago 4.4. A força moral de um único homem que

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  • O QUE ANARQUISMO CRISTO? UMA LEITURA

    DE TIAGO 4.4

    por Diogo Alves da Conceio Santana1

    Resumo: O que anarquismo e at que ponto seus princpios podem ser justificados como prticas legitimamente inseridas dentro da tradio crist? At que ponto o cristianismo pode ser considerado como compatvel ao pensamento libertrio, o mesmo que censura o poder do Estado, do militarismo, das hierarquias e das instituies? De que modo a relao entre cristianismo e anarquismo altera nossa maneira de pensar a tradio crist? Qual o papel e significado da igreja diante dessa perpectiva de interpretar todo o legado de Jesus Cristo? Questes que hoje, nos foram a repensar a identidade pela qual se formou o cristianismo, sua histria, tradio e pensamento. Palavras-chave: cristianismo; anarquismo; teologia; Novo Testamento Tiago; Kierkegaard. Abstract: What is anarchism and until where its principles can be justified as practices legitimate embedded within the Christian tradiction? To what extent Christianity can be considered compatible with the libertarian thought, the same that blames the power of state, the militarism, hierarchies and establishment? In wich way the relation between Christianity and Anarchism change our way of thinking about the Christian tradiction? What is the role and significance of the church before this whole perspective to interpret the legacy of Jesus Christ? Questions that today, force us to rethink the identity by which Christianity was formed, its history, tradition and thought. Keywords: Christianity; Anarchism; theology; New Testament James; Kierkegaard.

    1 Diogo Alves da Conceio Santana filsofo e escritor cristo, autor dos livros: F e anarquia crist

    (2007) e O Deus de carne: uma introduo cristologia (2009). Contato: [email protected].

  • SANTANA, D. O que anarquismo cristo?: uma leitura de Tiago 4.4.

    A fora moral de um nico homem que insiste em ser livre maior do que a de uma multido de escravos silenciosos. (George Woodcock)

    Para alguns, Jesus um anarquista, pois no tem nenhuma noo de governo civil. O governo lhe parece pura e simplesmente um abuso. Ele fala disso em termos vagos e como uma pessoa do povo, que no tem idia alguma de poltica. Todo magistrado lhe parece um inimigo natural dos homens de Deus; anuncia aos seus discpulos rixas com a polcia, sem imaginar sequer que isso fosse motivo para se envergonhar. Mas nunca se nota nele a intenso de tomar o lugar dos poderosos e ricos. Ele quer aniquilar a riqueza e o poder, e no se apoderar deles. Prediz a seus discpulos perseguies e suplcios, mas no deixa entrever uma nica vez o pensamento de uma resistncia armada (...). Os fundadores do reino de Deus sero simples. Nada de ricos, nada de doutores, nada de padres: apenas mulheres, homens do povo, humildes, crianas. O grande sinal do messias a boa nova anunciada aos pobres A natureza idlica e doce de Jesus chegava aqui ao seu auge. Uma imensa revoluo social, em que as classes sero alteradas, em que tudo quanto oficial neste mundo ser humilhado, eis seu sonho. O mundo no acreditar nele; o mundo o matar. (Renan, 2004)

    Homo e plis

    A existncia vista apenas por um ngulo jamais poder

    experimentar integralmente a si mesma, sempre ser vtima de um

    sentimento de ser apenas um fragmento cujo sentido apenas

    reconhecido na sua relao com a plis. nessas circunstncias que

    fazer poltica ganha importncia, exige antes de tudo que se

    reconhea um sentimento de dependncia, onde o sentido de ser

    homem est inevitavelmente ligada a natureza da sociedade

    organizada politicamente. Entre homo e plis existe o sentido, que

    justifica tanto a existncia de um como de outro, atravs de uma

  • Espiritualidade Libertria, So Paulo, n. 1, 1. sem. 2010, pp. 408-437.

    histria que tem sua origem entre os filsofos gregos. Toda doutrina

    social ou poltica, cujo propsito se estabelece em justificar a

    existncia do homem em coletividade, precedida por uma

    compreenso do homem que se adeqe a tal empreendimento. A

    existncia de todo e qualquer governo poltico somente pode ser

    justificada atravs da compreenso de um homem cuja natureza

    destinada espontaneamente existncia numa coletividade

    organizada politicamente.

    O que ser homem? Pergunta que inquietava os maiores

    crebros da Grcia antiga, os de hoje porm, nem tanto. Em outras

    palavras: Onde est o sentido da nossa humanidade? O que nos torna

    legitimamente humanos? Aristteles ao afirmar que o homem um

    animal poltico, sustenta a tese de que exatamente a organizao

    poltica das comunidades humanas que emerge o homem da

    animalidade para a racionalidade. Estabelecendo assim a

    superioridade da sociedade sobre o indivduo.

    A primeira cidade foi uma criao de Caim (cf. Gn 4.17), enquanto que Sete e sua gerao vivia em tendas. A criao de cidades exigia antes de tudo, a demarcao de territrio frtil para cultivo renovvel do solo (exigindo com isso uma tcnica agrcola lembrando que Caim foi agricultor) e alimentao dos animais, tal demarcao exigia a construo de muralhas, exrcito, armas para a defesa do territrio. A guerra nasce com a origem das cidades, na defesa em que seus moradores fazem de seus territrios contra invases, nascendo da a noo de povo, lngua, religio e raa prpria, de uniformizao da cultura. Com o aumento da populao se diminui o espao por habitante, surge a necessidade de expandir territrios ocasio para uma nova guerra, dentro e fora do espao urbano, origem da criminalidade e das campanhas militares (que na poca era oriunda da posse

  • SANTANA, D. O que anarquismo cristo?: uma leitura de Tiago 4.4.

    ilegal de terras, fonte de toda a riqueza). O bandido o soldado que luta contra o seu prprio pas ou ainda, o soldado o bandido que luta contra o pas dos outros, nesse aspecto, ambos so moralmente idnticos, e se condenamos a ao do bandido, devemos condenar tambm a ao do soldado. E tanto presentes com o bandido, quanto presentes com o soldado, esto as ferramentais indispensveis para a origem e o fim de conflitos visando sempre a conquista de novos territrios e a defesa do territrio atual as espadas de ao, as lanas, os cadafalsos... a cruz. (Santana, 2007)

    Sendo assim, se torna evidente a origem centralizadora das

    primeiras cidades. Como um poder centralizador, todo o poder era

    restrito ao dono das terras e de suas famlias, que por causa disso,

    galgava facilmente condio de divindades. Surge as primeiras

    comunidades monrquicas, de carter religioso, como o caso dos

    egpcios, babilnicos e etc. Com o crescimento das cidades, o

    nomadismo se torna invivel, por outro lado, isso gera tantas

    responsabilidades para os donos das terras que administr-las com

    pouca mo de obra e recursos se torna impossvel. Nasce assim a

    falncia do poder monrquico, o que significa a descentralizao do

    poder poltico aos donos das terras e suas famlias. O Estado nasce

    como Anrkhos.

    Anrkhos

    A palavra anarquismo originria da expresso grega

    Anrkhos, que literalmente significa sem governo ou sem

    governante. Sendo assim, nos oferece uma infinidade de

    contribuies sobre a questo da autonomia entre homem e governos.

    Anrkhos significa uma distncia entre o humano e o poltico: o ser

  • Espiritualidade Libertria, So Paulo, n. 1, 1. sem. 2010, pp. 408-437.

    humano universal, o ser poltico limitado a condies geogrficas,

    econmicas, culturais, lingusticas, etnolgicas e etc. Fruto de todo tipo

    de preconceito e segregao: o racismo, o nazismo e todo tipo de

    autoritarismo so bons exemplos disso. Enquanto distncia com o ser

    poltico Anrkhos significa conceber a liberdade social como o

    verdadeiro sentido de humanidade. Loucura, insanidade, inadequao

    a normatizao da plis, inconformidade. Anrkhos significa que o

    sentido do humano, sua identidade e verdade, no se encontra na

    identificao de sua posio na plis, nem mesmo pode ser oriunda de

    esforos coletivos na construo da identidade individual. Em suma, a

    plis limita o humano a uma condio que somente pode ser vivida e

    experimentada a certas condies especficas dentro do corpo poltico,

    enquanto que anrkhos no determina restries especficas para a

    manifestao do humano.

    Anrkhos distingue homo de plis, sendo assim, no restringe

    a identidade do indivduo e sua igualdade com o seu semelhante a um

    conjunto de atributos culturais, lingusticos, tnicos, religiosos e etc.

    Alienao? De maneira nenhuma! Oposio. Em outras palavras, que

    a condio humana no construda pelo meio social organizado

    politicamente. Esse um aspecto fundamental que evidencia uma

    diferena entre anarquismo e comunismo: o comunismo no separa o

    humano do poltico. Apoiado em Aristteles, Marx considera o poltico

    como uma especificidade do ser do homem, estabelecendo uma

    condio poltica, baseada na produo coletiva dos meios de

    produo, para o estabelecimento de uma ontologia.

  • SANTANA, D. O que anarquismo cristo?: uma leitura de Tiago 4.4.

    O anarquismo estabelece sua ontologia na afirmao de que a

    condio humana, em si mesma ausente de referncias

    artificialmente constitudas pelo corpo poltico. A ausncia de

    referncias sociais que definem e situam o indivduo, estabelece sua

    condio primria como naturalmente livre, ou seja, ontologicamente

    indefinida. O humano no se trata de um atributo por onde se torna

    possvel de definio. O humano em si mesmo uma condio

    ausente de referncias. essa condio que chamamos liberdade.

    Todo