11
edição t Câmara Municipat de íthavo/Museu MarÍtimo de íthavo cMl Avenida 25 de Abrit I 383o-o44 íthavo gerat@cm-i lhavo.pt ] www.cm-i [havo.pt MMI Avenida Dr. Rocha Madahit lSSSa-ry5 íthavo museuithavo@cm-i [havo.pt I www.museumaritimo.cm-i [havo.pt produção e distribuição | Âncora Editora Avenida lnfante Santo, 52 -3.o Esq. I t35o-179 Lisboa [email protected] I www.ancora-editora.pt textos | @ Abet Xavier, Átvaro Garrido, Ana Catarina Nunes, Ana Pauta Medeiros, Aníbal Paião, António Marques da 5itva, António Trabuto, Cartos Sousa Reis, Catarina Resende Dias, Catarina Sofia da Sitva Azevedo, Fitipa Meto, Hermano Noronha, Jesús Girátdez-Rivero, João Correia, Jorge Branco, losé Manuel Sobrat, Löic losse, Manuel Ferreira Rodrigues, María del Carmen Espido-Belto, Miriam Wright, Nati de ta Puerta Rueda, Nuno MigueL Costa, Nuno 5ilva Costa, Pauta Satgueiro Ribeiro, Rosa Garcia-Orettán, Rosário Vieira, SamueI Carvatho de Oliveira coordenação editoriat | Átvaro Garrido apoio à coordenação I Nuno Sitva Costa, ClEMar-íl.havo composição gráfiCa I Hugo Pequeno, Museu Marítimo de Íl.havo imagens: em todos os artigos, a proveniência das imagens estão assina[adas, sendo a responsôbitidade dos pró-prios autores. capa: Sa[a da Faina Maior, Museu Marítimo de lthavo contracapa: St. John's, Newfound[and, foto de Paut Anna Soi]< l55N I 2!83-oo29 depósito legat: impressão e acabamento: Muttitipo - Artes Gráficas, Lda. data:21de outubro de 2O16, 15.o aniversário da amptiação e remodelação do Museu Marítimo de íl.havo edição produção e distribuição lll¿ ñus.¡quátu.,M¡ùFçåo CâmarâMunic¡patd" llhAtlef editora

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edição t Câmara Municipat de íthavo/Museu MarÍtimo de íthavocMlAvenida 25 de Abrit I 383o-o44 íthavogerat@cm-i lhavo.pt ] www.cm-i [havo.ptMMIAvenida Dr. Rocha Madahit lSSSa-ry5 íthavomuseuithavo@cm-i [havo.pt I www.museumaritimo.cm-i [havo.pt

produção e distribuição | Âncora EditoraAvenida lnfante Santo, 52 -3.o Esq. I t35o-179 [email protected] I www.ancora-editora.pt

textos | @ Abet Xavier, Átvaro Garrido, Ana Catarina Nunes, Ana Pauta

Medeiros, Aníbal Paião, António Marques da 5itva, António Trabuto,Cartos Sousa Reis, Catarina Resende Dias, Catarina Sofia da SitvaAzevedo, Fitipa Meto, Hermano Noronha, Jesús Girátdez-Rivero, João

Correia, Jorge Branco, losé Manuel Sobrat, Löic losse, Manuel FerreiraRodrigues, María del Carmen Espido-Belto, Miriam Wright, Nati de taPuerta Rueda, Nuno MigueL Costa, Nuno 5ilva Costa, Pauta SatgueiroRibeiro, Rosa Garcia-Orettán, Rosário Vieira, SamueI Carvatho de Oliveira

coordenação editoriat | Átvaro Garridoapoio à coordenação I Nuno Sitva Costa, ClEMar-íl.havocomposição gráfiCa I Hugo Pequeno, Museu Marítimo de Íl.havo

imagens: em todos os artigos, a proveniência das imagens estãoassina[adas, sendo a responsôbitidade dos pró-prios autores.capa: Sa[a da Faina Maior, Museu Marítimo de lthavocontracapa: St. John's, Newfound[and, foto de Paut Anna Soi]<

l55N I 2!83-oo29depósito legat:impressão e acabamento: Muttitipo - Artes Gráficas, Lda.

data:21de outubro de 2O16, 15.o aniversário da amptiação e

remodelação do Museu Marítimo de íl.havo

edição produção e distribuição

lll¿ñus.¡quátu.,M¡ùFçåo CâmarâMunic¡patd" llhAtlef editora

Page 2: MarÍtimo - repositorio.ul.pt

oo5EditoriatÁlvaro Carrido

007Entrevista ao Capitão Vitorino RamatheiraNuno Miguel. Costa/Átvaro Garrido

PATRIMÓNIO E CONHECIMENTO

015O Bacalhau como Património TotaIÁlvaro Garrido

o19O Bacalhau do Atlântico como PatrimónioBiotógicoCarlos Sousa Reis

o27O Bacalhau: de Atimento de Penitência a íconePortuguêsJosé Manuet SobraL

055O Comercio de Bacaltau en España (1850-1956)lesús Cirátdez-Rivero/María deI CarmenEspido-Betl.o

a43Contribucion de los Marineros Gattegos a laPesca lndustrial del Bacatao en et Puerto VascoPaisaitarraRosa Garcia-Orettán

051The Rise and Fatt of the Newfoundtand CodFisheryMiriam Wright

059Morue, Économie et Société: un Cas Breton,L'exempte de Saint-MaloLoTc Josse

o67O Património Bacalhoeiro na Costa Norte dePortugalCatarina Sofia da Sitva Azevedo

LITERATURA

077Aquetes que Casam com o MarFitipa Mel.o

081"Nos Mares do Fim do Mundo" com BernardoSantarenoAna Pauta Medeiros

087Valdemar Aveiro: entre aAutobiografia e aMemória ColetivaManueI Ferreira Rodrigues

NAVI05: LUGARES DE MEMÓRIA

097Os Três CisnesAníbal. Paião

101Os Veteiros dos Mares da Terra Nova:recordando o Lugre Patacho "Gazela Primeiro"António Marques da Silva

1,O7Creouta, 79 anos ao Serviço de PortugalSamueI Carvalho de Otiveira

LL3A Minha Experiência como Médico do NavioHospitaI Git EannesAntónio Trabuto

1,L7O Navio-Museu Santo AndréNuno Silva Costa

Page 3: MarÍtimo - repositorio.ul.pt

MUSEU MARÍTIMO DE íLHAVO

tNVESTIGAçÃO

EXPERIÊNCIA MUSEOLÓGICAINTERNACIONAL

L23Questões de Género numa ComunidadeBacalhoeiraNuno Miguel Costa

L67Bal<ailao. The Sugestion of the Senses.The ExhibitionNati de [a Puerta Rueda

DOSSIER VISUALL33Arqueologia lndustriaI e PatrimónioBacalhoeiro em lthavoJorge Branco

DOCUMENTAçÃO E EsPÓLlO

L77Um Americano entre os Homens dos DórisAbe[ Coentrão (fotos de PauI Anna Soil<)

1.41.Os Diários de Bordo nos Arquivos do MuseuMarítimo de íl,havoNuno 5ilva Costa/Rosário Vieira

1"45A Coteção de Pesca do Bacathau do MuseuMarítimo de ílhavo: Despojos de uma Arte MaiorCata ri na Resende Dias/Pa u [a Sa lguei ro Ribei ro

EXPOSTçöES E SERV|çO EDUCATIVO

151Meia Laranja: A Pesca do Bacathau e a GuerraCotonialHermano Noronha

155O Museu e a Comunidade: olhar o Bacathaucomo Herança e ldentidade CulturatAna Catarina Nunes

L61.Bacalhaus VoadoresJoão Correia

Revista do Museu Marítimode il.havo outubro 2oL6 O 4

Page 4: MarÍtimo - repositorio.ul.pt

O BacalHau:

De AllmenTo De Pentrênctat

a lcone PoRrucuês

losé Manuel Sobra["

'tlnstituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

Page 5: MarÍtimo - repositorio.ul.pt

Poucos dias antes do Natal de 2o!4, uma notí-

cia da agêncra Lusa drvulgava que os portugue-

ses consumiam um mithão de quilos de bacathau

na Consoada. lsto signrficava, de acordo com um

estudo citado nô mesmð peça, que 7Bo/o dasfam;-Li¿s comiam b¿calhau nesta ocasião, seguindo-se

Logo a seguir o potvo (Z7o), enquanto apenas uma

minoria consumi¿ carnel.

O consumo rituaI do bacalhau no Natal é antigo

em Portuga[. Não conseguimos datar o seu início.

Em t866, num texto hoje esquecido, já se fazreferência ao seu papel nesta ocasião: "Quatquer,

vendo que o centro do sistema cutinário daquelanoite está representado pelo peixe poputar de

que a Terra Nova fornece os nossos mercados,jutgará estar assìstindo a uma ceia puramenteaLdeã. Não é, porém, assim. No Minho, desde o

mais rico habitante da cidade até ao pobre cam-ponês que janta um magro catdo e um bocado deboroa junto da sua enxada, todos comem baca-Lhau naquela noite. É essencia[, é da festa: e sabeDeus quantos passam grandes privações para o

obter" 2. O texto é escrito num tom nostátgico, ode um minhoto que evoca na capitaL o universoideaLizado da sua infâncìa, passada ainda na pri-meira metade do século.

Essa tonatidade persiste num outro escrito, bemconhecido, sobre o NataL minhoto, de RamathoOrtigão, que evoca igua[mente o passado. A narra-tìva remete pôra um meio sociaLdiferente da ante-rior. Debruça-se com algum pormenor sobre umNataI rico, onde há presépio e as criadas ostentamvestidos novos, sendo a ceia servida numa sa[a dejantar ì[uminada por castiçais de prata. Ao contrá-rio do anterior, em que a refeição descrita temlugar na cozinha - de lavradores - aquì trata-se deum meìo burguês, em que a famí[ia dispersa vemde Longe para se reunir nessa data. A referência aobacalhau surge-nos no contexto da festa de famí-Lia desse grupo sociaL e não como um eLemento

1 "Um milhão de quìLos de bacaLhau 'desaparecem' nô con-soada à portuguesa", Visao, tB-12-2014, http://visao.sapo.pt/u m-mi Lhao-de-quì Los-d e-baca Lha u-desa pa recem-na-consoa-da-a-portuguesa=f804984 (acesso a 29 -06-2016)2 Ferraz lúnior, Archivo Pittoresco, 1866, vo[. 9, pá9. 3I5. O

"Minho" a que aquì se aLude pode muito bem corresponderà antìga província que chegou a abranger todo o terrìtório doNoroeste a Norte do Douro.

básico da cozinha de todas as classes3. Ainda emfinais desse século, o conto "O úttimo errforcadode Bragança", de Afonso Botelho, descreve umaceia de Natal transmontana. O meio é rural, a

refeição tem Lugar na cozinha e o bacathau ocupaum papeL centrat.a O peixe surge também numadescrição da mesma aLtura, que tem como panode fundo uma ceia de NataI na pequena cidadede Pinhet, na Beira Atta. O autor, o escritor natura-tista Abe[ Botetho, situa a ficção num meio urbanopequeno-burguês - come-se na saLa e os comen-sars são funcionários púbLicos, empregados docomércio, um capitão do exércitos.

Apesar das diferençðs, todos os textos con-vergem na associação entre a refeição famitlar, a

retigiosidade e o bacathau. A cera da véspera deNataI ou Consoada é apresentada como a refei-

ção mais ìmportante pôra a famítia e o peìxe é umelemento central desta. 5e a antiguidade da suapresença está demonstrada, estes testemunhoslevam-nos a crer que a forma canónica que hojeprevatece - bacathau cozido com batatas e cou-ves - não se havia afirmado do modo dominanteque adquirìu nos nossos dias. O texto de 7866refere que o bacalhau seria preparado de dìver-sas maneiras, o de Ramalho menciona-o gutsado,AbeL Botel"ho menciona os boLinhos, como aperi-tivo. Só no conto ambìentado em Trás-os-Montesé que surge o "bacathau com couves", podemospresumir que cozido. A preparação com batatasnão era, contudo, desconhecida6. Todavia, estaquestão é de somenos. A associação entre comi-da festiva, baca[hau, famí[ia e retigiosidade já

se encontra então inteìramente consoLidada. De

então para cá, o bacalhau ter-se-á mesmo impos-to como refeição da véspera de NataI em outrasregiões do país, onde os hábìtos atimentares erambem diferentesT.

3 RamaLho Ortigão, As Farpas I vot. )(, Lisboa, CírcuLo de Leito-

res, 198B (7882), pp.44-50.

4 Afonso BoteLho, Contos de Afonso Botelho, Lisboa, Livrarìa de

António Maria Pereìra, 1894.

5 AbeI BoteLho, MuLheres da Beira, Lisboa, Libânio e Cunha Edì-

tores, 1898.

6 lá era mencionada como comum na primeira metade de Oi-

tocentos, no Livro do Visconde de Vi[arinho de 5ão Romão, Arte

do Cosínheiro e do Copeiro, editado em Lisboa peLa Socìedade

Propagadora dos Conhecimentos Úteis em 1841.

7 Ver mais à frente as explicações para esta dìferença.

1

27

Page 6: MarÍtimo - repositorio.ul.pt

2

Qualquer anáLise do consumo do bacalhaupelos portugueses deve ser feita tendo em contaque ele é produto de processos de longa duraçãode natureza económica, sociaL, poLítica e ideotógi-ca. Deve iguaLmente situar-se numa perspectivacomparada, pois, embora de modo diferente, obacathau é ìguatmente um eLemento emblemáti-co de outras cozinhas, que não a portuguesa.

Ao estabelecer a genealogìa deste pescado naa[imentação portuguesa, temos, antes de mais, derecuar ès raízes retigiosas que favorecem o consu-mo de peìxe em geraIe que estão na base da suapresença nesta refeição.

A tradição hebraica Legou ao cristianismo aspráticas de jejum e abstinência como via depurìficação e sinaI de obediência è divindade. Opeixe já era o atimento favorito da refeição festivajudaica do Shabat. A nova retigião apðrece asso-cìada simboLicamente ao peixe e aos pescadoresdesde os seus prìmórdios. Como assinatou umaconhecida hìstoriadora da a[imentação, "o ideo-grama do peìxe (do grego il<tus), era o embtemada lgreja Prjmitiva, sendo as suês cinco Letras asinicìais d¿s cìnco paLavras gregas que descreviamo Satvador: lesus l(hrìstos Theou Uios Soter (Jesuso Ungido, o Fitho de Deus, o Redentor)"4.

Pensava-se, também, que o consumo da carneerê um indutor da luxúria, Levando à produçãode esperma, enquanto o do peixe atuava comoum eLemento morigerador da [íbido.e A tradìçãomonástica e ascétìca, muito influente nos pri-meiros sécutos do cristianismo, conduziu a umaestruturação do caLendário entre dias em que a

ingestão de carne e gorduras animais era permìti-da - dias de "gordo" - e aqueLes em que se pres-crevia a sua abstinência - dias de "magro". Estes,que abrangìam todas as sextas-feiras do ano, emcomemoração do sacrifício de Cristo, concentra-vam-se em torno das duas datas marcantes da

B Maguetlone Toussajnt-Samat, A History of Food, Cambrìdge,MA e Oxford, Ul<, 1994ltg]tl, pp. 3tt-373; ver iguaLmenteALbert C. Jensen, The Cod: The Uncommon Hístory of a Common

Fish and its impact on American Lit'e t'rom Viking Tímes to thePresent, New York, Thomas Y CrowelL Company, 1,972, p.9.9 l(en AlbaLa, "HistoricaI background to food and Christianìty",em l(en Atbala e Trudy Eden (orgs.), Food and Faith in Chrístian

Culture Nova lorque, Co[umbìa Universìty Press,2O11, pp.7-I9.

sua vida: a da sua morte e a do seu nascimento. O

período que antecedia a primeira, a Quaresma, erade 40 dias de abstinência, o segundo, o Advento,de 30. Por isso, a refeìção do dia 24 era de peixe.10É por essa razão que encontramos também umaforma de bacalhau curado, seco, sem recurso à

saLga - o lutefisk -, como ìngrediente da refeìçãoda véspera de NataI na 5uécia e na Noruega, umconsumo particu[armente vivo entre a diásporaescandinava nos EUA".

Não se pode datar com absoLuta precìsão comose deu a introdução em PortugaL deste a[imento,pois, como se sabe, não há bacalhau nas costasportuguesas. Mas traçar uma origem não é o maisimportante. O que é mais reLevante é ter em contaque se trata de um hábito multissecuLar que foil'entamente incorporado, jncLuìndo ao níveL docérebro e dos sentidos. Também neste plano,inconsciente, o bacaLhau passou a fazer parte daìdentidade nacionaL'2. A longa habituação a esteatimento, que enrìqueceu uma dieta escassís-sima em proteínas e se tornou fonte de prazer,Levou a uma estima consolidada por este peixesatgado e seco, transmitida, em prrmeiro Lugar, degeração em geração na esfera famiLiar. Esse gostopersiste, pois, como já se escreveu, "a comida éalgo de básico, e o gosto das pessoas peLa comi-da tende a ser tradicional, conservador [ ] Aspessoas tendem a gostar daquiLo de que sempregostaram".13 E essa preferência ao níveI do gostoque explìca o facto de o consumo do bacalhau tercontinuado, apesar da redução substanciaI nas

10 Segundo losé Quitério, em virtude da refeição da Nojte deNataL ter luga¡ na Beìra Baixa, no Alentejo, no Algarve e nos

Açores, depois da Missa do CaLo, que ocorria à meja-noite, de-poìs do fim da abstjnência, esta pode ser de carne, enquantoque no Norte e na Beira ALta, a ceìa, tendo Lugar antes da Mis-sa, era de peixe. Para o ðutor, ð estðs tradições, haverìa queacrescentðr as do centro do país, em que coexistiram ambosos tìpos de prática. Mas a tendência seria para a generaLização

das práticas do Norte. Ver losé Quìtério, O Livro de Bem Comer,

Lisboa, Assírio I ALvim, 7981 , p.154.II Cf . The Cod', op. cit., pp. 1.8-L9, http://www.smithsonìðn-mag.com/peopLe-pLaces/scandinavians-strange-hoLiday-lute-fi sk-traditjon-2 2L82L8 /? no-ist (acesso a 29 -06-2016\.12 Ver a este respeito Cordon Shepperd, Neurogastronomy:How the Brain Creates FLavor and How it Matters, Nova lorque,Columbia Unìversìty Press, 2012.13 Yi-Fu-Tuan Ir993], "PLeasures of the proximate senses: eô-

ting, taste, and culture", em CaroLiyn l(orsmeyer (org.l,TheTaste

Culture Reader: Experiencing Food and Drink, Oxford e Nova lor-que, Berg,2OO5,p.23O.

2B

Page 7: MarÍtimo - repositorio.ul.pt

regras de jejum e abstinêncla, que hoje já só ìnci-

dem sobre um nÚmero reduzido de dias, como a

euarta-Feira de Cinzas ou a Sexta-Feir¿ Santa e

aLgumas outras sextas-feiras, particuLarmente ôs

da Quaresmala.

O bacalhau era muito apreciado peLa sua carne

branca e gelatinosa. Uma vez salgado e seco e

espalmado - ou só seco - podia ser preservado

durante anos e faci[mente transportado a [onga

distância.1s Tinha a este respeito grandes vanta-gens sobre outros peixes capturados e conserva-dos, como o arenque do mar do Norte, cuja carne

oLeosa se corrompia mais facilmente e sobre as sôr-

dinhas salgadas, pescadas no litoraL português.16

Ao Longo da sua história, o bacalhau foi siste-maticamente importado em Portuga[, assumindoos ingteses um papel crucial nesse abastecimen-to. Entravam grandes quantidades deste pesca-

do nos portos de Lisboa e do Porto, de onde era

expedido para o interiorlT.

A pesca do bacaLhau foi alvo do interesserecente de investigadores, que também se debru-

çaram sobre o pape[ do Estado e o consumo dopeixe.l8 Sabe-se que em finais do século XV e nosinícios da centúria seguinte há barcos portugue-ses envolvidos na sua pesca nas costas da TerraNova e na costa ocidental da América do Norte.Algumas locatidades que viriam a desempenharno período contemporâneo um papelfundamen-tatna sua pesca, como Aveiro ou Viana do Casteto,já tinham então barcos nessas águas. A pesca ter--se-á desenvotvìdo ao longo do século XVl, atéao momento em que, com a União lbérica (rSBo-ß4a), foi atingida pel.a ativìdade dos corsáriosinimigos dos Habsburgo e terá sido igua[menteafetada peto desvio de capitais para fins mais

14 Don Yoder, "Lent", em Sotomon H. l(atz (org.), EncycLopedia

oJ Food and Culture,vol.2. Nova lorque, Thompson-Ca[e, 2003,pp.373-37 4.

15 B. W. Higman, Jamaican Food: History, Biology, Culture,l0ngs-ton, University of the West Ind jes Press, 2OOB, pp. 324-325.t6 The Cod..., op. cit., p. to.17 losé Manuel Sobral e Patrícia Rodrigues, "O'fiel amigo': o

bacalhau e a jdentidade portuguesa", Etnográfca, vol.. 17(3),

2013, p.626.18 Ver Mário Moutinho, História da Pesca do Bocalhau: Por Uma

Antropologia do "Fíe[ Amigo", Lisboa, EditoriaL Estampô, 1985;ÁLvaro Carrido, O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau, Lís-

boa, Círcu[o de Leítores,2OO4".

rendosos como a produção de açúcar no Brasit.lePortuga[ fica inteiramente dependente da impor-tação até que, na segunda metade de Oitocentos,se retoma de novo a pesca. Será, sobretudo, a

partir do Estado Novo, que ela se intensificará porintervenção estata[. Esta, assegurando o abaste-cimento de um alimento tido como de primeiranecessidade, visava diminuir o peso que o baca-lhau representava em termos de importações,uma preocupação de economistas e estadistasportugueses ao longo de vários séculos. Em finaisdos anos vinte do sécuLo passado, o bacalhau era

a segunda importação, em vator, logo a seguiraos cereaìs, matéria-prima do atimento básico da

maioria, o pão20.

Fruto das potíticas do Estado Novo, PortugaI foiem 1-958 o primeiro produtor mundiaI de baca-Lhau satgado e seco, com perto de 60.000 tone-ladas, tendo, ainda assim, de importar um poucomais de 25.000.'z1 A pesca entraria em dectíniocom a [iberalização do comércio em 1967. Na

primeira década do século atua[, na sequênciada ìnterdição de pesca nas águas dos países emque era habituaLmente reatizada, as capturas debarcos portugueses não uLtrapassavam os 4o/o doconsumo nacionat22.

5

Para entender o papel do bacathau na atimen-tação dos portugueses não basta assina[ar a suapresençð na refeição natalícia, embora esta sejaattamente significativa em si mesma. Mas estatem de ser estudada em articuLação com o seupapel na alimentação de todos os dias. Basta

mencionar atguns dados pêra se ter uma ideia da

sua importância multissecutar no quotidiano. Os

portugueses eram, em 2ott, os primeiros consu-midores de bacalhau salgado e seco23. Apesar de

19 Vitorino MagaLhães Codìnho, Os Descobrimentos e a Econo-

mia Mundíal, Lisboa, Editora Arcádia, !965,pp.498-5oo.20 Átvaro Carrido, O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau,

Lisboa, Círculo de Leitores, 2OO4, p.57.zt ÁLvaro Carrido, O Estado Novo..., op. cít., 297, 299.22 ÁLvaro Carrido, A Epopeia do Bacalhau. Lisboa, CLube dos

CoLecionadores do Correio, 2ott, p.29.

23 loão Ferreira Dias, l. Cruz Fi[ipe, Fernanda Guia, Ruj Mene-

zes e ViveLinda Guerreìro,'A saga do'fieI amigo': as jndústrias

portuguesôs do bacalhau", 2oo!, Economia Abbol e Gestão.

29

Page 8: MarÍtimo - repositorio.ul.pt

ter existido um dectínio de 2Oo/o no seu consumoentre 20O3 e 2008, devido à subida dos preços,entre 2008 e 2012, aque[e e o de outros peixessatgados e secos registou de novo uma subida de12,5o/o2a.VoLtaria a subir em 201j.

Antes da Segunda Cuerra MundiaL, já os portu-gueses eram os maiores consumidores de bacathausatgado e seco e a grande distância dos outros.2s Oseu consumo variava fortemente, no entanto. Osmaiores consumidores situavam-se no litoral doNorte e Centro, nos grandes centros urbanos, ondehavia mais poder de compra - e menos no inte-rior, ou no A[garve, em que se consumiam peixeslocais.26 A influência económica seria determinan-te no consumo deste peixe, provavetmente maisao alcance de "remediados" do que de "pobres" -contudo temos de ponderar haver dlferentes qua-lidades de peixe, umas mais ou menos acessíveis,e a frequêncja com que era ingerido.rT O pão, bata-tas e hortaliças constituíam a base da dieta dosmais pobres, com alguma côrne de porco da maisgorda.'8 Mas haveria também fatores de naturezacuLturaL, tigados a hábitos enraizados, que devemser considerados. Nos anos 30 do sécu[o )0(, a sar-dìnha, sobretudo, mas também o bacathau, aindaentrariam na esfera do consumo das ctasses tra-balhadoras agrícolas do Noroeste, mas não seriamgéneros usuais na Beira Baixa e no Alentejo.re

Mesmo tendo em mente o que acaba de dizer-sesobre as varìações, em termos de classe, do seu con-sumo, não há dúvida de que este era muito ampto.Ao Longo de sécutos, num tempo em que os preceì-tos religìosos ìnfluíam na atimentação, o bacalhausalgado e seco, um género excecionalmente ricoem termos de proteína e que resistia à deterio-ração, podendo ser transferido a longa distância,

VoL. Vl (1), 2oot, p. 1.o3-tr7.24 Ver: lNE, Destaque, Balança ALimentar Portuguesa 2OO3 -2OO8, 3O-It-2010; lNE, Destaque, Balança Alímentar portu-

guesa 2OOB - 2O72,2-O4-2Ot4.25 ÁLvaro Carrido, O Estado Novo..., op. cit., p.3O7.26 Mário Moutinho, História do Pesca..., op. cit., pp. 1gO-182;ÁLvaro Carrido , O Estado Novo..., op. cit.,2OO4, pp.3OB-3r2.27 Alvaro C¿rrido, O Estado Novo..., op. cít.,p.3I5.28 loão António Otiveira e Silva, "Níveis de vida do traba-Ihador ruraL português: subsídios parð o seu estudo", em A.A.

Mendes Correìa (org.), A ALimentação do Povo português, Lis-boa, I N E, 1951, pp. 784-2oo.29 Eduardo Lima, Basto, "lnquérìto económico-agrícola"(I934-19361, em A.A.Mendes Correia (org.), A Alimentaçao doPovo Português, Lisboa, lNE, pp 53-61.

encontrou favor em largas camadas da população.Era parte da dieta urbana e da rural, entrava na dietado ctero regular e secutar, na do exército e da mari-nha, na de instituições de assistência, como os hos-pitais e asi[os3o. Adquìrìu uma conotação de "comi-da dos pobres", por certo por se tratar de comidavulgarizada, relativamente acessível - e essa vincu-l.ação surge também entre outras popu[ações3.. Obacathau foi comida dos escravos nas ptantaçõesaçucareiras das Caraíbas, e transformado aí emcomida icónìca. Também ficou conhecido em certaszonas da ltátia como "comida dos pobres"32. Havia,no entanto, quem o colocasse acima na hierarquianos alimentos. Num folheto cómico de autoria anó-nìma de 1790, intituLado Aventuras, ou Lograçoens,de D. Bacalháo Quaresma e de D. Sardinha d'Espixa,a ìdentificação estrita do bacath¿u com a pobreza écontestada. A sardinha é que seria a comida comum,de ricos e pobres, da cidade ribeìrinha, ficando obacathau pôra a Lisboa mals abastada, anstocráti-ca e burguesa da cidade aLta - Bairro Atto, PríncrpeReal, Lapa e EstreLa. E seria objeto de um tratamentocu[inário mais sofi sticado33.

Porém, o médico Francisco lnácio dos SantosCruz- que foi um pioneiro no estudo da prostitui-ção na cidade de Lisboa - num texto de cariz radi-calmente diferente, define-o como um alimentocomum da "ctasse mais baixa de Lisboa". Faziaparte da dieta nos dias de "magro" de diversasinstituições como a Casa Pìa, os hosprtars do exér-cito - e, "às vezes", nas providenciadas aos inter-nados e internadas nos AsiLo de Mendicidade, dasórfãs e dos expostos. O trabatho de Santos Cruzconstrtui um primeiro retrato sociaL da alimenta-ção em Lisboa, ainda hoje sem para[eto. Refere agrande quantidade de peixe salgado e seco con-sumido na cidade, com destaque para o bacalhau,mas entrando nesse número também a pescadae a cavala. Mas a riqueza da obra reside, sobre-tudo, na identifrcação socialdos consumos e dos

3o iosé ManuetSobraIe Patrícìa Rodrigu es, "O'f eLamigo'..., op.cit., pp. 626-627.3t taem, p.625.32 Sobre as Caraíbas ver: Marl< l(urlansky, Cod: A Biography oJthe Físh that Changed the World. Londres, Vintage, tggg, pp1O4-105; B. W. Higman, lamaican Food..3p. cit A referência ao5uI da ltáLia encontra-se em Antonio Parlato, Suo Maestò tL Bac-calo, Nápoles, Cotonnese Edìtore, p. 69.

33 Aventuras, ou Lograçoens, de D. Bacalháo Quoresma e de D.

Sordinha d'Espixa. Offerecidas aos Peraltas de Lísboo para Riremdepois das ALLeluias, Lisboa, Ofñcina de António Comes, 1790.

30

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sostos. A "classe mais baixa" consome pão, carne

ã" por.o e vegetaìs, e, nos peixes, o bacathau, a

sardinha, a sarda, o carapau e o chicharro; as "ctas-

ses abastadas" favorecem a carne de vaca - ð pre-

ferida - e, em matéria de peixe, o fresco, como a

pescada, o pargo, o goraze o linguado. Menciona

também os gostos cosmopotitas destas classes

em matéria de comida e de bebida3a.

Sendo Portugal o centro de um lmpério dis-perso peta América, peto continente afrìcano,peta Asia e peLa Oceânia, não admira que o baca-

Lhau salgado e seco - um género que resistia à

deterioração nas vìagens - tenha acabado por

ser parte das cozinhas desses locais, trate-se doBrasi[, onde a co[onização portuguesa foi a mais

intensa e protongada, e que possui um extensoreceituário de bacathau, de Coa ou de Timor. O

popularíssimo "choro" brasìleiro "Espinha dobacathau", de 1.937, é um testemunho eloquentedessa presença3s.

Conquanto o consumo do bacalhau em PortugaItenha a sua raiz, como se disse, em práticas depenitência, a sua ingestão cedo se deve ter meta-morfoseado em prazer. E a sua ubiquidade irárefletir-se de múttiptos modos. Ficou na ôntropo-nímia, como apelido - Bacalhau -, na toponímia -Rua dos Bacathoeiros -, como cumprìmento - "dar

um bacathau"-, como designação de processosparados - "ficar em águas de bacathau", ou comoum dito que alude ao seu consumo humi[de: "paraquem é, bacalhau basta". É um elemento relevan-te da cuttura popu[ar, não apenas em Portuga[,mas em diversos países onde também ganhoupapel de retevo na cozinha.36 E existe uma asso-ciação ao sexo - em Portugal ao das mulheres, talcomo nas índias Ocidentais.rT Entre nós, ainda écelebrada a festividade do "Enterro do bacalhau",um juLgamento e enterro paródico deste peixe,que tinha - e tem - lugar em geraI no sábado deALetuia, coincidindo com o fim da abstinência decarne e de gorduras animais3s.

54 Francisco lnácio dos Santos Cruz, EnsoiosobreaTopographiaMédica de Ltsboa, ou Consideraçoens Especíaes Relativas ò SuaHistóría,2. o Tomo, Lìsboa, Typ. M.I Coetho, 7843, pp.372-385.35 losé Manuel Sobral e Patrícia Rodrigues, "O 'fet amigo'...,op. cít., p.63L.36 Ver: ALbert C. Jensen, The Cod.-op. cít., pp. L7-78; AntonioParlato, Suo Maestà...op. cit., pp.90-9737 Mark l(urlansky, Cod..., op. cít., p.35.3B José Manue[ SobraL e Patrícìa Rodrigues, "O 'fiel amigo'...,

Os julgamentos do bacalhau, de que nos fica-ram folhetos impressos, são também paródias emque se expressam pontos de vista críticos, tantorelativamenle ò política - críticas ao mau estadoda agricuttura e elogio da política pombatina, porexemp[o - como em matéria de retações de géne-ro, criticando os homens que se submeteriam às

mulheres, pondo assim em perigo a sua suprema-cia3e. Um folheto de cordel intitulado "Suptício

do Bacalhau e Degredo do Judas em Sábadode Aleluia", de 1818, é bem esclarecedor. O réubacalhau tem de responder a um rol de acusa-

ções, entre as quais se inserem a da concorrênciamovida às vendedeiras de peixe fresco e a de serresponsáveI pela saída de dinheìro do país, parapagar as suas importações de lngtaterra. Em suadefesa, o gadídeo alega a sua enorme uti[izaçãona cozinha, bem como o facto de ser comido porgrupos sociais muito diferentes, dos humildesgalegos, pau pôra toda a obra, e cavadores deenxada aos mais etegantes e sofisticados. A suadefesa é inútiL e não escapa à condenação à

morte, pois agora, com a Páscoa, chega de novo otempo em que se pode comer carne. Mas é nestemesmo folheto que o "réu" evoca a designação"fiel amigo", que já então seria corrente paradesignar o bacalhau entre nós, e que o indiciacomo um aLimento portador de um simbotismoúnico na comida portuguesaao. Deve-se recordar,entretanto, como já referimos, que o bacathausalgado e seco também se transformou num a[i-mento emblemático em outros locais, como men-cionámos, da Escandrnávia - apenas o seco - e daItáLia ao País Basco e a certas zonas do Caribe.

4

Numa carta escrita em 1884 por Eça de Queirozao seu grande amigo, o historiador OliveiraMartins, pode ler-se a seguinte afirmação: "Os

meus romances no fundo são franceses, comoeu sou em quase tudo um francês - exceto numcerto fundo sincero de tristeza lírica, que é uma

op. cít., p.632.39 ldem, pp.633-634.40 José DanieL Rodrigues da Costa, "5up[ícìo do baca[hau e

degredo do Judas em 5ábado de ALeLuia", em Roda da Fortuna,

Onde Gíra Toda a Gente Bem, ou MoL Segura: Obra Crítica, Moral

e Muito Dtvertida, folheto ll, Lisboa, lmpressão de l. F. M. de

Campos, l-81-8, pp. 11-25.

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característicð portuguesa, num gosto deprðvôdopelo fadinhq e no justo amor do bacalhau deceboLada" .

Esta passagem é esctarecedora. O escritor refe-re a inspiração francesa do seu realismo, e a[ude àsua francofi[ìa. No entanto, mesmo ponderando otom irónico, encontramos aqui interligados diver-sos tópicos que são comummente associadosà identidade portuguesa. A tristeza lírica será asaudade, mais tarde inspiração da corrente nacio-natista do Saudosismo. O fado virá também a serdefinido como "canção nacional" - entre t9t6 e1919 pubLica-se mesmo um jornaI dedicado aofado, cujo título não poderia ser mais explícito:A Canção de Portugal.al O bacalhau é o terceiroelemento definidor do portuguesismo do escritorcosmopotita, por muito tempo residente em paris,

onde viria ð morrer.

41 http://hemerotecadìgitat.cm-tìsboa.ptlperiodicos/acancao-dePortugaL/acancaodeportugat.htm (acesso a 29-06-2015).

Não se trata de uma atusão anedótica, muitopel'o contrário. Mas eta ganha ainda mais sentido,se tivermos em conta o contexto em que é feita.Em termos globais, esta é uma época de ascensãodo nacionalismo em termos económicos - com ofavorecimento do protecionismo - poLíticos - comaspirações à autonomia, à supremacìa e à regene-ração das nações, desenvolvimento do imperiatis-mo - e culturais, com um interesse renovado petastradições orais, músicð e costumes populares, epetas histórias pátrias. Este movimento que ecoaem Portugal e irá atimentar as aspirações repubLi-canas de regeneração nacionaI e a construção deum novo império em África, também se reflete nocampo da cozinha. Fazem-se ouvir então apeloscontra a "desnacionatização da cozinha", tida comoum dos sìntomas da decadência pátria. O processode construção de uma cozinha nacional portugue-sa, onde o baca[hau ocupô um [ugar destacado, éparte dessa mundividência mais ampta

Havia, por certo, em Portuga[, uma tradiçãoculinária, um receituário, que era um reflexo dascaracterísticas do território, incluindo a sua dimen-são marítima, e da história. A cozlnha portuguesado litorat, com uma grande presença do peixe, eramuito diferente da do interior, onde ele era raro.Os próprios cereais utilizados na produção do pãoeram diferentes, com o milho ô marcar presençano Noroeste, o centeio nas terras attas do Norte e

Centro e o trigo a dominar o Su[ e a abastecer osgrandes centros urbanos. A atimentação era produ-to da passagem e fixação de popuLações diversaspeto país, com destaque pðra a presença isLâmjcae também judaica, bem como pôrê o impacto daromanização. Mais tarde, a expansão marítima e a

co[onização de outros continentes trariam génerose temperos que se fixariam na comlda em portugat:

a batata, o mitho grosso, o tomôte, o pimento, oaçúcaç as especiarias, o chá e o café. até o peru,comido no dia de Natal. Existia, como em toda aparte, um abismo entre as práticas alimentaresdas etites e as poputares, que, por certo, nuncaingeririam os chamados doces "conventuais", quemobilizavam em grandes quantidade um génerodispendioso como o açúcar. O que não existia eraum cânone, um receituário definido - e promovi-do - como "português". Chamamos construção deuma cozinha nacional portuguesa a este processode definição do que é próprio deLa. Atiás, quandose fatava em luta contra a desnacionatização dacozinha, procurðva-se combater a influência domi-nante da cozinha internacionat, que era a francesa,com a agregação de pratos de outras cozinhas. Estaera tida como a cutinária superior em toda a pðrte,de Nova lorque ao lapão.

A defesa de uma cozinha portuguesa começaraantes dos tempos de Eça, sendo detectáveI nosescritos de autores como Atmeida Carrett, que tam-bém se voltou para a tradição poputar orate colheuinspìração literária na histórìa pátria, ou ]úl.io Dinis,mas ela acentua-se à passagem do século XIX parao )0(. Os livros de cozinha têm um papel centralneste processo. Ao fixarem por escrito determina-das receitas, permitem a sua reprodução peLos Lei-tores - sobretudo leìtoras, entenda-se -, que assimtomam conhecimento de outros hábitos e práticasLigadas a espaços do território nacionaI com quenão estavam familianzados. Aparecem então noslivros de cozinha as indicações que ligam um dadoprato especificamente o país - pratos ditos "à por-tuguesa" - e a certa região ou localidade. Os livrossão o instrumento que lhes permitem imaginar anação em termos cuLinários.a2 O bacathau ocupaum lugar central nessa afirmação e definição dacozinha portuguesa. Atentemos apenas em ãtgunsexemptos desse processo.

42 Sobre o papeL dos ljvros de coz¡nha na "nacionalizaçãocuLinária", ver Arjun Appadurai, "How to make a nationaL cu jsi-ne: cool<books ìn contemporary lndìa", Comparative Studies inSocíety and History, 1988,30 (t):3-24.

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Num Livro de cozinha famoso, abertamente

francófi[o, O Cozinheiro dos Cozinheiros (na edi-

cão de 1905), de Pauto P[antier, não sÓ há poucas

ieceitas de bacathau, como se reveta uma prefe-

rência pelo bacalhau fresco, que nunca penetrou

na cu[inária portuguesa, e se alude pejorativa-

mente ao bacalhau satgado e seco, o cozinhado

e consumido em Portuga[. Em contrapartida,

num livro anónimo da mesma época (rgoz), cuja

autoria é indicada como sendo de um "grupo de

senhoras" de Coimbra, Cosinha Portugueza ou

Arte CuLinória Nacional, e que é não só o primei-

ro livro a autor-proclamar-se como reportóriode um receituário português, como reivindica a

superioridade da cozinha pátria face à estrangei-ra, encontramos mais de três dezenas de receitas,

entre as quais várias muìto dìfundidas como obacathau cozido e com grão. E, em 1.936, no livroCulinária Portuguesa, de António Maria de OliveiraBeLlo, deparamo-nos com quase meia centena de

receitas. Este não era um livro qualquer. Em pri-meiro [ugar, o autor, um importante industriaL da

alta burguesia, estava Ligado ao desenvotvimentodo turismo e a cozinha tinha - tem - um papelde primeìro plano nessa atividade. Depois, era

uma autoridade em matéria de gosto culinário,sendo o Presidente da Sociedade Portuguesa de

Aastronomia e estando Ligado a outras agremia-

ções europeias congéneres. Estava também vin-cutado ao Estado Novo e à ideologia nacìonaLista.O contexto de pubLicação é o dos inícios desseregime, num tempo em que os nacionalismos -e o nacionalismo autoritário em particular - se

encontram em ascensão43.

Haverá [ivros de receitas dedicados ao baca-[hau que irão muito mais [onge e proporão cem,quinhentas ou miI receitas de bacalhau. Não é olugar aqui para os escrutinar e etes não possuem aautoridade deste. O que quìsemos frisar foram osprocessos pelo quaI o bacalhau se tornou um sím-boLo identificador para os portugueses. Acabámosde nos referir ao modo como ele é entronizadocomo a[imento nacionaI por exce[ência no livro

43 losé Manuel Sobrat, "The country, the nation and the regionin representatìons of Portuguese food and cuisine", in NunoDomingos, José ManueL SobraL e Harry West (eds\, Food Bet-

ween the Country ond the City: Ethnographies of a Changing CIo-

bal Foodscape. London: Bloomsbury, 2014, pp.145-16o; loséManuel Sobra[, "NacionaLismo, cuLinária e classe: a cozinhaportuguesa da obscuridade à consagração (sécuLos XIX-XX)",

Ru ri s, 2oo7, r(2): 13 - 52.

de Oliveira Be[[o, pois nenhum outro alimentoé objeto de um receituário tão ampto. Podemosdizer que este foi um ato de política nacionalis-tô no campo da gastronomia, em sintonia com onacionalismo de um regìme que também promo-veu a pesca do bacathaude um regime que tam-bém promoveu a pesca do bacalhau e a equiparouaos Descobrimentos, a ldade do Ouro da narrativanacionaI portuguesa.aa Mas o sucesso do baca-thau é muito anterior a esta potítica, bem comoàs tentativas, relativamente recentes, de cons-trução e defesa de uma coztnha nacionat, portu-guesô. Começou por ser produto das prescriçõesde uma alimentação cristã, que encontrou nestepeixe, outrora retativamente acessível, quandoabundante, um veícu[o adequado aos seus fins.Depois, o bacathau disseminou-se e tornou-sealgo de famìtiar parô os portugueses. Como já se

escreveu, a famitiaridade face a certos a[imentose preparações assenta na experiência sensoria[ -ao nível do otfacto, da visão, do gosto - que fazcom que alguns sejam aceites e enattecidos pelogrupo, servindo parô o identificar e outros sejamobjecto de rejeição. lsso ocorreu com o bacalhau,apreciado e cetebrado peta maioria dos portugue-ses.4s E se nos tempos imperiais foi implantadoem outros [ocais peta cotonização portuguesa,hoje persiste como e[o transnacionaI e expres-são do "nacionalismo à distância" da emigraçãoportuguesa.a6 Não é por acaso que aquela queserá a mais ampla rede de organizações, que unepessoas da diáspora portuguesa e residentes emPortugat, se chama "Academias de Baca[hau"a7.

44 Alvaro Carrido, "O Estado Novo e a pesca do bacaLhau: his-

tória, economìa, ideoLogia", em ÁLvaro Carrido (org.), A Pesca do

Bacalhau: Hístória e Memória, Lisboa, EditoriaL Notícias, 2001,pp.737-139.

45 R. l(enji Tierney e Emiko Ohnuki-Tìerney, 'Anthropology offood", em Jeffrey M. PiLcher (org.), The OxJord Handbook of Food

H isto ry. O><f o r d, Oxford U nive rsity Press, 2 0 1 2, pp. 7 t7 - 13 4.

46 "Naciona[ìsmo à distância" é um conceito criado para dar

conta das vidas transnacionais e da tìgação à terra nataL por

parte de emìgrantes. Ver Nina CLick Schitter e Ceorges E. Fou-

ron, Ceorges Woke-up Laughing: Long-Distance Nationalism

and the Search Jor Horne, Durham e Londres, Duke Unìversity

Press, 2o01.47 José Manuel SobraI e Patrícia Rodrìgues, "O'fiel amigo',, op.

cit., pp. 641-642.

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