22
SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros CHAZAN, LK. 'O melhor filme da minha vida': espetáculo e consumo de imagens no exame de ultra- som. In: “Meio quilo de gente”: um estudo antropológico sobre ultrassom obstétrico [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2007, pp. 143-163. Antropologia e Saúde collection. ISBN 978-85-7541- 338-8. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. 6 - 'O melhor filme da minha vida' espetáculo e consumo de imagens no exame de ultra-som Lilian Krakowski Chazan

Lilian Krakowski Chazan

  • Upload
    others

  • View
    14

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Lilian Krakowski Chazan

SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros CHAZAN, LK. 'O melhor filme da minha vida': espetáculo e consumo de imagens no exame de ultra-som. In: “Meio quilo de gente”: um estudo antropológico sobre ultrassom obstétrico [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2007, pp. 143-163. Antropologia e Saúde collection. ISBN 978-85-7541-338-8. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license.

Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0.

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0.

6 - 'O melhor filme da minha vida' espetáculo e consumo de imagens no exame de ultra-som

Lilian Krakowski Chazan

Page 2: Lilian Krakowski Chazan

143

6'O Melhor Filme da Minha Vida':espetáculo e consumo de imagens

no exame de ultra-som

G: Eu quero uma foto do baby... você vai me dar?Para levar na carteira?

Dr. Sílvio: Claro!... Esse é o meu papel... é a minha atividade!Um amigo meu, um dia desses, me apresentou para um

conhecido dele, dizendo: 'Esse é um amigo meu, que éfotógrafo de interiores.' [Gargalhadas gerais na sala.]

G: [Rindo.] Ele deixa o bebê lindo! (Clínica C)

Irmão [5 anos]: [Surge a imagem da face do feto.] Mãe!Olha! [Excitado.] Olha! Como é que tem luzinha na cara do

Lucca se na barriga não tem lâmpada? (Clínica A)

A visualização do interior do corpo como espetáculo tem uma históriaque remonta, no mínimo, ao século XVI, quando Vesálio inicia as primeirasdissecações públicas (Carlino, 1999; Ferrari, 1987; Park, 1994). A vinculaçãoentre ciência e espetáculo também não é nenhuma novidade, e diversos auto-res dedicaram-se ao tema. Nesse sentido, no Ocidente, o ultra-som como es-petáculo está em continuidade com uma longa tradição na cultura visual e naconstrução social do corpo. O elemento que pode ser considerado como umaruptura é referente a uma particularidade das tecnologias de imageamento inau-gurada com a invenção dos raios X: a possibilidade de tornar público o interiordos corpos sem necessidade de abri-los ou invadi-los com tubos. Especifica-mente no tocante à ultra-sonografia, nos termos de um informante – um dospioneiros no uso de ultra-som no Rio de Janeiro – “existe a obstetrícia antes ea obstetrícia depois do ultra-som”.

Jannelle Taylor, abordando a tecnologia de ultra-som como uma práticasocial, salienta seu caráter híbrido, na medida em que, durante a realização doexame, busca-se a avaliação de uma série de parâmetros médicos ao lado deoutras utilizações não-médicas, como ‘reasseguramento’ e ‘reforço do bonding’,conforme vimos. Há uma relativa incorporação de tais aspectos não-médicos

Page 3: Lilian Krakowski Chazan

144

ao ultra-som, mas para além deles um outro se impõe, colocado em oposição avalores e a práticas médicas – ao menos nos discursos dos profissionais. Trata-se do exame como objeto de consumo em si. Nos Estados Unidos, eles sãorealizados por técnicos não-médicos, embora os laudos sejam sempre dadospor especialistas em imagem, significando que, em última instância, a ultra-sonografia é considerada um procedimento médico (Taylor, 1998). No Brasil,como vimos, a realização de ultra-som foi definida pelo Conselho Federal deMedicina (CFM) como ‘ato médico’, desde 1992.

Na prática, há diversas ambigüidades, tanto no que diz respeito à indica-ção do exame quanto à sua utilização pelas gestantes e pelos parceiros. Arecomendação do exame por conta dos ‘benefícios psicológicos’ encontra-seem sutil continuidade com a incitação ao consumo de imagens fetais, cujaexplicitação ocorre quando a gestante recebe ‘um retrato do bebê’ para levarcom ela, independentemente do laudo, ou com a produção de um vídeo emVHS ou CD com a gravação do ultra-som, que será exibido em casa paraparentes e amigos. No Brasil, o fato de o exame ser sempre realizado pormédicos acentua sua definição como ‘ato médico’ e aprofunda a ambigüidadeda posição desses profissionais quando a demanda do ultra-som é de caráternitidamente consumista.

Uma parte sempre importante dos exames nos Estados Unidos – assimcomo no universo etnografado nesta pesquisa –, ‘mostrar o bebê’ funcionatanto como resposta à demanda de consumo de imagem como reforço da pró-pria tecnologia como produtora de conhecimento confiável. Nos Estados Uni-dos, o protocolo de exame determina que o técnico nada revele à gestante casoseja encontrada alguma anomalia fetal. Ele deverá comunicar o achado aomédico assistente da gestante, e esta será então encaminhada a uma sessão deaconselhamento (Taylor, 1998). No Brasil, existem recomendações conflitantesnesse sentido; contudo, no campo pesquisado, conforme vimos no capítulo an-terior, a tendência observada foi a de o médico eventualmente revelar o proble-ma à gestante durante o exame, de modo muito cauteloso quando o fazia, e emseguida comunicar sempre ao obstetra, aí em termos mais diretos.

‘Mostrar o bebê’ inclui também uma perspectiva didática, na medida emque pretende tornar compreensíveis as imagens para os leigos. Como vimos,por meio desse processo é produzida uma ‘socialização visual’, gerando umalinguagem comum – medicalizada – entre o profissional e as gestantes, e umtreinamento visual de muitas delas, que vão se tornando gradualmente aptas adecodificarem sozinhas uma ou outra imagem.

Desse modo, inevitavelmente, tanto nos Estados Unidos quanto no Bra-sil o exame contém uma faceta médica e outra de entretenimento. Contudo,

Page 4: Lilian Krakowski Chazan

145

conforme ressalta Taylor, quando o aspecto duplo da medicina e do entreteni-mento entranhados na tecnologia de ultra-som torna-se completamente sepa-rado no espaço e no tempo, ocorre um movimento da ordem médica no sentidode deter a cisão. Quando uma empresa nos Estados Unidos passou a oferecera produção de vídeos com ultra-sonografias às gestantes, exclusivamente como propósito de diversão, foi fechada pelo Food and Drug Administration (FDA).Mesmo assim, com relativa freqüência no contexto médico americano existema ambigüidade e a separação no tempo, quando, por exemplo, na impossibilida-de de determinar o sexo do feto em virtude de sua posição no útero, técnicosmarcam uma nova data de exame exclusivamente com este propósito. A per-missão para voltar com o objetivo único de “ver o sexo” apresenta-se revestidapela racionalidade dos “benefícios psicológicos”, que travestem parcialmente oaspecto de entretenimento e consumo da imagem (Taylor, 1998: 30).

No Brasil, o médico ocupa uma posição mista de educador e de entretenedor,posto que, na seqüência de imagens produzidas, há uma nítida roteirização queconstrói implicitamente uma narrativa. Entre colegas, no campo observado, taldemanda de imagem foi sempre referida pelos profissionais de modo deprecia-tivo, embora na maior parte das vezes atendesse às solicitações das gestantese acompanhantes, como vimos até aqui. Como entretenedor, o médico desem-penha diversas funções, sendo em especial o diretor do ‘show’. O espetáculotem um sentido muito semelhante ao de um documentário, no qual conhecimen-to e lazer se mesclam. Ao mesmo tempo, por ser médico, seu papel está porprincípio informado por uma dupla hierarquia do saber, ao ser detentor nãoapenas do conhecimento médico como também da capacidade de decodificaçãodas imagens incompreensíveis para um leigo, ou mesmo para um médico não-treinado no entendimento e na interpretação específicos das imagens ultra-sonográficas.

Ao longo da observação etnográfica emergiu um aspecto pregnante docampo pesquisado: a sessão ultra-sonográfica obstétrica e as imagens fetaiscomo um espetáculo em si, capazes de proporcionar prazer e diversão aosdiversos atores presentes ao exame – inclusive a observadora. Cabe observarque boa parte da minha diversão esteve mais vinculada aos aspectos absoluta-mente surpreendentes – freqüentemente engraçados e sempre densos de sen-tido – que emergiram no decorrer da observação do que às imagens fetais emsi, embora por vezes estas exercessem uma atração irresistível, polarizando aatenção de todos. Em conjunto com esta situação, chama a atenção o consumodas imagens fetais sob a forma de ‘fotos’, vídeos, CD-ROMs ou DVDs comoum elemento marcante no universo observado. Insisto em usar ‘foto’ entreaspas por ser um termo êmico, mas principalmente porque, a rigor, não se trata

Page 5: Lilian Krakowski Chazan

146

de fotos e sim de um registro da tradução, em imagem, dos impulsos elétricosresultantes da transformação dos ecos das ondas sonoras captados pela sonda,processados pelo computador. É também importante ter-se em mente que ouso do termo ‘foto’ contém implícita a idéia do feto ‘externalizado’ por meio doultra-som.

Observei que, dependendo da formação de origem do ultra-sonografista– diagnóstico por imagem ou ginecologia/obstetrícia –, a atitude e o encanta-mento diante das imagens fetais eram nitidamente diferentes. Provavelmente,para os médicos especializados em diagnóstico por imagem, a ultra-sonografiaobstétrica consistia em apenas mais uma tecnologia a ser utilizada; além disso,eventualmente o contato face a face com os clientes transformava-se em umproblema, não existente para eles no manejo das outras tecnologias. Emcontrapartida, para os médicos com especialização prévia em ginecologia/obs-tetrícia, acostumados à opacidade dos abdomens grávidos, o ultra-som tinhauma qualidade quase mágica, desvelando e permitindo visualizar e avaliar as-pectos anteriormente inacessíveis para eles. Em outros termos, para esses pro-fissionais, as imagens fetais continham em si um caráter de espetáculo. Umaconversa entre duas médicas, presenciada na clínica B, é reveladora:

Dra. Lúcia diz: “Acho um ‘saco’ ultra-som geral”.1 Dra. Cássia respon-de: “Mas você já tem nome, pode se dar a esse luxo. Eu ainda tenho queme firmar... eu preciso pegar o que tem.” Dra. Lúcia diz: “Eu me divirto!Quero trabalhar me distraindo. Adoro olhar o sexo dos nenéns, essacoisa toda...” [As duas médicas tinham como formação de origem aginecologia/obstetrícia.] (Clínica B) (Ênfase minha)

Possivelmente em virtude desse entusiasmo, demonstrado de modo maisou menos exuberante dependendo do profissional, durante a observação tor-nou-se evidente que, na ausência de patologias, os médicos desempenhavamum papel fundamental na transformação ou não do exame em espetáculo, em-bora não se possa perder de vista que atuavam em um terreno culturalmenteestabelecido de maneira bastante sólida. Traduzindo: a clientela freqüentementejá chegava para o exame imbuída de tal concepção e, nesse sentido, o fenôme-no funcionava em um movimento de realimentação positiva, ou seja, as gestan-tes e acompanhantes iam para a ultra-sonografia com uma expectativa de es-petáculo que os médicos usualmente preenchiam à perfeição. Um informantemédico revelou:

No início, ninguém dava o menor valor ao ultra-som como ferramentadiagnóstica. Também... as imagens eram horríveis, todas borradas,

Page 6: Lilian Krakowski Chazan

147

difícil de ver qualquer coisa. Depois isso foi mudando, a tecnologianesse campo evoluiu muito! (Clínica C)

Outro informante explicou:

Imagina que antigamente o que você tinha que ver (...) era cabeça,barriga, media a cabeça e media o fêmur. Só. Os primeiros ultra-sonsvocê não conseguia distinguir cabeça... é um pólo cefálico, é um mioma?Hoje, não! Hoje você distingue... você vê a mão, o pé, se os rins tãobons, aparelho gastrintestinal... (Clínica A)

A evolução tecnológica que tornou as imagens mais facilmentedecodificáveis – conjugada evidentemente à ‘educação’ do olhar dos médicos,assim como dos leigos – atuou portanto em um sentido duplo: facilitou o enten-dimento das imagens e permitiu a construção de novos diagnósticos ao mesmotempo que possibilitou a transformação do exame em espetáculo – e não ne-cessariamente nessa ordem.

Nos dias atuais, nas sociedades urbanas industrializadas, tornou-seimpensável uma gestação transcorrer sem ao menos um exame ultra-sonográfico. Contudo, o aspecto ‘lazer’, mesclado com a medicalização dagravidez que aqui discuto, pareceu ser peculiar ao universo observado. Váriosmédicos com quem conversei salientaram por diversas vezes:

Lá fora [do Brasil] não é assim, é só um ato médico. Lá fora faz menosultra-som na gravidez, aqui você tem paciente com nove, dez exames...de uma gestação que não tem risco, não tem justificativa. (Clínica A)

Uma médica comentou comigo, irritada: “Onde está o ato médico noultra-som?”, completando: “Você precisa ver como nos tratam (...)!” Outraprofissional acrescenta: “Tem paciente que chega com uma listinha: querover o rosto, uma foto do rosto, quero saber o sexo etc. etc.” (Clínica A).

Dr. Henrique referia-se em tom crítico ao fato de o exame para determi-nação de sexo fetal ter-se transformado, em si, em objeto de consumo, propici-ando além disto outro tipo de consumo:

É querer começar a montar um enxoval de acordo. (...) Isso na Europa,Estados Unidos, não existe! Não e não! Eles não dizem! Só vai dizerquando você está vendo lá. Se alguém chega lá com 11 semanas elesnão vão dizer. (...) Ele não tem obrigação nenhuma e nem as pacientesvêm com essa expectativa. No Brasil, não... No Brasil você fica com pena,

Page 7: Lilian Krakowski Chazan

148

às vezes eu digo para a paciente: ‘volta aqui na semana que vem’, nemcobro a consulta, vem só para ver o sexo, não dou laudo nem nada, vemsó pra dar uma olhada. Elas te pressionam também. E lá [no exterior]não existe isso. (...) Aqui, não... (Clínica A) (Ênfases minhas)

Em conversas informais com pesquisadores europeus, a surpresa mani-festada por eles diante das observações que descrevi reforçou a impressão deque havia uma particularidade local.2

A ULTRA-SONOGRAFIA COMO ESPETÁCULO

No que tange ao ultra-som como espetáculo, situando a questão peloprisma da tensão objetividade/subjetividade, existem como pano de fundo acondição sine qua non da objetividade inegável da existência do feto e,a seguir, sua visibilização pelo ultra-som que, objetificada nas ‘fotos’, potencializaessa noção tornando-a efetivamente ‘real’ para os presentes. A partir desteponto, outros fatores entram em jogo, e os aspectos subjetivos dos atores, en-volvendo seus valores e crenças, tornam-se preponderantes.

A grande afluência e a presença freqüente, na sessão ultra-sonográfica,dos mais variados tipos de acompanhantes, além do parceiro da gestante, evi-denciavam o fato de que o sentido do exame transcendia em muito o aspectoestritamente médico de acompanhamento de gravidez. Era comum a presençade avós, filhos, amigos, afilhados e outros para ‘ver o neném’. Os profissionais,longe da clientela, às vezes referiam-se de modo crítico a tal afluência:

Dr. Henrique me diz: “Pra você é que ia ser bom vir no sábado, muitointeressante pra tua observação. [Sorri, irônico.] É uma beleza!... Vemgato, cachorro, papagaio... Tem que ter paciência... Eu já venho relax,já sei que é um sábado perdido...” (Clínica A)

Entretanto, a ironia nunca era manifestada no contato com a ‘platéia’,sendo, ao contrário, geralmente motivo de comentários bem-humorados do pro-fissional quando este, ao entrar na sala de exames, deparava-se com um núme-ro excessivo de acompanhantes: “Ih! Hoje tem assistência! Sentem aí, meni-nas...” (dra. Lúcia, clínica B).

A transformação do exame em espetáculo com platéia expandida torna-va-se um modo evidente de antecipação da existência social do feto, no quepoderia ser descrito como um processo de inclusão social equivalente a uma

Page 8: Lilian Krakowski Chazan

149

couvade urbana, contemporânea, mediada pela tecnologia de imageamento.3Em uma sociedade na qual a visualidade é preponderante e o processo demedicalização é crescente, faz sentido que esse ritual se dê de uma formamedicalizada, precoce e visual. Com freqüência, pareceu-me que a inclusão do‘bebê’ na família era uma via de mão dupla, quando crianças – irmãos – dasmais variadas idades eram trazidas para assistir ao exame, no qual eram apon-tados ‘o irmãozinho’ ou ‘a irmãzinha’. As manchas muitas vezes indistintastransformavam-se em ‘bebê’ ao mesmo tempo que a criança presente adquiriao status de irmão/irmã e passava a participar ou, em outros termos, era ‘incluída’na gravidez materna.

A atuação dos médicos era um elemento fundamental nesse processo demetamorfose do feto em ‘bebê real’, presente ‘fora’ do ventre materno, e dava-sepor meio de diversos comentários que transmutavam as imagens fetais, cinzentase esfumaçadas, em um verdadeiro ‘neném’. Neste particular a dra. Lúcia eratotalmente imbatível, engraçadíssima, temperando seus comentários,freqüentemente inusitados, com humor e muitas risadas, sempre compartilha-das pelos presentes:

Dra. Lúcia: [Aponta animada para a tela, exclamando.] Ó os cabelo! [sic]É preto. Quando é muito assim é preto. Ela [aponta a criança presente nasala] nasceu cabeluda? (Clínica B)

Havia um repertório variado em torno do tema ‘cabelo’, transformandoo feto em ‘bebê’, como:

“Ela é cabeluda! Pode comprar um monte de lacinhos!”, “Viu a vastacabeleira?”, ou “Viu os cabelinhos dele? [Balança a sonda sobre oabdômen da gestante.] Aí, balançando? Vou medir... tem 1,5 centíme-tro! [risos gerais].” (Dra. Lúcia, Clínica B)

Outro modo de ‘tornar o bebê real’ ocorria quando, no exame em tornode 12 semanas gestacionais, ao visualizar o esboço dos braços e pernas do feto,o médico sublinhava a diferença com as imagens anteriores:

Dr. Sílvio: Dá pra ver perninha, bracinho... [mostra com o cursor] doisbraços, duas pernas... essas preocupações maternas... Na próxima vezconto os dedinhos. Fico devendo... Antes era um grãozinho de feijão,agora já é um bebê. (Clínica C) (Ênfase minha)

Page 9: Lilian Krakowski Chazan

150

‘Ver’ braços e pernas promovia o ‘upgrade’ de ‘vegetal’ para ‘ser hu-mano’. De uma mancha com contorno arredondado – o “grãozinho de fei-jão” – à mancha com esboço de braços e pernas, o embrião dava um saltoqualitativo para ‘bebê’. A visibilização da genitália fetal consistia em outro mo-mento importante nessa transformação: do momento em que se evidenciava,pela imagem, a vulva ou o pênis fetais, o concepto se transformava em ‘ela’, ou‘ele’, de preferência com prenome. A digitação deste, ao lado da imagem dagenitália – atitude sempre recebida com risos pelos presentes –, como quesintetizava esse processo. A imagem, prenominada, passava a ser a ‘identida-de’ do feto. A gíria ‘documentos’ para se referir à genitália – em geral a mas-culina, mas não apenas ela – é por si só bastante reveladora dessa questão. Emconjunto com este aspecto, no que dizia respeito estritamente ao quesito ‘espe-táculo’, os genitais eram objeto de diversos comentários brincalhões, vincula-dos ao tipo de ‘show’ proporcionado pela visualização, no qual o conceptoseria o ‘ator principal’:

Dra. Lúcia: [Mostrando na tela a genitália do feto.] E os documentosdele...

G: [Animada, para P.] Á lá amor! Á lá!

Dra. Lúcia: [Rindo.] É um corte pornográfico... á lá o testículo [apontacom o dedo na tela], essa bolinha... já desceu. (Clínica B) (Ênfase minha)

A partir da 11ª semana gestacional, a escolha e a exibição da seqüênciainicial de imagens constituíam-se como uma narrativa visual em si, ‘humanizando’o feto com a exibição do perfil, da mão – dentre todas as imagens, as maisfacilmente reconhecíveis – e da face, e faziam do médico um misto de diretor,cameraman, montador e narrador de um curta-metragem documental, umaatuação que transcorria paralelamente à avaliação e à medição dos parâmetrossignificativos de um ponto de vista biomédico. Vale lembrar mais uma vez que,em termos êmicos, o exame de ultra-som é ‘operador-dependente’, ou seja, oultra-sonografista busca e, portanto, escolhe as imagens à medida que realiza oexame. Não sei até que ponto essa ‘narrativa visual’ era construída de modototalmente consciente pelos médicos, mas posso afirmar que havia relativa cons-tância – uma espécie de padrão de cada profissional – na seqüência de ima-gens exibidas, principalmente no início do exame. Esse ‘padrão’ inicial funda-mentalmente não diferia muito entre um profissional e outro; buscava-se emprimeiro lugar localizar a cabeça fetal para dar início à atividade de ‘mostrar oneném’. O que ocorria a seguir variava bastante, conforme vimos no capítulo 3.

Page 10: Lilian Krakowski Chazan

151

Concomitantemente, o feto convertia-se em um ‘ator protagonista’ e agestante, os acompanhantes e a observadora, em ‘espectadores’. Além disto,eventualmente o profissional que realizava o exame atuava como verdadeiroshowman multimídia, quando avisava, por exemplo: “Não se assustem com obarulho”, ouvindo-se logo em seguida, em alto volume, o som dos batimentoscardíacos fetais, ou como quando criava algum suspense em torno das sombrascinzentas da tela, antes de revelar o sexo fetal:

Dr. Sílvio: [Surgem as primeiras imagens. Fala escandindo as sílabas.]Piri-lim-pim-pim... Temos aqui... [pausa estratégica] um pin-to. (Clínica C)

Essa faceta era reconhecida e apreciada pela clientela, como quandouma avó afirmou: “O médico dela [G] tem um ultra-som no consultório, masa gente veio aqui porque você é que é o mago do ultra-som” (ênfase minha)– afirmação que deixou o médico visivelmente satisfeito. Apesar de todos oselogios, essa clientela era particularmente exigente, o que se evidenciou em umcomentário desta mesma senhora – em tom aparentemente brincalhão – pou-cos momentos depois: “Você tem certeza que é menina? Vê direito, aí! Foca-liza bem!” (clínica C).4

O ‘espetáculo’ agradava particularmente às gestantes; nas clínicas A eC, quando a duração do exame se prolongava, era freqüente as grávidas dize-rem, despedindo-se dos profissionais com dois beijinhos: “Ai! Tão bom ver! Seeu pudesse vinha fazer exame todo dia!” (gestante, clínica A). Uma das ultra-sonografistas cujo trabalho acompanhei revelou que durante sua própria gesta-ção, normal e sem problema algum de ordem médica, “Dava uma ‘olhada’toda semana, às vezes até mais! Não conseguia resistir à curiosidade”(médica, clínica C). Nesse processo de construção do ultra-som obstétrico comoespetáculo, por meio do qual é produzido e reforçado o prazer de ver as ima-gens fetais, parece estar implícito um misto de curiosidade e necessidade decontrole do feto, por parte das grávidas.

Diversas manifestações das gestantes e acompanhantes durante o exa-me denotavam que o espetáculo, além de divertir, emocionava. Esse caráterespetaculoso obscurecia um elemento que também estava presente durante asessão ultra-sonográfica, em relação ao qual poucas gestantes pareciam semostrar claramente cientes: o da invasão de intimidade, que ocorria em maiorou menor grau. Essa invasão tanto podia ser concreta, corporal – como noexame transvaginal, no qual uma sonda é introduzida no corpo da gestante –,como virtual, com a exibição na tela de imagens do interior do corpo da mulher.A exposição dessas imagens era totalmente naturalizada pelos atores observados,

Page 11: Lilian Krakowski Chazan

152

e dei-me conta um dia de que também eu havia ‘embarcado’ na cultura nativa.Percebi este fato ao me sentir desconfortável em um exame de uma gravidezinicial quando o médico, buscando imagens do ovário, focalizou o fim do tratodigestivo, evidenciando o trânsito intestinal da gestante. Os sentimentos de es-tranheza e constrangimento que vivenciei na ocasião evidenciaram que eu não‘esperava’ ver o seu intestino funcionando, em contraste com as imagens dointerior do útero grávido às quais já me ‘acostumara’.

Considerando o universo etnografado em conjunto, vale ressaltar aindaque poucas vezes observei manifestações de pudor por parte das gestantes emrelação ao profissional ou aos acompanhantes, como se o fato de estarem grá-vidas deserotizasse a exposição de sua genitália. Chamou-se a atenção emespecial a aparente falta de constrangimento em relação aos acompanhantesleigos, das mais variadas ordens, presentes ao exame. O caso da gestante que,em gravidez inicial, veio acompanhada do marido e do filho de quatro anos paraum exame no qual foi necessário usar a sonda transvaginal é um exemploquase caricato dessa aparente desinibição. O pai tentou distrair o menino, queolhava repetidamente de esguelha para o corpo da mãe, mas a gestante pareciaestar totalmente à vontade, conversando sobre as imagens fetais e apontando-as para o filho, à medida que surgiam na TV da sala (clínica C).

As raras exceções ocorreram na clínica C, e apenas uma vez ouvi umagestante, que não trouxera fita para gravar o exame, comentar: “Acho horrívelesse negócio de passar fita pra todo mundo ver... na primeira gravidez,ele [P] não quis que gravasse nada. É uma invasão muito grande!” (ges-tante, clínica C). De outra feita, uma gestante estrangeira de origem oriental,que por não falar o português viera acompanhada de uma tradutora para umexame pélvico, deixou claro que só iria permitir minha presença na sala comoobservadora porque eu era mulher. Contudo, não pareceu constrangida diantedo médico que realizou seu exame. A intimidade de cunho emocional esteve empauta em uma única ocasião, com a recusa de uma gestante ao meu pedido deassistir ao seu exame, justificando-se por estar enfrentando uma situação críti-ca na gravidez e, por isso, não desejar a presença de estranhos. Pareceu-meque a clientela dessa clínica estava mais ciente e era mais ciosa no tocante àproteção de sua privacidade e intimidade do que nas duas outras – e, comovimos, a arquitetura ali contemplava essa demanda.

Na clínica C, em diversas ocasiões, a própria tecnologia era apresentadacomo espetáculo, muito bem recebido pela clientela que não apenas estavahabituada a ela como a valorizava e esperava poder contar com tecnologia deponta no acompanhamento da gravidez – com freqüência, aliás, ela própriaproduto de alta tecnologia.

Page 12: Lilian Krakowski Chazan

153

Dr. Sílvio: [Vou] Deixar correr um pouco... [Surgem as primeiras imagens.A reação é instantânea.]

G: [Encantada.] Ooooolha!!! [Emociona-se, P também tem um enormesorriso no rosto.]

P: Caramba! Que imagem!

Dr. Sílvio: Hoje em dia a aparelhagem oferece alta definição... é um prazerver essas imagens... (Clínica C)

Nesse sentido, a exibição e/ou o enaltecimento dos meios tecnológicoscomo um espetáculo em si funcionavam também como reforço da seriedade eda credibilidade da clínica em termos médicos, produzindo um reasseguramentopara as grávidas de que tudo estaria ‘sob controle’. O fato de a clínica C disporde equipamento tecnológico ‘de ponta’ era igualmente valorizado pelos profis-sionais, que atuavam também em outros consultórios: “Essa tecnologia aqui éoutra coisa!”

A valorização da tecnologia também foi observada na clínica A, masocorria com menor freqüência:

Avó: [Para mim e dr. Henrique.] Como tem exames hoje em dia! Comoinventaram coisas!... Essa [aponta G] foi a minha última [filha]... Na épocanão tinha nada disso... [Dr. Henrique confirma, satisfeito.] (Clínica A)

Na clínica B nunca presenciei esse tipo de comentário, nem mesmo nasvezes em que realizei observações na matriz, que dispunha de aparelhagembastante mais moderna do que a filial.

Contudo, nas três clínicas, em situações nas quais existia tensão acercada saúde materna ou fetal, o ‘espetáculo’, qualquer que fosse o tipo, ficava emsegundo plano ou simplesmente não acontecia. Nesses casos as gestantes nãotraziam fita para gravar, havia menos acompanhantes – em geral apenas oparceiro ou a mãe da gestante –, e mesmo que, como vimos, eventualmente osmédicos usassem das imagens fetais como um meio de tentar descontrair oambiente, o clima geral era de um procedimento médico.

[G veio para o exame de translucência nucal. Em sua primeira gestação, ofeto era portador da Síndrome de Down, segundo me informaram depois.]

Dr. Sílvio: Vocês trouxeram fita?

G: Não. Esse tipo de exame não me agrada [G está emocionada, há lágri-mas em seus olhos.]

Page 13: Lilian Krakowski Chazan

154

Dr. Sílvio: Eu não trago boas recordações... [Espalha o gel e inicia oexame. Surgem as primeiras imagens.] (...) Neném mexeu... acordou-se. Aprimeira boa notícia é que a nuquinha está normal.

G: [Tensa.] Primeira boa... tá bom... (Clínica C)

Quando inesperadamente revelava-se uma patologia fetal, o clima deespetáculo era prontamente substituído pelo de uma consulta, ou o exame podiachegar a ser interrompido, conforme vimos. É possível afirmar, portanto, que oteor de ‘espetáculo’ da sessão ultra-sonográfica encontra-se estreitamente vin-culado à não visibilização da existência de patologias maternas ou fetais, ou derisco para a vida do feto. Vale aqui sublinhar que o exame ultra-sonográfico,por mais sofisticado que seja, não é capaz de oferecer segurança absoluta notocante a todas as patologias possíveis. Ou seja, visibilizar, tornar visível o feto,não garante a inexistência de problemas de outra ordem, genética ou metabólica,por exemplo.

PRODUÇÃO E CONSUMO DA IMAGEM:‘FOTOS’, VÍDEOS E OUTRAS MÍDIAS

As palavras de Walter Benjamin, no tocante à cultura visual do início doséculo XX, “Dia a dia, impõe-se gradativamente a necessidade de assumir odomínio mais próximo possível do objeto, através de sua imagem (...)” (Benja-min, 1981: 15), soam proféticas em relação ao universo observado. A obtençãoe a posse de imagens fetais transformaram-se em um item praticamente obri-gatório para as gestantes e familiares. Aparentemente existe um sentido decontrolar e ‘apropriar-se’ do feto, que é atravessado pela confusão da imagemcom a coisa. No limite, as crianças são porta-vozes perfeitos dessa confusão,mas os adultos não ficam muito atrás delas, em especial no tocante ao ‘tama-nho’ do feto, como quando sua imagem surge expandida na tela e eles reagemcom “Como está grande!”

Dra. Lúcia relata o caso de uma gestante que, em sua segunda gravi-dez, trazia os dois filhos gêmeos, meninos de quatro anos, para assis-tirem às ultra-sonografias. Ambos queriam muito que fosse uma irmã,e, no exame morfológico, ficou evidente que o feto era masculino, paragrande decepção deles. Dra. Lúcia delineou graficamente com o mousedo aparelho o contorno da genitália para mostrar às crianças que era

Page 14: Lilian Krakowski Chazan

155

mesmo um menino. Mais tarde, a gestante contou para a médica que,enquanto aguardavam o resultado do exame na sala de espera, os doisperguntaram à mãe: “Por que você não manda a tia desenhar umaxerequinha?” (Clínica B)

O fenômeno que presenciei numerosas vezes – nas três clínicas – demédicos, gestantes e acompanhantes dirigirem-se ao feto ou falarem em tompueril, como se fossem o próprio feto, torna evidente a equação estabelecidaentre este e a sua imagem virtual no monitor do aparelho. A presença daimagem cinzenta (ou sépia, no caso de 3D) na tela, mais fácil ou mais difícilde decodificar, torna-se equivalente à presença ‘ao vivo’, concreta, do fetoentre os atores presentes. Em diversas ocasiões, em especial quando se tra-tava de sessões para determinação do sexo fetal e as expectativas do casalhaviam sido satisfeitas, os agradecimentos efusivos ao profissional após oexame provocavam a nítida impressão de que era o médico quem havia ‘feitoum bebê’ para o casal – o que não deixava de ser verdade, em certa medida–, reforçando a hipótese de que a ultra-sonografia obstétrica não apenasantecipa a existência social do feto em termos da rede de relações sociaiscomo, também, constrói a ‘realidade’ do próprio concepto para os futurospais.5 O sentimento de ‘realidade’ do feto a partir da produção das imagensfetais consiste, a meu ver, em um fator relevante para a construção do prazerde ver tais imagens.

Dr. Henrique: De vez em quando mexe... [Manipula a imagem 3D, girando-a na tela; estava de lado, fica de costas.] De costas aí, ó... á lá ele mexen-do! [O casal ri, a imagem se mexe na tela, faz diversos movimentos por umbom tempo.]

G: Acordou!

P: [Admirado, olhando o monitor.] Meu Deus do céu!

G: Eu ainda não sinto nada...

Dr. Henrique: Vai sentir com uns cinco meses... (Clínica A)

O exame adquire um sentido de lazer equivalente a uma ida ao cinema paraassistir a um documentário, no qual o feto desempenha o papel de protagonista:

Dr. Henrique diz, em tom de desabafo: “É muito cômodo, ela chegaaqui, ela vem pra fazer um programa! Com a família! [Irônico.] Sába-do, vem ver loja, vem fazer um exame, vem fazer um programa, vem ver

Page 15: Lilian Krakowski Chazan

156

o neném... A gente começou no sábado com três agendas de manhã,agora abriu duas de tarde, tá tudo lotado! (...) Aí ela vai aproveitar,fazer as compras dela, cinema...” (Clínica A) (Ênfases minhas)

De certo modo, a programação visual envolvida na produção de imagensfetais faz uso da confusão imagem-coisa quando, ao lado de imagens 3D, quepodem ser exibidas em movimento, existe o logo “Live 3D” no qual o termo‘Live’ aparece como letra cursiva, contendo a conotação de algo ‘vivo’, produ-zido artesanalmente pela mão humana, persuadindo os atores de que estariamdiante do bebê ‘ao vivo’.

O ‘realismo’ da imagem 3D é um aspecto altamente valorizado no uni-verso observado:

Voltando do almoço, encontramos no corredor do shopping um casalcom um bebê ao colo. A mãe saúda o dr. Henrique efusivamente e diz:“Doutor, é impressionante! Quando ela dorme fica igualzinha à foto do3D. Ela dorme na mesma posição, com a mão embaixo da bochecha!”(Clínica A)

Solicitar do médico e levar para casa ‘fotos’ do ‘bebê’, independente-mente das imagens que constam no laudo do exame, é uma prática corriqueira.Tais demandas eram geralmente recebidas com comentários bem-humorados,como na epígrafe que abre este capítulo, ou:

Dr. Sílvio: [Entrega ao marido de G a ‘foto’ solicitada.] Eu já encerrei aminha função de fotógrafo [ri]... qualificado. (Clínica C)

Essas imagens, como qualquer fotografia, guardavam freqüentemente osentido de fixação e registro de um momento fugidio, que tanto podia ser refe-rente ao exame quanto à própria gravidez:

Dr. Henrique: Nota dez. [Descreve a posição do feto, mostrando sobre oabdômen de G.] Cruzou as pernas... a mocinha tá lá... peguei! Fotografa-da... passa rápido [a gravidez]... (Clínica A)

As ‘fotos’ poderiam ir para a carteira dos pais ou serem as primeiras doálbum do futuro bebê: “Tua foto [feita no exame anterior] já tá no álbumdele”, diz uma gestante para o dr. Henrique enquanto se despede dele, levandouma nova imagem, recém-produzida. As qualidades ‘estéticas’ do feto e daimagem eram objeto de comentários, avaliações e comparações:

Page 16: Lilian Krakowski Chazan

157

G: O perfil é igualzinho ao da Lulu! [Todos olham para a tela da TV.]

Dra. Carla: Abriu a boca! Ó que bonitinho... (...)

Avó: É mais nítida do que as outras... não me lembro da Lulu tão fotogênica.(Clínica C) (Ênfases minhas)

Com freqüência, os profissionais digitavam o prenome escolhido pelospais sobre as imagens ultra-sonográficas. Na clínica A, diversas vezes observeia colocação do prenome junto à imagem da genitália, em 2D ou em 3D, even-tualmente com o requinte, nestas últimas, de colorir digitalmente as imagens derosa ou azul, dependendo do sexo fetal. Outros médicos preferiam colocar oprenome junto à imagem da face ou do perfil, mas eventualmente tambémoptavam pela genitália para ‘identificar’ o feto. Uma vez presenciei um médi-co, depois de discorrer longamente sobre o motivo de não colocar o prenomena imagem – e finalizar a explicação com: “Depois os pais mudam de idéia eele nasce, chama Marcos e fica sabendo que o nome ia ser Lucas... con-fusão... não ponho o nome para não prender” –, agir de modo oposto aoque defendia tão enfática e racionalmente. Na ocasião, comentou:

“É assim que eu gosto de exame, alegre.” Pergunta se observei que elenunca colocava o prenome na imagem, e digo que sim; justifica-se entãodizendo que “desta vez o casal estava curtindo tanto! Botei o nome. Égostoso quando faz exame assim...” (Clínica C)

Outro item largamente valorizado no universo observado era a produçãode vídeos com as imagens fetais. Na clínica B, havia o cartaz junto ao balcãoda atendente na sala de espera: “Vendemos fitas de VHS”, e a explicação queme forneceram foi de que “Às vezes elas [G] esquecem de trazer a fita paragravar e saem muito frustradas”. A capa dessas fitas continha a foto de umlindo bebê rechonchudo e o logotipo da clínica. As gestantes costumavam gra-var as imagens fetais em seqüência, à medida que os exames se sucediam, nasdiferentes etapas da gravidez:

G entra sorridente, entrega ao dr. Sílvio uma fita de vídeo, dizendo: “Olha,mais um capítulo do longa-metragem... Hoje eu não trouxe platéia. Depoisque inventaram isso de filmar... é um programão pra família inteira...”(Clínica C) (Ênfases minhas)

A produção do vídeo, além de estender o ‘espetáculo’ para os que nãopodiam estar presentes à sessão ‘ao vivo’, servia para a própria gestante rever

Page 17: Lilian Krakowski Chazan

158

numerosas vezes, como um reasseguramento de que “o neném está bem”(gestante, clínica A). Esses vídeos propiciariam sessões domésticas, ocasiõessociais nas quais amigos e parentes seriam chamados a participar:

P: [Entusiasmado.] É o melhor filme da minha vida!... Mas é curtinho!

Dra. Lúcia: [O exame está terminado, a médica estende a fita para P, rin-do.] Mas pode ver várias vezes...

P: [Rindo também.] Pode fazer várias sessões... com certeza! Às oito, oitoe meia, nove... (Clínica B)

Outro aspecto digno de nota é que o movimento registrado na fita dimi-nui a sensação de fragmentação corporal presente nas imagens estáticas. Tal-vez em parte por esse motivo, com freqüência os médicos promoviam comoque um ‘baby-tour’ pelo corpo fetal:

[Após a determinação do sexo fetal, solicitada pela G.]

Dr. Sílvio: Muito bem! Agora que a curiosidade está satisfeita, vamos àparte acadêmica... técnica. [Mostra.] Perfilzinho... bidimensional... o nariz...(...) Cabecinha, vista de topo... as estruturas encefálicas... (...) o cerebelo...os plexos coróides... essa linha branca aqui no meio é a foice do cérebro (...)tudo perfeitinho... (...) As perninhas... mãozinhas... (Clínica C)

A duração do ‘tour’ variava, em razão do tempo da sessão em cadaclínica, mas sempre ocupava uma parcela significativa do tempo despendido noexame. Nas três clínicas, várias vezes tive a impressão de que os ultra-sonografistas se compraziam eles próprios com a obtenção de ‘boas incidênci-as’ que permitiriam a produção de ‘boas imagens’, uma preocupação, de certamaneira, ‘artística’, que transcendia o aspecto médico do exame.

Os médicos e médicas preocupavam-se em atender à demanda de pro-dução de vídeos e, quando não era possível gravar – fosse por problemas naaparelhagem, fosse porque a fita trazida chegava ao fim antes do final do exa-me –, mostravam-se quase tão decepcionados quanto a clientela. Além da ‘di-versão’ proporcionada por assistir ao vídeo, este detinha um sentido documen-tal mais acentuado do que as ‘fotos’, possivelmente por a imagem em movi-mento estar impregnada da conotação de ‘vida’. O vídeo seria como que a‘prova’ pública da existência, viva, do feto. Tal sentido tornou-se evidente emuma situação observada na clínica A, quando uma gestante só estendeu a fitade vídeo para a médica gravar o exame depois de ser reassegurada pela profis-sional de que o feto estava saudável.

Page 18: Lilian Krakowski Chazan

159

Dependendo do grau de sofisticação da aparelhagem e da clientela, ou-tras mídias poderiam ser utilizadas:

Terminando o exame, G expressa sua frustração por ter esquecido a fitapara gravar o exame. Dr. Henrique pergunta: “Você tem computador emcasa?” Diante da resposta afirmativa, ele oferece: “Vai aí no shopping,compra um CD que eu gravo pra você... o exame está gravado namáquina” – sugestão prontamente seguida por G. (Clínica A)

G: [Para dr. Sílvio.] Queria saber se... dá pra fazer uma foto digital? Eutraria um disquete...

Dr. Sílvio: Dá... depois eu gravo em um CD pra você, podem mexer comPhotoshop....

G: Quero mandar pela Internet... eu ia trazer uma câmera digital pra foto-grafar a sala...

Avó: Nossa, Thalita!

G: Todo mundo tá fazendo isso! [Olhando para a TV, com as imagensfetais.] Tá de cabeça pra baixo... tá deitado... (Clínica C)

VISIBILIDADE, DISCIPLINARIZAÇÃO, CONSUMO

E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES

Há um ciclo de realimentação entre a produção do prazer de ver, a con-seqüente transformação do ultra-som em espetáculo e questões relativas aomercado – tanto o de consumo de imagem quanto o de aparelhagem tecnológicacada vez mais sofisticada. Embora esta não seja a única questão em jogo, eudiria que um dos aspectos que contribuem de modo significativo para o proces-so de espetacularização da ultra-sonografia consiste na necessidade de forma-ção e manutenção de uma clientela. Conforme vimos, é óbvio que a proficiên-cia desses especialistas e, por conseguinte, sua credibilidade e confiabilidadeentre os obstetras e ginecologistas também têm um peso significativo no mer-cado de ultra-som obstétrico, mas esse fator, embora condição necessária, nãoé suficiente para tal. Justaposto a esse aspecto, é importante ter-se em menteque, por sua vez, o processo de espetacularização só tem sentido e é eficazprecisamente porque se inscreve em uma cultura na qual a visualidade e aespetacularidade são cotidianas – alguns programas de TV são paradigmáticos

Page 19: Lilian Krakowski Chazan

160

dessa questão –, e o escrutínio do interior do corpo, assim como sua fragmen-tação imagética, é moeda corrente entre os atores. Constrói-se uma expectati-va, a partir do momento que a mulher se descobre grávida, de ‘ver o neném’ eacompanhar visualmente seu desenvolvimento. Os médicos, ao atenderem aodesejo de ‘ver’, ao mesmo tempo estimulam a curiosidade e a demanda, e comisso fecha-se o ciclo. A mídia também desempenha um papel nesse estímulo decuriosidade, entre outras questões (Kemp, 2005).

Um dos pontos relevantes presentes na produção de ‘diversão’ e de pra-zer de ver as imagens fetais durante o exame consiste em uma espécie deocultamento da marcante medicalização da gravidez no universo observado.Não pretendo de modo algum afirmar que se trate de um estratagemamaquiavélico, e sim que tal produção apenas reflete e reforça um fenômenobiopolítico muito mais abrangente – o da medicalização social e do controle doscorpos, na medida em que internaliza nos atores a necessidade de escrutínio,transformada em ‘desejo de ver o neném’.

Outro aspecto que vale sublinhar é a virtual ‘invisibilidade’ do corpo fe-minino, tanto no que diz respeito à corporalidade concreta quanto no tocante ànoção de intimidade ou pudor.6 No universo etnografado, as gestantes eramparte ativa nesse processo, solicitando manobras e procedimentos dos médicosque muitas vezes as colocavam em posições de desconforto físico, no afã deobterem melhores imagens de seus ‘bebês’.

No campo observado é construída uma cultura visual peculiar, comparti-lhada pelos atores presentes, na qual a fragmentação e a indistinção das ima-gens cinzentas do corpo fetal são praticamente ignoradas e naturalizadas, etransformadas em algo que é, inclusive, diferente da ‘coisa em si’. Ocorre umsalto temporal, na medida em que o feto – a ‘coisa em si’ – é sempre referido,nos discursos dos atores, como ‘bebê’ ou ‘neném’. A transformação do exameem espetáculo é fundamental dentro do processo de construção do feto comoPessoa, na medida em que lhe confere visibilidade em uma cultura na qual avisualidade é preponderante. A revelação do sexo fetal é o ponto alto desseprocesso, um momento em que o feto é definitivamente tornado Pessoa, geral-mente ganhando um prenome e sendo-lhe atribuída uma subjetividadegenerificada, que por seu turno é concretizada em um outro tipo de consumo –codificado em termos de cores e objetos supostamente adequados ‘para meni-nas’ e ‘para meninos’, conforme será discutido no próximo capítulo.

Néstor García Canclini (2005), na discussão em que visa recontextualizaro fenômeno do consumo, não apenas assinala que esse é o cenário de novasracionalidades em termos econômicos, sociopolíticos e psicológicos, como tam-bém sustenta que o consumo detém um papel relevante para a construção de

Page 20: Lilian Krakowski Chazan

161

identidades contemporâneas em um panorama globalizado. Para este autor, “asmudanças na maneira de consumir alteraram as possibilidades e formas de seexercer a cidadania” (Canclini, 2005: 29). Segundo ele, as questões constitutivasde identidades no tocante ao lugar e aos direitos dentro da sociedade passam aser respondidas de forma concreta por meio do consumo privado de bens. Obtere consumir imagens fetais, para além das questões diagnósticas pré-natais, ante-cipa, constrói e reforça novas identidades – fetais e maternas. Os atores nouniverso observado eram especialmente criativos no tocante à subjetivação dasimagens fetais, conforme já vimos no capítulo anterior. Por uma outra vertente,ainda relacionada ao consumo, vale assinalar que as grávidas, ao se lançarem embusca de roupas e objetos para seus fetos, em especial após tomarem conheci-mento do sexo fetal, ao mesmo tempo se constituem identitariamente como mãesantes do nascimento e dão início a um processo de construção de identidadegenerificada dos futuros filhos, comprando objetos e roupas codificados em ter-mos de gênero, como veremos no próximo capítulo. É como se nesse ato deconsumo já começassem antecipadamente a cuidar e, com isso, a expressar seuamor pelos filhos, obedecendo a uma conexão consumo-amor (Miller, 2002).

A construção da identidade materna, ‘documentada’ nas imagens dosexames, envolve sobretudo a antecipação da maternidade. A visualização dasimagens e a explicação do posicionamento fetal produzem mudanças na vivênciada gestação, seja tornando-a ‘real’, quando ainda muito no início da gravidez,seja significando as sensações maternas, mais adiante. A presença do corpo damulher, nos discursos e imagens observados na etnografia, era inversamenteproporcional à do feto. Alguns outros aspectos também ficam eclipsados com aespetacularização e o consumo das imagens fetais. Por exemplo, ao mesmotempo que essas imagens detêm um papel relevante na construção de novoscorpos – maternos e fetais – e novas identidades – idem – e que existe oreforço da medicalização da gravidez e da produção de verdades ‘científicas’acerca do feto e da grávida, questões tais como o que fazer em casos deanomalias fetais, no contexto da ilegalidade do aborto no Brasil, passam paraum plano fora da vista do público em geral.

A ênfase na visão do interior do corpo grávido e na busca por essasimagens coaduna-se, por seu turno, com a voga biologizante, fisicalista, de cultoao corpo, moeda corrente no universo observado. O produto final é uma ante-cipação da existência social do feto, mediada pela tecnologia, modelado emtermos da cultura visual, da cultura do corpo e da cultura do consumo. Asimagens de diversos fragmentos do corpo fetal tornam-se equivalentes à ‘pro-va de verdade’ de sua existência no mundo, fora do útero materno, como sefosse um ‘nascimento virtual’ antes de vir à luz de fato.

Page 21: Lilian Krakowski Chazan

162

A construção do prazer de ver as imagens fetais que legitima e estimulaesse ‘nascimento virtual’ tem raízes múltiplas, e a pluralidade de utilizações esignificados parece ser inerente à tecnologia de ultra-som, posto que amedicalização da gravidez e do feto, o prazer de ver as imagens fetais, o con-sumo destas, a produção de conhecimento e entretenimento vinculados àcodificação da gravidez em termos médicos fazem todos parte de um mesmoprocesso: nos termos de Michel Foucault, “um grande empreendimento deaculturação médica” (Foucault, 1998c: 200).

Um aspecto fundamental a ser considerado consiste no fato de que, aose tornarem consumidoras de tecnologia pré-natal e, em especial, de imagensultra-sonográficas fetais, as gestantes detêm um papel essencial como agentesativas na rotinização do ultra-som na gravidez. Internalizam-se as disciplinaspor meio da produção do ‘desejo’ de ver, a gestação é monitorada e escrutinadapasso a passo, e no decurso desse processo reforça-se a convicção de que ouso de tecnologias e a obediência às recomendações médicas são imprescindí-veis para que uma gravidez seja levada a termo de maneira bem-sucedida. Asvivências da gravidez tornam-se quase inarredavelmente ‘dependentes’ datecnologia, em uma reconfiguração que poderíamos chamar de híbrida, oucyborg, como preferem alguns autores (Dumit & Davis-Floyd, 1998; Downey& Dumit, 1997; Haraway, 1991, entre outros).

No caso da ultra-sonografia, parece estar em jogo sobretudo a construçãode um olhar fragmentador e escrutinador nos mínimos detalhes e que produzcorpos medicalizados desde muito antes do nascimento. Em última instância, atecnologia de ultra-som pode ser compreendida como um embodiment do poderdisciplinar, normatizador, subjetivante e, portanto, constitutivo de novos sujeitos:gestantes e fetos.

Por fim, é inescapável a digressão – mesmo que um tanto bizarra – deque na era dos reality shows televisivos, tais como Big Brother e congêneres,o feto também resulte sendo transformado em ‘ator’, protagonista. Em outrostermos, no mesmo processo em que ele é construído como um ‘paciente’,medicalizado e monitorado, sua presença pública, externalizada por meio daimagem, torna-o uma ‘celebridade’ – mesmo que em âmbito apenas domésticoe mesmo eventualmente público, como em alguns casos curiosos como ultra-sonografias de ‘famosas’ realizadas ao vivo em programas de TV ou a exibiçãoem telão, em uma festa luxuosa de casamento, do ultra-som obstétrico da noi-va, grávida – fato noticiado em coluna social.

Page 22: Lilian Krakowski Chazan

163

NOTAS

1 Os exames de ‘ultra-som geral’ englobam o exame de vísceras, mamas e musculatura. Osexames ginecológicos ultra-sonográficos são grupados com os obstétricos, constituindo-sequase como uma subespecialidade.

2 Como um desdobramento da atual investigação, valeria a pena produzir uma observaçãoetnográfica comparativa que, sem sombra de dúvida, forneceria outros dados mais consisten-tes nesse sentido. Depois de encerrada a pesquisa, pesquisadoras latino-americanas, tambémem conversas informais, me informaram da existência de semelhanças com essa situação emseus países. A existência de diferenças locais, no tocante a essa dupla dimensão do ultra-somobstétrico, é referida na literatura. Ver Mitchell & Georges (1998).

3 Ver o artigo de Rival (1998) sobre a couvade entre os Huaorani na Amazônia peruana. Parauma comparação entre a construção do feto como Pessoa na América do Norte e entre osWari’ na Amazônia brasileira, ver Conklin & Morgan (1996).

4 Ao longo da pesquisa, percebi que minha formação de origem – a psicanálise – era inescapável,mesmo em se tratando de uma abordagem etnográfica. Daí a origem de meu pressuposto deque o tom jocoso é um recurso utilizado como um modo de se dizer verdadeiramente o que sepensa, especialmente se as idéias ou atitudes têm alguma possibilidade de serem consideradasinadequadas ou impertinentes.

5 Alguns autores, em especial Mitchell & Georges (1998), definem esse constructo como‘feto-cyborg’, no qual funde-se a alta tecnologia de produção de imagens com o feto em si.

6 Diversas autoras feministas dedicaram-se extensivamente a essa ‘invisibilidade’. Destacam-seentre elas Duden (1993), Petchesky (1987) e Stabile (1998).