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76 Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2015 Resumo Este trabalho objetivou responder à problemática referente à forma- ção da cultura cristã, em especial, a configuração e as adaptações das festas religiosas e o caminho cíclico que estes rituais percorreram durante sua consolidação e a institucionalização do cristianismo, sain- do de suas antigas origens pagãs, e as alterações sofridas por estas comemorações até serem absorvidas totalmente pela fé cristã. Para isso, foi analisado o convívio mútuo entre a cultura romana e a cristã, durante os primórdios da Igreja Católica, em que da primeira se desta- cou as comemorações que vieram a ser assimiladas pela segunda, e se tornando posteriormente comemorações tradicionais da cristandade, nesta pesquisa se analisou as origens do carnaval, do Natal, e da festa de São João, e a funcionalidade destas para a Igreja cristã. E ao final da pesquisa, pode se considerar que, por maior que fosse os esforços da Igreja em esconder as raízes pagãs das festas, estas ainda são muito presentes. Palavras-chave: Circularidade. Festas. Tradição. INTRODUÇÃO Este trabalho objetiva responder à problemática referente à formação da cultura cristã, em especial, a configuração e as adaptações das festas religiosas e o caminho cíclico que estes rituais percorreram durante sua consolidação e a institucionalização do cristianismo, saindo de suas antigas origens pagãs politeístas, e as alterações sofridas por Cristianismo Primitivo: a Circularidade entre a Ortodoxia e o Paganismo Autor: Diego de Brito Orientadora: Vera Irene Jurkevics estas comemorações até serem absorvidas totalmente pela fé cristã. Quais foram às influências da cultura pagã nas festas religiosas cristãs e o caminho que estas percorreram entre o oficial e o oficioso durante o cristianismo primitivo até sua institucionalização como Igreja? Esta pergunta norteou este trabalho como um todo. Nesta pesquisa se trabalhou a relação entre cultura pagã e cultura cristã, e a influência que uma exerce sobre a outra na formação de seus dogmas, ritos, e festas. Para isto, foi utilizado o conceito de “circularidade cultural” usado por Carlo Ginzburg em seu livro O queijo e os vermes, para analisar estas transferências culturais. Ginzburg mostrou em seu trabalho que não há imobilidade, e sim uma circularidade cultural, e neste contexto se encaixa a história do moleiro Menocchio, homem simples do final do período medieval, que circulou em um ambiente cultural mais letrado do que normalmente ocorria pelos homens de sua condição social. Em seu escrito, Ginzburg focou a história vista de baixo, vivida pelas camadas populares, mas alertou que, devemos observar também que a classe tida como “baixa”, também absorve elementos culturais do ambiente dito de “cima”, reservado às classes dominantes, e que, por vezes, ocorrem “empréstimos” de elementos culturais entre as duas classes, promovendo uma circularidade cultural entre dominantes e dominados e, entre o oficial e o oficioso.

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76Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2015

Resumo

Este trabalho objetivou responder à problemática referente à forma-ção da cultura cristã, em especial, a configuração e as adaptações das festas religiosas e o caminho cíclico que estes rituais percorreram durante sua consolidação e a institucionalização do cristianismo, sain-do de suas antigas origens pagãs, e as alterações sofridas por estas comemorações até serem absorvidas totalmente pela fé cristã. Para isso, foi analisado o convívio mútuo entre a cultura romana e a cristã, durante os primórdios da Igreja Católica, em que da primeira se desta-cou as comemorações que vieram a ser assimiladas pela segunda, e se tornando posteriormente comemorações tradicionais da cristandade, nesta pesquisa se analisou as origens do carnaval, do Natal, e da festa de São João, e a funcionalidade destas para a Igreja cristã. E ao final da pesquisa, pode se considerar que, por maior que fosse os esforços da Igreja em esconder as raízes pagãs das festas, estas ainda são muito presentes.

Palavras-chave: Circularidade. Festas. Tradição.

INTRODUÇÃO

Este trabalho objetiva responder à problemática referente à

formação da cultura cristã, em especial, a configuração e as adaptações

das festas religiosas e o caminho cíclico que estes rituais percorreram

durante sua consolidação e a institucionalização do cristianismo, saindo

de suas antigas origens pagãs politeístas, e as alterações sofridas por

Cristianismo Primitivo: a Circularidade entre a Ortodoxia e o Paganismo

Autor: Diego de Brito

Orientadora: Vera Irene Jurkevics

estas comemorações até serem absorvidas totalmente pela fé cristã.

Quais foram às influências da cultura pagã nas festas religiosas cristãs

e o caminho que estas percorreram entre o oficial e o oficioso durante

o cristianismo primitivo até sua institucionalização como Igreja? Esta

pergunta norteou este trabalho como um todo.

Nesta pesquisa se trabalhou a relação entre cultura pagã e cultura

cristã, e a influência que uma exerce sobre a outra na formação de

seus dogmas, ritos, e festas. Para isto, foi utilizado o conceito de

“circularidade cultural” usado por Carlo Ginzburg em seu livro O queijo

e os vermes, para analisar estas transferências culturais.

Ginzburg mostrou em seu trabalho que não há imobilidade, e sim

uma circularidade cultural, e neste contexto se encaixa a história do

moleiro Menocchio, homem simples do final do período medieval, que

circulou em um ambiente cultural mais letrado do que normalmente

ocorria pelos homens de sua condição social. Em seu escrito, Ginzburg

focou a história vista de baixo, vivida pelas camadas populares,

mas alertou que, devemos observar também que a classe tida como

“baixa”, também absorve elementos culturais do ambiente dito de

“cima”, reservado às classes dominantes, e que, por vezes, ocorrem

“empréstimos” de elementos culturais entre as duas classes, promovendo

uma circularidade cultural entre dominantes e dominados e, entre o

oficial e o oficioso.

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Para Ginzburg, é impossível realizar um trabalho analisando a

cultura popular, a não ser que se pudesse voltar ao século III e entrevistar

um cidadão da época. Por isso, seu estudo voltou-se aos escritos da

época, como os documentos deixados pela Santa Inquisição sobre os

interrogatórios feitos a Menocchio.

No caso do presente estudo, os Cânones do Concílio de Nicéia,

os decretos de Teodósio, o texto do Concílio de Tessalônica, além da

própria Bíblia católica, foram utilizados como guias para uma melhor

compreensão da estruturação da Igreja Católica em sua fase primitiva.

Ao se tratar da Igreja Católica, considerada, na atualidade a

mais antiga instituição ocidental ainda na vigência, tem que se ter a

percepção que tudo que acontece em seu interior, segundo Fernand

Braudel, percorre em um “tempo de longa duração”, ou seja, nada

é repentino, do dia para noite. Anos, décadas, talvez séculos são

necessários para que ocorram transformações em suas práticas e seus

rituais. Esta “lentidão” para mudanças, com certeza foi um elemento

importante para a manutenção desta instituição por tantos séculos, sem

rupturas bruscas, em sua ortodoxia, sedimentando novos costumes,

gradativamente, no cotidiano dos fiéis durante o passar dos tempos.

O primeiro capítulo desta pesquisa tem o objetivo de contextualizar

o advento do cristianismo no seio do Império Romano. O cristianismo

começou a se expandir posteriormente à morte de Jesus, que acorreu

aproximadamente por volta do ano 33 da nossa era. Jesus foi condenado

à morte por pregar uma ideologia que ia contra os costumes romanos, e

do mesmo modo seus seguidores foram perseguidos pelas autoridades

da época por serem considerados perturbadores da ordem pública, por

se negarem a venerar a figura do Imperador e adotarem o princípio da

fraternidade, num claro reconhecimento de que todos os homens eram

filhos de Deus, o que colocava em xeque a política escravista romana.

Além disso, aqueles que seguiam a religião cristã eram considerados

maus cidadãos por se recusarem a compor as fileiras do exército romano.

Assim, gradativamente, passaram a ser perseguidos e quando não

eram mortos imediatamente, eram jogados aos leões em arenas para

entretenimento da população romana. Porém, nem a violenta repressão

e perseguição, coibiram o cristianismo de se expandir cada vez mais.

A história começou a mudar a partir de 312 d.C., quando

Constantino se converteu, tornando-se o primeiro imperador romano

cristão e no ano seguinte, assinou o Édito de Milão que libertava o povo

para adorar a Deus ou aos deuses como melhor lhe conviesse, o que

significou a tolerância ao culto cristão. Mas, a virada neste jogo, “de

perseguido a perseguidor”, aconteceu mesmo quando em fevereiro

de 380 d.C. Teodósio legitimou o cristianismo como religião oficial do

Império romano com a elaboração do Édito de Tessalônica. A partir daí,

as perseguições tomaram outro rumo, mudaram seu foco para os antigos

repressores do cristianismo, tornando a religião pagã e todas as suas

manifestações, proibidas e coibidas por lei. Para esta contextualização,

entre outros autores, foi utilizado o livro de Paul Veyne, Quando o nosso

mundo se tornou cristão, e o livro de Jean Delumeau, De religiões e de

homens.

As festas, que originalmente se encontravam no seio do paganismo,

com o crescimento da cristandade se delimitavam entre a legalidade e

a ilegalidade. Tais festas que eram solenes na época do império pagão,

se tornaram perseguidas e combatidas com o advento do cristianismo.

As festas religiosas pagãs, correram enorme risco de desaparecer

por completo, só não acontecendo por causa da revolta de parte da

população que se viu obrigada a aceitar os costumes e mandamentos

de uma religião nova e totalmente diferente da que era praticada até

então, colocando em risco a sobrevivência da nova Igreja cristã.

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Atenta a este fato, a então recentemente Igreja cristã resolveu

cooptar estas festas e assim acalmar a população que se encontrava

inconformada com o banimento das suas antigas cerimônias, assim a

Igreja revestiu estas manifestações de uma aura cristã “purificadora”,

o que as recolocou novamente no âmbito da sociedade, agora

sacralizadas.

Tais festas pagãs anexadas à cultura cristã, e revestidas desta nova

aura, se tornaram novamente solenes perante a comunidade, de tal

maneira que não mais a tinham como antigos cultos, festejos e costumes

pagãos, mas como manifestações típicas e originais da cristandade.

Em tese, essa é a ideia central do trabalho de Ginzburg, de que

existe uma circularidade cultural entre a ortodoxia e a heterodoxia,

sendo a primeira fortemente influenciada, em seu âmago, por tradições

e costumes da segunda e esta, gradativamente incorporando elementos

do que se tornou oficial.

Para a elaboração do segundo capítulo desta pesquisa, se utilizou

como principais leituras complementares os livros: O Tempo na História

de G. J. Whitrow, especialmente a parte II de seu livro que trata sobre: O

tempo na antiguidade e na Idade Média. O livro História e Memória de

Jacques Le Goff, com destaque de sua abordagem acerca do calendário.

De Émile Durkheim, Bruno S. de Carvalho e Samuel P. Huntington, este

trabalho se apropriou de suas concepções e conceitos sobre instituição.

E para uma melhor análise das festas, a leitura de A Invenção das

Tradições de Eric Hobsbawn, e do livro de Fernand Braudel, História e

Ciências Sociais, foram bem importantes.

Pretendeu-se com as leituras de Le Goff e Whitrow, estabelecer uma

trajetória para o segundo subitem de meu trabalho, intitulado “Entre o

Carnaval e o Natal”, que tem por finalidade abordar o tempo litúrgico

que rege as festas cristãs.

Além das obras anteriormente citadas e com a adição da obra

de Durkheim, Carvalho e Huntington, foram analisadas as festas em

um contexto institucionalizador, ou seja, o de propiciar à Igreja Cristã

uma visibilidade ampliada na busca de novos seguidores, e não mais

somente uma manifestação popular de alegria e devoção.

O trabalho de Hobsbawn juntamente com o de Ginzburg permitiram

amalgamar as informações e análises, dando consistência às ideias

obtidas ao longo desta escrita. Com o conceito de “Tradição Inventada”

de Hobsbawn, e de “Circularidade Cultural” empregado por Ginzburg,

analisou-se como a Igreja se utilizou, ao longo do tempo, das festas

com suas conveniências, e com a adição do conceito de “Tempo de

Longa Duração” de Braudel, solucionou-se a problemática referente à

sobrevivência das festas.

1 DAS CATACUMBAS AO CENTRO DO PODER

1.1 A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO CRISTIANISMO ATÉ DIOCLESIANO

Os romanos antes do advento da cristandade seguiam uma

religião politeísta, ou seja, adoravam uma diversidade de deuses, e

neste panteão cada deus possuía características próprias e, segundo

acreditavam, eram responsáveis por uma infinidade de acontecimentos

no cotidiano da sociedade romana. Por séculos esta religião que, hoje

chamamos de pagã, foi a predominante em todo território do Império

Romano, sendo ela a religião oficial do Império e do Imperador, este

último considerado um representante dos deuses na terra, possuindo

seu próprio culto.

Manifestações religiosas em prol destas divindades eram

extremamente comuns na Roma pré-cristã, tanto no âmbito particular,

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como na esfera pública. O primeiro se refere à religião doméstica,

realizada no seio familiar, em que se adoravam deuses familiares, por isso

cada família tinha suas próprias divindades de proteção, de fertilidade e

de prosperidade, sendo que no centro desta prática religiosa estava o

culto ao fogo sagrado, cabendo ao pater familias a manutenção desse

ritual (GIORDANI, 1997).

O segundo aspecto da religião romana, era o culto público ou

oficial, com seus deuses e costumes conhecidos e respeitados por todos,

realizado em enormes templos, por sacerdotes dedicados a conduzirem

as cerimônias, deste ou daquele deus, em que cada um tinha sua

responsabilidade, e lhe eram atribuídos acontecimentos naturais, como

as grandes secas, o frio intenso, os terremotos e as tempestades, como

exemplos do que os romanos acreditavam serem manifestações da ira

das divindades.

Estas cerimônias eram realizadas e sacrifícios eram feitos para

acalmar, ou simplesmente não irritar seus deuses. Júpiter, era tido como

rei de todos os deuses e representante do dia, Apolo, deus do sol e

patrono da verdade, Netuno, deus dos mares e oceanos, Baco, deus do

vinho e das festas, são alguns dentre muitos outros deuses do panteão

romano.

Certamente se pode afirmar que a religião romana (assim como

todas as religiões) não foi totalmente original na “criação” de seus

deuses e cultos. Os estudiosos das religiões antigas apontam que

foi forte a influência etrusca, a itálica, e principalmente a helênica na

composição desse panteão celestial, sendo que, desta última, o culto

romano agregou vários deuses, posteriormente romanizados.1 A estes

deuses eram dedicadas cerimônias em grandiosos templos e por vezes

1 Para mais informações sobre as deidades gregas assimiladas pelo culto romano, vide: GIORDANI, Mario Curtis. A religião na época republicana. In: História de Roma: Antiguidade clássica II. Petrópolis: vozes, 1997, p. 300-302.

estas manifestações religiosas extrapolavam suas paredes e ganhavam as ruas em forma de festejos populares que poderiam perdurar por dias até mesmo semanas, como por exemplo, os bacanais oferecidos a Baco, faziam parte das manifestações populares que hoje chamamos de festas religiosas e que serão o objetivo do próximo capítulo.

O cristianismo surgiu na região da Palestina, território então pertencente ao Império Romano. Esta seita começou a partir de alguns seguidores de um profeta eremita chamado Jesus, o Cristo. Mais tarde os gregos chamaram de cristãos aqueles que seguiam a doutrina deixada por Cristo, originando daí a expressão cristianismo. Esta ideologia pregava um Deus único, criador de tudo, cheio de amor e misericordioso, pai de toda humanidade e rei dos reis. Os primeiros cristãos eram vistos como dissidentes dos judeus, devido às características derivadas do culto monoteísta judeu, e por ter se utilizado das Escrituras Sagradas judaicas. Com certa rapidez esta nova religião ganhou muitos adeptos, o que passou a ser motivo de incômodo para as autoridades religiosas e civis locais.

A doutrina cristã começou a se expandir posteriormente à morte de Jesus, que acorreu aproximadamente por volta do ano 33, durante o império de Tibério (14 - 37). Jesus foi condenado ao martírio na cruz2 por pregar uma ideologia que contrariava os costumes da época, e, do mesmo modo, seus seguidores foram perseguidos pelas autoridades, considerados perturbadores da ordem pública, por adotarem uma política de amor ao próximo. Aqueles que seguiam a religião cristã eram considerados maus cidadãos por se recusarem a compor as fileiras do exército romano. Por estes motivos eram caçados e quando não eram mortos imediatamente, eram jogados aos leões em arenas para entretenimento da população romana.

2 Tipo de pena de morte romana imposta aos escravos e bandidos que não tinham cidadania romana.

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A expansão do cristianismo em território romano ou em outras

partes do Império deveu-se muito aos discípulos, escolhidos por Jesus

com a finalidade de propagarem sua religião a todos os povos, em

que se destacaram os Apóstolos Pedro e Paulo. No início, houve certa

restrição, uma divisão de opiniões entre os discípulos, alguns defendiam

que somente o povo judeu poderia ser merecedor da Boa Nova, pois

já haviam firmado anteriormente uma aliança com Deus, representada

por meio da circuncisão dos meninos, como forma de purificação. Dessa

forma, acreditavam que somente os “puros” poderiam ser convertidos ao

cristianismo.

Porém, o Apóstolo Pedro, de acordo com relatos bíblicos, enquanto

estava na cidade de Jope, recebeu uma visão de Deus, que lhe mostrou

vários animais, enquanto uma voz lhe dizia que matasse e comesse aqueles

animais, já que sentia fome. Pedro recusou prontamente, porque tais

animais se encontravam impuros, então a voz lhe falou novamente: “o que

Deus purificou, não chames tu de impuro” (At 10, 15). Naquele mesmo

dia, enviados de Cornélio, um centurião romano, bateram à porta da casa

em que Pedro se hospedava e lhe pediram para que os acompanhasse. Ao

se encontrar com Cornélio, e percebendo que este era temente a Deus, e

que também havia tido uma visão divina, Pedro entendeu a mensagem que

a voz anteriormente havia transmitido, entendendo que todos os homens

eram merecedores da Boa Nova e não somente os de origem judaica.

Assim a comunidade cristã começou a aceitar estrangeiros entre os seus.

Paulo anteriormente à sua conversão atendia pelo nome de Saulo. Era

romano, de origem judaica, e voraz perseguidor de cristãos, até que em

uma viagem a Damasco teve uma visão de Jesus, que o acabou cegando,

para que posteriormente fosse curado por um discípulo de Jesus. Saulo

então se converteu à fé cristã, foi batizado por Ananias, e adotou o nome

de Paulo.

O apostolado de Paulo teve vital importância para o “crescimento”

da Igreja de Cristo. Enquanto Pedro e demais apóstolos pregavam

e evangelizavam a todos, judeus e estrangeiros, mas se limitavam às

regiões da Judéia e da Galiléia, Paulo viajou para outros territórios,

disseminando a palavra de Cristo, evangelizando e instaurando novas

pequenas comunidades.

Paulo foi preso por duas vezes, sendo que na segunda, não

conseguiu liberdade e percebendo que teria como pena a morte, apelou

a César, para que o Imperador o julgasse, e por ter cidadania romana

teve seu apelo concedido. Assim que chegou a Roma teve licença para

que ficasse em uma casa, com um soldado fazendo sua guarda, mas

não em uma prisão. Permaneceu nesta condição por dois anos, o que

possibilitou converter alguns judeus e romanos, formando uma pequena

comunidade cristã no próprio coração do Império.

As comunidades que Paulo e Pedro fundaram sofriam com sérios

problemas, fossem eles causados pelas perseguições que sofriam das

autoridades judaicas ou romanas, ou por desvios na doutrina cristã,

muitas vezes resultado da mistura entre os novos ritos cristãos, e os ritos

pagãos ancestrais, ou ainda, simplesmente pelo enfraquecimento da fé.

Para animar as comunidades e doutriná-las, os Apóstolos Pedro e

Paulo enviaram diversas cartas3, que tinham a intenção de preservar as

comunidades, mantendo-as unidas e com a fé revigorada, evitando que

sucumbissem novamente ao paganismo, e também para que não se

sentissem abandonadas. Estas cartas foram as primeiras “cartilhas” do

cristianismo, que continham os ensinamentos que guiaram as primeiras

comunidades cristãs, e também era por meio delas que desavenças e

delitos eram solucionados, assim como estabelecia as punições para os

infratores.

3 Na Bíblia, são apresentadas como Epístolas.

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81Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2015

As primeiras perseguições à seita cristã tiveram origem na Palestina,

estimuladas por oficiais judeus, estas resultaram na lapidação4 do

diácono Estevão, considerado o primeiro mártir da Igreja cristã, por

volta de 36. Posteriormente ocorreu a morte do apóstolo Tiago, também

por lapidação, em tempos do reinado de Herodes: Agripa I, neto de

Herodes Magno (At 7, 57-60: 8, 1-3: 12, 1-2).

Quanto às perseguições motivadas pelo Império, as primeiras não

tiveram dimensões tão grandes. Registros apontam que Tibério (14 –

37) perseguiu judeus e outros seguidores de deuses orientais, talvez

existindo entre eles alguns cristãos (IGNÁCIO, 2014). No entanto,

foi durante o reinado de Cláudio (41 – 54) que foi emitida ordem

de expulsão de todos os judeus da capital do Império, motivada por

desordem popular causada por desavenças contra os cristãos que

pregavam nas sinagogas (CLOSE, 2014).

Porém durante o reinado de Nero (54 – 68) a situação mudou,

de fato. Nero nasceu em 37, filho de Agripina, irmã caçula de

Calígula5. Cláudio ao se casar com Agripina adotou Nero, que se

tornou o sucessor do trono, em 54, quando tinha apenas 17 anos, o

que o transformou no mais jovem imperador romano. Considerado de

início bom administrador, com o tempo procurou eliminar aqueles que

procuravam influenciar seu governo, ou que lhe fizessem oposição. Os

relatos apontam que teria liquidado sua esposa e depois sua mãe. Em

64, com sua reputação e popularidade em ruínas, foi acusado de ter

incendiado Roma, e para se livrar desse falatório, culpou os cristãos.

Logo estimulou a primeira perseguição formal contra eles,

Para abafar os rumores, Nero apresentou como culpados aos tormentos mais requintados pessoas detestadas por suas torpezas, que a multidão

4 Tipo de pena de morte judia por apedrejamento.5 Imperador romano que antecedeu a Cláudio.

chamava de ‘cristãos’. Esse nome vinha de Cristo que, sob o principado de Tibério, o procurador Pôncio Pilatos havia entregado ao suplício; reprimida no momento, essa execrável superstição irrompia de novo, não somente na Judéia, berço do mal, mas também em Roma, para onde tudo o que há de horrível e vergonhoso no mundo converge e propaga-se. Assim, começaram a perseguir os que confessavam, e depois, por denuncia destes, uma multidão imensa; e eles foram considerados culpados, menos pelo crime de incêndio do que em razão de seu ódio pelo gênero humano. Ao serem executados, acrescentaram-se escárnios, cobrindo-os com peles de animais, para que perecessem sob mordidas de cachorros, ou pregando-os em cruzes, para que, após o anoitecer, utilizados como tochas noturnas, se consumissem (TÁCITO, Anais, L. XV apud DELUMEAU, 2000, p. 87).

Além disto, se divulgou entre o povo boatos de que os seguidores

dessa religião oriental eram ateus, pelo fato de rejeitarem os deuses

e o culto oficial dos imperadores romanos. Também eram acusados

de comerem carne de crianças e promoverem orgias sexuais, sendo

estas últimas blasfêmias atribuídas aos banquetes eucarísticos, como

Monácio Félix citou:

Ouço dizer que, impelidos por não sei que crença absurda, eles consagram e adoram a cabeça do animal mais vil, o burro. O relato que se faz da iniciação dos novatos é tão horrível quanto notório. Uma criança bem pequena, coberta de farinha, para iludir o noviço sem que ele desconfie, é colocada diante daquele que deve ser iniciado nos mistérios, enganado por esse bloco enfarinhado, que faz com que ele acredite que seus golpes são inofensivos, o neófito mata a criança [...]. Eles lambem avidamente o sangue da criança; disputam e repartem seus membros; é por meio dessa vítima que consolidam sua aliança, e por essa cumplicidade no crime é que se comprometem a um silêncio mútuo. Todo mundo conhece seus banquetes; fala-se deles por toda a parte [...]. Nos dias de festa, reúnem-se para um festim [...]. Lá, depois de comer abundantemente, quando a animação da festa chega ao auge e o ardor da embriaguez acende paixões incestuosas [...], apaga-se a luz que poderia tê-los traído [...]. Então eles se abraçam ao acaso, e, se nem todos são incestuosos de fato, eles o são por intenção.

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(MONÁCIO FÉLIX, Octavius, citado em Labriolle, La réaction païenne, Paris, 1934. Apud DELUMEAU, 2000, p. 87).

Nesta fase das primeiras perseguições foram mortos os apóstolos

Pedro6 e Paulo7 (IGNÁCIO, 2014) e até o ano de 313, data do Édito de

Milão que estabeleceu a tolerância religiosa no império, o cristianismo

passou por diversos períodos de perseguição, seguidos por outros de

calmarias. Apesar da inexistência de restrições oficiais que proibissem

o culto, em meados do século III, sob os governos de Décio e de

Valeriano, surgiram as primeiras leis penalizando os que insistissem em

tais práticas rituais.

Décio (249 – 251), de família senatorial romana, tentou reavivar,

um tanto degastado, o culto em torno da figura do Imperador,

emitindo, em 250, um decreto que obrigava os cristãos a se prostrarem

publicamente diante do Imperador e aos deuses do Império. Em troca,

aos “obedientes”, era concedido um certificado, chamado libellus, que

evitava que continuassem sendo molestados. Aqueles que se recusavam,

eram encarcerados, e podiam ser torturados e mortos. Ao final de um

ano, mais ou menos, a medida foi suavizada, devido aos horrores

assistidos pela população (IGNÁCIO, 2014).

Valeriano (253 – 260), seu sucessor, de acordo com Ignácio, de

início parecia mais tolerante para com os cristãos, mas mudou seu

pensamento após ser incitado por Macrino que cobiçava os bens

da comunidade cristã, e iniciou uma perseguição mais seletiva e

sistematizada do que as anteriores. Em 258, lançou um segundo

decreto dirigido aos membros da alta classe clerical. No entanto, pouco

depois Valeriano caiu nas mãos de persas, vindo a falecer no cativeiro.

6 Pedro foi morto crucificado e, reza a tradição, de cabeça para baixo a pedido dele mesmo, pois não queria ser comparado a Jesus em seu martírio.7 Paulo foi morto decapitado por possuir cidadania romana.

Seu filho Galiano assumiu o trono imperial e devolveu aos cristãos suas

igrejas e bens confiscados, iniciando um período de paz que durou

quase 50 anos.

Essa fase de calmaria caiu por terra quando Diocleciano (284 –

305) iniciou a mais longa e cruel perseguição aos cristãos, em 303.

Camponês, de família humilde, entrou para carreira militar, e após

alguns anos foi nomeado governador de Mistia, região no noroeste da

Ásia Menor. Depois foi promovido a chefe da guarda imperial, e, em

283, tornou-se cônsul, sendo depois aclamado imperador pelas legiões

orientais, após o assassinato de Numeriano (ALTMAN, 2013).

Como imperador, seu primeiro ato foi matar pessoalmente Arrio

Áper, assassino de Numeriano. Com espírito organizador instaurou

a tetrarquia, dividindo o Império primeiramente entre Ocidental,

delegada por ele a Maximiano governar, e Oriental, que ele próprio

administrou. Ainda de acordo com Altman (2013), recuperou áreas da

Macedônia e fixou protetorado na Armênia, com expressivas vitórias em

sua política expansionista e como resultado, nesse período, o Império

romano conheceu sua maior territorialidade.

Durante seu governo impôs uma série de reformas políticas, militares

e econômicas. Após dividir o governo entre ele e Maximiano, promoveu

nova cisão, nomeando para governar ao seu lado, como co-regente

do Oriente, Galério. Para o Ocidente, subordinado a Maximiano,

nomeou Constâncio Cloro8, para governar a Grã-Bretanha, a Gália e a

Espanha. Enquanto Maximiano respondia pela região da Itália e África,

Galério pelas regiões do Danúbio e a Ilíria e Diocleciano pelo Egito e

boa parte do Oriente.

Apesar de ser casado com uma cristã e pai de outra, Diocleciano

promoveu a maior e mais cruel perseguição aos cristãos. A justificativa

8 Pai de Constantino, o Grande.

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para sua intolerância, de acordo com Ignácio (2014), teriam sido gestos

acintosos, por parte dos cristãos, durante um sacrifício na Nicomédia9,

presenciados por ele mesmo. Por outro lado, sofria pressão de Galério

para tomar atitudes mais enérgicas contra aquele que professavam a

doutrina cristã. Por isso, em fevereiro de 303, assinou uma série de

éditos imperiais, que estabeleciam, entre outras medidas, que todas as

igrejas cristãs e objetos de culto fossem destruídos, e que funcionários

públicos, adeptos de tal religião, fossem demitidos. Logo depois outro

decreto imperial ordenava a prisão de todo o clero, enquanto outro

ainda, estabelecia a liberdade para aqueles que renegassem a sua

fé, e, por fim, outro ordenava a prestação de sacrifícios por toda a

população, sob pena de morte ou trabalhos forçados para quem

descumprisse a lei10. Essa época foi nomeada por alguns historiadores

como sendo a “Era dos Mártires” (ALTMAN. 2013).

Tempos depois, em função de problemas de saúde, Diocleciano abdicou

do trono em maio de 305, fato inédito até então, que o transformou no

primeiro imperador romano a entregar o poder de forma voluntária.

Mas, mesmo após seu afastamento do governo, as perseguições

continuaram, assumindo formas diferentes por todo o Império. Na

parte ocidental, Constâncio Cloro e Maximiano se mostravam mais

benevolentes para com a nova religião, por isso levaram a cabo somente

o primeiro édito de Diocleciano. Galério reinou soberano no Oriente

até 308 quando nomeou Licínio, com o título de César e Maximino Daia

com o de Augusto. Em 311, Galério, já moribundo, emitiu um édito de

tolerância libertando os cristãos das perseguições no Oriente, uma vez

9 Nicomédia é uma cidade hoje conhecida como İzmit, na Turquia. Situa-se no golfo de İzmit, no mar de Mármara e fica a aproximadamente 100 km de Istambul.10 Não existem relatos que atestem que penalidades tenham sido aplicadas às suas familiares.

que no Ocidente já haviam cessado. Este édito serviria, pouco mais

tarde, como semente ao famoso Édito de Milão, elaborado por Licínio

e Constantino, em 313.

Maximino Daia ainda manteve por um tempo as perseguições,

de forma mais ou menos sistematizada até receber instruções de

Constantino para que suspendesse toda prática persecutória e libertasse

os cristãos para seguirem sua fé.

Durante os tempos difíceis em que as perseguições eram contínuas

e violentas, era preciso se esconder das autoridades para praticar o

culto cristão sem o perigo de ser preso e torturado, ou pior, acabar em

uma cruz. Naquele contexto, surgiu então a “Igreja das Catacumbas”.

Os cultos passaram a ser feitos em verdadeiros cemitérios escavados

nas rochas, nos arredores da cidade, pois naquela época era proibido

enterrar os mortos dentro dos muros de Roma. Estes lugares, construídos

nas vias de acesso à cidade, por inúmeras vezes foram utilizados pelos

cristãos primitivos para a realização de seus ofícios e rituais, sobretudo

durante as épocas de crise, daí derivando, de acordo com Jean

Delumeau (2000), a expressão “Igreja das Catacumbas”.

Nesse sentido parece inadequado se pensar que as catacumbas

eram os locais de culto e adoração da Igreja primitiva, pois antes de

tudo continuavam sendo cemitérios e não locais santificados, como veio

a acontecer posteriormente após o fim das perseguições, quando se

faziam – como se faz até hoje – peregrinações para render homenagens

aos mártires ali sepultados.

Nas épocas de extrema violência para com os cristãos, estes não

podiam se utilizar de suas casas ou de edificações próprias para a

prática cultual, pois se estas igrejas ainda não haviam sido tomadas

como espólio pelo Estado, constituíam em si um alvo fácil para a cólera

dos perseguidores. Então, para que as práticas religiosas não fossem

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suspensas, era necessário se esconder, e as catacumbas romanas

ofereciam tudo de que os cristãos precisavam. Mário Curtis Giordani

citou bem as características típicas daqueles locais: “Aconteceu mesmo

que as catacumbas fossem equipadas como verdadeiros lugares de

refúgio, com cortes de galerias, portas falsas e saídas clandestinas para

as pedreiras vizinhas” (1997, p. 359).

Alguns historiadores concordam que essa fase pode marcar o início

do culto aos mortos, quando antigos rituais pagãos foram cristianizados.

Ali, nas catacumbas começaram a venerar seus mortos e “os ágapes11

fúnebres [...] puderam se transformar em banquetes eucarísticos”

(GIORDANI, 1997. p. 359).

1.2 CONSTANTINO: DA TOLERÂNCIA À UNIDADE DA IGREJA

Diocleciano quando dividiu o Império, criando a Tetrarquia, para

assegurar a fidelidade de seus co-imperadores, tomou a decisão

de “sequestrar” um filho de cada um, como garantia de que não se

voltariam contra ele, ou pior, não tentassem usurpar o trono.

Assegurou que os príncipes ficassem encarcerados em seu palácio,

para que com ele e com tutores, fossem educados e aprendessem o

grego, o direito romano, a prática da oratória, etc. Também receberam

intenso treinamento em estratégias militares, e foram iniciados nos

mistérios da religião oficial do Império. Toda esta preparação, para que

um dia pudessem suceder seus pais como co-imperadores, e que para,

desde muito cedo soubessem que deveriam ser submissos a Diocleciano.

Dentre estes príncipes enclausurados encontrava-se Constantino, filho

de Constâncio Cloro, co-imperador das regiões da Gália, Bretanha e

Espanha. Assim como os demais príncipes, foi instruído na religião pagã,

11 O amor divino, incondicional.

para que um dia pudesse se tornar um homem de grande influência

e poder dentro do Império. Durante seu enclausuramento, aprendeu

grego, oratória e outras instruções indispensáveis a um grande cidadão

romano, porém o mais importante foi seu intenso treinamento militar,

no qual Constantino mostrou enorme habilidade, logo se destacando

como general.

Diocleciano, como apontado antes, impôs, por meio de decretos,

que todos os cidadãos do Império deveriam render sacrifícios para os

deuses do Estado. Os cristãos, por se recusarem, foram taxados como

maus exemplos de cidadãos, ao desobedecerem às leis imperiais,

principalmente a que dizia respeito à prática de sacrifícios. Constantino,

já em posição de destaque no império, se mostrou contrário a tais atos

de crueldade, sendo por isso aprisionado na corte de Diocleciano que,

pouco antes de se afastar do trono, tramou para que Constantino

não se juntasse a seu pai, Constâncio Cloro, nem viesse a sucedê-lo,

justamente por seu caráter mais benevolente para com os cristãos.

Tempos depois, Constantino se libertou do cativeiro e foi ao encontro

do pai, que mesmo durante as grandes perseguições, fez prevalecer sua

humanidade, não levando tão rigorosamente os decretos emitidos por

Diocleciano conforme citado abaixo:

Na sua “Vida de Constantino”, o bispo Eusébio de Cezaréia afirma que Constâncio Cloro era um cristão que fingia ser pagão e que por isso não tomou parte nas perseguições de Diocleciano. Porém é mais provável que ele fosse, na realidade, como todos os imperadores desde Aureliano até Constantino – este, antes de sua conversão ao cristianismo – um adepto do culto do Sol Invictus (FARIA, 2008. Disponível em: www.jornallivre.com.br. Acesso em: 26 maio 2015)

Cloro foi nomeado Augusto em 305, mas morreu um ano mais tarde,

na Britânia, quando comandava seu exército contra tribos locais.

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Constâncio era de temperamento mais benevolente em relação a

Diocleciano, e mais parecido no jeito de ser e pensar com Constantino.

Quando o jovem príncipe se uniu ao seu pai, logo galgou uma posição

elevada no exército de seu patriarca, muito devido à sua astúcia em

batalhas e pelos longos anos de treinamento militar que recebera na

corte de Diocleciano. Logo ganhou respeito de seus subordinados, graças

às estratégias de combate e batalhas ganhas e quando em 306, seu pai

foi morto, imediatamente seus soldados o proclamaram Imperador.

Um de seus maiores feitos como imperador, talvez tenha sido sua

batalha contra o usurpador Magêncio12, realizada ao ano de 312, e

que será abordada logo mais.

Magêncio era filho de Maximiano, co-imperador ao lado de

Diocleciano. Em 305, quando ambos, Maximiano e Diocleciano,

abdicam do trono, Constâncio e Galério, até então “Césares”, foram

elevados a Augustos, mas sobravam duas “vagas” para que se

constituísse a Tetrarquia novamente. Constantino e Magêncio poderiam

ser os candidatos, porém, como já foi visto Constantino havia sido

afastado da sucessão por Diocleciano, e Magêncio, que era genro de

Galério e filho de Maximiano, não foi escolhido. Segundo Lactâncio,

Galério detestava seu genro, e não o queria como César. Então Severo

(Ocidente) e Maximino Daia (Oriente) foram nomeados “Césares”.

Quando Constâncio morreu, Constantino, coroado imperador, foi

reconhecido e aceito por Galério como parte da Tetrarquia e recebeu

o titulo de César. Mais tarde, quando Magêncio usurpou o trono de

Roma, usou o evento passado para legitimar seu governo. Mas não

cabe aqui se estender mais sobre o reinado de Magêncio, mas enfatizar

a lendária batalha contra Constantino.

12 A ortografia pode variar entre: Magêncio ou Magéncio ou Maxêncio ou Maxéncio.

Magêncio considerado um usurpador deveria ser deposto, porém

amplas tentativas não haviam surtido efeito, chegando ele próprio a se

intitular de Príncipe Invicto. Nesse cenário, para destituir este príncipe

ilegal, e retomar os territórios italianos, Constantino se pôs em guerra

contra o então governante de Roma, mas contava com uma força

militar mais reduzida em relação a que Magêncio possuía. Antes do

“enfrentamento final”, ambos, como era tradição, pediram proteção às

forças divinas. Magêncio, por ser o então “defensor de Roma”, buscou

proteção junto aos deuses do Capitólio13, e, possivelmente, consultou

oráculos, para precisar suas estratégias de batalha. Constantino, por

sua vez, por se tratar do “atacante a Roma”, não podia contar com os

deuses do senado, por isso, segundo Paul Veyne, teria rezado pedindo

para que algum deus que julgasse justa sua empreitada, o protegesse

e o guiasse para a vitória.

Historiadores apontam que, na noite que antecedeu a batalha

decisiva contra seu adversário, Constantino teve um sonho que mudaria

a história do Império em definitivo. Teria visto uma cruz flamejante e as

letras “X” e “P”14 entrelaçadas, e uma voz vinda dos céus que lhe falava:

“sob este sinal vencerás” (VEYNE, 2011. p. 5). Constantino interpretou

este sonho como sendo uma manifestação do Deus cristão, e aquele

símbolo propriamente dito, como um sinal cristão, que chamaria de

crisma.

Ao amanhecer, Constantino reuniu suas tropas e ordenou que fosse

pintado em seus escudos e elmos, aquele símbolo. Em 28 de outubro

de 312, suas tropas marcham para a batalha ostentando o sinal de

13 Uma das sete colinas existentes em Roma, onde se localizava o Templo de Júpiter.14 Letras gregas (X = chi – P = rho) que se assemelham em aparência ao “X” e “P” do alfabeto arábico, e são as iniciais da palavra grega , que traduzida significa Cristo.

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86Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2015

seu soberano15, e naquele mesmo dia, às margens do rio Tibre, o Deus

cristão concedeu uma vitória esmagadora sobre Magêncio, na batalha

que se perpetuaria sob o nome de Vitória da Ponte Mílvia16.

No dia seguinte, Constantino entrou vitorioso em Roma, ostentando

o signo cristão do crisma, e sob o título de herói libertador de Roma.

De acordo com o entendimento de Paul Veyne (2011), seria esta a

data limite entre a antiguidade pagã e a época cristã, ao contrário do

que pensa o senso comum, de ser a data do Édito de Milão como tal

limite.

Em 312, o Ocidente romano já se encontrava unificado sob o

comando de Constantino. Já o Oriente, ainda se encontrava dividido

entre Maximino Daia e Licínio.

No ano seguinte à batalha da Ponte Mílvia, Licínio, que continuava

pagão, também teve um sonho na véspera de um enfrentamento com

Maximino Daia. Neste sonho, “um ‘anjo’, supostamente, prometeu-lhe

a vitória se ele fizesse uma prece a um certo ‘deus supremo’ e se pedisse

a esse deus supremo que rezasse por seu exército” (VEYNE, 2011. p. 7).

Licínio se sagrou vencedor no confronto, e senhor soberano do Oriente

romano e, logo depois, fez publicar um édito de tolerância, libertando

os cristãos orientais de seu antigo perseguidor.

Com a unificação do Oriente, fizeram-se soberanos no Império,

Constantino (no Ocidente) e Licício (no Oriente), estes com o intuito de

legalizar o fim das perseguições, e instaurar a tolerância religiosa em

todo o Império, elaboraram conjuntamente um documento chamado

15 Naquele tempo era comum que o imperador tivesse uma afeição maior para determinado deus, acreditando que lhe concedia proteção, embora tal crença não a tornava maior ou oficial em relação a outras. 16 A Ponte Mílvia (ou Múlvia) (em italiano: Ponte Molle ou Ponte Milvio, latim: Pons Milvius ou Pons Mulvius), ao norte de Roma, é uma das mais importantes pontes que cruzam o Rio Tibre. A ponte foi construída pelo cônsul Caio Cláudio Nero, em 206 a.C.

de Édito de Milão, também conhecido como Édito da Tolerância, em

313. Os imperadores Constantino e Licínio assinaram o documento,

para que houvesse paz no Império, e que todos os deuses, cristão e

pagãos, pudessem abençoá-los.

O documento sugere, segundo a minha compreensão, a vontade

de se fazer tolerar a religião cristã presente em todo o Império, e mais

que isso, este édito permitiu a livre profissão de fé, fosse ela qual

fosse, além de prever a restituição dos bens espoliados pelos pagãos

em governos anteriores. Assim, os cristãos teriam mais uma vez suas

“igrejas” e condições para manter esta minúscula instituição que

começava a surgir. Menciono este ato, pois a tolerância religiosa já era

empregada em algumas partes do Império, anteriormente à emissão

do Édito de Milão. Licínio havia assinado um decreto de tolerância em

311, portanto, este de 313, celebrado após importante vitória militar,

ganhou status de oficial e mais que isso, de imperial.

O édito proporcionou um enorme bem aos cristãos, pois os libertou

da clandestinidade em que viviam, e poderiam usufruir dos direitos civis

tal como os de origem pagã, e também ocupar cargos públicos. Além

disso, a primitiva Igreja cristã contaria com os mesmos direitos que a

religião pagã tinha, tais como isenção de impostos e a dispensa do

exercício militar para seus clérigos.

Constantino então declaradamente um cristão, teve a prudência de

ser benevolente para com os pagãos, deixando-os em pé de igualdade

com os cristãos (LOT, 1999), pois estes constituíam a grande maioria

da população, uma vez que os cristãos, naquela época representavam

cerca de um décimo da população.

Porém esta imparcialidade imperial durou pouco tempo. O

Imperador dotado de uma natureza despótica e um poder quase

onipresente, começou a beneficiar os seguidores do culto cristão,

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formulando uma série de mandatos que proibiam que fossem aplicadas

penas capitais aos cidadãos que se convertessem ao cristianismo,

assim como dispensava os funcionários públicos cristãos de prestarem

sacrifícios, além dos privilégios concedidos aos sacerdotes, além

de permissões para que alforriassem escravos e que prevalecesse o

repouso obrigatório aos domingos (LOT, 1999).

Licínio, sendo um pagão, via o favorecimento de Constantino para

com os cristãos com maus olhos, pois ia contra o texto elaborado por

ambos no Édito de Milão. Como retaliação, passou a favorecer os

pagãos em seu império, destituindo dos cargos públicos vários cristãos,

além de recriminá-los.

Constantino se revoltou com tais atitudes, e em 324 declarou guerra

a Licínio, com a finalidade de libertar e salvar a cristandade oriental do

que chamava de um governo tirânico. Mais uma vez, a providência

cristã foi em seu auxílio, conforme avaliação de Gian Ventura da Silva,

pois mesmo com menor número de soldados, em relação ao exército

oriental, conseguiu a vitória e destronou Licínio, unificando todo o

império sob seu comando.

Constantino interveio sucessivamente nos assuntos e desavenças

clericais. Para solucionar uma ação cismática entre grupos religiosos

cristãos, e a fim de concretizar a institucionalização, e normatização da

Igreja cristã, convocou, em 325, um Concílio Ecumênico, em Nicéia.

O concílio foi composto por 318 bispos da Igreja Cristã reunidos

na cidade de Nicéia, em Bítinia. Convocados pelo imperador para

que, juntamente com ele, viessem a solucionar os conflitos entre as

comunidades cristãs existentes na época. Como resultado, foi redigido

um compêndio de 20 cânones17 que normatizaram o funcionamento da

nascente Igreja Cristã.

17 Regras estabelecidas em um concílio.

Ao final deste importante encontro episcopal foi elaborada uma

profissão de fé, o chamado Credo Niceno-Constantinopolitano ou

Símbolo Niceno-Constantinopolitano, que regulamentou a crença

cristã que, naquela época, se dividia em duas frentes: o Arianismo e o

Donatismo. O primeiro recebeu este nome devido ao seu idealizador

Ário de Alexandria. Essa frente ideológica não acreditava que Jesus fosse

filho de Deus, portanto, não partilhava da mesma substância divina do

Pai, sendo considerado apenas um filho adotivo, e não um integrante da

Santíssima Trindade, o que derrubava o Dogma18 da Redenção.

O Donatismo, nome originário de seu fundador, Donato, Bispo

de Cartago, que pregava uma fé extremamente ortodoxa, em que os

integrantes do clero deveriam ser isentos de qualquer pecado.

Os cânones elaborados em Nicéia, tinham por objetivo normalizar

a Igreja Cristã, institucionalizando-a, e estabelecendo regras para

definição de sua hierarquia eclesiástica e composição de seu Clero,

também determinavam o que era esperado das comunidades cristãs,

determinavam punições para aqueles conversos que retomavam práticas

pagãs e padronizavam as rezas nos dias santos, como se pode constatar

nos cânones analisados abaixo:

O Cânon II tratou da aceitação de indivíduos oriundos do paganismo

que se converteram, mas impôs que tais pessoas não fossem ordenadas

de imediato, pois muitas ainda conservavam costumes pagãos que

mesclavam aos cristãos. Assim, era necessário que passassem por algum

tempo de provação, e mesmo depois da ordenação, caso fosse descoberto

que havia sido cometido algum pecado anteriormente, que fosse então

retirado do Clero. Este cânon, claramente, uma inspiração donatista,

tinha em vista que o pecador não fosse admitido no sacerdócio.

18 Caracteriza os fundamentos de uma crença, considerados, portanto, inquestionáveis. Uma verdade absoluta.

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O Cânon III discorreu sobre o celibato dos religiosos, para que estes fossem isentados de culpa e tentação, por isso, só seriam aceitas mulheres em suas casas que fossem acima de qualquer suspeita, como mães, tias e irmãs.

O Cânon V tratou das excomunhões e das reaceitações19, em que somente o bispo que excomungou poderia reintegrar o indivíduo à comunidade, exceto em casos de desavenças. Assim, ficou estipulado que seriam feitos dois Sínodos anuais em cada província, sendo um na Quaresma e o outro no outono, com a finalidade de resolver tais contendas.

O Cânon VI determinou a supremacia do Bispo de Roma sobre os demais: “o bispo de Alexandria terá jurisdição sobre Egito, Líbia e Pentápolis; assim como o bispo Romano sobre o que está sujeito a Roma. Assim, também, o bispo de Antioquia e os outros, sobre o que está sob sua jurisdição.” Vale lembrar que este documento foi escrito durante o Império Romano, e que todas as cidades nele citadas, assim como tantas outras que constituíam a cristandade na época, eram de jurisdição romana, o que colocava o bispo de Roma em posição privilegiada em relação aos demais, submissos a ele.

O Cânon XI, também de caráter punitivo, previa sanção aos leigos que, sem sofrer qualquer tipo de ameaça, voltassem a professar a antiga fé ancestral, por livre escolha, mas possibilitando uma indulgência em caso de arrependimento e busca de penitência para seu erro.

O Cânon XVII tratou da punição para os membros do clero que praticassem usura, pois se fosse comprovado, o culpado seria excluído ou deposto de suas funções eclesiásticas.

19 Se a excomunhão significa a retirada do indivíduo da comunidade religiosa, entenda-se o termo reaceitação como a reintrodução do excomungado na comunidade.

O Cânon XVIII estipulou a hierarquia clerical, em que o diácono

era submisso ao presbítero e, ambos, ao bispo. Esta ordem deveria ser

respeitada inclusive, na hora da comunhão, do cargo mais elevado

ao menos.

O Cânon XX normatiza as regras para que, uniformemente, se

pudesse rezar em qualquer local aos domingos e no Pentecostes.

Ao final do Concílio, Constantino havia ajudado a estabelecer os

alicerces da instituição mais antiga que existe até nossos dias.

Constantino, segundo o entendimento de Paul Veyne, há algum

tempo não aceitava mais as práticas pagãs em sua presença,

proibindo-as nos domínios de seu palácio, ou em sua honra (culto

ao imperador), mas sem perseguir seus praticantes. Porém após sua

conversão ao cristianismo em 324, não conseguiu mais continuar

em uma cidade conspurcada pelas “más” práticas pagãs. Assim

sendo, mandou construir sobre as ruínas da antiga cidade grega de

Bizâncio20, sua “Nova Roma”, Constantinopla que passou a dividir os

poderes políticos com a antiga capital Roma, a Cidade Eterna.

Constantino em seu primeiro casamento teve um filho chamado

Crispos. Seu primogênito foi fundamental na vitória sobre Licínio, e

quando Constantino se tornou soberano em todo território romano,

o nomeou co-imperador, para que governasse, de Roma, a parte

ocidental do império, enquanto ficou em Constantinopla.

Fausta, mulher de Constantino nesse período, invejando o poder

dado a Crispos, armou contra ele, para favorecimento de seus próprios

filhos. Caluniou seu enteado a Constantino, sob a prerrogativa de que

ele havia tentado seduzi-la. Constantino mandou prendê-lo, quando

este estava em Pola21 e matá-lo por traição.

20 Que daria o nome ao que mais tarde se tornaria o Império Bizantino.21 Atual Croácia.

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Helena, mãe de Constantino, saiu em defesa do neto junto ao Imperador, pois desconfiava das intenções de Fausta. Constantino ouvindo seus argumentos, condenou à morte imediata Fausta, e ao mesmo tempo enviou um emissário a Pola, para que Crispos fosse libertado, porém a decisão foi tardia, e Crispos já havia sido morto por soldados que obedeceram à primeira ordem imperial.

Constantino não se perdoou pelo crime que cometeu, e em penitência passou o resto de sua vida construindo igrejas por todo o Império, sendo as mais notáveis a Basílica de Santa Sophia22, em Constantinopla, e a Basílica de São Pedro, construída sobre o túmulo do Apóstolo Pedro.

Para Veyne, Constantino mesmo se considerando um cristão, não havia sido batizado durante seu governo. Assim como muitos imperadores que o seguiram, seu batismo foi adiado até o final de sua vida, para que as atitudes pecaminosas feitas durante seu governo fossem apagadas pelas águas do Batismo, que ocorreu em 337. Após trinta anos de governo, morreu, mas suas obras e a Igreja que este ajudou a institucionalizar ainda perduram até hoje.

1.3 O TRONO E A CRUZ

Durante o governo de Constantino, o cristianismo saiu da ilegalidade e começou cada vez mais a ganhar visibilidade. Após sua morte, seus sucessores mantiveram a religião de acordo como havia sido estabelecido pelo antigo Imperador, paganismo e cristianismo, sem, oficialmente, haver predominância de uma delas.

Após 337, o Império foi dividido em três áreas, sendo que cada área

seria administrada por um dos três herdeiros de Constantino. Cabendo

22 Com a queda do Império Bizantino, e a tomada de Constantinopla pelos Turcos Otomanos em 1453, a Basílica foi transformada em uma Mesquita até o ano de 1931, quando foi secularizada e transformada em um museu.

ao mais velho, Constantino II, governar a parte ocidental, composta pelas regiões da Hispânia e da Gália; Constante I, ficou responsável pelo governo da Itália e da Ilíria; enquanto Constâncio II governou da parte oriental.

Os sucessores de Constantino mantiveram a sua política de tolerância, mesmo que Constâncio II tenha proibido qualquer tipo de sacrifício pagão. Tudo isto dava uma enorme falsa impressão de que o cristianismo já havia ganho o jogo contra o paganismo, quando na verdade, a fé cristã correu sério risco de desaparecer pouco tempo após a morte de Constantino. (VEYNE, 2011)

Em 361, Juliano, sobrinho de Constâncio II, e que havia regressado ao paganismo, arrancou o poder de seu tio, e tornou-se imperador, transformando novamente o trono romano em pagão. Juliano tentou devolver ao paganismo sua antiga glória, e superioridade em relação ao cristianismo, marginalizando práticas cristãs, enquanto fortalecia as estruturas das antigas crenças ancestrais, reformando templos e reestruturando antigos cultos.

Neste período “o cristianismo não passava ainda de um parêntese histórico que, aberto por Constantino em 312, poderia se fechar para sempre” (VEYNE, 2011. p. 65). O parêntese cristão só não se fechou por que em 363, Juliano foi morto em batalha contra os persas, mas ainda existiam outros perigos para a Igreja Cristã.

No decorrer dos anos, o exército que anteriormente era inteiro pagão, começou a ter em suas fileiras, e em seu comando, componentes cristãos. Sobretudo, após a morte de Juliano, o comando militar romano se dividiu em dois grupos, conforme apontou Paul Veyne,

De tudo isso restará a formação de dois clãs na administração do exército, um pagão ou que contemporizava e o outro cristão. Esses grupos também terão muitos outros interesses, motivos e impulsos mais importantes para eles do que a religião. (2011. p. 65)

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90Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2015

Estes grupos tiveram papel importantíssimo na continuação do

cristianismo, pois seriam eles os responsáveis pela escolha do novo

imperador. Mas e agora, seria um Imperador pagão ou cristão?

Primeiramente ambos os clãs aceitaram que Salustiano seria o melhor

nome para o trono. Já que era um grande colaborador de Juliano, e

assim como ele, também era pagão. Porém este recusou.

Após algumas divergências, os clãs escolhem um cristão para o

trono, Joviano foi nomeado, mas morreu em seguida, e na sequência,

Valentiniano foi o novo escolhido, também cristão. Seus sucessores

foram todos cristãos, e o paganismo aos poucos perdeu força e,

gradativamente, se extinguiu, e assim, desta ameaça, a Igreja cristã

não mais sofreria. Valentiniano foi sucedido por Graciano, que por sua

vez terá Teodósio como seu sucessor, e este entregou o trono aos seus

filhos.

Teodósio assumiu o trono em 379, época em que a Igreja cristã se

encontrava mais uma vez dividida entre crenças opostas em relação

ao dogma da Santíssima Trindade. Teodósio, assim como Constantino

havia feito, assumiu a frente da Igreja e convocou o Primeiro Concílio

de Constantinopla, em 381.

Este concílio renovou a crença na Trindade Santa que fora instituída

como crença legítima do cristianismo, pois novamente havia grupos que

questionavam a natureza de Cristo e sua unindividualidade com o Pai

Criador. Condenava todos que se desviassem da doutrina católica como

hereges, neste caso o Arianismo. Elevava o bispo de Constantinopla

na hierarquia eclesial, e este somente responderia ao Papa, bispo de

Roma.

Antes disso, em 380, Teodósio lançou um édito elaborado em

Tessalônica, instituindo a religião cristã, precisamente a católica, como

religião oficial do Império, e que somente esta seria “boa” de se seguir,

sendo todas as demais recriminadas por ele, e instaurou punições para

quem, teimosamente, continuasse a professá-las.

Quando Teodósio assumiu o trono do Oriente, este colocou seu jovem

cunhado para governar o Ocidente, mesmo sem muita experiência, por

isso, Teodósio nomeou um estrangeiro para que o assessorasse. Tratava-

se de Arbogast, um chefe pagão germânico. Esta decisão de Teodósio foi

o estopim para a primeira guerra religiosa no Império.

Arbogast se autopromoveu a general, chefe do Ocidente romano,

e com a morte do jovem imperador, buscou se tornar o soberano do

Ocidente, mas seus planos foram, inicialmente, frustrados, por não ser

romano, portanto não poderia ser nomeado Imperador. Então indicou

Eugenio para assumir o cargo, e que seria apenas uma marionete que

atenderia aos planos de Arbogast.

Eugenio era um cristão fraco, e não se impunha aos anseios de

Arbogast, que deixara Roma como nos tempos de Juliano, o “Vaticano do

paganismo” (VEYNE, 2011. p. 67). O senado romano também em sua

maioria pagão contribuía para a proliferação do politeísmo, se recusando

a aceitar certas abolições impostas pelo cristão Teodósio. Deste modo,

Arbogast era a solução do senado para se livrar do cristianismo no

ocidente. Quando Teodósio recusou a elevação de Eugenio a Imperador

do Ocidente, ambos os lados (pagãos e cristãos) se prepararam para a

guerra.

Devido a essa usurpação do trono ocidental, Teodósio tomou uma

atitude radical e definitiva, e em oito de novembro de 392, proibiu todo

e qualquer tipo de manifestação, sacrifício ou culto de origem pagã.

(VEYNE, 2011).

Porém esta proibição precisava ser confirmada com uma vitória em

batalha, e esta se deu quase dois anos mais tarde, próximo a Gorizia23,

23 Próximo à fronteira atual entre Itália e Eslovênia.

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91Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2015

ao longo do Rio Frio24. Esta batalha vencida pelo Oriente consagrou a

vitória final do cristianismo sobre o paganismo, e de acordo com Veyne,

A Providencia parece ter interferido nessa vitória: o vento violento da península balcânica, o borá, soprou durante a batalha e mandava de volta para os pagãos os tiros dos dardos deles. Por sua vez, os pagãos, não longe do campo de batalha, tinham “invocado contra Teodósio estatuas de Júpiter com um raio dourado”, se se deve crer em Santo Agostinho; os cristãos vencedores os destruíram. (2011. p. 68)

Esta derrota representou a morte do paganismo, que não mais

alcançou forças para se reerguer, e o sistema de tolerância entre as

religiões pagã e cristã que Constantino instituiu foi trocado por um

sistema puramente cristão.

Durante o reinado de Teodósio, a Igreja se tornou o braço secular

do Império, e ao mesmo tempo se utilizou da máquina imperial para

o aumento de suas legiões de fiéis. Teodósio por ser muito cristão,

se submeteu a Ambrósio, então bispo de Constantinopla, para que

pudesse ser perdoado por seus pecados, unindo o Estado à instituição

da Igreja de uma forma que somente alguns séculos mais tarde viriam

a ser separados.

Foi também nesta época que antigas comemorações de caráter

pagão foram adaptadas e cristianizadas, como por exemplo, o Natal,

assunto que será abordado no capítulo seguinte.

2 COMEMORAÇÕES E FESTIVIDADES CRISTÃS

2.1 A VISIBILIDADE DA IGREJA

A partir do reinado de Teodósio o cristianismo difundiu-se, e tornou-se

a religião dominante em muitas partes do Império Romano, deixando na

24 Atual Vipacco, afluente do Isonzo.

marginalidade os antigos costumes pagãos. Nesta época o cristianismo

já havia se tornado a religião oficial de todo o Império. Porém, como

já vimos, a Igreja ainda passava por diversas transformações em seus

costumes primitivos, e muitas eram as adversidades entre seus novos

seguidores, pagãos conversos, e a doutrina imposta pela crença cristã.

Estas “adversidades” foram as principais responsáveis pelas mudanças

que transformaram a Igreja cristã primitiva em um modelo mais próximo

do encontrado em épocas medievais.

Nestas “transformações” se inserem as festas religiosas, como por

exemplo o Natal, o dia de Reis, a Páscoa, o Pentecostes e as festas

juninas, que consistem nas mais importantes festas do calendário

cristão.

Como qualquer outra religião, o objetivo da cristandade era,

e continua sendo, contar o maior número de fiéis para sua crença,

e nisto pode-se afirmar que o fato de Constantino ter-se convertido

ao cristianismo, ajudou imensamente nesta expansão cristã. Não

cabe aqui problematizar se a cristandade teria sobrevivido, ou não,

sem a conversão do imperador, e sim sobre os atos que esta tomou

posteriormente ao ocorrido na Ponte Milvio, atos estes que possibilitaram

à Igreja uma maior visibilidade e adesão pelos povos que habitavam

em território romano.

Pode- se citar inúmeros ocorridos que creditaram à cristandade a

grande maioria da população romana da época, mas este trabalho se

aterá às grandes festas. Estas confluem da marginalidade pagã, para

a apoteose cristã, em um belo exemplo do que Carlo Ginzburg citou

como sendo uma “circularidade: entre a cultura das classes dominantes

e a das classes subalternas” (2006. p. 10), ou seja, uma troca recíproca

entre culturas, que formou ao longo de um período o que conhecemos

por Igreja Católica Apostólica Romana, que nada mais é do que a fusão

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entre a Igreja cristã primitiva e ritos campônios de origem latina, junção esta

que também gerou diversas festas religiosas que analisaremos agora.

No ano de 380, Teodósio lançou um Édito conhecido como de

Tessalônica, em que o cristianismo foi declarado como religião oficial

do Império Romano, e no mesmo documento, também recriminava a

prática de rituais pagãos e, para aqueles que permanecessem a praticá-

los, estabelecia punições severas.

Nada melhor para a Igreja, pois assim poderia “limpar” o povo

daqueles rituais sem ter que se esforçar muito, pois contaria com todo o

aparato do Estado para sustentá-la. Porém esta facilidade, se mostrou

no decorrer do tempo em um imenso problema para o cristianismo,

pois as maiores manifestações públicas na época eram todas de origem

e em honra a divindades pagãs, e uma proibição abrupta destas, por

parte da Igreja, resultaria em graves perturbações no cotidiano da

população e por consequência, a perda de muitos fiéis e um eminente

retrocesso na expansão cristã. Maria Nazareth Ferreira, discorreu este

período de decisão da Igreja da seguinte forma:

Estas festas, consideradas “pagãs” após o nascimento do cristianismo, foram objeto de intensa ação da recém-nascida religião com o objetivo de extingui-las. Entretanto, sendo como eram, manifestações profundamente enraizadas nas práticas cotidianas da população, não restou outra alternativa à Igreja senão incorporá-las à sua liturgia. (2000, p.122)

A incorporação destas festas pela Igreja, resultou em uma

maior facilidade de conversão destes povos pagãos à doutrina

cristã. Em decorrência desta anexação à liturgia25 cristã foram duas

as consequências mais imediatas: a primeira, daria uma enorme

25 A palavra liturgia compreende uma celebração religiosa pré-definida, de acordo com as tradições de uma religião em particular.

visibilidade à Igreja, pois uma vez que estas manifestações se tornariam

cristãs, estas disseminariam o cristianismo para outros cantos da Terra; a

segunda, transformaria completamente aquela Igreja, pois juntamente

com as festas, viriam uma enormidade de costumes enraizados e que

eram totalmente pagãos, e que seriam, gradativamente amalgamados

à liturgia cristã.

O carnaval antes de ser cristianizado, era uma festa romana, com

suas origens na saturnalia, uma antiga celebração ao deus Saturno,

comemorado em Roma pelo menos desde o século V a.C. Segundo

a mitologia, Saturno chegou ao Lazio26 pelo mar e foi acolhido por

Giano27. Difundiu o conhecimento nas artes, agricultura e moeda, o

que possibilitou que o povo daquela região se civilizasse, assim aquela

época ficou conhecida como a Idade do Ouro. Após um longo período

com os homens, Saturno teria se retirado, mas sua presença ficou

latente, esperando o momento ideal para se manifestar novamente.

”Devido a esta presença latente, mas ‘escondida’, celebravam-se as

saturnalias” (FERREIRA, 2000, p. 123), estas manifestações consistiam

em cerimônias nos templos romanos, para que no decorrer desta

festa, fossem relembrados da Idade do Ouro e do próprio Saturno.

Durante as saturnalias, as relações sociais eram subvertidas, ou seja,

eram trocados os papéis entre escravos e senhores. Esta antiga festa era

comemorada do dia 17 até 23 de Dezembro. Para Ginzburg, Bakhtin

define o carnaval da seguinte forma:

Mito e rito no qual confluem a exaltação da fertilidade e da abundância, a inversão brincalhona de todos os valores e hierarquias constituídas, o

26 Região que mais tarde seria fundada Roma.27 Giano seria a divindade propagadora do gênero humano, o princípio de tudo, ao qual foi dedicado o mês de Janeiro (Ianus). (FERREIRA, Maria Nazareth. Os antigos rituais agrários itálicos e suas manifestações na atualidades. In: Comunicação e política. v. VII, n1, p. 121, 2000.

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sentido cósmico do fluir destruidor e regenerador do tempo. (GINZBURG, 2006, p. 15)

A conversão da antiga saturnalia em festa carnavalesca, no princípio

se dá somente no nome, pois sua prática permanecia a mesma. “O

carnaval pré-cristão acompanhava com seus rituais a passagem do Ano

Velho para o Ano Novo.” (FERREIRA, 2000, p. 124)

A Igreja cristã passou a controlar esta festa, muito devido ao seu

imenso enraizamento que o carnaval tinha na vida dos povos antigos, a

Igreja anexou esta festa em seu calendário litúrgico, colocando-a antes

da quaresma, para que funcionasse como penitência (EMILIANI, apud.

FERREIRA, 2000)

No início, o carnaval começava em 26 de Dezembro, mas logo

foi transferido para Janeiro, e posteriormente com a forte ideia de

purificação a Igreja o relocou juntamente com a quaresma para o mês

de Fevereiro, este mês na antiguidade era dedicado exclusivamente à

purificação.

Ferreira descreve que a influência da Igreja na reformulação

do carnaval, colocou os Papas em um papel de importância para a

construção do carnaval moderno, assim afirmando que:

A necessidade que teve a Igreja de enquadrar o carnaval como uma das suas manifestações litúrgicas, colocou em destaque a atuação dos papas como organizadores desta festa de grande tradição popular entre os romanos. (2000, p. 125)

Papa Paolo II (1464-1492) foi o grande reformador do carnaval,

transformando-o em um ato político, em que se encontravam junto

ao clero, reis e príncipes estrangeiros para comemorarem e firmarem

laços. Este papa pode ser considerado o criador do carnaval moderno.

Outros papas também interferiram no carnaval, Inocêncio VII (1484-

1492); Alessandro VI (Borgia, 1492-1503); Giulio II (1503-1555),

influenciando a prática de jogos, o uso de máscaras ou o transformando

em um ato mais artístico, o que só fez aumentar a presença de nobres

nestes festejos. De festa popular, o carnaval passou a ser regido pela

Igreja e pelos altos escalões da sociedade civil.

Apesar de ter sofrido diversas mudanças em seu sentido, se

compararmos com as antigas saturnalias, o carnaval mantém seu cerne

até a modernidade, ou seja, “um mecanismo de inversão radical de

determinadas situações” (FERREIRA, 2000, p. 127), representando até

nossos dias “um momento de celebração da vida, o rompimento do

ritmo monótono do cotidiano, o que permite ao homem experimentar

afetos e emoções” (JURKEVICS, 2005, p. 74). Porém, segundo Ferreira,

o carnaval, é a festa que mais se afastou de suas origens religiosas,

sendo hoje uma festa completamente laica28.

Mas não somente o carnaval cristão passou por este processo

de aculturação, outras festas, talvez até mais importantes para o

cristianismo que o próprio carnaval, encontram suas raízes plantadas

no mais profundo âmbito pagão, e aqui se trata da festa dedicada

a São João Batista, e da própria comemoração ao nascimento do

Cristo.

A festa de São João tem suas origens na antiga festa romana

do calende di giugno, segundo Ferreira, esta festa era totalmente

dedicada ao solstício de verão, e durante todo o mês de giugno,

homenageavam se deuses ligados à religião solar. Era tão forte este

sentimento para com o Sol, “que o imperador Aureliano fixou a data

da festa do Sol – o Sol Invictus – no dia do solstício de verão: 21 de

Junho”. (BARBERITO, Manlio. apud. FERREIRA. p. 132)

28 O termo “laico” tem sua origem etimológica no Grego “laikós” que significa “do povo”. Está relacionado com a vida secular (mundana) e com atitudes profanas que não se conjugam com a vida religiosa.

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Esta festa era uma espécie de saturnalia de verão, denominada

de Fors Fortunae Sol Invictus, tem sua origem no mito de Servio Tullio,

sexto rei romano, ligado à deusa Fortuna e ao deus Vulcano, segundo

Ferreira existiam dois templos dedicados a este ritual, no Foro Boario

era comemorado na data de 11 de junho, e no templo situado do outro

lado do Tevere29, se comemorava em 21 de junho.

Esta festa ainda pode ser vista na cidade de Roma, nas noite do dia

23 e 24 de junho, comemorada na piazza San Giovanni in Laterano e

dedicada ao próprio San Giovanni. É uma festa cíclica, e assim como

tal, representa a morte e renascimento da natureza e dos homens

(FERREIRA, 2000). Veremos mais adiante, que a cristandade se utilizou

do mesmo conceito “cíclico” para estabelecer seu calendário.

Ainda segundo Ferreira, a noite de San Giovanni era uma noite

dedicada a adivinhações, e purificações pela água e fogo, a noite em

que se acendiam as fogueiras ritualísticas (falò rituali). Prática muito

parecida com as fogueiras de São João que hoje se ascendem na noite

de sua festa.

Esta festa foi deslocada do dia 21 para o dia 24 de junho com a

intenção de fazê-la coincidir com a festa dedicada a São João, assim

podendo assimilar esta forte festa pagã e convertê-la à cristandade,

com um sentido novo, porém ainda vinculado ao Sol, e principalmente

relacionada com a Saturnalia, que passaria a ser o Natal cristão.

Como abordado há pouco, a saturnalia era comemorada do dia 17

até o dia 23 de Dezembro, porém mesmo com o esforço da Igreja em

remodela-la, muitos ainda exerciam práticas pagãs nesta data. Então, o

que fazer para esta época do ano ser convertida de vez ao cristianismo?

Simples, se transformou o solstício de inverno, comemorado no dia 25

29 Tevere (pronuncia Tévere) é o nome do rio (Tibre) que atravessa a cidade de Roma, Itália.

de Dezembro, no nascimento de Cristo, fazendo com que todas as

manifestações naquela data fossem em homenagem ao nascimento do

Salvador da cristandade.

Porém, essa transição não poderia ser feita assim à revelia, primeiro

era indispensável que se legitimasse essa data, ou seja, que se buscasse

alguma forma de se provar empiricamente (ou ao menos tentar) que

Cristo realmente nasceu naquela data específica. E para explicar como

isto se procedeu, utilizarei dos argumentos de Maria Nazareth Ferreira,

que discorre este assunto da seguinte maneira:

O mito dos dois sacros nascimentos como metáfora do ciclo agrário solar foi fundado pelo próprio Evangelho, o que tornou mais fácil sua manipulação pela Igreja. João Evangelista coloca na boca de João Batista as seguintes palavras: “Ele (Cristo) deve crescer; eu, ao contrário, devo diminuir30”. O solstício de verão que na Europa corresponde ao natalício de João Batista, assinala o início da diminuição do calor solar; foi por esta razão que Santo Agostinho, no sec. IV, identificou o fim do Velho Testamento com João Batista; da mesma forma, o solstício de inverno, que dá início à fase crescente do Sol, foi identificado com o Novo Testamento e com Cristo. Esta engenhosa metáfora agostiniana tinha a intenção de se sobrepor às celebrações ditas pagãs do ciclo solar, justificando o antigo ritual e condicionando-o através da progressiva introdução de elementos da liturgia cristã. Como na celebração do ritual antigo, as festas do solstício de verão e de inverno se identificavam com uma religião agrária e solar, na elaboração cristã o complexo mítico-ritualístico de Cristo e de João Batista foi integrado num único ciclo; não é por acaso que ambas as festas se realizam, primordialmente, à noite: a Noite de São João e a Noite de Natal. (2000, p.134)

Tom Harpur, em seu livro O Cristo dos pagãos, tenta explicar esta

preocupação do cristianismo, para com o ciclo solar. Elaborando sua

tese no fato do cristianismo ter se apossado de antigas tradições e

crenças egípcias de mais de cinco mil anos, compara, ou melhor explora

30 João Evangelista, 3; 30.

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as semelhanças entre o Novo Testamento e o Livro dos Mortos egípcio,

e a partir desta comparação, Harpur associa as figuras de Jesus a

Hórus e de Maria a Isis, além de outras tantas semelhanças que deixam

certa “pulga atrás da orelha”, para uma pesquisa mais aprofundada.

Porém não cabe aqui esta discussão, e elenquei este autor apenas para

chamar a atenção para o caráter solar da religião cristã.31

O “sincretismo entre o sagrado e o profano32” (FERREIRA, 2000, p.

135) existente na concepção destas festas, ainda existe na atualidade

em diversas tradições derivadas do paganismo. Citarei aqui as mais

marcantes para cada festa, tanto Natal, quanto festa Junina, e me

aterei somente às tradições derivadas da cultura pagã romana.

Sem dúvida, a festa de São João não seria a mesma sem a presença

da Fogueira de São João, e do Mastro, ou do Natal, sem a árvore, sem

as guirlandas, as velas, sem os presentes. Porém poucos sabem como

estas peculiaridades surgiram.

Em se tratando de Festa de São João, a Fogueira tem sua origem

no Falò Rituali, que na época era um evento que “de todos os bairros

da cidade, a população afluía para participar das danças, das canções,

para estabelecer compadrios e também para comemorar o ponto

máximo da festa, que era quando o falò era acesso”. (FERREIRA, 2000,

p. 135)

O mastro de São João se originou da antiga prática pagã de se

levantar o “mastro de maio”, ou a árvore de maio. No Brasil e em

Portugal, este antigo ato, já há muito cristianizado, faz referência

31 Para quem se interessar: HARPUR, Tom. O Cristo dos Pagãos: a sabedoria antiga e o significado espiritual da Bíblia e da história de Jesus. São Paulo: Pensamento, 2008.32 Para maiores informações sobre esta discussão entre o sagrado e o profano, consultar a obra de Eliade, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

aos três santos populares comemorados nestas datas33, no Brasil se

penduram três bandeirinhas no topo do mastro representando os

santos homenageados.

O Natal é uma festa cíclica, tendo início ao final de novembro e

se prolongando até o dia de Reis34. Para a tradição cristã, este tempo

remete à peregrinação de Maria junto com seu marido José, que,

por decreto de César Augusto, ordenou o recenseamento de todos

os habitantes em suas respectivas cidades natais, por isso rumaram

até a cidade de Belém. Lá estando, Maria deu a luz a Jesus, em uma

manjedoura rodeada por animais, e logo receberam a visita (motivada

por um anjo) de pastores que por ali estavam com seus rebanhos.35

As semanas que antecedem o Natal levam o nome de Advento, que

do latim, ad veneri, significa “o que há de vir”. Estas quatro semanas de

preparação para o Natal, relembra aos cristãos, os quatro milênios em

que a humanidade esperou o filho de Deus (SANTOS, 2002).

Nestas semanas antecedentes ao Natal, os cristão seguem algumas

tradições natalinas, como a realização de novenas, cânticos e momentos

de espiritualidade. Entre estas tradições, durante as novenas de Natal,

ou no jantar com a família toda reunida36, tradicionalmente se ascendem

velas em uma coroa de ramos de pinheiro. A primeira vela é acessa no

primeiro Domingo do Advento, também chamado Domingo Verde, esta

vela deve ser apagada logo ao término da refeição ou da novena, e do

mesmo modo se faz também no segundo e terceiro domingo do advento,

acendendo-se mais uma vela de cada vez, a última vela deve ser acessa

no quarto domingo que coincide com a Noite de Natal, juntamente com

33 São João (24/06); São Pedro e São Paulo (29/06).34 Comemorado no dia 6 de janeiro. Na tradição cristã, foi o dia em que os três reis magos, Belchior, Gaspar e Baltazar levaram presentes ao Menino Jesus.35 Evangelho de São Lucas, 2; 1-21.36 Nas novenas a comunidade, ou seja, a família cristã se reúne em volta da mesa.

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as demais, estas não devem ser apagadas, para que queimem até o

fim. Além disso, uma guirlanda deve ser colocada na porta da casa da

família no primeiro domingo do advento, o que simboliza que a família está se preparando para o Natal.

Porém, estas tradições surgiram muito antes do próprio Jesus. Antigamente já era costume se usar coroas de plantas como o pinheiro e a hera, pois se acreditava que afugentavam maus espíritos. Segundo Lídia Hanke Santos, na antiga Gália e Bretanha, os druidas colhiam e distribuíam, hera para que as pessoas colocassem sobre suas portas, para que atraísse bons augúrios.

As guirlandas, antes do advento do cristianismo, eram usadas pelos povos europeus e asiáticos, durante os fortes invernos, para “decorar” a paisagem branca e para lembrar da ideia cíclica do eterno recomeço, do retorno da vegetação na próxima primavera. Segundo Lídia H. Santos, na Roma antiga este ritual também era utilizado, desta forma ela o trata:

Na Roma antiga, durante as festas em homenagem ao deus Saturno, que aconteciam na primeira semana de dezembro, era costume as pessoas se presentearem com guirlandas verdes. Já nas Calendas de Janeiro, decoravam-se as casas com ramos de louro. (2002. p. 17)

Esta citação acima além de corroborar para com a afirmação antes dada, fez lembrar de outra prática muito comum no Natal, a troca de presentes. Além do forte apelo comercial existente hoje neste aspecto, e que não cabe aqui argumentar, também existe um sentido religioso pagão no ato de presentear alguém.

Este ato, a princípio, faz lembrança à atitude tomada pelos três reis magos ao irem visitar o Menino Jesus, logo após seu nascimento, estes levaram presentes lembrando as riquezas de suas terras natais, e também aos pastores e animais que de alguma forma presentearam

o Messias. A autora referência estes gestos de doação em seu texto da seguinte forma:

Num lugar humilde, Jesus recebeu visitas e presentes muito especiais. O boi e o burro seu hálito para aquecê-lo; os pastores, o leite que alimenta e a lã que aquece, coisas muito valiosas para eles. Os Magos traziam presentes reais: Melchior, o mais velho, ouro; Baltazar, mirra, líquido extraído do caule de algumas plantas com o qual se faz perfume; e Gaspar, o mais novo, ofereceu incenso, resina aromática proveniente de diversas árvores. (SANTOS, 2002. p. 27)

Porém, mais uma vez este é um ato que a Igreja cristã usou de um

discurso “catequizador” para poder cristianizar um elemento então há

muito existente na cultura pagã, pois, era de costume do povo romano,

durante o período que correspondia a Saturnália presentearem-se

com estatuetas de argila, mármore, ouro ou prata, conforme seus

rendimentos. E a prática de se trocar presentes na véspera do Natal,

como se faz na atualidade, foi algo instituído pelo rei Henrique VII

(SANTOS, 2002).

A própria Árvore de Natal, não se trata de uma árvore qualquer,

é um costume pagão adotado pelo cristianismo. Em Roma durante a

Saturnalia, se comemorava a passagem do inverno chuvoso para o

verão, “nessas ocasiões enfeitava-se um pinheiro com máscaras do

deus Baco e outros emblemas simbólicos” (SANTOS, 2002, p. 61), além

de outras tantas lendas de outros tantos lugares que não cabem aqui.

Uma lenda cristã para justificar a presença do “pinheirinho de

Natal” nas comemorações cristãs narra mais ou menos o seguinte:

quando Jesus nasceu, além dos presentes dados a ele pelos reis magos,

pastores e animais, algumas árvores, uma Oliveira, uma Tamareira e

um Pinheiro, que rodeavam sua manjedoura também ofertaram ao

Menino Jesus seus frutos, a primeira ofereceu suas azeitonas, a segunda,

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suas tâmaras, por último o pinheiro como não tinha o que oferecer, se

entristeceu. Um anjo lá do céu viu a tristeza do pinheiro, e para ajudá-lo

ordenou que as estrelas do céu pousassem sobre seus galhos, e assim

pode oferecê-las como presente ao menino Jesus. (SANTOS, 2002)

Nestes costumes “cristãos” podemos perceber uma troca de

influências entre cultura dominante e dominada, neste caso específico

nota-se uma apropriação da cultura “derrotada”, como trabalhado

anteriormente no primeiro capítulo desta obra, pode-se observar

que durante décadas, o cristianismo viveu em harmonia com o

paganismo, podendo absorver e cooptar alguns costumes não originais

de sua crença primordial. Vale lembrar que o cristianismo primitivo

comemorava somente duas festas, a Páscoa, festa de origem hebraica,

e a ceia eucarística, esta sim “originalmente” cristã37. “Portanto, temos,

por um lado, dicotomia cultural, mas, por outro, circularidade, influxo

recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica.” (GINZBURG,

2006. p. 15)

A data do Natal, como dia 25 de dezembro, foi instituída pelo

Papa Júlio I, afim de cristianizar o “sol invicto”, pelo nascimento do

filho de Deus, o “Sol da Justiça” (SANTOS, 2002), porém esta data

é muito questionada por cientistas e religiosos. Os primeiros afirmam

que nesta data, a região de Belém apresenta temperaturas inferiores a

zero, e por isso seria impossível que pastores estivessem no campo com

seus rebanhos, pois a grama estaria completamente seca, contestando

a data a partir dos relatos bíblicos. Enquanto isto, alguns religiosos,

como os ortodoxos, não acham prudente que se compare Jesus ao deus

pagão do Sol, e por isso comemoram o nascimento do Cristo em 7 de

janeiro.

37 Tendo em vista que Harpur trabalha em seu livro que Hórus também havia instituído a ceia em seu tempo.

Estas datas, tanto o Natal, como a festa de São João, possuem

um sentido todo especial, porém para Europa, ou para o Hemisfério

Norte, pois estas datas representam o solstício de inverno e verão

respectivamente e por isso fazem jus a citação bíblica do Evangelho

de São João Evangelista, já citada anteriormente38. Porém para o Hemisfério Sul, estas datas se invertem, o Natal passa a ser o solstício de verão, e a festa de São João o solstício de inverno, assim perdendo sua justificativa bíblica para a fixação destas datas. Então por que, mesmo assim, ainda comemoramos estas festas, nestas datas específicas? A resposta para isso, é o calendário cristão.

2.2 ENTRE O CARNAVAL E O NATAL

Como Le Goff sinalizou: “o calendário é um dos grandes emblemas e instrumentos do poder; por outro lado, apenas os detentores carismáticos do poder são senhores do calendário” (1990, p. 485). A Igreja nesta época, já detinha um grande poder sobre a população, porém era necessário que este poder se legitimasse, se difundisse, e por fim se perpetuasse.

Um dos temas que mais gerou interesse nas mais diversas civilizações, foi a elaboração de alguma forma de controle temporal, algum dispositivo que se pudesse utilizar para definir datas para o plantio, colheita, acontecimentos especiais, e claro, rituais religiosos.

Não se sabe ao certo quando foi criado o primeiro calendário, mas, é certo que já existia em civilizações muitos antigas, como os astecas, chineses, mesopotâmicos, gregos, romanos, hebreus e egípcios, estes últimos com relatos da existência de calendários de mais de cinco milênios antes de nossa era. Geralmente, nas crenças religiosas em

38 “Ele (Cristo) deve crescer; eu, ao contrário, devo diminuir” (João Evangelista, 3; 30.)

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que se acreditam em deuses criadores do universo, estes também eram os responsáveis pela criação do calendário (LE GOFF, 1990).

Em Roma, após o ano de 45 a.C. o calendário que se seguiam

era o Juliano, nome atribuído devido ao seu incentivador Júlio César,

que seguindo os conselhos de Sósigenes, astrônomo grego, decidiu

por reformar o antigo calendário romano. Este novo calendário, em

contradição ao antigo39, era totalmente solar, ou seja, se baseava

no movimento do Sol para definir a duração do ano. Este calendário

contava com doze meses, divididos entre trinta e trinta e um dias, sendo

que fevereiro continha vinte e oito, e um total de 365,25 dias ao total

(algo bem próximo do real ano solar 365,22). Nesta época o ano

começava a 1º de março, pois era desconsiderado janeiro e fevereiro

pela pouca produtividade agrícola. Somente em 153 a.C., o início do

ano foi transferido para 1º de janeiro, que era a data que os cônsules

romanos entravam em função.

O cristianismo, inicialmente, se apropriou do calendário hebraico,

principalmente para a demarcação da Páscoa, porém, diferentemente

da Páscoa hebraica comemorada na primeira lua cheia da primavera40,

a Páscoa cristã se firmou no domingo posterior após a primeira lua

cheia da primavera, ou seja, no primeiro domingo após a Páscoa

judaica, pelo fato de Jesus ter ressuscitado em um domingo subjacente

à pascoa judaica.

Em 325, no Concílio de Nicéia, foi sacramentada a data em que

a festa de Páscoa seria comemorada, o texto do Concílio afirma que:

“‘Páscoa é o domingo que segue o décimo quarto dia da lua que

chega a tal idade a 21 de março ou imediatamente depois’ (em 325 o

equinócio da Primavera era a 21 de março)” (LE GOFF, 1990, p.488.).

39 Calendário lunar: baseado no movimento cíclico da lua40 No hemisfério norte.

A divisão em eras, como conhecemos, antes de Cristo e depois de seu nascimento (a.C/d.C), foi instituído pelo monge Dionísio, o Pequeno, no ano de 532. Nos primórdios da cristandade, os primeiros fiéis se utilizaram da era dos mártires, ou do tempo de Diocleciano para delimitar o início do cristianismo. Dionísio não se conformando ao ver o nome do maior perseguidor do cristianismo intimamente ligado ao começo deste, propôs que a Era Cristã começasse a partir do nascimento de Cristo, que estipulou que havia ocorrido no 753º aniversário de Roma.

Esta divisão em eras é utilizada até a atualidade, porém questionada a data de nascimento de Cristo, devido ao esquecimento do ano zero por Dionísio, acredita-se que Jesus teria nascido cerca de cinco ou seis anos antes, no que seria o ano 5 ou 6 a.C.

Em 1582, o Calendário Juliano encontrava-se defasado em relação ao ciclo natural em cerca de dez dias, ou seja, o Equinócio de Primavera, que era para ser no dia 21 de março, estava caindo no dia 11 de março, o que causava uma séria complicação para a determinação das festas móveis41 da Igreja, por isto, o Papa Gregório XIII decidiu por reformar o calendário, estipulando, a partir de consultas a astrônomos, um novo cômputo aos anos, e decidindo por retirar daquele ano de 1582, os dez dias de defasagem, motivo este que causou sérias revoltas na população europeia. Mas ao final, este calendário foi aceito, e é utilizado até a atualidade.

A Europa passou por severas mudanças no decorrer dos séculos, talvez a principal tenha sido no tempo, como Le Goff cita, “o tempo dos deuses foi sucedido pelo tempo do Deus único” (2002, p.531).

O calendário possui basicamente três funções primordiais: a primeira, é fazer uma cisão com o passado, a segunda, ordenar a vida das pessoas, e por fim, manter viva a lembrança dos acontecidos, nas 41 Festas que dependem do calendário lunar, que não possuem data fixa.

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mentes das pessoas. Os calendários em geral possuem um caráter cíclico, representando comumente a morte e o retornar à vida da

vegetação, ou representado na própria figura da Lua42, que com suas

revoluções, representa estes eterno ciclo entre vida e morte.

A partir destes conceitos, foi elaborado um calendário próprio da

Igreja, o calendário litúrgico, “diversamente de nosso calendário civil,

que é puramente solar, e do calendário islâmico, que é puramente

lunar, o calendário eclesiástico cristão baseia-se tanto no Sol como

na Lua” (WHITROW, 1993. p. 212). Este tipo “misto” de calendário se

fez necessário para permitir se estabelecer a data da Páscoa, derivada

do movimento lunar, e a data do Natal e festa de São João, festas

influenciadas pelo ritmo solar, e que possuem um data fixa.

Porém o início do ano neste calendário se mostrou, no início, um

forte motivo de discordâncias, porque, enquanto alguns defendiam que

o ano deveria se iniciar a 25 de Março, que seria a suposta data da

Anunciação do nascimento de Jesus, outros defendiam que o ano se

iniciaria com a sua Natividade, em 25 de dezembro, e ainda havia

outros que defendiam o marco inicial na festa da Páscoa, o que seria

um problema, ao se tratar de uma data que não possuía data fixa.

Para Le Goff, esta anarquia presente no calendário era típica da Idade

Média, e assim a definiu:

Esta anarquia do calendário é muito típica da Igreja medieval: vontade de fazer desaparecer os costumes pagãos, impotência para dominar os particularismos regionais e locais, desejo de impor as grandes festas cristãs como ponto de referência ou, melhor, como ponto de partida. (LE GOFF, 1990, p. 507)

Como Le Goff citou, a Igreja tinha o desejo “de fazer desaparecer

os costumes pagãos”, porém o que pode se notar é um influxo entre o

42 No caso dos calendários lunares.

sagrado e o profano, em que o calendário civil “dá” para a Igreja Cristã,

as datas especiais43 para as festas e as tradições que nelas existentes,

e o calendário litúrgico as converte, juntamente com todas as tradições

que as envolvem44, formando assim um belo exemplo do que Ginzburg

chama de circularidade cultural.

Com o passar do tempo, os calendários civil e religioso se tornam

quase que independentes, as únicas coisas que ainda os une são os

feriados religiosos (incluindo o Domingo45) em meio ao calendário civil,

e uma festa profana em meio ao calendário religioso, o carnaval.

Enquanto o calendário civil tinha por utilidade controlar o trabalho,

as estações do ano e as cobranças de impostos, o calendário litúrgico

tinha a função de tornar sempre viva a lembrança da história da vida

de Jesus, justamente por este motivo que o calendário litúrgico católico

se inicia no primeiro domingo do Advento, tempo de preparação que

antecede o Natal, e termina no dia de Pentecostes, que marca sua

Ascenção ao reino divino.

O calendário litúrgico apresenta um formato cíclico, dividido em

cinco “tempos”, são eles: O ciclo da Páscoa, o ciclo do Natal, tempo

comum (este dividido em duas partes, uma pequena parte entre

o Tempo do Natal e a Quaresma, e outra maior entre a Páscoa e o

Tempo do Advento), e o ciclo Santoral que corresponde à Quaresma.

Este calendário tem um ciclo de três anos, que são divididos em: ano A,

B, C, referente a leituras dos Evangelhos, de São Mateus, São Marcos,

e São Lucas respectivamente. O Evangelho de São João é dedicado

a ocasiões especiais, e grandes festas. Assim ao final dos três anos,

um católico que seguiu fielmente a liturgia diária, teria quase lido

por completo a Bíblia (DIOCESE DE PARANAGUA, 2015). A figura 1

43 Solstício de verão e inverno.44 Como já visto no capítulo anterior.45 Dia do Senhor para os cristãos, pois foi num domingo que Jesus ressuscitou.

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100Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2015

Tempo do Advento: é o tempo de preparação para a vinda de Cristo,

de preparação para a solenidade do Natal, além de ser um tempo

de purificação para a chegada do Cristo. Inicia-se quatro domingos

antes do Natal e termina no dia 24 de dezembro. É um tempo de

festa para a Igreja.

Tempo do Natal: Após a celebração da Páscoa, o Natal é a festa mais

importante para a Igreja, pois representa a vinda de Deus encarnado,

feito homem, no nascimento do menino Jesus. O tempo do Natal vai

da véspera do nascimento, até a Epifania que comemora o batismo

de Cristo, que se acredita foi com 13 anos de idade.

Tempo da Quaresma: este é o tempo dedicado à conversão e

purificação, tempo preparatório para a Páscoa, compreendido em

torno de quarenta dias. Neste período não são colocadas flores

nas igrejas, não se canta o Glória, nem se diz Aleluia, pois toda a

manifestação de alegria deve ser contida para o dia de Páscoa. Este

tempo é estabelecido principalmente para a purificação dos pecados

cometidos no carnaval, por isso, este tempo se inicia na Quarta-feira

de Cinzas e termina na Quinta-feira Santa.

Tempo Pascal: a Festa da Páscoa se estende por um período de cinquenta

dias, que vai do domingo de Pascoa até o domingo de Pentecostes.

Estas semanas, para os cristãos, devem ser comemoradas com

alegria.

Tempo comum: Segundo a Diocese de Paranaguá, este tempo se define

como:

Além dos tempos que têm características próprias, restam no ciclo anual trinta e três ou trinta e quatro semanas nas quais são celebrados, na sua globalidade os Mistérios de Cristo. Comemora-se o próprio Mistério de Cristo em sua plenitude, principalmente aos domingos. É um período sem grandes acontecimentos[...] Este tempo é chamado de Tempo Comum, mas não tem nada de vazio. É o tempo da Igreja continuar a

FIGURA 1- CALENDÁRIO LITÚRGICOFonte: Imagem disponível em: www.vercalendario.info. Acesso em: 16 maio 2015.

representa o calendário litúrgico católico, com suas divisões temporais.

Os tempos litúrgicos em geral se mantem quase imutáveis em

toda a Igreja Católica, variando somente alguns rituais ou festividades,

decorrente de maior afinidade à região em que se encontra. Porém, no

rito romano, considerado o mais abrangente para toda a cristandade,

se delimita em cinco tempos, anteriormente citados.

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101Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2015

obra de Cristo nas lutas e no trabalho pelo Reino. O Tempo Comum é dividido em duas partes: a primeira fica compreendida entre os tempos do Natal e da Quaresma, e é um momento de esperança e de escuta da Palavra onde devemos anunciar o Reino de Deus; a segunda parte fica entre os tempos da Páscoa e do Advento, e é o momento do cristão colocar em prática a vivência do reino e ser sinal de Cristo no mundo, ou como o mesmo Jesus disse, ser sal da terra e luz do mundo. (DIOCESE DE PARANAGUA, 2015.)

Como definido nesta última citação, que explicou o tempo comum,

o calendário litúrgico faz bem a sua função, além de relembrar os fiéis

das passagens bíblicas, servindo como uma “catequese” diária que se

desenrola ao decorrer do ciclo de três anos, revigorando a fé no Cristo,

faz o papel de incentivar os fiéis a divulgarem e converterem outras

pessoas ao cristianismo, expandindo assim o horizonte cristão.

Porém como foi dito anteriormente, estes “tempos” citados acima

correspondem ao “geral” da cristandade, além destes existem outros

tantos tempos de festas e expiação46, como por exemplo o carnaval que

é uma festa profana, por isso não aparece no calendário, mas obedece

o cômputo da Páscoa para sua fixação, e seu fim delimita o início da

Quaresma. A festa de São João, que como foi dito anteriormente,

forma juntamente com o Natal, os dois nascimentos mais importantes

para a cristandade, porém diferente do Natal, a festa de São João está

localizada no “tempo comum”. E outras tantas festas de santos da Igreja

ou santos populares, que movimentam a cristandade, mesmo sem ter

um papel de “destaque” no calendário.

E foi o sucesso deste calendário cíclico misto, que corresponde

tanto ao ano solar e lunar, como ao calendário Litúrgico e civil, que

garante que mesmo hoje em dia, o Hemisfério Sul comemore uma festa

dedicada ao solstício de inverno europeu em pleno verão tropical. Foi

46 Penitência.

criando tradições que a Igreja Cristã manteve suas festas, e este tema

será tratado no próximo item.

2.3 A SOBREVIVÊNCIA DAS FESTAS

O calendário litúrgico foi uma importante ferramenta utilizada pela

instituição católica, para a manutenção das festas cristãs. Porém, não

foi a única, e certamente, sozinho não teria conseguido tal feito.

A Igreja com o intuito de “trocar” as festividades pagãs, por novas

festividades cristãs, se viu na necessidade de mudar, ao seu bel-prazer,

as antigas tradições, para que estas se adaptassem à nova religião

que florescia na Europa. Assim criou-se diversas festas homenageando

ícones do cristianismo ao invés de divindades pagãs, assunto esse

trabalhado no item anterior. Neste item se aborda a transformação

destas novas festas em tradições católicas.

Como nos mostra Hobsbawm, muitas tradições tidas na sociedade

como tão antigas, na realidade são muito recentes, quando não

inventadas. Analisando com os olhos de nosso tempo, esta afirmação

não se enquadra, pois algumas festas cristãs, como vimos anteriormente,

têm no mínimo uns 1600 anos de duração, o que as torna relativamente

antigas, porém, imaginemos o que se passou na sociedade na época

em que a Saturnalia se tornou o nascimento de Cristo, por exemplo,

deve ter ocorrido uma tremenda confusão na sociedade da época.

Porém, foi graças à uma sistemática institucionalização destes novos

ritos, por parte da Igreja, que possibilitou a “invenção das tradições”

católicas.

Para Hobsbawm, “tradição inventada” é um termo bem amplo,

porém definido, que agrega desde tradições realmente inventadas,

construídas e institucionalizadas, até aquelas com difícil localização de

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seu surgimento, pois mesmo podendo ter surgido em um período muito

recente, se impregnaram de tal forma na sociedade que não mais se

pode separá-las uma da outra, desta forma Hobsbawm define o que é

uma “Tradição inventada”:

[...] entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente: uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuamente com um passado histórico apropriado. [...] O passado histórico no qual a nova tradição é inserida não precisa ser remoto, perdido nas brumas do tempo. [...] as tradições “inventadas” caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial. (HOBSBAWM, 1997. p. 9-10)

Neste conceito, podemos encaixar, entre tantas, duas das principais

festas da cristandade, as dedicadas aos dois nascimentos mais

importantes para a Igreja, o de São João Batista, e do próprio Filho

de Deus, Jesus de Nazaré, o Cristo. Como visto anteriormente, a Igreja

fez um trabalho primordial na reutilização para si, das maiores festas

do paganismo, o solstício de verão, ou a antiga festa do Sol Invictus,

se tornou o nascimento de João Batista, e o solstício de inverno em

que se comemorava a saturnalia, o nascimento do Messias. E estas

novas tradições, que além de herdarem muitos traços das antigas,

somente sendo remodeladas para a liturgia cristã, também anexou a si

os costumes existentes destas antigas festas.

Antes de se continuar, se faz necessário uma melhor diferenciação

entre costume e tradição. E para isto me utilizarei mais uma vez de

Hobsbawm, que os define da seguinte forma:

“Tradições”, inclusive as inventadas, é a invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas se referem impõe práticas fixas (normalmente

formalizadas), tais como a repetição. O “costume” [...] tem a dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente seja tolhido pela exigência de que deve parecer compatível ou idêntico ao precedente. Sua função é dar a qualquer mudança desejada (ou resistência à inovação) a sanção do precedente, continuidade histórica e direitos naturais conforme o expresso na história. (HOBSBAWM, 1997, p.10)

Para exemplificar esta distinção entre tradição e costume,

utilizarei o exemplo que o próprio Hobsbawm usou em seu texto,

porém modificado para o nosso tema. A tradição presente no Natal,

é a recordação do nascimento do Cristo (que seguindo o calendário

acontece todos os anos), e costume são os ornamentos que

acompanham esta data, o pinheirinho, as velas, a guirlanda, que

ao decorrer dos anos sofreram algumas mudanças, principalmente

no material que estes são preparados (antes eram feitos com

vegetais, e hoje com materiais sintéticos), e em um todo, o Natal,

é uma “Tradição inventada”, pois se apropriou de uma tradição já

existente.

Mas, mesmo assim, como este povo antigo aceitou tais mudanças

em suas tradições e costumes? Com certeza não foi com muita

facilidade, como também não ocorreu da noite para o dia. Para isso,

a Igreja institucionalizou estas festas em seu calendário, para que,

no decorrer dos anos fossem aos poucos aceitas pela população.

As festas, os rituais, se referem a um tempo de longa duração, ou

seja, se sedimentam aos poucos no cotidiano dos homens, tornando

quase que imperceptível sua lenta e gradativa assimilação. Fernand

Braudel se referiu a este tempo da seguinte forma:

Como a continuidade de uma actividade de longa duração que incessantemente repetida, atravessa as sociedade, os mundos e os psiquismos mais diversos e alcança com um último reflexo os homens

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103Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2015

(...) a história é a soma de todas as histórias possíveis: uma coleção de ofícios e de pontos de vista de ontem, de hoje e de amanhã. (1990, p 15-17)

Segundo diversos estudiosos da sociedade47, instituição é um

conjunto de ações coletivas coordenadas, que contam com agentes

hierarquizados, que seguem regras, estatutos, leis internas em

comum. Além de representar um conjunto de comportamentos

regularizados, inculcam valores (crenças) em seus agentes, gerando

assim comportamentos regulares, com repetições ao longo do tempo,

contando ou não com aparatos organizacionais. “Substantivamente,

as instituições são as ‘regras do jogo em uma sociedade ou, mais

formalmente, as restrições criadas pelo homem e que moldam suas

interações’” (CARVALHO, 2008, p. 216).

Desta forma, a Igreja estipulou suas regras, e se o povo romano,

ainda queria comemorar suas antigas festividades, seria à “maneira”

cristã. Por um lado, a Igreja cedia, ao permitir que diversos costumes

provenientes do paganismo ainda continuassem nas comemorações,

contribuindo para que a mudança fosse um pouco mais amena, e

em certos pontos48 quase imperceptível. Mas por outro lado, impunha

que os motivo centrais destas festas, fossem os nascimentos de João

Batista e de Jesus, assim cristianizando as festas. Segundo Bruno S.

de Carvalho, “as instituições condicionam as orientações individuais

e tornam os comportamentos contingentes ao contexto em que estão

inseridos”. (2008, p. 217. grifo meu).

Desta maneira, com as festas religiosas cristianizadas e

institucionalizadas, e com um calendário próprio, que tinha em sua

principal função recordar, a partir da premissa do eterno recomeço

47 Emile Durkhein; Samuel P. Huntington; Bruno Sciberras de Carvalho.48 Muito devido à falta de institucionalização da religião pagã.

baseado na vida do Cristo, foi apenas uma questão de tempo para

que estes ritos “embutidos” na cultura popular, se tornassem tradições

como Hobsbawm atribui como sendo, “inventadas”, mas tradições. Nas

palavras de Huntington, “as atitudes devem refletir-se no comportamento

e a comunidade implica apenas uma ‘associação’ qualquer, mas uma

associação regularizada, estável e sustentada” (1975. p. 22).

Ao passar do tempo somente se fortaleceram estas tradições,

ao ponto de mesmo deslocadas de sua “originalidade”, exercem

uma enorme força, tanto do ponto de vista religioso, como do ponto

de vista social e econômico. E na atualidade, já completamente

institucionalizadas, condicionam o tempo a partir delas (as festas),

e já não mais pertencem ao tempo, e sim o tempo é dedicado a

elas. Tamanha é a força gravitacional que se criou em torno destas

festas, e igualmente foi a eficácia da Igreja cristã em estruturar suas

características, que a comunidade cristã e leiga, tem suas condições

sociais e econômicas estabelecidas a partir das datas destas antigas

festas solares. Isto sendo possível somente pois:

Uma estrutura é indubitavelmente, um agrupamento, uma arquitectura; mais ainda, uma realidade que o tempo demora imenso a desgastar e a transportar. Certas estruturas são dotadas de uma vida tão longa que se convertem em elementos estáveis de uma infinidade de gerações: obstruem a história, entorpecem-na e portanto, determinam o seu decorrer. (BRAUDEL, 1990, p. 14)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As festas cristãs analisadas nesta pesquisa, são festas muito mais

antigas de que se pensava, já existiam muito antes do nascimento do

próprio cristianismo, porém com uma “roupagem” diferente. No seio do

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paganismo romano, as festas da Saturnalia, do Sol Invictus, e do calende

di giugno, Fors Fortunae, representavam a manifestação cultural de um

povo que, mesclando diversos traços de culturas dominantes e dominadas,

faziam a tradição daqueles que as viviam.

Com o advento do cristianismo, estas festas tiveram de se adaptar

aos novos ritos cristãos, mas mesmo tendo muito de suas origens

mudadas, continuaram a amalgamar as antigas tradições pagãs, com

as recém “criadas tradições” cristãs, o que veio a delinear os costumes

que caracterizam estas festas até a atualidade. Segundo Maria Nazareth

Ferreira (2000), após vários séculos de convívio mútuo entre o cristianismo

e o paganismo, estas festas expõem no cotidiano atual, a força de suas

antigas origens, identificando a cultura como um prática cotidiana.

Esta prática cotidiana só foi possível, graças à institucionalização das

festas pela Igreja cristã, que se utilizou destas para que pudesse difundir

sua catequese aos mais longínquos rincões da Terra. Como anteriormente

citado, junto a estas festas vieram uma infinidade de costumes, de uma

origem puramente pagã, e que poderia muito bem descreditar a Igreja

por adotá-los.

Sobre estes costumes a Igreja logo tratou de aculturá-los, dando lhes

novos sentidos, como a vela que se acendia durante a Saturnalia, para

afugentar a escuridão do inverno e trazer a lembrança do calor do fogo, e

se tornou em uma forma de recepção ao Menino Jesus que nasce em todos

os Natais. Outros tantos costumes foram absorvidos, e ajudaram a instituir,

estas festas metamorfoseadas, como legitima tradição católica.

A Igreja cristã lutou muito para que estas festas perdessem todo

o sentido que antes tinham, e adquirisse um novo, um sentido cristão.

Mas como pôde ser visto, no decorrer da pesquisa, as influências que o

paganismo teve sobre as “festas cristãs”, é algo imensurável, pois sem o

paganismo talvez não teríamos o Natal, ou o teríamos em outra data, mas

com certeza não teríamos o pinheiro de natal e nem a guirlanda, e isto

também sendo válido para a festa de São João, já o carnaval, este com

certeza não existiria.

Fontes históricas precisas sobre as festas cristãs são muito escassas

quando não inexistentes, pois ao se tratar das festas cristãs, como o Natal,

por exemplo, trata-se de uma tradição construída ao longo de um longo

tempo, e durante esse período as festas passaram por “adaptações” à

liturgia do cristianismo, para que todo vínculo que as ligava com suas

antigas origens pagãs fossem apagadas.

Por esse combate da Igreja contra as “lembranças” do passado de suas

festas, nenhum documento de época faz ligação dirtamente entre estes ritos

cristãos e antigos ritos agrários romanos. E mais, como já insistentemente

lembrado aqui, na Igreja tudo ocorre em grandes períodos de tempo, ou

seja, uma festa do porte do Natal, não surgiu no decorrer da história, do

mesmo modo que uma lei é promulgada por um imperador, de forma

repentina, em um breve período de tempo, ao contrário, enquanto a lei

possui uma data certa de criação, uma festa, ou manifestação religiosa,

caminha relativamente solta no tempo, e somente com uma repetição que

se perpetua ano após ano, e isto durante décadas, transforma este ato

festivo em uma tradição enraizada no cotidiano do povo.

A Igreja estimulou um hábito cristão para estas festas, mas ninguém

poderá afirmar ao certo, quando estas passaram a ter um sentido cristão

no imaginário do povo leigo, só se pode afirmar que isto foi possível graças

a repetição insistente, que as transformaram em tradições, que ao passar

de geração em geração foi se disseminando que era o Menino Jesus que

nascia em 25 de Dezembro, e não mais o deus Sol.

No segundo capítulo desta pesquisa se trabalhou a tradição, como

elemento fundamental para a perpetuação das festas, focalizando em

especial os costumes natalinos, destacando-se como a tradição se torna ao

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longo do tempo forte e imutável. É costume no Natal colocar-se algodão

no pinheirinho para imitar a neve, mas por que fazer isso, abaixo da linha

do Equador, em pleno verão tropical? Com certeza, esta tradição deriva

dos imigrantes europeus que aqui se estabeleceram, e que mantinham este

hábito como forma de lembrar-se da festa realizada em sua terra, em geral,

países europeus. Porém para seus filhos e netos que não conheceram um

Natal com neve, não teria sentido continuar a colocar esta falsa neve em

seus pinheirinhos, a não ser pela tradição herdada de seus pais ou avós.

Por esses motivos, foi necessário fazer aqui uma pesquisa basicamente

bibliográfica, pois não é possível encontrar fontes primárias, acerca do

tema, passiveis de serem analisadas. Para a realização deste trabalho,

foram utilizados vários artigos, livros, documentos, entre outras mídias,

que abordam o tema, mas sem tratar especificamente deste. Por isso,

foi necessário “pinçar” dados, para a análise de uma história acerca

das festas do cristianismo, que passaram por uma circularidade entre as

culturas pagã e cristã e a influência que a primeira exerceria sobre as festas

da segunda.

Assim, em linhas gerais, se pode dizer que, neste vasto tema, foi

necessário, para a construção das festas cristãs, não somente a vontade da

Igreja em “tê-las” para si, em sua liturgia, mas um conjunto de elementos,

que juntos, contribuíram para a formação, ou transformação destas nos

moldes do que se conhece na atualidade. Dentre estes elementos ressalta-

se o tempo de duração que estas possuem, que permitiu a construção

de uma tradição, que envolve estas manifestações dando a elas uma

perpetuação, firmando nas novas gerações de fiéis ou leigos suas antigas

“verdades” cristãs, e por fim as assimilações que a cultura religiosa, fez

de costumes profanos, como as danças e comilanças que marcam estes

períodos festivos.

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