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Chalhoub Cidade Febril

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Cortiços e epidemia no Rio de Janeiro – Corte Imperial

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SlDNEY CHALHOUB

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CIDADE FEBRlL

Cortir;:os e epidemias na

Corte imperial

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LJ.F.M.G. - 811:lUOlECA UNIVERSITARIA

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t�;\O DAtJIFIQlJE ESTA ErlQUETA

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CORTIr;OS

UAlA OPERA(..fo DE GUERRA'

Era 0 diu 26 de juneiro de 1893, por voila das seis horas da

tarde, quando muita gentc comcl;0U a se aglomerar diantc da esta­

lagem da raa Barao de Sao Felix, nC 154, Tralava-se da emrada

principal do Cabe�a de PoreD, u mais celebre corti'ro carioca do

pcriodo: urn grande portal, em arcada, omamentado corn a figura

de Lima cabc\=a de poreD, tinha atnis de si urn corredor central e

duas longas alas com mais de uma centena de casinhas. Alem des­

sa fua principal, havia algumas ramilicatyoes corn mais ffi9radias e

varias cocheiras. Ha controversia quanta ao mimero de h�bjtantes

da eslalagem: dizia-se que, em tempos aureos, 0 conjun�o havia

sido ocapudo por cerca de 4 mil pessoas; naquela noile dejaneiro,

corn toda uma ala do cortityo interditada havia cerea de 'urn ano

pela lnspcloria Geral de lIigiene, a Gazela de Nolicias calculava

em quatrocentos 0 numero de moradores. Outros jomais da epoca,

porem, alirmavam que 2 mil pessoas ainda habitavam 0 locaJ.2

Seja como for, 0 que se anunciava na ocasiao era urn verda­

deiro combalc. Tres dias anIes os proprietarios do cortiryo haviam

recebido uma inIimar;ao da Intendencia Municipal para que provi­

denciassem 0 despejo dos moradores, seguido da demoli9ilo ime­

diala de todas as casinhas. A intima,ilo nilo fora obedecida, e 0

prefeilo Barata Ribeiro promelia dar cabo do corti,o a for,a. As

sete huras e LrinIa minutos da noite, uma tropa do primeiro bata­

lhao de infantaria, comandada pelo lenente Santiago, invadiu a

esLalagem, proibindo () ingresso e a safda de qualquer pessoa. Pi-

15

Page 3: Chalhoub Cidade Febril

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quetes de cavalaria policial se posicionaram nas ruas transvcrsais

a Barao de Sao Felix, e oUlro grupo de policims subiu 0 morro que

havia nos fundos da estalagem, fechando 0 cerco pela rctaguarda.

Os jomais do dia seguinte se deleitaram em publicaI' a illlpres­

sionante lista de autoridades presentes il "deLepac;ao" do Cabec;a de

Porco - como dizia 0 Jom"/ do Brazil. 0 p'efeito Barala Ribeiro e

o chere de policia da Capital Federal assumiram pcssoalmcl1tc 0

comando das operac;oes; e LIma numerosa cquipe se fez prcsente

para auxilia-Ios: 0 dr. Emidio Ribeiro, engenheiro municipal, {) tlr.

ArtUf Pacheco. ll1�dico Illunicipal, 0 dr. Frcdcrico Frocs, sccrclario

da Inspetoria Geral dc Higienc, que compareccll acompanhaoo pelu

delegado da lnspetoria no distrito, e mais 0 fiscal da Ireguesia, guardas

fiscais, oficiais do excn.:ilo, da armada, da brigada policial, e Jlgulls

intendentes (equivalentcs aos aluais vereadores).

Consumado 0 cerea polieial a cstalagcm, e posicionados os

tecnicos e 8utoridades, surgiram muis de cem trabalhadores da In­

tendencia Municipal, adequadamcntc armados cam picaretas e

machados. Os ernpresarios Carlos Sampaio e Vieira Souto, tam­

bem presentes ao evento. providenciaram 0 eomparecimento de

outros qu�renta opcrarios da Emprcsa de f\.:ldhoramentos do I3ra­

sil, para auxiliarem no trabalho de destrlli�ao. FiIialmente, urn grll­

po de bornbeiros. COIll sLlns cornpetentes rnangueiras, se ,apresen­

tau para irrigar os tern::nos e as casas, aplacando assim as densas

nuvens de pocira que eome�a\'am a se Icvantar.

o Cabe�a de Porco - assim como os l.orti�os do cenlro do

Rio em geral - era tido pelas 311toridadcs ua epoca como urn

"valhacouto de desordeiros". Diante de tamanho aparalo repress i­

vo, todavia, nao pareee ter havido nenhuma lcsisll;:neia mais seria

por parte dos Illoradores a oeupar;ao da eSlalagem. Dc qUlllquer

forma, segundo 0 relato da Gaze/a de No/icia.'i, ocorreram algumas

surpresas. Os esfon;os se concentraram primeiramente na ala es­

querda da estalagem, a que estaria supostumcnte dcsabitada huvia

cerca de urn ano. Os trabalhadores comec;avam a destelhar as casas

quando safram de algumus delus crian�as � Iludhercs carregando

m6veis, colch6es e tudo 0 mais que conscJuiam retirar a tempo.

Terminada a demolir;ao da ala esquerda, os trabalhadores passa­

ram a se oeupar da ala direilil. em cujas cusinhas ainda havia

sabidamente moradores. Varias familias se recusavam a saiT, se

retiranda quando os escombros comec;:avam a chover sabre su�

caber;as. Mulheres e homens que saiamdaqueles quartos "estreitos

e infectos" iam as aUlOridades implorar que "os deixassem penna­

neeer ali por mais 24 horas". Os apelos foram inuteis, e os morado­

res se ernpenhararn entao em salvar suas camas, cadeiras e outros

objetos de uso. De acordo corn a Gaze/a, porem, Umuitos m6veis

nao foram a tempo retirados e ficaram sob 0 entulho". Os.traba­

Ihos de demolic;ao prosseguiram pela madrugada, sempre acompa­

nhados'pelo prefeito Barata. Na manha seguinte, jil nao mais exis­

tia a celebre estalagem Cabec;a de Porco.

o destino dos moradores despejados e ignorado, mas Lilian

Fessler Vaz, autora do melhor e mais completo estudo sobte a his­

IGriu dos cortic;:os do Rio, Icvantou recentemente uma hip6tese bas­

tante plausivel. 0 prefeito Harala, nUIll magnanimo romphllte de

gcncrosidade, rnandou "facultar a gente pobre que habitav&'aquele

recinlO a tirada das madeiras que podiam ser aproveitadas" em

outras construyoes. De posse do material para erguer pelo menos

casinhas precarias, alguns moradores devern ter sUQido O' mOITO

que existia 1<1 mcsmo por detras da esralagem. Urn trecho do dito

mOlTo ja parecia ate ocupado por casebres, e pelo menos uma das

proprictarias do Cabe�a de Poreo possuia lotes naquelas encastas,

podcnJo assim ale manter alguns de seus inquilinos. Poucos anos

Illais tanJe, em 1897, rai justamente nesse local que se foram esta­

bdt.:L:t.:r. L:OIll a dcvida autoriza<;:30 dos chefes militares, os solda­

dos t:gressos da campanha de Canudos. 0 Jugar passou entao a ser

chamado de "morro da Favela".' A destruic;ao do Cabec;a de Porco

marL:OU 0 inicio do fim de uma era, pois dramatizou, coma ne­

nhulll oulro cvento, 0 processo em andamento de eITadica�ao dos

corti�os cariocas. Nos dias que se seguiram, 0 prefeito da .Capital

Federal loi calorosalllente aclamado pela imprensa - ao varrer do

mapa aquela "sujeira", ele havia prestado a eidade "servir;os

inolvid3vcis". ('om efeito, trata-se de algo inesquecivel: nem bem

se anllllciuv:J u lim da era dos corti<;os,e a cidade do Rio ja entrava

no sct..:lIlo das hlvclas.

As n::pert..:ussoes da dcstrlli�ao do famoso cortic;:o na grande

imprcllsa uo periodo foram UIll espell1culo a parte. Na Revis/a

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,; fllustrada, 0 evento [oi saudado com urn humor <.Isqueroso: 0 kilor

[ai servido de urn prato com uma eoorme cabeya de poreo, de olhos

entreahertos e fisionomia lacrimejante, e sabre a qual se achava

uma barata devidamente cascuda e repugnante. A reputa<;ao do

corti<;o demolido e a atividade do inseto on'cabe<;a do porco eram

descritas em versinhos:

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!1' i1,1;'J' I1 "

1 I'.,

Era deferro (I ('ahe�'{/,

De fal pmkr tnjinitu

Que, se bem nos parera,

Devia ser de grantlo.

rcnascer. Ou seja, 0 Jornal do Brazil parecia terner que 0 Cabe�a de

Porco pudesse ressurgir. Na mitologia;a derrota da hidra foi urn dos

lrabalhos de Hercules. A moral da hist6ria doJB e que Barata Ribei­

ro, homem pequeno e magricela, devia ser urn Hercules dos "novos

tempos", e sua missao era purificar a cidade, livrando-a definitiva­

mentc daqueic "mundo de imundicie"i

ESla narrati va da destrui�ao do mais famoso corti�o', carioca

do seculo XIX e suas repercussoes nos abrern urn lequebastante

amplo de perguntas. E dificil entender 0 porque de 0 Cabe<;a de

I'orco''ter sido demolido de forma tao abrupta e violenta, e ,sem que

providencia alguma fosse tomada para acomodar as centenas de

moradorcs envolvidos. Se nos detivermos apenas nos lances do

espctaculo em si, e impossivel perceber 0 sentido de tamanha de­

monstra<;ao de lor<;a, de capacidade de intimida<;ao e, mais funda­

mental ainda, nao se encontra a explicac;ao para tanto 6dio de clas­

se. Os alos de Barata Ribeiro nao surpreendem muito, pois esta foi

uma personagem que, valendo-se do apadrinhamento do todo-po­

deroso Floriano Peixoto, agiu freqUentemente como urn'despota

durante 0 periodo no qual esteve a frenle da administra,ao da cida­

de. Mas e a aclama,ao da imprensa, com suas metMoras & guerra

e de masculinidadc, e seu regozijo na eliminaf;ao de urn "outro"

tao unanimemente iodesejado?

o que mais impressiona no epis6dio do Cabe<;a de Porco e sua

torlurante contemporaneidade. Interven,oes violentas das autorida­

des constituidas no cotidiano dos habirantes da cidade, sobtodas as

alega<;6es possiveis e imagimiveis, SaG hoje urn Jugar-comum nos

eenlros urbanos brasileiros. Mas absaJutamente nao fai sempre as­

si m, e essa lradi<;ao roi algurn dia inventada, ela tambem tem a sua

hist6ria. 0 epis6dio da destrui<;ao do Cabe,a de Porco se transfor­

mou num dos marcos iniciais, num dos mitos de origem mesmo, de

toda uma lorrna de conceber a gestao das diferen,as sociaisna cida­

de. Vamos localizar aqui dois pontos fundamentais dessa larrna de

lidar COOl a diversidade urbana. 0 primeiro e a constru,ao da no<;ao

de que "classes pobres" e "classes perigosas" - para usar a terrni­

nologia do seculo XIX - san duas expressoes que denotam, que des­

crevem basicamente a mesma "realidade". 0 segundo refere-se aD

surgimento da ideia de que Lima cidade-pode ser apenas "adrflinistra-

No sell bojo seclllur

DeJhr(.'wi dumsladort/s,

Vi\'iam sempre a bailor

Plll/hos e lIIetrallwl!ora.\'

Por isso \'iI'eu !lw/(Jiiila

Dos pot/en's lemerosos,

CVII/O llJll IOllco ('do dejifu

fJwlIilhamlo poderosos.

Mais ets 'life UUl diu a b,.rata,

Del/-Ille nil lelha alnwrd:/o,

E assim joi, sem pC/furt//,',

Roemlo, 1I/(! del'or£i-la!4 .

II\1

Em gerai, as noticins sobre 0 epis6diolouvavam a decisao e a

coragem do prcfeito cum alusocs a mitoiogia greco-rolllana. Em es­

tilo gong6rico bastante comum na imprcnsa do periodo,'a Gllzew

transfigLlrava 0 prcfeito cm Perseu, e 0 Cabe�a de Poreo em Cabe�a

de Medusa: assim, ticamos informados de que a a�ao do Barata rai

tao corajosa quanta a do lilho de Jupiter, que viajou ate as proximi­

dades dos infernos para dar cabo de ummon.tro de cabe<;a enorme e

cabeleira de serpentes, temido pelos pr6prios imortais. Ht no J(�nl(ll

do Brazil, havia receio de que a estalagem losse como "uma hidra

igual a de que nos fala a mitologia". A hidra era uma serpente de

multiplas cabe,as, cujo halito venenoso malava lodos os que deia se

aproximavam. Se cortadas, eSSiJS cabeyas tinham a propricdadc de!!'j

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da", islO e. gerida de acordo com criterios uniCdlllcntc tccnicos ou

dentiticos: trata�se da CrCI1y3 de que haveria uma racionalidadc

cxtrinseca as desigualdades sociais urbanas, e que devcria,nortear

entAo a conduyilo nilo-politica, "'competente", "'dicienle", das poli­

ticas publicas. Essas duas crenyas, combinadas, tern contribuido

muito, em nossa hisloria, para a inibiy30 do cxcrckio <.la cidadania,

quando nao para 0 genocidio mcsmo de cidauaos.

publicado em 1840, sabre "as classes 'perigosas da populayilo nas

grandes cidades".6

o objetivo declarado de Fregierera produzir uma descriyilo

detalhada de todos os tipas de "malfeitores" que agiam nas ruas de

Paris. Fregier chega efetivamente a recuperar muito do mundo das

proslitutas, dos ladroes e dos especlalMes de todo tipa que pare­

cium infcstar a velha Paris; 0 fato, pacem, e que, apesar de seu

empenho e cuidado na analise das estatisticas, ele nilo foi capaz de

resolver um problema decisivo: seu estudo sabre os umalfeitores"

acabo� resullando numa ampla descriyilo das condiyoes de vida

dos pobres parisienses em geral, e ele falhou na tentativa de deter­

minar cam qualquer precisilo a Ironteira entre as "classes perigo­

sas" e as "classes pabres".

Pais e cxalamente ande Fregier cmpaca, allde ele DaO conse­

gue extrair ideias claras e distintas de seus dados, que os nossos

depulados irilo encontrar inspiray30 para 0 seu filosofar sabre a

'(uestilo do lrabalho, da ociosidade e da criminaJidade na socieda­

de brasileira. A comissilo parlamenlar encarregada de analisar 0

projeto de lei sobre a repressao cl ociosidade vai buscar os funda­

mentos teoricos de sua guerra santa contra os vadios - tratava-se

de ullla questilo de "salvayilo nacional" - citando Fregier:

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CLASSES POBRES, CLASSES PERIGOSAS

..

A expressao "classes perigosas" parece ter surgido na primei­

ra melade do seculo XIX. A escritora inglesa Mary Carpenter, par

exemplo, em eSludo da decada de 1840 sabre criminalidade e "in­

rancia culpada" - 0 termo do seculo XIX para os nossos ,"mcninos

de rua"-, utiliz3 a exprcssao c1aramcn�e no sentido de um grupo

:;acial formado a margcm da sociedade civil.ParaMary Carpenter,

.\S classes perigosas cram constiluidas pelns pessoas 411C ja hOll­

vesscm passado pela prisao, ou as que, mesmo nao tendo sido pre­

,as, haviam optado por obter 0 seu suster-to code sua familia

r1traves da pratica de furtos e nao do trabalho. Em suma, a exprcs­

<>30 e utilizada aqui de forma bastante restrita, rcferilldo-sc apenas

aos illdividuos que ja haviam abertamente escolhido uma cstratc­

gia de sobrevivencia que os colocava cl murgcm da lei.)

Yamos cnconlrar 0 conceitu de classes pcrigosas C0ll10 lllll

dos cixos de urn importante debate parlamentar. ocorrido na Ca­

mara dos Deputados do Imperio do Brasil nos meses que se se­

guiram cl lei de aboliy30 da escravid3o, em' main de I �88. Prco­

cupados corn as consequcncias da aboliy30 pam a organizuc;ao

do trabalho, 0 que estava em pauta na ocasiao t:r.J urn projeto de

lei sobre a repressao a ociosidade. Nossos pari amentares, avidos

leitores de cornpendios europeus, irao utilizar corno fonlc nessa

questilo alguns autores franceses, cuja delini<;ilo dc classes peri­

gosas parecia vir mais ao encontro de suas preocupac;6es. Eks

recorrem corn frequcllcia, por exemplo, a M. A. f'regier, urn alto

tuncionario da policia de Paris que, bast:�jndn-sc nu analisc de

illqueritos e estatisticas policiais, cscrevcu um livro inlluenlc,

() lrecho aeima e uma babel de ideias - produzida porFregier

e alegremente encampada pela nossa comissilo parlamentar. Note­

se, inicialmenle, que ja eslamos muito distantes da definiyilo res-I

lrita e baslanle precisa de "classes perigosas" proposla par Mary i

Carpenter. Dc J�to, a expressao ganha aqui uma abrangencia inau­

dit;.l. 0 primciro enigmu a decifrar e se os nobres deputados, aD

As classes pohres e viciasas, diz um criminalista nOlavel, sempre

foram e haa de ser sempre a mais abundante causa de todas as sortes

de malft:itores: sao das que se designam mais propriamente sob 0

titulo de --- classes perigosas -; pais quando mesmo 0 vicio nao e

al:ompanhado pelo crime, 56 0 fato de aliar-se a pobreza 00 mesmo

iodividuo constitui um juslO motivo de (error para a socledade. 0

perigo social cn:sce e toma-se de mais a rnais amea�ador. it medida

que 0 pohre deteriora a sua condi�i1o pelo vfcio e, a que e piar, pela

ociosidadc.1

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lltilizarem a formula "classes pobres c viciosas', pensavam que as

palavras "pobres" e "viciosas" signilicavam a 1l1csma coisa; ncstc

caso. todos os pobres seriam viciosos. Caso esses lermos nao apa­

reryam coma sinonimos, tkariamos com a possibilidadc de termos

"bons" pobres - honestos, trabalhadores - e pobres viciosos -­

aqueles que seriam os membros potenciais das classes pcrigosas.

Os debates parlamcntares miD respondent a qucst:1o com c1a­

reza, mas e passive! perceber uma tcndencia:.para os nohrcs dcpu­

lados, a principal virtude do bom cidadiiu c u goslo pelo lrabalho,

e este leva necessariamente ao hcibito da puupum;a, que, por sua

'v'CZ, se reverte em coo1'orto para 0 cidadao. Ocsta funni.!, 0 indivi­

duo que nao conseguc acumular, gue vive na pobrcza. loma-se

imcdiatamente suspeito de nao ser UIll bom trabalhador. Finnlmen­

le, e coma 0 maior vicio possivcl cm 1I1ll ser hUl1lanu e u nao­

Irabalho, a ociosidade, segue-sc que aos pohres liJlta a virtllde so­

cial mais essencial; cm cidadaus !lOS 4uais nao ahunua a virluuc,

grassam os vicios, e logo, uada a exprcssao "classes pobres c vi­

'-:iosas", vemos que as palavras "pobrcs" e "yiciosas" signilicam a

mesma coisa para os parlamentares.

Urna vez cometida essa abstra�3o, Ull essa imprecisao, na ori­

gem do raciocinio - abstra<;3o OLl imprccisao pur411c os dcpu­

I.ados obviamenle Ilao podiam enconlmr di.ldos de realidadc que

fundamentassem a assen;;ao de que ludo lr�\halhador honesto ne­

'�essariamente escaparia a pobreza-, 0 res :�l se segue corno 4ut:

llaturalmentc: os pobres carregam vicios, os vkios produzclll us

malfeitores, os malfeitores sao perigosos a sociedade; juntando os

extremos da cadeia, temos a no�ao de que os pobres sao, por dcli­

niC;ao, perigosos. Por conseguinte, conclui dcc!didamente a comis­

sao, "as classes pobres [ ... 1 sao las] que se designam mais propria­

mentc sob 0 titulo de - classes perigosas __". Por um lado, a

comissao pariamentar foi competente e chcgou as suas conclus6es

pela 16gica; por outro lado, ela lirou conclusocs a respeilO de coisa

nenhuma, pois, como vimos, seu raciocinio'se dcscnvolveu a par­

lir de uma abstrayiio, de um vazio, do nada.

Mas felizmente ja se foram os tempos em que os historiadores

nao acreditavam na possibilidade de as ideias lambem tazercm his­

Iona. E infelizmente os historinuorcs hojc j,. dcscobririllll que ate

iJcias vagas, surgidas do nada e da eonfus�o mental, fazem hist6ria

e, C0l110 niio podia deixar de ser, fazem uma hist6ria da pior qualida­

de. Assim c que a nOyiio de que a pobreza de um individuoera fato

suftcienle para loma-Io um malfcitor em potencial teve ehonnes

conseqlieneias para a hisl6ria subseqUente de nosso pais. Este e, por

exemplo, um dos limdamenlos te6rieos da estrategia de altJa\,�o da

policia nas grandes cidades brasileiras desde pelo menos as.primei­

ras docadas do scculo xx. A policia age a partir do pressuposto dalsuspeiyiio generalizada, da premissa de que todo cidad�o e suspeito

de.: alguma coisa ate prova em conlrario e, e 16gico, alguns cidadaos

sac mais SUSpcilOS do que outros. 0 romancista Lima Barreto, corn

sua argllcia habitual. ja descrevia a eSlrategia com preeis�o em Ce•." " ", ...�."... ,

lIliterio dO.I' \'ivos, lexlo publieado em 1921:

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li ;"! , 11,.

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A polici<.l, nao sei coma c par que, adquiriu a mania das generaliza­

�Ocs, e us lIIuis infanlis. Suspeila de todo 0 sujeito estrangeiro corn

nome arreves<.ldo, assim os nlSSOS, polacos, romaicos sac pa/a ela for­

�()S<.lIllCnIC caltcns; todo 0 cidadao de cor ha. de ser por for�a' urn ma�

landro; e louos us loucos hao de sel" par forl(a furiosos e s6 transportA­

vcis cm I.:arros blindados.K

A slIspeita de que os cstrangeiros fossem caftens parcee algu

CirCll!lScrito ao pcriudo historico no qual Lima Barreto esta inse­

rido, e a reJt:renr..:ia ao sllplicio dos IOllCOS pode ser uma reminis­

..:cncia pcssoal do romancista, ja que ele pr6prio andou sendo

":oJlduzido ao hospicio mais nu menus nessa epoca. Mas e a sus­

peila de que "todo cidadao de cor" fosse necessariamente "urn

malandro'''?

Na verdade, 0 conlexto hist6rico em que se deu a adoyiio do �

conccito de "classes perigosas" no Brasil fez corn que, desde 0

inicio, os negros se tornassem os suspeitos preferenciais. Na dis­

cussiio 'sobre a repressiio a ociosidade em 1888, a principar'dificul­

dude dos ueplItados era imaginar corno seria possivel garantir a

organiza�ao do mundo do trabalho sem 0 recurso as polfticas de

domfnio caractcrlsti..:as do cativeiro. Na escravidao, em ultitna ana­

lise, a rcsponsabilidade de manter 0 produtor direto atrelado a pro­

du,iio cabia a cad" proprietario/senhor individualmente. Este or­

ganizJvJ as rclay()cs de trabalho cm sua unidade produtiva atraves

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de uma combinayao entre coen;ao explicila e medidas de prote�ao

e "recompensas" patemalistas - uma combinac;iio sempre a,rris­

cada, aprendida no proprio exercicio cotidiano da domin�<;ao. Com

a desagrega<;ao da escravidao, e a conseqUente falencia das pniti­

cas tradicionais, coma garantir que os. negros, agora libertos, se

sujeitassem a trabalhar para a continuidade da acumula<;ao de ri­

quezas de seus senhores/patroes?

Nesse momento de incerteza em relaC;3o ao que poderia acon­

tecer, a primeira invenc;3.o que permitiu pensar a organizac;ao das

relayoes de trabalho em novas termos foi 2. "teoria" da sllspeic;iio

generalizada - que e, de fato, a essencia un expressao "classes

perigosas". la que nao era mais possivel manler a produ<;ao por

meio da propriedade da propria pessoa do lrabalhador, a "tcoria"

da sllspeic;ao generalizada passou a fundamentar � inven\ao de uma

estrategia de repressaa continua fora dos limites da unidade pro­

dutiva. Se nao era mais viavel acorrentar 0 produtor ao local de

trabalho, ainda restava amputar-lhe a possibilidade de oao estar

regularmente naquele lugar. Dai 0 porque, em noss() seculo, de a

questao da manutenc;ao da "ordem" ser perccbida coma alga per­

tencente a esfera do poder publico e suas inslituic;oes especilicas

de controle - policia, carteira de identidade, earteira de trabalho

etc. Ncnhum desses elementos estava no ccme da politica de do­

minio dos trabalhadores na escravidao; na ',-eroaoe, ate 1871, nao

existia sequer algum registro geral de trabalhadores.

OS" negros se tomaram slIspeitos preferenciais tambem devido

aquilo que os ex-senhores e atuais patroes imaginavam ser 0 carater

dos individuos egressos do cativeiro. Ao discursar em apoio ao

projeto de repressao a ociosidade, 0 depUlado Mac-Dowel! resll­

miu bem a opiniao dominante entre os par.lamcntares a respcito

dos Iibertos:,.�� I'r:,1

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Ha 0 dever imperioso par parte do Estado l.lc reprimir e opor um

dique a todos os vicios que 0 liberto trOllxe de seu anligo estado, e

que nao podia 0 efeito miraculoso de uma lei.llu.cr desapareccr, pOI"­

que a lei nao pode de lllll momento para outro transfonnal" 0 que csta

na nalurezu.

l ... ] fA] Jei produzinl os desejados dciH).S compelindo-se a pupu­

la.;ao ociosa ao trabalho honesto, minorando-sc 0 efcilO desastroso

24

que fatalmellle se preve como cons'equencia da libertat;ao de uma

massa enorme de escravos, alirada no meio da sociedade civilizada,

escravos sem estfmulos para � .bem, sem educac;a�, sem o� s,enlimen- ,,'" ",_:';:';�f:ij,

tos nobres que s6 pode adqulfIr umapopulac;ao ltvre: .. ll _ ��:;..,��

De i�.'cio, 0 depllta.�o afirma algo que sugerimos h� p.o�1i;' ..��o "Estado passa a ter 0 dever Imperloso" de aglr mals deCldlda-__...........

mente na polftica de controle social dos trabalhadores. Em segui- .,-.�;;;,:���

da, encontramos novamente uma certa confusao de ideias. Aa '

tentar explicar 0 que ele pressupoe sem nenhum esfor�o de com-

prova\:ao - 0 "fato" de 0 liberto ser possuidor de "todos os vi-cios" -, nosso deputado mostra-se indeciso. Primeiramente. atri-

blli os tais vfcios dos negras a "seu antigo estado": as condi<;5es

de vida no cativeiro seriam as responsaveis pelo suposto

despreparo dos ex -escravos para a vida em liberdade. Logo adian-

te, todavia, e ainda na mesma frase, 0 parlamentar argumenta que

a lei de 13 de maio nao poderia mesmo tcr abolido os vicios dos

libertos, pois uma lei nao pode transformar"o que esta aa nature-

za". Neste caso, 0 deputado ja mudou claramente de con'versa: os

"defeitos" dos negros nao se explicam a panir de urn determina-

do fato social - a escravidao-, parem se situam num campo

eXlrinseco a hist6ria - a "natureza". Insinuam-se aqui, sem du-

vida, as famigeradas teorias racistas, que se tornariam mais in-

tluentes nas decadas seguintes; e a conseqtiencia disso e que os

"defeitos" dos negros podem ser pensados coma insuperaveis.

tornando-se eles, assim, membros potencialmente pennanentes

das classes perigosas.

Corn esta breve analise do surgimento da no�ao de classes

perigosas, ja entendemos em parte como foi passlvel ao poder

publico agir corn tanta violencia contra a Cabe�a de Parco, aque­

le antra de suspeitos. A destrui�ao do corti�o cadoca mais famo­

so da epoca nao fai urn ato isalado, e sim um evento no processo

sistematico de persegui�ao a esse tipo de moradia, 0 que vinha se

intensilicando desde pelo menos meados da decada de 1870, mas

que chegaria a hisleria corn 0 advento das primeiras administra­

\=oes republican as. E e preciso ao menos mencionar urn outro

Illotivo para a lruculencia contra os corti<;os neste contexto: tais

25

Page 8: Chalhoub Cidade Febril

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habitac;oes foram urn importanle cemirio da luta dos Ilt:grus un

Carte contra a escravidao nas llitimas decadas uo seculo XIX. Em

oulras palavras, a decisao polilica de expulsar as classes popula­

res das areas centrais da cidade podia cstar associada a uma ten­

tativa de desarticula�ao da memoria reccnte-dos movimentos 50­

dais urbanos.

Dais documentos que relacionam COrlH;:OS c escravidao nos

lazem vislumbrar a dimcnsao do problema na visao dos st:nhores c

seus preposlos. Em 5 de maio de 1869, a col una de "publica<;6es a

l1edido" do Jornal do Commerciu lrazia uma curla dirigiJa ao che­

fe de policia da Corte:

j1\,I�I;'

�.�i}:

Pedimos a S.Ex. mandar dar busca cm vurins cortilYoS da Corte, tlue

se esUlo translormando CIll asilo de cscravos fugidos, cm JctrilllClllo

de sellS possuidores para jogos C OlltroS atas imorais e prejlldiciais.

Sera um grande servic;o que prestara S.Ex. aos posslIiuorcs de esna­

vos, que com esperanp recorrcm ao zelo c jU3til;a de S.Ex.'U

'Jo segundo doclImcnto, as habita<;5es poplIlarl:s ---, u palavra "cor­

l.i90" nao consta do texto, apesar de ser obvia a <,llusao a este tipo

'Je moradia � tambem uparecem como esconderijos de cscravos

rugidos. Mas ha aqui outro aspecto talvez ainda mais, deses,tru­

!.urador da escravidao urbana. A prolire�a<;ao dos corti<;os nu cida­

de do Rio se deu a partir das decadas de 1850e 1860, e esleve

ligada ao aumento do tluxo de imigrantes portugueses e ao cresci­

'nento do nlul1cro de alforrias oblidas pelos "�scravos. Alcm disso,

-= este e 0 assunto do documento que se segue, tornava-se cada vez

mais comum que os cativos conseguisscm al:..1torizJyao de seus sc­

nhores para que vivessem "sabre si", como �-cdizia na cpoca. Agu­

ra e 0 proprio chefe de polfcia da Carte quem endcn:ya uma COr­

respondencia aos vereadorcs da Camara Municipal:

Secretaria de Policia da Carte, 19 de man,:o-u;:, 1l::60

Illmos. Snrs.

"

Exisle nesta cidade LUll grande IllUllero de cas<.ls alugadtis Jin:ta­

mente a escravos, OLl a pessoas livr�s, que pan.:ialm�llte as sllhlocam

a escravos.

�I"!

1;1l6

r,..

Os males resultantes de uma lal pn\tica sao not6rios, uinguem

ignorando que essas casas, aleffi de serem 0 valhacouto de escravos

fugidos e malfeitares, e mesmo de ratoneiros Iivres, tomam"se ver­

dadeiras espeluncas, unde predominam ° vicio, e a imornlidade bai­

xo (sic) de mil lormas diferentes.

Urgentc seria, pais, reprimir severamente semelhante abl19:o, proi­

hindo-se alugar, ou sublocar qllalquer casa, ou parte dela a e.�cravos,

tiinda mesmo Illunidos de autoriza/yao 90S senhores para esse;fun.... ll

Em Sllma, segundo a autoridade policial, 0 problema do

controi'e social na cidade se agravava pelo fato de os propriossenhores frequentemente autorizarem que seus cativos vives­

sem "sobre si". Na verdade, obter permissao "'para viver sabre

si" era algu pelo qual os escravos da Corle se empenhavam bas­

tante. Viver longe da casa do senhor era uma maneira de�adqui­

rir maior autonomia nas atividades produtivas, e representava

ainda a possibilidade de levar uma vida praticamente indiferen­

<;avel em rela<;ao a popula<;ao Iivre da cidade. Para os senhores,

este tipo de arranjo era muitas vezes vantajoso, pois permitia

arrancar jornais mais elevados aos cativos, alem de desobriga­

los das despesas com 0 sustento dos negros. Para os escravos, a

maior autonomia de movimento tinha ainda a vantagem adicio­

nal de facililar jornadas eXlras de lrabalho com 0 objelivo de

amealhar dinhciro suticiente para comprar sua liberdade-aos se­

nhores.12

o hno, porem, e que a mulliplica<;ao de situa<;5es nas quais

os escravos obtinham autorizar;ao para "vivel' sobre si" aea-ball, a

lango prazo, se tomando mais urn importante elemento desagre­

gador da inslilui<;ao da escravidao na Corte. Nao e difieil enten­

del' a razao disso. Tradicionalmente, a escravidao sempre havia

si do considerada como uma rela<;ao de sujei<;ao e depelidencia

pcssoal; 0 es(.;ravo t'icava sob a "sujeil;ao dominical" dosenhor,

que tambem era 0 lmico a deter a prerrogativa de decidir aTespei­

to tla eventual concessao de alrorria ao calivo. Tal concepc;:ao de

dominuyao tinha Ilccessariameme como urn de seus elementos a

proximidadc espacial do trabalhador em rela<;ao a seu proprieta­

rio. Por isso, qUl.lndo sc gcncralizoll"na cidade, a pratica de os

l7

Page 9: Chalhoub Cidade Febril

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I escravos viverem lunge dos senhores, est'.� fato introduziu cerlU

ambiguidade na definiy80 "ortodoxa", po� assim dizcr, de cali­

veiro.

Os escraV05 naG deixaram de perceber que havia ai uma bre­

cha. Em 1865, por exemplo, a escrava Julia enlrou najusli,a corn

o intuito de abter a liberdade a sua senhora. Entre os vtu:ios ll1oti­

vas que arrololl para mastrar que taziajus aallQrria, a negra argu­

mentou, corn a devida aprescntac;ao de tcslemunhas, que momva

havia setc DU oito anDS em cortiyo no Catcle. ,relirava seu SlIstento

"de lavar [aupas de alguns fregueses" e, alcll1 disso, que sells co­

nhecidos consideravam-na coma pessoa Iivre, Nestc caso especifi­

co, a escrava perdeu a 3930 judicial, mas �a oulros exemplos em

que alega,iies semelhanles parecem ler conlribllido para que

alforrias fossem concedidas najustir;a, a reveJia da vOI1Lade senho­

rial. l}

Tudo isso, obviamenle, HiZ sentido: se 0 cativeiro se define

coma uma rela<;ao de sLljei�ao e dependen::ia pessoal, e razoavel

supaf que Lima pcssoa que tenha autonomia dc" dccisao quanta a

moradia e aDs sells meios de SlISLcnto naG csteja sob 0 dominio de

nenhum senhor. Torna-se clara, entaa, que eSCfqVDS vivendo "so­

bre si" contribuissem para a falencia de sjg�iJicados sociais essen­

dais cl continuidade da instituiryao da escravi'dao. Os negros pressio­

navam para conseguir 0 direilo de morar fora da casa dos scnhores,

pais percebiam Lal conquista comO urn paSSl), aD menos simh6lico.

no caminho da liberdadc.

Neste contexto. Cl imponancia das h�bitay6es culetivas nas

llltil11as decadas da escravidi\o comcya a sccvidclll::iar: para cscm­

VOS, assim C0l110 para liberlos C negros livr.es cm gen,ll, as altt;:nw.­

tivas viavcis de moradia na Cone, nO,periodo, eram cada veL muis

os cortivos e as casas de c6modos. Sao varies os cxcmplos de es­

craves que moravarn ern cortivos, au que linham suas amasias

marando em cortif;os; alem disso, encontmm-se familias de ex­

escravas que conseguiam se rcunir c passara morar juntas cm ha­

bitaf;oes coletivas apos a libcrdade. Cam 1h.:qUencia, era nestas

habita�oes que os escravos iam encontmr auxilios c solidaricdadcs

diversas para rcalizar 0 sonho dc comprar a alJ()rria a sells senllll­

res; e, e c1aro, mistllrar-sc a populay:.l0 variada de lUll coniyo podia

11>

I�

ser urn olimo esconderijo, casu houvesse a op,�o pela fuga. Em

suma, 0 que eslou querendo sllgerir e que 0 tempo dos corti�os no

Rio foi lambem 0 lempo da inlensifica,�o das lutas dos 'negros

pela liberdade, e iS10 provavelmenle leve a ver corn a histeria do

poder publico conIra lais habila,oes e seus moradores.

o SURG/MENTO DA IDEOLOG/A DA HIG/ENE

As classes pebres naG passaram aser vistas coma classes pe­

rigosas apenas porque poderiam oferecer problemas para a'hrgani­

za,ao do lrabalho e a manllten,�o da ordem publica. Os, pobres

ofereciam tambem perigo de contagio." Par urn lado, 0 proprio pe­

rigo social represcnlado pelos pobres aparecia no imaginario poli­

lico hrasileiro de tins do seculo XIX alraves da melafora da'doen,a

contagiosa: as classes perigosas continuariam a se reproduzir en­

quanto as crian'Yas pobres perlllanecessem expostas aos vfcios de

seus pais. Assim, na propria discussao sobre a repressao a ociosi­

dade, que lemos cilado, a eSlralegia de combate ao problema e

geralmentc apresentada coma consistindo em duas .etapas: mais

imedialamenle, cabia reprimir os SUpOSIOS habitos de nao-trabalho

dos adultos; a mais longo prazo, era necessario cuidar da educa�ao

dos menores.

Por oulro lado, os pobres passaram a representar perigo de

contagia no senlido literal Illesmo. Os intelectuais-I1}:edicos

grassavall1 ncssa epoca coma miasmas na putrefal):ao, o� como

cconolllistas em tempo de intla�aa: analisavam a "realidage", ta­

ziam sells diagnostieos, prescreviam a cura, e estavam sempre ina­

balavelmente convencidos de que so a. sua receita poderia salvar 0pacienlc. E houve enlao 0 diagnoslico de que os habitos de mora­

dia dos pobres eram nocivos a sociedade, e isto porqlle as habila­

l):oes coletivas seriam foeos de irradiacao de epidemias, alem de,

naturalmente, terrenos ferteis para a propaga�ao de vicios de todos

os tipos.

Ao que parece, os administradores da Corte comcl):aram a notar

a cxistcncia dc corti�os na cidade nos primeiros anos da decada de

I X:\(). I JmJ epidcmiu de lebre amarela, em 1850, e oulra de c61era,

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Page 10: Chalhoub Cidade Febril

!.

..

em 1855, elevaram bastantc as luxus de mortalidade c coloc<.lram

na ordem do dia a 4uestao da salubridadepllblica. cm geml, c das

condiryoes higienicas das habitu<;ocs cOletiV�lS. cm p<.lrticular. Foi

criada entao a Junta Central de Higiene. 6rgao do govcrno impe­

rial encarregado de zelar pelas ques16es de sallde pllblica, e a Ca­

mara Municipal da Corte passoll a discutir mcdidas destinadas a

regulamentar a existencia das habila�6cs lloletivas.

Em setcmbro de 1853, a comissao de posturas da Camara anu­

lisou urn projeto de "Regulamenlo dos ESlalajadeiros", que Ihe fora

encaminhado pela Secretaria de Policia.l-l i� logico que a prcocupa­

yao das autoridades policiais era "prcvcnir que pcssoas slIspcilas

achem facil abrigo nas casas a que ele 10 regulamenlOj se retere,

mais ainda a evitar desordens, C outros crimes que pur vcnlura pos­

sam ser cometidos". Os vereadorcs da comissiio de posLlIras julga­

ram 0 projeto de "urgentc ulilidade Pllblica", e Oiinda i.1l;haram por

bem acresce-lo de algumas disposiyoes "cm n:lwr3o a salubridaue

publica". 0 artigo primciro dclinia como c.slalajadciro "0 individuo

que der agasalho DU pousada por dinheirD, lJualqucr que scja a deno­

minal;ao da casa em que a der" � estalagcl11, hospeJarifl, corl�l;o Oll

hotel. Entre as medidas deslinadas a facilitar;j vigilancia ua policia.

havia a obrigatoriedadc de 0 estalajadeiro possuir um livro de con­

trole de entrada e saida de hospedcs ou moradorcs, e no qual cstcs

estariam cuidadosamentc identilicados. O�:suhdclegados deveriam

visitar frequentemente as habita�oes coleliva�, c:cnilicando-se tie que

la naD se encontravam vadios. cstrangeirot� cm siLlIa�:.1o irregular e

pessoas "suspeitas", ou lJue callsassem "dc�C:0njjunIYi.Js" e "n.:ceios"

� uma categoria taD abnmgente e ambigui.J Ljue cr<.l potcncialmentc

uti I contra quaisqllcr dos moradores de tais hahilUIY()cS. QlIanlo as

condi�oes de higiene, os estalajadeiros eram obrigados u.conservar

suas casas no "melhor asseio possivcl", conduzindo "0 lixo, as �lgllas

sujas, e outras materias imundas" para os locais pndc era pennilido

o despejo. Ficava proibido 0 deposito de lixo e "materias lccais" cm

covus teitas no quintal, ou em qualquer outra pmte da casa. Os lis.

cais dus fregucsias devium zelar pela obediencia ao n:gulamcnlo.

Apesar da opiniao favoravel dn comissao de poslllras, 0 rcgu­

lamento nao parecc ler sido adolado pela Camara Municipal. Em

agosto de 1855, lun pmjcto de posturas u rt'spcito lI11il.:umClllC dc

corti�os, de uUloriu do liseal da freguesia de Santa Rita, foi apre­

sCl1tado aos vercadures.'j Nu introdu�ao ao projeto. 0 fiscal argu­

mentava 4uc "0 prcIYo elevadissimo das casas nesta Capital deu

lugar a 1i.H1da�ao de moradas, conhecidas pelo nome mU;lo signifi­

cativo de cortilYos, onde em pequcnos 4uartos habita uma grande

populuIY30 dus classes menos abastadas, como e sabido" ...O au­

mento 110S preryos dos alugueis para as "'classes menoS ab�1adas"

eslava certamcnte Iigado as transformayoes na demografia urbana

do Rio no periodo. ja reteridas anteriormente: 0 crescimento do

tluxo imigral6rio de portugucscs, 0 aumento do numero de alforrias

de escravos, e a pn.1Lica cada vcz mais comum de permitir que os

caLivos residissem "sabre si".

Aqui, novamclllC. os cortiyos sao vistos tanto como urn pro­

blema para 0 controle social dos pobres quanto como uma amea­

l;a para as condiryoes higienicas da cidade. 0 fiscal de Santa Rita

dcclarava-se preocupado em garantir a "facilidade da existencia

dos pobres", e propunha lIma serie de medidas visando a impedir

que os corlii;os se tornassem "focos de vicios" ou de transgres­

soes "da Illon.llidade dos costumes", assim como "asilos perma­

ncntcs de infecryoes dcleterias da saude publica". As medidas pro­

postas obrigavam os proprietarios a et't::tuarem "todos os rcparos

c melhoramentos que forem exigidos pelo Dr. Delegado da Junta

de Higiene Pllblica da freguesia respectiva", proibiam a exi:Hencia

de "casinhas colocadas nos lugares ondc ha animais e eaITo�as"

Sl) carruceiros sem familia poderiam residir nas cocheiras-,

detcrminavam 0 calryarnento e a ilumina9ao dos patios, e a colo­

caIYao de pilastra com agua. Havia ainda a exigencia de lugares

apropriados p<.lra as lutrinas. A Camara Municipal forneceria os

vasilhamcs pura a conduyao das "materias fecais e aguas servi­

Jas", ficando lambem encarregada de remover tais "materias"

Lodos os dias as cinco horas da manha; os "fundos" para'essas

0PCri.lIYoes scriam "solicitados do governo". Finalmente, todos os

cortiIYoS de veriam ter um portao de ferro, que se fecharia -ao to­

que de recolhcr; a panir dessa hora, urn dos habitantes pas3aria a

servir de poneiro, licando com a obriga�ao de abrir a porta para

os oUlros moradores c dc comllnicar as-.eventuais irregularidades

4.10 inspclOf de quartcir:.1o.

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Page 11: Chalhoub Cidade Febril

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Pelas sugestoes do fiscal de Santa Rila, 11<.10 ha que duvidar d�

suas palavras ao alinnar que sua intcnl;:lO; era mclhorar as condi­

�oes de vida nos cortic;os exislcnles, fazcndo com que "csscs Juga­

res" deixassem de ser "focos de enfermidades". "A pobreza que ali

se asila", obtcndo assim mais prolcl;3o C (PIlHl(jiduoc. "conscrvar�i

sua saudc". Nenhumu dus sugcstoes I11cncionadas, porem, foi .jCo­

Ihida pela Camara Municipal. que se cOIll:�ntou CIll 'adolar apenas

o item nove do documenlo do fiscal: "N<?o �cr;l pcrmilida <.I' cons­

trurriio de novas cortic;os sem I iccll(;a da Camara, c ncssas conslru­

r;oes scrao guardadas todas as condir;6es higienicas c nao scraG

habitaveis sem aprovac;ao da Junta de lIigicllc Pllblica".lt>

Os vereadorcs, entao, parceiam se prcm:upar arenas com as

condi,oes higienicas das habita,oes coletivas do lilluro. Outras

vozes, todavia, concordavam com 0 fiscal de Santa Rita na opinion

de que algo precisava ser feito quanto aos l:orti<;os cxistenle's. Em

oticio enviado pela Secretaria de Policia da Corte :.HJ Minlstcrio

dos Ncgocios do Imperio, em man;:o de 1860, cram novamente os

prc<;os "de lal modo exagerados" dos "alugueres de casas" que

explicavam 0 surgimento e a prolifcra9ao, dos cortil;os.17 0 docLl­

menlo da Secretaria de Policia, porem, aVan9<lva a discussao em

pelo menos duas direl;oes. Em primciro Jugal', ha aqui a ideia de

que as condiyocs de villa nos l:orti<;os nao scrcvelavam mais letais

apenas quando ua ocorrencia de "rebrcs" ou epidcmias na Cone;

na verdaJc, era a "tisica", isto e, a tubcrculose, que amt:a<;ava "tor­

nar-se Illolestia endcmica do pais". Em oUlras palavras, 0 que pro­

vava que as condivCJcs dc sall<.k pllblica cstaVJIll se dderiorando

m\o era apcnas J ocorrcncia cvenluul de ep�dell1ias de lebrc amare­

la, variola, c61era etc., mas a Jl1ortandade, creSCenle e conSlante

pela tisica. uma doen<;a que 0 saber medica da epoca ja associava

diretamente as condir;ocs de miseria em que vivia a popula<;ao.

Du seja, 0 documento da Secrctaria de Policia .;ra capaz de

colocar 0 problema da saude pllblica num contexto mais amplo de

deteriora,ilo dos condi,oes de vida dos pob,.es em gera!. Ate esse

momento nao parecia possivcl pensur u questao das habital;oes

coletivas segllndo os panimctros cSlritamcnlt: tCL:nicos da Higienc;

ao contnirio, este era Ulll probJema social, 'u ser Solllcionado a par­

tir de dccisocs polilicas clams dos govc.:rnalllc.:s da cidadc.:. Assim,

chegamos ao segundo ponto do documento: a Secretaria de Polfcia

sugcria a formulac;:ao de uma politica destinada a prornover "a

edilica,ilo de habita,oes comodas para 0 povo". Eram propostos

incentivos aos construtores, incluindo urn "adiantamento pecuniArio

por prazo razoavel" c a "concessao de isen�ao de impostos". En­

qllulllo Il1cdidas delinitivas nao lossem lomadas nesse sentido, e

dianle 0..1 gravidade da siluUvao, 0 oHcio sugeria que a pr6pria Ca­

mum Municipal b..mcasse a iniciativa de construir habitavoes, "que

serialll alllgadas aDs urtistas e pessoas pobres por quantia m6dica".

o MiniMcrio do Imperio encaminhou 0 documento em qucstao a

Cful1<tra Municipal, c parcee que la elc nao suscitou nenhuffi efeito

pratico,

I� possivel discernir corn clareza 0 eixo fundamental de toda

essa primcira decada de discussao sabre os cortivos: era necessario

mclhorur as condil;oes higienicas das habita.;oes coletivas existen­

tes, Tralava�se. primordialmente, de uma preocupa<;ao com a qua­

/idi/de da hahita,ilo popular, de legislar no sentido de obrigar os

propriclarios a conslruir residencias que zelassem minirmlmente

pela sallde dos moradores - deveria haver coleta regular.de lixo,

latrinas limpas C CIll numero suficientc, cal<;amento; janelas am­

plas clc, A maneira de encarar 0 problcma. todavia, iria mudar

radiculmenlc nas dccadas seguinles: na fonnula.;ao de Mauricio

de Ahrcu, a en rase deixaria de ser priorilariamente aforma, as con­

dil;OeS da moradia, e passaria a ser 0 f!jpar.,.'o, 0 local da habitav3.o.111

A mudanr;a ja se anunciava em oulro projeto bastante deta­

Ihado para a ado<;ao de posluras rerercntes a corti.;os, apresentado

a Camara Municipal da Corte pelo dr. Jose Pereira Rego, em feve­

rciro de 1866.''J Na ocasiao, Rego era vereador e estava havia pou­

co exercendo 0 cargo de presidente da Junta Central de Higiene,

Iim,ao que desempenharia por quase duas decadas. Seu projeto

estabclecia que "e absolutamente vedado construir novos cortivos"

em loda uma exlensa area compreendendo boa parte das ;fregue­

sias centrais da cidade, "ainda mesmo .dentro dos quintais ou cha­

cams; assim COIllO reconstruir aqueles, queja existem". A Camara

Ilao adolOu de imcdialo as sugestoes do vereador e higienista; 0

fah>, contlldo, e que lodo 0 mote da discussao em tomo das habita­

l;iks populares se lllodilicaria nos anns scgllinles,

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Page 12: Chalhoub Cidade Febril

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o prirneiro fruto da nova mancira de pcnsar a 4uCS130 surgiu

corn a pastura de 5 de dezembro de 1873: "Nao scnl0 mais permi.

tidas as construyoes chamadas 'cortiI;OS'. clllre as pra.;as de D. Pedro

11 e Onze de Junho, e todo 0 espa,o da cidade enlre as ruas do

Riachuelo e do Livramcnto".'o Em setembro de 1876, outra poslU­

fa refon;aria a proibir;ao, esclarecendo que a interdil;3o a constru­

�ao de corti�os valia mcsmo qunndo os ptoprietarios insistissem

em chama-los "casinhas DU corn nomes eq'uivalentes".21 Estavam

se engendrando os instrumentos legais pan; a guerrade exterminiu

contra os cortir;os ou - 0 que dn quase no mcSIllO - para a politi­

ca de expulsao das "classes pohrcs"/ "classes pcrigosas" das <.lrcas

cenlrais da cidade.

Mas aotes de passarmos as batalhas, cabc cXlrair mllm Ii�uo

importante do projeto de posturas de Pereira Rcgo. A iotrodul;uo

escrita pelo aulor, em que sejustiflca a preocllpJ,�ao com a prolire­

ra�ao dos conic;os, explicita de forma baSlantc didutica algull1Js

ideias que se lornariam cm breve 0 senso comum dos adminislra­

dores da cidade:

oS POlilicos e governantes nas ultirnas decadas do seculo XIX. Em

primciro lugar, est3 presente a ideia de que existe urn "caminho da

civilizal'ao", iSlo e, um modelo de "aperfei,oamento moral e ma­

terial" que teria validade para qualquer."povo", sendo. dever dos

governanles zc!ar para que lal caminho fosse mais rapidalllente

percorrido pela sociedade sob seu dominio. Em segundo lugar, ha

aatirma,ao de que um dos requisilos para que uma na9ao alinja a

"grandeza" e a "prosperidade" dos "paises mais cultos" sena a so­

IU9ao dos problcmas de higiene publica.

o resullado dcssas duas operal'oes mentais e 0 processo de

conligura<;:1o dos prcssupostos da Higiene como uma ideologia:

ou seja, como um conjunlo de principios que, estando deslinados a

conduzir 0 pais ao "verdadeiro", a "civilizac;ito", implicam a

despolitizal'ao da realidade hislorica, a legitimiza,ao aprioristica

das decisoes quanto as politicas Pllblicas a serem apticadas no meio

urbano. Esses principios gerais se traduzcm em tecnicas especifi­

cas, c somcnte a submissao da politica a tecnica poderia colocar 0

Brasil no "caminho da civiliza�ao". Em suma, lomava-se possivel

imtlginar que haveria uma forma "cientitica" - isto e, "ne!..ltra",

supostamcnte acima dos interesses particulares e dos c.onflitos so­

ciais cm geral - de gestao dos problemas da cidade e das diferen­

c;as sociais nela cxislenlcs.

T<.ll on.lcm de ideias iria saturar I} ambicnle intelectual do

pais nas decadas scguintes, e emprestar suporte ideologico para a

3l;ao "saneadora" dos engenheiros e ffiedicos que passariam a se

encaslelar c acumular poder na administra�ao publica, especial­

mente apos 0 gulpc mililar republicano de 1889. Mas insistir na

importancia de conceilos coma "civiliza�ao", "ordem", "progres­

so", e oulros afins -- os correlatos como "Iimpeza" e "beleza". e

os invcrlidos t<.lis como "tempos coloniais". "desordem", "imun­

dkic" etc. -- nao nos leva muilo alem da transparencia dos dis­

cursos, da observac;ao da forma como eles se estruturam e daqui­

10 que c1es procuram alirmar na sua propria literalidade, e atraves

da repelil;ao ad IIl1l1Seam. 0 que se declara, literalmente, e eO de­

scjo de lazer a civiliza�uo curopeia nos tr6picos� 0 que se procu­

ra, nu pralica, e Jazcr politica deslegitimando 0 lugar da politica

nu histl)ria.

" 111,1.. .'

�1' 11- I

I

o aperlei�oalllenlo c progrcsso da higicnc puhlica cm ljualquc,r pais

simboliza 0 apcrfei�oamento ll10ral e llll.llcrial db povo, que 0 Imbita;

e 0 espclho, unde se rclletcm as conquisw.s, que tcm de akan�ado

no c<:Hninho Ja civiliLw,:ao.

Tao verdudeiro e 0 principio, lIue ellunciall1os, que cm todos os

puises mais cu[tos os homcns, que estao ,1 lrente ua aJminislnu,:<:io

publica, procuram, na orbita dc suus atrir,uil.;ikS, mclhorar 0 cSI;jdo

da higiene pllblica Jebaixo de todas as re!<.h,:t)cS, COIllO urn elcmenlO

dc grundeza l..: prospl..:ridadc dl..:sses pi.liscs ..

Entre n6s, porcm, t{)[f':� c conJi.:ssar que as munil.'ipalidaJes f .. 1

hem-se t:sqllccido 1I111 pouco dos mclhoranlt:nlOs lIlaleriais do MUlli­

cipio e do bem�estar, que ddes pode result ..lr a sellS concid<.lI.Hios.

tanto que sabre alguns pantos esscllciais C indispCllSi.1Vl.'is <.10 cSlado

higienico, parcec que uinda nos CO!lscrv.lI1li.lS Illllito proximos aos

tempos eoloniais.22

..

o discUfSO do vercatlor c higienista, paninuo da llposi�,10 ell­

tre "civilizac;ao" e "tempos coloniais", poswla dois prindpios l:S­

senciais para a comprcensao dc 1I1n imagimirio cm gL'sta�no cmrc

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Page 13: Chalhoub Cidade Febril

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. , AS BATALlIAS NA A IJMINI,ITRAr.Ao I'U/lLlCA

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A alirma�ao da Higiene COITIO a idcoJogia Jas transforma<;6es

urbanas da virada do seculo esteve longe dl.: sel" UITI proccsso linear

e sem contlitos. Pelo conlnirio, a leitura �tO'i uoculllcntos proouzi­

dos pelos fUllcionarios e aUloridades <.la cidade do Rio no pcriouo

revela 0 debate inlcnso que agituva os ba�liJorcs oa adminislfC.Il;UO

ptlblica, scnuo que a qucstao das Imbila.;ocs Colclivas, e cspccial­

mente os cortit;os DU cstalagcns, estcvc scmpre no ccntro das <':00­

traversias. Apesar do emaranhado de versocs conllitantcs, <HI wl­

vez par isso mesmo, C possivcl identilkar iJlgllmas lcndcncias e

reconstruir as alian<;as c confronlOs que mHrcavam () vaivem si­

nuoso da burocracia da epoca.

Em 5 de maio de 1864,0 chefe de policia da Corte oliciou a

Cam <Ira Municipal reclamantlo providenl:ias sobre problemas que

cstariam ocorrendo na fregLlcsia de Santa Rit�1. 0 suotlckgatlo lo­

cal 0 inforlnura Ja cxislencia de lUll I:ortil;o ""ll1uito imundo", scm

nUIDcrac;ao nos quartos, scm luz, c aindJ por cimJ lisl:alizJdo por

urn escravo do propriculrio. �1 Alem disso, 0 subdelegado rcclama­

va de dois terrenos que nao estavam ccrc:dos, permitindo 0 despc­

jo de Jixo por parte dos moradorcs da vizinhalu;a c a pousada de

"malfeitorcs cm noites cscuras". Nuda dis..>o, pm.em, dera rcalmcn­

le motivo aD olkio: a questno cra que 0 :;dhdclegado e 0 Jiscal ua

freguesia haviam entrado em rota de colisoo, e isto slIpostamente

porque 0 agente municipal !lad:) lizera para solucio!lur os proble­

mas apontados peln ulItoridade policial.

o Jiscal Jt.: Sallla Rita rebatclI a al:lIsa�jo com vCt.:m�ncia.

Quanta as irregularidades no corti�o, ele m:hava "aumiravel" qut.:

o subdelegado ignorasse as obrigac;i)es UiJ policia no assunto; st.:­

gundo ell', cabia ao fiscal zelar pehJ limpeza de t�is prcuios, C esta,

garantin, se achava em "cslauo regular". l)uunlO uos tcrrcIH�s, elcs

eram abjeto de Lima pendencia judicial, :logo nao haviu ut.: qucm

exigir 0 cercamento. I:inalmentc, um contLlnut:ntc contra-atal/lIe:

E de sentir que no carlorio Jo Subdekgad(l Se j{)rjL"1ll rL"d.llll�Il,:(ks L"

se inventem hist6rius Pi.lfU cOlllprometer-'.t: a algll�ll1, ljllL" mais Jirei.

lOs tcm para qlleixar-se lIl' 1I1ll<l ulItoridaJl' qUL" SL" L'llllSliluill I-iscaJ

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36

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da Freguesia dando ordens DU consentindo que seus agentes_flOdem

perseguindo e maltratando os miseros 'taverneiros e quitandairos, e

que quando encontra quem Ihe ponha embaral(as, venha abtigar-se

sob a manta da pratel(ao da IIIma. Camara,

A primcira vista, parece tolice rdatar essas picuinhas: entre

funciomirios subahernos. Mas, como ja dizia Shakespeare, "There

is hislory ill all mell's lives" [1101 hisl6ria na vida de lodos os ho­

mens]. Pois e, e entaO tais picuinhas nos ensinam alguma' coisa.

EIll prit1,1eiro lugar, as autoridades policiais utilizam uma ret6rica

sen"lelhante a dos higienistas. c c1amam par a/yao contra a suposta

imundicie dc llll1 corti,o e 0 despejo irregular de Iixo, Esse tipo de

procedimclllo se accnlUara a parlir da decada de 1870; na verdade,

higienistas e autoridades policiais estarao quase sempre do rnesrnO

lado da Iril1cheira ern se lralando de corti,os. Em segundo lugar, 0

fiscal da rreguesia deixa c1aro 0 seu partido ao acusar 0 subdelegado

de persegui<;ao aos "miseros taverneir�s e quitandeiros". E 4qui ha

outru rendenda: liscais e proprietarios .estarao freqUenterne;nte do

mesmo lado contra as incursoes de higienistas e policiais, se bem

que esla e uma alian,a precaria e ponluaL A Camam MU,nicipalestara no centro do toga cruzado - 0 cargo de prefeito s6 passara

a existir em fins de 1892-, agi.ientando as pressoes dos diferentes

grupos de interesse e tendo, em llltima analise, a responsabilidade

de lra,ar as politicas publicas a serem adoladas em rela\,ao Ils habi­tac;6es coletivas.

Personagens em cena, resta seguirmos as Iinhas principais do

emedo. Para destrinchar a papelada da adminislra,ao municipal, e

preciso ter cm Inente 0 ritual necessaria para a obten/yao de licen/ya

para a conslru<;aO de corti,os. Como vimos, 0 edital de agoslO de

I H55 exigia a permissao da Camara para lais edifica,5es,' sendo

ainda necessario que a Junta Central de Higiene considerasse ha­

hilavcl 0 prcdio planejado. Para exemplificar os procedimentos de

praxe, temos 0 caso de Jose Ant5nio Mello, dono de uma cocheira

na rua de Sanla I.uzia, treguesia de Sao Jose, e que, em novembro

de I H71, solicilOU it Camara permissao "para fazer quartos, nos

lundos da dila cocheira"H Na Camanl acharam que a liceii,a po­

dia sel" concedida, obedecidas as posturas e, "no casu de ser para

razer l:ortiyos", respcitado 0 edital de 1855. Precisava ser consul-

37

Page 14: Chalhoub Cidade Febril

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tada, entao, a Junta Central de Higienc. �_)s higicnistas con<.:orda­

ram com a conccss3o, desdc que os anl/nais cxist<:nles no local

fossem dali retirados, "porquc de outra forma miD ha cspa�o para a

constrw;ao de tais cortil;os. alem de licarcm" elcs cm m,ls condi­

ryoes higienicas". A Camara autorizoll cn-\ definitivo, manlida a

exigencia feila peln Junta Central de Higienc. Todo 0' proccdimcn­

to durau pOlleD mais de urn mes.

Apesar da aparencia mcramentc prulocol:Jr, ha llltallo ncssa

hist6ria. Para Mello, 0 solicitante, a inlen�iio cra "lllzcr qU<.lnOS"; 0

relator da Camara apenas Icvantava a hij>otcsc "de ser para fazcr

corti/yos"; os higienisli.lS mio tinham dllvidas de que se lratuva de

canstrUl;ao de cortir;os. Afinal, a que determinava que uma dada

habitar;ao coleliva fosse idenlilicada COlllll L11ll corti\o? Como jil

Illostrou Lilian Fesslcr Vaz, esta era LIma qllest�lo dilicil para os

contcmporaneos, C lImu boa pane das con.lrov�rsias entre higicllis­

tas, policiais, propriel3rios, liscais elc. girava cm 10fJl() dn delini­

<;:10 precisa Jessa palavraY

Everardo Backhcuscr, autor de lllll tratxdho chlssico sobrc as

habitar;oes poplIlarcs do Rio na viruda do scclIlo, h.:nloll cxplicar a

direren�u entre estalagem e corti<;o. 0 leXlo dc Backhcuser J()i plI­

bJicado pela primeira vez em 1905. Era o-h:mpo do hota-abaixo do

prefeilo Pereira )lassos, e Cl campanha t:onln.l os corti�os, ponanlO,.in

tinha alcan<;ado grandc parte dc sells objetivos. BackhclIscr deJine

cSlalagem com lUll levc toque de hlll11or, eoulro de prcconccito:

Em scguida, a dclinil'�o dc cortil'o:

de predios, tendo urn segundo pavimento aca/(apado coma 0 primei­

ro t: ao qual se ascende diticilmente por escadas ingremes, circunda­

do tambem par varandinhas de gosto esquisito e contextura llIinosa.. ..,ri'l.-

Isto que ai tica resumido e 0 "corti';O",21 ;_"I,�':�_:lj;�pc" ,�

,Por um lado, a des�ri��o de Backhe,user e preciosa porque !.S','

nos Intorma acerea da dlV1S�0 do esp&l'0 Interno das caslnhas de":.:>'.' '. .estalagem e do uso que os moradores faziam de uma area tao .';' ;':::"o},. .:'rcduzida; temos, assirn, acesso a alguns costumes e conc�pt;:oes' .r .... .<, :�(�.:f.

popula(es sobre a maradia no periodo. Por outro lado, constata-

se que Backheuscr tinha pouen a oferecer para possibililar uma

difcrencial'iio objetiva entre estalagem e corti�o. Na verdade, os

corth;os eram as "estalagens antigas" • malconservadas e onde as

condi.;ocs higienicas cram prccarias. As descric;oes parecem su-

gerir que a prescn<;a de um segundo pavimento era rnais cornum

nas eSlalagens antigas ou corti�os; 0 proprio autor, porem, con-

dui cm seguida que "na 'cslalagem' e no 'cortic;o' 0 facies e

igllal".2M 0 que se eXlrai do tcxto de Backheuser e que 0 elcmento

dccisivo na idcntifica<;ao de uma habita<;ao coletiva como urn

corti<;o era mcsmo 0 julgamenlO do obserWldor: noS corti�os as

alcovas cralll mais quenles, baixas e escuras; nao havia separa-

�ao adequada entre as familias. sendo a vida "mais promiscua>l.

Todos esses c1cmentos SaD obviamenle subjetivos - islu e. su-

jeilOs a uvalia<;ocs radicalmente distintas dependendo dos inte-

rcsses ou do panto de vista de cada observador-, 0 que faz corn

quc Backheuser explicite 0 caniter fortemente ideol6gico de toda

a discussao: "ha 'corti<;os' oode se penetra corn 0 len�o ao nariz

c de onde se sai cheio de nauSeaS".29

Ha sem duvida semelhanrras relevantes entre os conceitos

de "corti�o" e de '.c1asses perigosas": ambos supostamerlte des­

crevcm "realidades" a respeito dos hAbitos das mesmas pessoas

- as "c1asses pobres �, e se caraclerizam muito mais pela

l1aidez, pela ambiguidade, do que por qualquer esfor�o conse­

qucme de prccisiio de conceitos. Esta ambiguidade, obviamen­

te, e carregada de significados: coma se trata de conceitos alta­

mente cstigmatizantes, a imprecisao aumenta infinitamente a

possibilidadc da suspei<;ao, ampliando assim a esfera de inter-

I \"

Pcqut:nas casinhas oe porta t: juncla, alinilaJas, i,.'oll\ornanuo 0 patio,

sao h<lbilul;OCS scparadas, tendo a sua sala da I�'cllkornuda de regis­

tras de santos C <.Inllllt:i(}s de cores grit<ll1les. sub ondc sc l"i_'n:hclIl

visitas, onLic se C01l1e, omit.: SI.: engollw. olHJe sc costura, onde se

maldiz dos vizinhos, tenoo l ..unhcm i.l slIa akovu quelllc e clllaipada,

separada da 53la pur lllll labiquc (.It: madeira, tendo mais UI1l Olllro

qllartinhu cscuro e qucnte ondc 0 logan ..I.luua a COIlSlllllir () llxig�nio.

cnvenenalldo 0 ambiclllC. Dormc-se ClIllodos os urosclHos.:"

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1,1

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I.

As eSlalagens anligas tel1lllm asp.:c{o mais primitivll, muis grotcsco,

mais mal acabaoo. Suo ligeiras cOllstrlll;OCS dc m..uJci,...I, que lllcmpo

consolidou pelos cnnsertos dandcstinos, iltl'a\'<lIlCadas nos llmdos

.is 39

Page 15: Chalhoub Cidade Febril

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ven<;:ao das uutoridudcs publicas e compriminuo, por conscguin­

le, a cidadania.

Enlim, "corti.;o" rai 0 termo que us l:luloridades 'sanitarias pas­

sararn a utilizar quando desejuvum cSligmulizar cm deJinitivo de­

terminada habitaC;80 coletiva. BackhclIser cscrcvcu set! �exlo num

momento em que tal estrategiu ja havia triunfudo c produzido re­

sultados importantes; se voltarmos para a dccada de 1870, recupc­

famos aindu 0 calor da luta. Os crilerios pum a idclllilica<;ao dos

diferentes tipos de habita,ao coletiva eram entao ainda mais inde­

finidos, pastosos mesmo, se acomodando aos interesses de ocasiao

dus partes em confronlo. Cuoiculos origin�HJos de suodivisocs in­

ternus nllffi casarao cram cortic;os'? Quartos construidos no fundo

do quintal de uma residencia, ou de umu labril:a ou olicina. �ram

cortiyos? Chefes de familia que alugavalll c6modos CIll SUllS casas,

as vezes ate 0 s6tao e 0 purao, scrimn corLicciros ubrigados a pagar

impostos a municipalidade? Numa cidudc cm crcscimcnto acclc­

rada e corn deficit cr6nico de moradias, laLios csscs cxpeLiienlcs

foram bastante utilizados. Parecia haver algulll at.:ordo apenas cm

tamo do que era habita�ao coletiva, comu delinia. pur exempln. u

postura de 15 de setembro de 1892: "San lotlas as que abrigarem

sob a mesma cobertura, DU dentm da mesma propriedade. lcrrcno

etc., individuos de famflias diversas, conslituinuo unidadcs sociais

independenles". }O

Em suma. se pcrmanece dilicil dcfinir de I<mna inequivoca 0

que cra UIll corti�o. {} l�lt() e que as eonlrovcrsias cm tOrllO de tal

definiyao em cada caso especifico nos abrclll lIma cnormc janela

para a observa�ao e interpreta�ao do proecsso hislllrieo do perio­

do. 0 debate assumiu carater mais decisivo apos 0 edital de de­

zembro de 1873, proibindo expressamente a COllstrll�ao de coni­

yOS numa extensa area do centro da cidade11 I:m novemhro de

1874, por exemplo, 0 fiscal da freguesia de Sacramenlo roi chama­

do a se explicar sabre uma denlmcia de que se estava conslruindo

urn carli<;o na rua Espirito Santa, canto dn do Senudo.-l� 0 tiscul

respondeu a Camara Municipal que "no lugur indieado nao sc,csl.i

construindo corth;o algllll1, a menos que scqllt:ira assill1 chamar i.l

quatorze acomodal.;oes cm primeiro e segunuo pavilllento que se

estao acabando de construir... ", () IIscal infofmuva ainua que a ohm

estava devidamente licenciada pda propria Camara, 0 projeto apro­

vado estava sendo seguido a risca, e que, portanto, nada havia a

fazer a respeito.

Neste caso, nao se sabe de onde partiu a denuncia sobre a

constru�ao supostamente irregular; licamos apenas corn 0 fato de

que aquilo que 0 denunciante chamava de corti,o nao coincidia

com 0 que 0 fiscal da lreguesia e a propria Camara entendiam por

tal. A jolgar pdas historias em que esse tipo de dado esta disponi­

vel, a denllllcia podia partir de urn vizinho, da imprensa. da autori�

dade policial, ou da propria Junta Central de Higiene. Qualquer

que fosse a arigcm da inforrnal.;30, os fiscais de freguesia;geral­

mente se empenhavam em desmenti-Ia. defendendo assim a Iisura

de sua atuayao no cargo.

Eles tinham tambcm suas queixas em relayao a alua/y8.0 da

Junta de Higiene. 0 tisl:al da frcguesia do Espirito Santo escreveu

para os vereadores em navembro de 1875, respondendo a reclama­

�6cs dos higienistas: "que na Freguesia a rneu cargo, nao me cons­

la que se ediJiquem da noite para 0 diu corti<;os em lugares insalu­

bres, muito menos sem licen�a". 0 problema na area eram ha;) valas

pllhlicas" que corriam "par dentro de terrenos particulares", impe­

dindo que os proprietarios melhorassem as condil.;oes higienicas

de se us prcdios. Nu versao do fiscal, inumeras reclama�oesja ha­

vialll sido fcitas a Junta para que se tomassem providencias "para

aeabar eom scmclhanle abuso, prejudicial a salubridade publica".

t'oncluia dizendo que se devia solicitar do govemo imperial pro­

videncias pma que os habitantes da area "gozem do benellcio do

csgoto". H

Ila duas maneiras de abordar a estrategia de defesa escolhida

pelo liscul de EspirilO Santo. Por urn lado, 0 liscal se moslra esper­

to uo se utilizar das urmas forjadas pelos proprios higienistas: nao

exigindo do govcrno providencias quanto as valas abertas existen­

tes no local, a propria Junta se tomava eolpavel por negligencia

cm assunto de salllbridade publica. Assim, a higiene nas moradias

purticulmes f,cavu prejudicada pda deliciencia na presta9ao de

scrvi,os pdo poder publico. Por outro lado, a 0P9ao de defesa do

liscal implicava uma concordancia tacita corn 0 pressuposto de

aLlIw.;ao dos sanitarisLt1s: a qllcstao da saude publica consistia es-

IH'G

-!IJ 41

Page 16: Chalhoub Cidade Febril

).

sencialmcnte no controlc da higir..:ne das habilm;ocs --- particular­

mente as das "classes pobres"/ "classes perigosas". () prohlcm<.l 0

que esse pressupoSlo signilicava dcixar de considcrar oulros as­

pectos relevantcs para a saude dn populayao,l'omo a 1l1ltriyD.o, as

condi90es de salubridade e seguran9a nos locais de trahalho, a ex­

tensao da jornada de trahalho dc.H Parad��xalJ1lcntc, a cspcrtcza

do fiscal revela 0 eSlrcitumcnw lit: sua margem de manobra; para

se livrar dos higicnislas naquclc momento, ele Se cnrcdoll de vez

nas leias da ideologia da Higiene.

Que cssa ideologia lanc;ava raizcs caua vez mais profulldas cm

alguns selorcs da sociedaue. toma-se patemc peln atua<;:.'io dos 6r­

gaos da imprensa a parlir da deeada de 1870. Na realidade, varios

procedimcntos da Junta Central dc 11 igicnc contra SUpOSloS cortiyoS

se detonavum <l partir dc dcnllllcias dos jornais da epoca. Em agoslo

de 1876, a Junta oliciou a Ciimara informando que "tendo a Impren­

sa nestcs l!ltimos dias dCIlLlllciado a constru�<'io dc um gramle corti­

yD nos fundos de um terrcno a rua dn Guurda Vclha", providenciou­

se uma vistoria no local. Os sanitaristas reconhccer�111 que a tal

constrw;:ao era rnelhor que a dos "corlic;os COIl1UIlS", Illas rcsolvcram

condena-Ia assim mesmo "ml0 s6 por sua gnuuJc aglomerar;ao, comu

pela falta de ventila9ao". 0 liscal da Iregllcsl-! de Sao Jose explicoll

que as casinhas haviarn sido construidas peio propriclurio de uma

rabrica de cervejas, sendo "alias hem constfludas e arcjadas". 0 fis­

cal acabou lavrando 0 milD de infrat;ao por cUllstrw;ao de cortir;os

em area proibida, "nao obstante parecer-mc que a essa edificar;ao

naD se podia aplicar 0 IlOIllC de conir;o, porqiJc. ,'enlculeirameJlfe

nao se acha bem dejinido 0 que .\'eja cortiro',' (gritc) IllCll).J-"

o epis6dio demonstm como os hlgienistas cstavam conseguin­

do aliados importantes em sua cstratcgia peln melhoria dns condi­/yoes de salubridad� Pllblica da Cone -� ullla cstfategia 'quc se rc­

sumia cada vez mais numa condena�ao 10111 cOllrl da propriapresen�a de habita�oes populares, e obviamclHc de seus Inorado­

res, nas areas cenlrais da cidade. Nao quero. ser acusado, todavia,

de parcialidade contra a distinta classe dos doutores mcdicos higie­

nistas, mesmo porque nao e dif1cil imugin ..:r que algum grau de

venalidade podia existir em vercadorcs, tiscais da Illunil:ipalidade.

e corticeiros sempre dispostos a cohrar alugucis cscorchanlcs de

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sells inquilinos. Por isso. fiea corn a palavra 0 higienista-mor do

periodo, Jose Pereira Rego, presidente da Junla de Higiene, JA en­lao 0 bariio do Lavradio. No caso em questao, ele eslava indighado

com a possivel concessao de licen9a para a eonslru9i\o de:uma

hahita9ao coletiva na rua do Resende. Segundo 0 bariio, lralava-se

de autorizar 0 surgimento de oulro corti90 em area onde e.les ja

cslavtJl11 prcviamentc proibidos. 0 uncia, dirigido ao presidente

da Camara Municipal, e de 1I de fevereiro de 1876:

.,....,_ .

. .. cabe a Junta dcclarar a Y.Exa. que nada tern que ver corn a referida

Iil:Cl1\ru. visto como as obrus ja l:sH\o cm andamento, talvez corn con­

scnlimcnlO Ja autoridade fiscal rcspcctiva; e par esta ocasiao ponde­

fa a mcsma Junta a Y.Exa. que, sendo comum 0 fato de ter a Junta de

prullllllciar-sc sohrc COllCCSSaO de Iicelli;a5 para obras que ja se acharn

conduidas, ou qU<.lse cOllcluidas, sem gel' ouvido 0 seu parecer, me­

liloI' scria Jispensa-Ia de um trabalho inlltil e de responsabilidade

4ue niio the pode nllnca competir.

Agora permila V.Exa. que, nao se distinguindo as intituladas

cm'ill/ws dos cubiclllos componenles de urn corli�o senao na pe­

qucna diferen.;a de alturas, a Junta continue a sustentar a opiniao ja

por muilas vezes externada de nao se consentir no int�rior da Cida­de lais edilica/t0cs, aumentando assim as causas da insalubridade

pcla aglOmefa<;aO de popula<;ao em zonas limitadas, como aconte­

cc no lugar de que se trata, onde ja numcrosos san os corti�9s exis­

tcntes ... l/'

No primeiro paragrafo do oficio, 0 barao se queixa de que a

Junta s6 era chamada a opinar sobre fatos consumados; ou seja, 0

edital de 1855 valia formalmenle, mas na pratiea a eonslru9iio de

habila90es coletivas era freqUenlemenle aUlorizada antes dc.a Jun­

la ser dcvidamentc consullada. De passagem, 0 ehefe dos higienis­

tas insinuu que essa situaltao se explicava pela canivencia dos fis­

cais de ti'eguesia. No segundo paragrafo, 0 barao se refere ao fato

de os proprietarios procurarem driblar a postura que proibia a cons­

lrW;aO de corti90S em areas centrais com 0 subterrugio de apelidar

tais cJitica�6es de casinhas.

Puis bem, c praticamente c�rto que 0 barao tinha razao em

amhos os POlltoS. A Icitura dos documentos da Camara passa c1a-

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Page 17: Chalhoub Cidade Febril

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ramente a ideia de que naG havia muilo conlrole em relU(;:ao no

surgimento de habila<;oes colctivas -- cIa:) broravam por 10ua

parte em funr;ao de uma COOfme demanda, e mio havia' como re­

verter fatos consumados sem provimento de acomoda90es alter­

nativas para os moradores. Tambem e verdude que nos anos 1870

nenhum proprietario se moslrava ingenuo u panto de solicitar li­

centra para a constru<;ao de cortil;os: 10dos irium cdi liear "quar­

tos", "pequenus casus", DlI "casinhas", Ncstc llltimo ponto, a pro­

pria Camara dell raZ30 aD barao do Lavrndio ainda naquclc anD

de 1876, atraves da conlirma,do da postura de proibi,do aos wr­

tit;os no centru mesmo quando sells propriclarios os chamasscm

"casinhas DU corn names equivalentes"Y A verdade. pacem, C

que 0 barao continuaria a se del'rontar Ct�Ill agcntes Illllnicipais

contrarios a essa abrangcncia cada vcz 1l1�;.:or do conct:itu de cor­

tiyo. No caso em queslilo, por exernplo, Wll cllgenheiro munici­

pal escreveu um parccer detalhado a t�lvor da concessno de liccn­

lYa para as casinhas dn rua do Resende. Elus scrinm perfcitamcnlt.:

habiulveis cam pequenas l11odilica<;cks nas dirncnsoes dus jal1t:­

las e COI11 0 aumenlO do nUlllero de latrinas. 0 engcnheiro UffC­

matava que "e esta minha opinino rllnd�Lda na ncccssidadc dn

existencia de casinhas para a pobreza, que scm dllvida, nno pode­

ra morar em casa de alto pre<;o ... ".JI'i

Todos csses pcyuenos aconlecimcnlos oa wlinu aominislrati­

va acabam definindo os CDOlOroos mais amplos da atll�wno dos

higienistas. Conforme ja licara claw no projclo de posluras de Jos�

Percira Rego, em 1866, os saniwristas crigialll as condic;ocs de

higiene pllblica coma 0 c!cmcnlo dclinidor do grau de civili:t.a�iio

de urn povo. Mais ainda, haveria criterios objetivos, "cicnlilit;os",

que poderiam nortear as medidas da administra<;ao pllblica ncssa

area. 0 problema aqui sao as implical;oes polflicas clams -- c int.:­

vitaveis? - dessa cren<;a na possibilidade de gestao cientiJica da

sociedade: nenhum "outra" politico tinha asquulifica<;ocs neces­

sari as para interferir na conduc;aa dos neg6cios publicos porquc

nao detinha 0 saber tecnica-cicntitico pertincntc, Os higienistas se

fechavam numa J6gica ferrcoha, tolalmcnle bascada cm proc.:cdi­

mentos autocanlirmadorcs. E tfpica, par c:xcmplo, a �creni�hide

olfmpica com a yual a presidcnlc da comissao saniti.lria de Sanlo

Antonio desquulitica a opinido do Iiscal da freguesia a respeilo de

sopostos corti,os nu rua do Lavradio: "a questdo e puramente hi­

gienica, e nada tem a ver corn 0 Fiscal...".l9 Em outras palavras. 0

Iiscal discordava porque desconhecia os preeeitos da ciencia da ...." ,"_,,�,,'e,�

Higiene, e 0 doutor ainda fazia 0 favor de perdoa-lo por sua igno-

n'incla.

Era inegilvel 0 crescente poder de sedu,do da ideologia da

Higiene sobre alguns setores da sociedade da epoca. Mas tambem

eram signilicativos os obstaculos imposlOs it sua difusd.o pelos

mecanlsmos institucionais da velha monarquia. Em 18 de dezem­

bro de 1879, 0 ministerio do Imperio expediu urn aviso mandando

que as comissoes sanitarias "intimem para que sejam fechados os

corti�os ou estalagens, quer os que ameacem mina, quer os que,

pela permanencia tem-se tornado nocivos a saude publica".40 A

medida reprcsentou mais uma vit6ria dos higienistas, que agora

pareciam contar corn 0 apoio mais dccidido do proprio governo

central para a sua atua.;ao. Mas acontece que 0 aviso em questao

fez ranger a velha milquina institucional em defesa do pacto liberal

de respeito il propriedade privada. Assim, 0 que se viu em seguida

rai umu lula intcnsa: as comissoes sanitarias ordenavam 0 fecha­menta de cortil;os; varios proprietarios desobedeciam, exigindo que

as comissocs Ihes apontassem os problernas COol suas proprieda­

des, e recorrendo il Camara Municipal para a obten,do de licen9a

para os melhoramentos necessarios; as autoridades policiais saiarn

as ruas para fazer cumprir as ordens de fechamento, mas as vezes

cncontravam os corticeiros munido� de mandados judiciais que

garantiam st:us direitos de propriedade. Houve corti.;os efetiva­

mente Icchados, pelo menos provisoriamente, para desinfec,do e

reparosY

A li,do dessa historia, todavia, e que 0 pacto liberal de defesa

da propriedade privada colocava limites c1aros its pretensoes dos

higieniSlas. Pelo menos durante a vigencia da monarquia, penna­

ncccu semprc diticil adotar medidas mais duras contra os corti.;os.

No caso do Cabe,a de Porco, par exemplo, segundo 0 relato da

(Jaze/a de No/id"s por ocasiao da demolit;ao, tentativas anteriores

de deslrui-Io haviam esbarrado exatamente em rnedidasjudiciais.42

Em Sllllla, os higienisl3s imaginavam.que sua Ciencia pairasse aci-

N 45

Page 18: Chalhoub Cidade Febril

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ma dos homens e para alclTI da moral e da p0litica; por enquunlo,

todavia. ainda mi0 haviam conseguido transfOfmar as instiluic;:ocs

num emaranhado de casuismos. 1510 s6 seria p�)ssivcl com 0 ud­

ventn das primeiras adminislrayoes republici..lnas, c com a ujuda

decisiva de nOVQS aliados.

das detcnninac;:oes do inspetor, assim Coma providenciar",'sobre

o alojamenlo dos moradores das habitayoes condenadas" -:- uma

boa inten93.o que permaneceu letra morta. Vma comissao

consliluida por funciom\rios da Inspetoria de Higiene -- dois

delegados e um ajudanle - deveria proceder as "diligencias mais

rigorosas" corn 0 intuito de indicar os corti90S que precisavam

fechar para a realiza<;ao de melhoramentos.

I� verdade que 0 aviso tambem delerminava que providencias

extremas coma 0 fechamento 56 se aplicassem a habitac;oes coleti­

vas eujas comJi<;6es fossem "Hio mas" que se tomava "impassivel,

pclo menos em prazos relativamente curtos, fazerem-se modifica­

c;:6es nu melhoramentos compativeis corn a natureza das respecti­

vas edificac;:6es e local em que estiverem situadas". 0 fato, porem,

e que 0 regulamcnto sanitarioconcentrava poderes demais nas maos

dos doutores oa lnspetoria de Higiene, e estes, devidamente incen­

tivados pclo ministro, nao se fariam derogados. Alem disso, e cer­

to que os crih�rios utilizadospelos cieritistas da Higiene na avalia­

yao das condi<;6es saniHlrias dos corti<;os tinham poucas chances

de agradar a proprietarios e inquilinos amea<;ados de despejo. 0

mais complicado oa siluac;ao e que os cidadaos que s'e consideras­sem lesados nao linham a quem apelar; como logo veremos, as

dccis6es dn lnspetoria a respeito de cortic;os eram irrecorriveis.

Scgundo a inlcrpreta<;ao de alguns dos burocralas que acompanha­

riam os acontecimentos dos meses seguintes, nem 0 ministro do

Interior - a quem a Inspetoria de Higiene estava subordinada­

podcria revogar uma ordem de feehamento de estalagem determi­

nada pclos csculapios.

Como seria de esperar, os problemas come9aram logo a sur­

giro Em mar<;o, a InspelOria de Higiene ordenou 0 fechamento da

cSlalagem da rua da Concei<;ilo, n' 95. 0 arrendatario do predio

respondeu que nao podia cumprir a ordem porque os moradores se

recusavam a deixar 0 local. Consultado sobre 0 impasse. 0 minis­

lro do Interior ordenoll que a autoridade policial agisse para "Ior­

nar efetiva scmelhante providencia". E 0 ministro fez ainda mais:

instnliu 0 inspctor geral de Higiene a-recorrer diretamenle a poli­

cia scmprc '-jue ocorn:sse uma silua<;ao semelhante; ou seja, 0 higie­

nista t'ic3va dispcnsado ate da autorizac;ao do ministerio quando

SABER, PODER.

Alguns antecedcntcs da demoli93o do Cabe<;a de Porco i:scla­

reeem aspcctos importantes a rcspcilO da adminislrw;ao tla Capital

Federal nos primeiros anos do regime republicano. Na vcrdade, e a

partir da ascensao de Floriano Pcixoto a prcsidencia, em novcl1l­

bra de 1891, que oeorre um rccrudcsdlllcl1lO das 311loridades pll­

blicas contra os cortic;:osY Ao que parcce, 03 higicnistJs haviam

atingido 0 allge de sua inJlllencia politica.

Nossa hist6ria pode comei;ur em 26 de janciro de 1892, cxa­

tamente urn ana antes da delllolic;:ao do Cabc�u de ron:o:�� Ncssa

data, 0 ministerio do Interior expediu 1II11 aviso a inspctoria Geml

de Higiene determinando providencias a rcspcilO dos cOI1ii;OS, cs­

ses "verdadeiros anlros disseminados pela cid:.ldc c que constitutlll

outros tantos focDs de infeeC;:30". 0 aviso lembrava iniciallllcnlc 0

que ficara estipulado no artigo 83 do rcgulamcnto sanilario de 18

de janeiro de 1890:

quando, a juizo do Inspetor Geral de J-1igicne, os corti<;os ou eSI<lIa­

gens nao plldcrelll, pm suas lllas condiyo�s sanilarias. continuar a

servir sem p�rigo para a Sall(k Pllhlica, <.I autoriJaue sanitaria, alem

da imposi<;ao das l11ultas qll� no caso couot'rcm, inlilll<:lfi.l logo os

proprietarios DU sublocadores para que OS It:chcm uentrO ue 48 ho­

ras, so podendo ser re<.lbenos depois d� kil�)s os mdhor<,lmenlll:i ll�­

cessarios.

Em outras palavras, 0 regulamento sanitario parecia penllitir que

o inspetor de Higiene determinasse 0 fechamenlo de qualquer

corti�o da cidade nllm prazo de 48 hams, 3ell} a necessidade de

medidas anteriores para prevcnir proprictarios e inqllilinos. 0

aviso informava ainda que 0 govcrno cSl!lva disposlO a lani;ar

mao "de meios eoercitivos mais encrgico�' para 0 cllll1primcnto

46 47

Page 19: Chalhoub Cidade Febril

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desejasse recorrer cl !()I"c;a. Paralclamente, 0 chefe de policia dn

Capital Federal era avisado de que deveria acudir prontamente as

solicila90es da Jnspetoria.

A situac;ao se complicou nos !neses scgllintes, eoill' 0 aumen­

to dos protestos dos propriclarios, a inquicluc;ao dos inquilinos e

os desentendimentos entre os difercnles l1rgnos da propria admi­

nistrayao publica.' Em maio, Josc Gonc;ulvcs', proprictnrio da esta­

lagem cl rua do General Pedra, nl.! 63, rceorreu dirClClmente aD mi.

nistro do Interior contra a ordclll de rechalllelllo que havin reccbido.

No documento qUI: enviou ao ministro, ° corticciro ICL lUll breve

historico de suns agruras. Ern prindpios de abril, 0 inspelor geral

ordenara 0 fecharnento "dando-Ihe urn prazo PCljUCIlO". Jose Gon­

�alves requereu uma vistoria na esperanc;a de provar ljue sua esta­

lagl:n\ estava elll boas condi90es, C declarou-sc disposto a txcCUlar

.. todos os melhoramentos" que Ihc fossem cxigidos. 0 higicnista

(.'nviou entao uma comissao cOlllposta de lIm ajlldamt:. dois dele­

gados e urn engenheiro do minislcrio do Interior. 0 cngenhciro

Icria declarado, diante das varias pessoas prcst:l1Ies, que i.l estala.

gem "linha uma grande area e estava cm hoas conJily:i)es", el/ut:

posteriormenlc indicarii.l aD proprielario os mclhoramenws neces­

.;.;arias. Qual nao fai a surpresa de Jose Gonly:alvcs, porcm. quando,

cm 30 de abril, recebeu intimac;<1o para fceh,," a ala direila da eSla­

lagem. As lamllrias do propricl<.lrio se cncerravam com 1I1lla nola

de pesar pelos inquiJinos: 0 conil;o posslIia �.'J casinhas. "e VExa.

compreendc em que condiyoes licava a populJ.;ao,ali rcsidentc, no

Ci.lSO de ser cumprida a ordem do Snr. Inspetor, quando nno 11<.1 para

llnde Illud::i-Ia".

0,5 casos desse tipo se repetiam cam rreqli�ncia. 0 que acaholl

provocando a manifestal;ao da Sociedade tJniao dos Proprietarios

e Arrendatarios de Predios, "nllcleo a que pcrtencem qU<.lse lodos

os proprietarios e arrendatarios desta Capital". Os corliceiros rc­

clamavam que cram inexeqUfveis "as ordcns conlinui.1uas" da lns­

petoria de Higiene para fechamenLO de esLalagens. Em primeiro

lugar, porque nao havia para ondc remover os lllormJores. e nao

cra caffeto sujeitar "grande numcro de familias ao VCXUl11C e :.is

inconveniencias de vcrem transleridos sells lares para �I prul;a pu­

hlica". Em segundo Iugar, os tlmciolltlrios da Iligienc eslavarn agin-

.�� ,dt�'i?

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,; ,

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do de forma intempestiva. exigindo a inlerdi�o em casos onde os

melhoramenlOs eram possiveis, e desrespeitando assim 0 direil�

de propriedade. Em terceiro lugar, 0 regulamento sanilllrio em vi­

gor condenava 0 proprietArio sem Ihe dar 0 direito de defesaj mes­

mo as vistorias, nos poucos casos em que eram concedidas, se rea­

lizavam em tais condi90es que 0 corticeiro geralmente nao tinha

nenhuma chance de reverter 0 quadro. 0 documento da Sociedade

deixou de mencionar uma situa9aO que tambem parece ter sido

comum: feita a vistoria, 0 proprietario recebia uma tisla dos repa­

ros que' prccisava fazer em seu cortiJ;o; aconlece, todavia. que a

Intendencia Mnnicipal resolvia indeferir 0 pedido de licen9a para

a realiza9ao das obras. Neste caso, 0 dono do cortiyo ficav,a sem

saida, a merce da Inspetoria de Bigiene. Finalmente, os proprieta­

rios acenavam corn 0 potencial de rebeldia de seus aliados de oca­

siao - os ioquilinos: "Os fecharnentos em breve prazo que a Ins­

pCloria costurna ordenar podenl0 lrazer serias perturbarroes a ordem

pllblica, porque 0 desespero ncm sempre mede conseqUencias e os

propriclarios e arrendatarios de predios nt�m sempre tern meios para

acalmar os impetos de seus inquilinos".

Diantc da confusao reinantc e da veemencia dos protestos•

implantoll-se a discordia nas proprius hostes gavemamentais. Urn

dos ourocratas do ministerio do Interior resolveu lentar algurna

coisa contra a prepolencia da Inspetoria de Higiene. Sua pdmeira

tentaliva ncste scntido foi, no minimo, canhestra. Encarregado de

elaborar pareccres sabre as varias reclama90es enviadas pelos pro­

prictarios, ° bllrocrata descobriu, com certa espanto. que 0 regula­

mento sanil::irio em vigor nao pennitia mesmo recurso das deci­

socs da rcpartil'ao de Bigiene sequer ao ministro ao qual ela estava

suoordinada. POl1anto, os protestos enviados pelos donos de c�rti­

�os ao ministro nao podiam surtir nenhum efeito. 0 relator do pa­

reccr evocou entao 0 regulamento sanilario vigente nos ultimos

anos do Imperio. Tal reguiamenlO, de fevereiro de 1886, delenni­

navu que uqueles que se considerassem lesados pelas decis3es da

repani�.lo de Higiel1� � na epoca, ainda Junta Central de Higiene

.- podialH impclrar rceurso ao minislro. Aparentemente impressio­

nudo com a scnsatez elementar desse dispositivo do regulamento

sanilario vigclllc alllcriormentc, 0 relator achou que ele nao fora

.18 -IV

Page 20: Chalhoub Cidade Febril

, .

!: i

reproduzido no de ji.1neiro de 1890 "talvcz por dcscuido". 0 hum­

erata sustcntava, no cnLal1to, que, apesar do "csquecimento", lal

dispositivo continuava cm vigor. pais seria Uill absunjo imaginal' 0

contrario. As autoridades supcriores do mimsterio cOJ1sidcran.ull

incorreto 0 parccer, c concJuiram que "l1ao .ha que dcJcrir sohre J

inclusa rcpresentac;ao".

Enquanto isso. 0 pcssoal da Inspetoria de Iligienc adquiria

um ccno ar triunfalista. Um dos ajuuuntes oa Inspetoria, que acol11­

panhava de perta os procedimcnlos em reialf30 nos cortic;os, foi

designado para comentar a chusma de prolcslos que cain sohrc 0

ministcrio do Interior. Eo homclll rcsolvcu cspicaiYur os 'utlvcrsa­

riDS. Considerou "facilima" a rurefa de responder aos argulllcntos

do corticeiro Jose Gonl;alves c outros scmelhantcs, dchoeholl dus

reclallla<;ocs cia Soeicdade LJniao dos Propj;ielarios qllanto <.1 l�lltu

de criterios na JtLlac;iio dOl Inspcloria. e fulmilloll illlpicdosalllcnle

o burocrata do minislerio do Interior:

Ribeiro descrevell corn lotal objelividade a slla pr6pria subjetivi­

dade sohre os cortil;os, seus proprietarios e, principalmenie, seus

ll1oradores:

I"

i IBustu u leilura do paragrafo v.lIo artigo 8311o l{cglllulllcnlo Sanit<.i­

rio parol chegar-se it cvidencia ue que nao t:abc. nu csp�cic. rCCllrso

para S.Exa. 0 Snr. Ministro uo juizo ou resollH;ao do InspclOr Cit.?ral

ue lIigienc, 0 qual somcntc por nao lIispor lie dClllcntos dt.? ton;a

para tornar cfelivo 0 fechamcnto de predios I .. �I, dada a resistencia.

rccorrc aD Govcmo 0 qual providcncia para que os pr�dios scjum

lcchados I ... II�n411aJlI(. vigor�lrt:m as disposi�()cs n.:glll�IllH�nlarcs alll­

didas, outra nao pode ser a suu intcrprClw;ao.

j:alando das habilac;Ocs, e fon;oso mender para estas senlin� sociais

a que a Iinguagcm do povo apclidou.corliro.

Tollos sabclll 0 que e 0 cortic;o.

(ierOlH)S u uvurcza calculisla e fria dos ambiciosos vulgares,

paru os quais a moeda e scmpre moeda, e 0 cortic;o e a mina aurifera

c .jncsgol:.l.VC! a saciar os scnlimcnlos vorazes destes corpos sem

l:orw;::1o!

Alimcnta-os a lubricidadc do vicio, que se ostent a impudo­

norosu (sic), ferindo os olhos c os ouvidos da sociedade seria que

dclcs Sl: uproximu, e a miseria andrajosa e repugnante, ql:le faz da

ociosidadl: U111 trono, C por UI11 contraste filho das circunstancias

pcculiarcs a vida das gralldes cidades, ao lado ( ... } do vicio e do

lodac;al impuro do aviltamenlo moral, est3 tambem 0 leito do tra­

balh<ldor honesto. que respira cl fioite a atmosfera delett::ria deste

cSlcrquilinio de tezes!

No cortic;o adla-se de ludo: 0 mcndigo que alravesSa as ruas como

lllll tTlonturo ambulanle; a merelriz impudica, que se compraz em

dcgrudar corpo e <lIma, os lipos de todos os vicios e ate [ ... ) 0 repre­

senlUnte do lrabalho l ... )

Comprcende.se desde logo 0 papel que representam na insalubri­

dade da cidade cstas habital;oes, quando nos lembrarmos que alem

de wdas as fum;oes organicas dos seres que 0 povoam, no corti�o

lava-se, engoma-se, cGzinha-se, criam-se ayes, etc.

S/) l'emos 1I111 come/ho a liar a respeiJo dos corJiros: a demo/i­

fclo de tot/m. e/es (grifo meu). de modo que ni'lo fique nenhum para

Ulcslar aos vindouros c ao estrangeiro, onde existiam as nossas

scnlinas sociais. e a sua substituic;ao par casas em boas condi�oes

higicnicas.�

I I. �{� I!:: \0-.•�. j:.

� I!.

!

A..quilo qu� () burocrata do ministerio do Interior cOl1sideravJ UIl1

:Ibsurdo era cxalamenle 0 que valia; naqucle 1l10mento, a Inspeto­

ria de Higiene parecia 0 quarto poder da Rcpllblica.

Foi neste eontexlO, ern abril de 1892, que urn higienista as­

cendeu a presidencia da Intendcncia Municipal, e postcriormelltc,

em dezembro do mesmo ana, foi nomeado para a prdcitura da

Capital FederaL" Candido Uarata Ribeiro; medica baiano, 49 anos,

professor da Facllldade de Medicina do Rio de Janeiro, havia Obli­

do ° titulo de dOlltor, cm 1877, com UIl1U tescint'itlllada Quois as

medidas sanilcirias que e/evem ser (lcou:u!/luulas para impedir ()

desenvo/vimento e prupag(l(,:do da jehre uJlllIrela nu ('ie/ude e/o Hio

de Janeiro? Coma se tratava de urn trahalho "cicntilko", Bar<.ll�l

Torna-se evidente, ponanto, qlle ao ordenar a demoli9i!o do

Cabe�a de Porco, entre olllros coni�os, Barata Ribdro estava ape­

nas colocando em pratica a sua opiniao hist6rica a respeito desse

tiro tie habita\ao popular. Mais ainda, e mantendo-se coerente corn

a su<J pri)pri<J fonmu;ao na area de saude publica, ele pregava a

511 5/

Page 21: Chalhoub Cidade Febril

L

l'I

substitui�ao dos cortil;os "por casas em bO.lS condiyocs higieni­

'':3S'', Para reaJizar tal projeto, nao era sulicic:ntc aDs higicnislas

galgarem as posic;oes na administraC;:io pllbJ ica; era prcciso sedu­

lir e buscar a aliam;:a de sctorcs emprcsaria.:;.47

.. E LVeRO

<;os publicos - no caso, concessoes para a opera<;40 de linhas de

bondc; paralelamenle, outros grupos empresariais, DU ate os mes­

mos, adquirem terras pouco valorizadas na periferia da cidade; fi­

nalmente, concluidas as linhas de bonde e feito 0 loteamento dos

terrenos, os investidores conseguem uma remuneraC;3o astronomi­

ca para 0 seu capital. 0 sucesso da opera<;40 e as vezes garantido

pcla presenc;a desses empresarios na Camara, coma vereadores elei­

t05 � e, portanto, encarrcgados de vOlar as diretrizes da politica

de expansao urbana. Tudo muito dentm dos conformes, e qualquer

semelh"al1l;a corn processos de crescimento mais recentes de cida­

des brasilciras nao tern sido mcra coincidencia.so

HOllve nos anos 1880 algumas lentalivas de incenlivar em­

presarios da conslru<;ao civil a erguer moradias baratas para opera­

riDs. A maior parte das tentativas roi malograda, apesar dos varios

privilegios concedidos pelo govemo aos investidores. Urn dos pou­

cos contratuntes que chegou a construir as casas para operarios, 0

engcnheiro e empn:sario Arthur Saucf, dono da Cornpanhia de Sa­

nC3Illento do Rio de Janeiro, justificava assirn 0 seu interesse no

investimcnto:

,

o discurso dos higienistas l:ontra as habitar;o,cs l:olctivas inte­

ressou sobrernaneira a grupos cmprcsariais .!lentos as oportunida­

des de inveSlimentos abcrtas com u cxpansau c as Ir:.lIlslonnw.;f'lcs

da malha urbana da Corte. Havcria no proccsso um enonnc pOlen­

cial para a especular;ao na l:onstrur;iio de Illoradias e no provimen­

to da infra-eslrlltura indispcnsi.lvel a ol:upa\-',lo de novas areas da

cidade. A prestigiosa Cieneia dos higienislas p<.lrccia h:gitimar as

prctensoes dos empresnrios ao insislir na llecessiuade de Lima tera­

pia radical no centra ua eidade, c aD cnlaliLi.1I scmprc 411C a des­

Irllir;ao das moradias cOllsideradas insalubres e a diminllil,;no da

aglomerar;ao de pessoas naqllela nrea eram os dois moLes csscn­

l iais de tal lerapia:"1

o crescimenLo da cidadc para novas nrt:<.Is IOrnoll-st: I�H,:llvt:l i.l

partir dos anos 1870 devido a cxpansno das linhas dc honde. POll­

l�O a pOlleo, tllZcndas e chncaras nos suhllrhios foralll sendo (om­

pradas e Joteadas, numa con.illn<;�10 de interesse.s entrc t:lllpres�irios

d<.l nrea de transportes c agentcs do capital imohiJinrio. As \'eLcs.

[1111 Illcsmo empresnrio alllava nas dllas areas de invcstimento. lJm

L:xemplo bJstante citado na hisloriogralia e 0 do ban:1o de

Drummond, um name cuja memoria esta C0Il111mente (Jssociada 1.10

s\lrgimento do joga do bicho. Drummond era stkio di.l Cia. Fcrm

Carril de Vila Isabel e proprieLario de lotc� Ill) hairro do IllCSlllOnome.�'1

o inicio da OCUpay30 de Copacabana, j{l nos anos 1890, foi

outro fruto da associar;ao bonde/lmeamcnLl', cnvolvcndo ainda ()

interesse de vereadores que cram tumbelll cmpresarios nesscs ru­Inos de atividadc. Desenha-se assim UIll padrao dc expansi.lo urba­

na que quir;a se rcpeliu CIll ouLras cidJdes brasileiras: primein>.

,dguns cmprcsarios cllllscgllcm 0 nwnopoJio!la exp!orw.;ao de scrvi-

Os corti�os C cslalagens da Corte, inlcccionados coma se acham par

suas pessimas condic;ocs sanitarias 'sao os locos principais donde

surgem ns cpidcmias e nascem afecrroes morbidas em ameatra cons­

tante aus moraJores proximos, razao pela qual foram condenados e e

rcconheciJa a imprescinQivel necessidade de, quanto antes, serem

tais huhila<;oes substituidas par outras. construidas segundo as re­

gras higienicas c de aluguel mllito m6dico para residencia de prole­

tarios, opcrarios e empregados suballemos ... 51

Vemos aqui, portanto, que 0 empresario se apropria do dis­

curso da Higiene para justificar sua opr;ao de investimento. 0

intaessantc na passagem e que 0 principal inconveniente dos

corli.;os cstaria na "ameac;a constante aos moradores pr6ximos";

iSh) e, a utilidade do projeto nao se assentaria na melhoria das

condi<;oes de vida das classes populates em si, mas sim na vanta­

gcm dc torna-Ias menos perigosas para a classe dominante. No­

vamcntc, "c1asses perigosas" em rnais de urn sentido: logo adian­

LC, no llleSllhl documemo, Arthur Sauer descrevera os corti�os

5J 53

Page 22: Chalhoub Cidade Febril

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\01110 "focus de mOleSli<ls e de lodos os vicius". caraL:lcrizl.lndo­

(IS assim tanto como UI1l problem a dc higicnc quanto de cOll(wk

_"ueia!.

Arthur Sillier conseguiu cumprir parte Oil contrail> L' sua COI1l�

panhia chegoll a conslfuir cineo vilas openirias. ahrigando 1I1lla

populac;ao superior a 3 mil pessoas. Vicira Smllo. COIlIudo, mUm

contcmplado com LIma conccssao, fracassoll na cmpn:iluda. Ja 110

documento de solicita�5.o do l'ontruto, U cmprcsario apol1lava a

concorrencia dos propriclurios de corli\u COIllU a prjnc'.ipul'diJiclll�dade dos investidorcs:

prolongar a rua dos l'ajueiros, a fua do dr. Joao Ricardo e ainda

abrir 1I1ll lllIlcl no mono do Livramento. E desnecessario- dizer

que a rcalizaC;Jo da obm dcpendia dti destrui�ao cornpieta do

Cabcl'a Je I'orco. De acorJo com Lilian Fessler Vaz. Carlos

�alllpailJ solicilara ainda as concessoes de praxe em tais contra­

tos: direilo de desaproprial;3o de predios e terrenos, cessao gra­

tuita de terrenos pllhlicos, privilcgio para a explora�ao de uma

linha de carris nas J'lIUS adjacentes e no tunel, e mais direito de

cohn.lI1l;�l de pedagio por trinla anus. 53

Em'2(1 di.: janciro de 1893, cxatamcnte 0 dia da opera�ao de

guerm contra () Call1:\f.I de Porco, duas proprietarias da estalagern

t:ncalllinharalll LIma represental;30 ao prefeito Barata Ribeiro pro­

(cstando "por pcrdas e d;,.lI1os conlra l)lIalqllcr ato de violencia que

se prClcm!;.l pralicar CIll csp()lia�ao de stla propricdadc". Vcjarn 0

que dil. essc dOClllllell(O:

Sl) dqlOis d� UIll cl'lcbre contn.Hu kilO pda Intcndencia com 0 Dr.

l'arlos Salllpaio, para 0 prolungal1lenlo dus ruas Joao Ricarc:o e Ca­

jueiros. COIll a obrigw;ao de.: inue.:nizar l.i.:, Suplicantcs e outros proprie­

1 ..1rios, cOlllralo que devii.l ser tri.lllsfenoo ao Banco Evoluci(':lista, e

lll: 11l<llld.lr cst� I \dll(O uma comissao un;ar 0 valor Jas desapropria­

\'i)..:s a 1�I/('r, C ljllt:. por singular I.:oilll:idencia come�aram a,; Supli­

(<lilIes L' os olllros proprie.:t<irios a ser incomodados,H

porque c inlllilivo que.: tais propriel<.irios, e.:stabe.:Jeeenuo os i.llugucis

mllito mais baixlls do que poderiam f�lZc-los os l..'onslrulores dos

novos pr�dios, dowdos de lodas as condi�(t:s de.: higit:nL' (' de clHl­

fono de vilia, formariam 1ll11l1�1 cOllcorrcnci�1 1ll1pllSsivcl de Sllstc.:/l­

ti.lr, c t.k no\'o flcarialll scnhOfc.:s ('xc!usivos Ull seu C<lmpll de Iorpe

especuJay3o.':'

,

Segllndu Robert Pechman C I.uiz Qlleirol.l�ibeir(), eSludiosus

df.! rorma�ao do Ci.lpiLal imobiliario no pcriodo, as i.llcgayoes de

\'icira SouLo podt:m St:r contestadas dcvido ao dL:scompi.lsso entre

;1 enormc prO<.:ufa c a pcquena orena de Illoradias. P�lra l's�es

,ll.ltorcs, Vieira SOllto nao declaroll 0 vcrdi.ldeirn interL:sse dos

"cupilalislas" na investida conlra as hi.ihita�i)cs coIClivf.ls: llllli­

[lIS conil;os oCllpavf.lm lerrenos hem localii'.ados, h;'lllluilo illtc­

grados ,1 Illalha urbana, e porLf.lntn vcrdadeira:, minas potcllL'iais

cl ....: invcstimcTlto.

o Icitor lalvez se rccorde que Vieir<.l SOUIO cra lllll dos no­

lllesconstanlt.:S da longa lista de nOli.1Vcis pn:�eJlLeS a lkmoli\'r.lO

do Cabcya de PorcD. 0 earo kitor nao se lcr,l esquecido 1;.lInpOllco

qtle Vieira Souto In estava ;,.to lado de Carlos Sampaio. l: que am­

hos conlribuiram COl11 0 esfon;o de dcmoli�ao providend<.llldo a

presen�a de qllarcnta open.trios da Fmpresa de Mclhoramenlos

do Brasil, compullhia da gual cml11 direlorcs. Trawvu-se, SL'1ll

duvida, de interesse pela coisa Pllblica e pn:ocllf"I�;10 com a higiL'­

nc das habitac;oes. Tulvez fosse ainda lllais do i..JlIC isso. Lm I �() I,

(l Conselho de Intendencia Municipal haviu l'cclHldo lUll contralU

corn 0 engcnheiro Carlos Salllpaio, que lieava L'ncarrcgado dc

Llll Sllllla, na VL:rsao dos propricl<.irios, 0 cereo e a destruiy30

tinal da cstalagem cSlariulll diretamente ligados aos investimentos

pl<.lllejados por Carlos Sampaio, Vieim'Souto, e sua Emprcsa de

MclhoramcnlOs. M<.Iis ainda. as proprielarias insinuavam que a

demllli�an do COrLi�o iria dimilluir 0 valor das desapropriayoes a

scrern pagas pelo menos e iSlO 0 que se pode razoavelmente

dcduLir da rcfcrencia ao 1mbalho da comissao que leria feita 0 or­

.;amenlo d<.ls dcsi.lpropriac;oes necessarias. Na versa-a da prefcilura,

i.l cslah!gcrn dcveria se!" dcstruida porque havia sido conslruida sem

liL'ell\-'a da C ..imura c l:llnlra cxpre.:ssa recomendac;aa de uma porta­

ria go\'cnlalllcllwl de 28 de <.lgoslo de 1840. Alem disso, obvia­

lIlcntc, Ila\"l:ri<.l 0 cswdo '"rllinoso" dos predios e a imundicie su­

posl.III1CI1lC caracleristica do corli.;o t: sempre condenada pela

Illspl.'wria antiga Jlll1la de Iligiell�,jj

5-1 55

\-'iETlrU1;J;)�(i:J-(;i:tj-1I-"; . Uf M�l l>IBLlOTEC"�. -'-.' _._._,..,_...,_...... '"'-'---�

Page 23: Chalhoub Cidade Febril

••

•,.

Ambas 8<:; versoes valem pelo que 5:10: conjuntns dc a'l'ra/O<.I­

dos produzidos num momento de cuntlito abcrlo. Dc ljuuILji.'l'( l{)r­

ma, as versoes explicitam para alem de qualqucr ullvida 4ue higic­

nistas e agentes imobiliarios estavam unidos pelas n.::formfls lirhanas

e contra os corticeiros. Se ell fosse urn autof dado a g,randi loqlicl1cias

te6rico-estilisticas, teria escrilo que aCabUI11DS dc rCCOl1stnllr, cm

parte, 0 processo historico de forma((ao da aliulH;a enlre a Ci'�I1Ci3

eo Capital, alianc;:a que seria essencial as transform<l(({lcs urh<.mJs

"radicais" -- no sentido da hostilidade em rct:.u;:ao ..1S "classcs po­

bres" e a cultura popular CIll gcraJ - do illkio do sc.:culo xx no

Rio. Mas eu nao sou urn autor grandiloqUente. e logo mlo Ika cs­

crite aquilo que escrevi, apesar de le-In provado.

a fc-hrt: <1l1larcla CIll dctril1lcnto dJ tllbcrclIlosc - uma daem;a

que. C0l110 ja foi I1lcllcionaoo, os pn.'>prios IlH�dicos associavam it

Ilulril;ao c •.'is condil;6es de trabalho c de vida el11 geral da popula­

�ao. Duranle lodos csscs anos de crise agllda de saude publica na

eidmk do Rio (elllre aproximadamellle 1850 e 1920), a lubercu­

luse Inatou Illuiw mais do que quaisqucr das oulras doen�as epi­

dcmicas. 1\ luhcrculosc. porclll, parccill ataclIr indiferentemenlC

brancos e negros. nacionais e eSlrangeiros c. desculpa suprem3.

era tloelllta eXln:mumente grave ale lllCSIllO cm Paris, 0 que nos

t.:ximia dt.: qualqller culpa por ahrigar a pCSIC.'h A rchrc alllarela

signilka\u basiL:amcllle 0 Op0510: alclll dc nao aeollleler Paris c

dcflagrar 0 Rio anuallllcnlc. era lllll verdadciro llagclo principal­

1lll.'1l1e para os imig.ranlcs. RlIi Barbosa dcscrcvcu assilll as carac­

tnislicas da kbre amarcla:

"

'I

EPiWGO I: 1I111 mal. dl.' quI.' St.) ,1 ra�a Ilcgra logra illltlllidadc. raro dcslllclltiJa

dl1L'llas 110 cursu <.Ias mais violl.'nlas cpidcrnias, c cm l"ujo obitwirio,

nos n:ntros onJc a\'lJ!tava a lmigr'-l\'ao clIropciu, u contribuil;ao das

coli.mills l'sLrangeiras subia a 92 por cl.'nLo sobrl.' 0 lotal de 1ll0rtos,

COllsL'rvadoru do dClllcnto africano, ex!cnninadora do clemento ell�

roPCll. a praga <l1ll ..ul.'la. nl.'grcira e xClH.)foba. utacava a exislcncia da

llal;�l{l na sua JlII.'<.Iula, n'-l seiva rcgcncralril. do hOlD sangue arricano,

com quI.' a COtTl.'llte imigrat()ria llOS vem dermar as veias da

Illl.'sti\';lgCIll prillliliv<l, c nos dava. <lOS 01l1OS Jo 111lUHJo civilizado, os

arl.'s tk Illll 1ll,lIadtlUW <.la rat,:a hranca. \),

I,

I:

Antes de tenninar este capitula, prcciso antccipar-m: cl lUll

passive I mal-enlendida, Aa cantrario de varias pcrsollag{ '1� pre­

seotes nesta Illinha hist6ria, eu nao lcnho a mania da sllsrei�;1o

generalizada. Isto e, eu realmcllte nao acho que totlos os

reformadores tia cidade na virada do seclIlo cram movidos apl..'ll<lS

por cOllsidera\,()es maquiavclicas e inlercssciras. V�lrios dcll"�, tal­

vcz os mais irnporlanles dentrc ell'S, ccrlamelllc agialll Illovidos

I por cOllvic<;tlC'S inlimas, e alguns dell'S cOllseguin.llll vitt.)rias :�igl1i­

licativas contra flagclos humanos rcais c que prceisavam SLT l'OIl­

lrolados - como, por exemplo, e para n5.o dcixar de lllencilillar t)

caso mais 6hvia, a campanha bell1-sucedida liderada por Oswaldo

Cruz contra a rebre amarela.

Mas constatar alguns dos resultados atingidos !laO slgnifica

fechar os oihos para 0 fata de que. muilas vezes. tais resultudos

foram obtidos a prel;os sociais excessivall1enlC elevado�, l que,apesar de 0 discurso cientificista da Higielle prelcnder pairar aci­

ma dos hamens e para alem da moral, lralou-se scmprc dc'lolllar

decis5es polilicas claras quanto ao dirceionamcnto dos bcndl­

cios a serelll alcanl;adas atraves das iniciutivas das adlllinistra­

�oes publicas, E clam, por cxemplo, que havi<l Illotivos, diga­

mos, nada 0hvios au "neutros", na Op<;30 em priorizur () cOlllhate

SL' (l kiloI' CSI�"t illlpn:ssiollado COIll a virulcncia do racislllo

CSlalllpado Ilt:ssc padgrafo d.e Rui Barbosa, saiba quc a tentaliva

dc l'ntcnder a possibilidadc historica tie semclhante aberra<;3o foi

() que me movcu nu pcsqllisa sobre lebrc amarela qlle originou 0

segulldo capitlllo do prcscnte volume. No lllomelllo, e coma ain­

da se lrata dc concluir eslc capitulo. basta obscrvur que 0 concci­

to de civili/al;;)O const3ntc na passagcm implicava 0 ideal de

embranquccilllcnto. 0 "depurar as veins tla mcslit;:agcm primiti­

va". e iSlosignilicavu atlolar mL'didus para viabilizar a clllrada

Illacil;a dL' imig.rantcs Cllropt.'lIS 110 pais. Uma das Illcdidas ncccs­

si."trias scria a Illclhoria das condi\'{}cs de salubridade publica, com

cnrase IlO l'(lI11halt.' a dOl'n'w'as ljUI..•• COIllO a rchrc amarela, amca­

<;avam principalmcllll.' os imigrantes. Nessc senlidu. a moderna

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Page 24: Chalhoub Cidade Febril

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�pralica ua "gtH.ann CiClllfrica" da I,,;idade e\cnlhial"uiddl!(l",Il'IL'lIlc

seus benefici:irios - isln e. tol11<\va sua:-- decis()�s polftil'<l:-' L'

entendia que () saneamenlO e as trallsfonna�'l}eS urhallas IlllU prc

c.:isavam ter grandes compromissos cum a melhoria oas _ti.lIHli­

'roes de vida de uma massa cnorme de pessoas ._.� os ne�:�('h. l'S�

ses suspeitos oreferenciais. mcmhrns por cxcclencia da;,; . :Ia..;sl's

perigosas" .

o mais tragico em (ooa cssa hist()ria e LJlIL' a alcg::l.;"<Itl dc

"cientificidadc", de nculraliJadc Ilas dccisocs adminislrati"a>.. Iral

sempre em sell cerne a viulem:ia contra il cidatl.lIl1.L SI..' os atlllli­

nistradores, os governantes. san cles proprios go\'t:rnados por im­

perativos ditos "cientfficos" - sejam esscs imperalivos UIIl;l nia­

(faO das mcnles ferteis de higicnislas, naqucla epoca. Ul! tie

economista" mais recentementc-. 11,10 hii () que ncgnciar cum os

cidadaos, essn massa de ignoranles portatlorcs de tnuos os '-,kios

DU inoculados pelo virus Ja "cultura inflacionilria".

Mas sempre houve 4uelll conseguisse vcr a polftica n,i'> nL'­

denciais da "ciencia". 0 lrecho abaixu, por cxelllplo, C{H1Sla dc lllll

numero de fc\'ereiro de 1905 do jorrml 1:'J/ulIIC'i/JcICiio_ "6rg;10 da

Liga das Artes Gra.ficas e do proletariaJo em gcral". () articlIlisw

disclIlia preL.j"amente as causas da Revolta d:l Vacina. qu.. ,:OlllO

sabem()s, fni () maior_movimcl1lO de prolcsto popular cOlltra 0 ....

]]H�todos utili7ados pelos 6rgaos de sat'lde plIhlicil llO pcriotlo Se­

gundo 0 autoI'. 0 governo estav;t

,'(Ir1Ii,:ns L' 1�1\'I,:las carioL'as na virada do seclIlo. lh:i.\<.Illl dllvidas de

qUL' a polillL-a dL' eITadic,-\(;�10 dos cortil,:oS - Icali;:ada (Dill dClcr­

lllill�Il,'�10 (' Irucllh:ncia. puis 4ue "cicllliJica"-- pllssa le!" rcsulLatlo

L'1ll LJlIalquer melhoria signilicativa nas cOlluil,:(lCS de moradia c

"aluhridauc da popul<ll,:;ln pohrc do Rio.

.l.

'';.i.I�:.!'

I

(

sujcitando '.) opcrario aos proccssus lIa c.\rx'riC:'l1l,'ia l'il'lllllira l'JlllllllIIl'

da preSllllcosa sabelloria oJicial. llIuito Iclo"a pela ,,;lIidl' puhlll"a.

quando se lrata lie epidemias qllc proporcionalll altas traJlS;IIJl� ... l'lllll

us dinlH.'irtls publicus, c tao indifcrclltl.' aos maIL's qUL' m:IJ" liP" afli­

gem, quando pedilllos prolc�fJ.o para 0 1I0SS0 lrahalho. (1l1l"I;ltl\l'1I1l.tlll,'

assaltadn pelo capitalismo gananciosll c dCSUllIilllO,l'(llllll c"',lacoll­

leccndo a!!or3 corn as obras do porlo. da a\-cnida ) da pn':�('illlla.

onlle 0 lral'alhador percebe um ordcnado que mallhL' che!,!:! I.;. "'"tHpcdac;o de chartjue, intoxicado e llIorlfrcro.'� . _ If

,

Traoalh,Hll)res sujeitos "<lOS processus da c,\I1l'riclli..'ill C;l'lllflil'<l

em nome ua /"'esuJ1\-'osa sabedori<l nficiar'? Sill!. l' n,lo apl.lI:t .... L'lll

1<)04_ Dc faIn. 'IS fotogratlas constantes 110 cadcrJlo de iluslnl',;t'lL'S, t!L'

58 51)

;

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