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CHALHOUB, S. Machado de Assis, Historiador

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Prólogoeagradecimentos

Apesquisaqueoriginouestelivroiniciou-se,inadvertidamente,emfinsdadécadade1980.Redigia,àépoca,umlivrosobreahistóriadaescravidãonoRioimperial.Poracidentedepercurso,quejánãocabeaquirelembrar,retorneiàobradeMachadodeAssisenquantoescreviaaqueletexto.ViajeientãoemsuaspáginasimpregnadasdovelhoRio,aquelacidadededistinçãosenhorial,ruadoOuvidor,teatrolírico,folhetins,política,burocracia,finançasetodoo“resto”—escravos,agregados,caixeiros,operários,cortiços,febreamarela,varíola...Comohistoriador,desdesempre,foraesse“resto”quemeinteressara.AreleituradeMachado,mediadaporváriosanosdepesquisasobreahistóriasocialdoRionoséculoxix,foidessasexperiênciasintelectuaisquenãopassam,eaindaassimdeixamsaudade.Surpreso,encontravanaquelestextosexposiçãodetalhadadaspolíticasdedominaçãosocialquebuscavareconstituirapartirdeoutrasfonteshistóricas;perplexo,percebiaalimuitaalegoriaereflexãosistemáticasobreaexperiênciasocialdeescravos,dependenteseoutrossujeitosque,dizia-se,nãoestavamnocentrodaobradeMachado.Aospoucos,eapósoutralongapesquisa—sobreepidemiasnaCorteimperial—àsombradostextosmachadianos,pareceu-medebomalvitredeixardemudardeassunto.

Emmeadosdosanos1990,incomodadocomacarênciadeinformaçõesmaisdiretassobreasidéiaspolíticasesociaisdoromancista,passeiainvestigarcomcuidadoavidadofuncionáriopúblicoJoaquimMariaMachadodeAssis.Conhecedordosmeandrosdaadministraçãoimperial,cientedapossibilidadedeencontrartesourosinsuspeitadosnalgunsdaquelesmaçosemaismaçosderotinaburocrática,litudoquepudeencontrarsobreotrabalhonasegundaseçãodaDiretoriadaAgriculturadoMinistériodaAgriculturaduranteoperíodonoqualMachadochefioutalrepartição—demeadosdosanos1870atéofinaldadécadade1880.Descobrilogoqueosprincipaisassuntosdaseçãoerampolíticadeterraseescravidão—nestecaso,maisprecisamente,estava

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encarregadadeacompanharaaplicaçãodaleide28desetembrode1871,depoisapelidadaLeidoVentreLivre.

Oresultadodacoletafoidesigual.Noslivrosdeminutasdeavisoseofíciosredigidosnarepartiçãoquasenadaestáassinado.Esseproblemafoifácilderesolver,poisbastouarranjaralgumaspáginasfotocopiadascomacaligrafiadenossapersonagemepassardiasdivertidosnoArquivoNacional,aidentificarsinuosidadeshabituaisdessaoudaquelaletra.Apósalgumtreino,achavaosmanuscritosdobruxonumrelance.Paraaumentaraminhaautoconfiança,encontrava,muiraramente,umbilheteououtracoisadeverasassinadapelochefedaseção.Dequalquermodo,pareciaevidente,peloestudodarotinadoserviço,queMachadoexaminava,pelomenossuperficialmente,tudoquecirculavaemseusetor.Tambémsetornourazoávelsuporqueeraoprincipalresponsávelpelasdiretrizespolíticasgeraisdotrabalhodaseção,aindaqueissopoucosignifiquequantoàorientaçãogeraldaDiretoriadaAgricultura,aindamenosdoMinistériodaAgricultura,maisremotamenteaindadogovernoimperial...Defato,aprendibemmaisduranteapesquisanassituaçõesemquefoipossívelrecuperarcomalgumdetalhe,sobreumaqualquerquestãoàbaila,odebateentreosfuncionáriosdasegundaseçãoeosdeoutrossetoresdogovernoimperial—superioresemhierarquia,naesmagadoramaioriadoscasos.

Todavia,acoletamostrava-sedesigualnumoutroaspecto,maisdifícildecontornar.Encontreidesdeoinícioumvolumeimpressionantedematerialsobrepolíticadeterras.Aseçãoopinavacotidianamentesobreinvasãodeterrasdevolutas,demarcaçãoemediçãodeterras,posses,sesmarias,terrasdealdeamento,cortedemadeiraseoutrastantasquestõesfundiárias.Durantealgunsanos,li,selecionei,copiei,compreimicrofilmes,junteienfimquantidadeabsurdadematerialsobreotema,queestáagoraaatravancarabibliotecadoméstica.Nãouseinadadissonestetexto.Comotempo,noteiaausênciaquasecompletadeavisoseofíciossobreescravidãoeemancipaçãodeescravosnoslivrosqueconsultava.Avançavanapesquisa,recorriaaoutrasfontesetinhanotíciadesseoudaqueleaspectodaleide28desetembrode1871discutidonaseção,porémnãoachavanadadissonadocumentaçãomanuscritadarepartição.Talvezporacreditarquepesquisaemarquivosnuncaencontraobstáculos,apenassugerenovaspistas,busquei“cercar”asegundaseçãoemoutrossetoresefontesdaadministraçãopública.Tinhadedescobrirpareceressobrealeide1871,peloencantododesafio,mastambémporqueomeumodo

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delerosromancesdeMachadodependiamuitovisceralmentedeinterpretarosentidodaexperiênciahistóricadadécadade1870,todaelamarcadapelosdebatesparaaaprovaçãodaditaleiepelasconseqüênciasdesuaaplicação.

Deinício,fizoóbvio.LitodososrelatóriosministeriaisdaAgriculturaeseusanexos,algunsdelesincrivelmentericosedetalhados,maisoutrasfontesimpressas,leiseregulamentos.Nalgumponto,passeiacompulsarospareceressobreescravidão,muitosdelessobreaspectosdaleide1871,nospapéisdoConselhodeEstado.Láestavaasegundaseçãoaformularváriasdasconsultasenviadasaosconselheiros,aemitirparecereseréplicas—àsvezestranscritas,outrasvezesresumidas,outrasvezesmuirapidamentemencionadas.AvantagemdessadocumentaçãoestavapoisnachancedevislumbrarMachadodeAssiseasegundaseçãonumaarenadeluta,numagamadeinteressesdiversosecontraditórios,mesmoquecircunscritospelaestruturaerotinadaadministraçãopública.Aindaquefosseilusórioesperarencontrar,emtaisfontesecircunstâncias,longasexpansõesdeMachadosobresuasidéiaspolíticasesociais,ofatoéquehaviaumaououtrapassagemsugestivaamerecerreleiturasnumaredeapertadadeinterlocuçãosocial.Esseacidentedepercursoocupou-meosúltimostrêsanos,talvezmais,nãoseidizer.Aoterminaroquartocapítulo,haviaaportadoemalgumlugar,edeiporconcluídaessaetapa.Quantoàpolíticadeterras,“cousasfuturas”,quemsabe.

Aorganizaçãodestevolumetraduz,digamosassim,asduasvertentesqueconstituíramoesforçodeinvestigação.OstrêsprimeiroscapítulosinterpretamromancesdeMachadodeAssis,embuscadosentidodasmudançashistóricasdoperíodo,segundoavisãodele,econformeasuaintenção,ouaoarrepiodela.Nãoseisemeentendem.OpróprioMachadomesocorre,pormeiodeseunarradord’além-túmulo,paradizerqueo“melhorprólogoéoquecontémmenoscousas,ouoqueasdizdeumjeitoobscuroetruncado”.Queassimseja.Aleitoraentenderábemointuitodessescapítulosaoleroprimeirodeles.Oquartoeassazlongocapítuloapresentaosresultadosdapesquisasobreodebate,aaprovaçãoeaaplicaçãodaleide28desetembrode1871.CapítulotradicionaldeHistória,enfim,parafundamentaromododelerashistóriasnostrêsprimeiros.Verdadequetudoissoconfundeumtantoascoisas.NãomeocorrerialerashistóriasdedeterminadomodosemoestofodaHistóriaquecontodepois,masquenãoaprendidepois.TambéméverdadequenãoveriaHistórianenhumanashistóriasdeMachadodeAssissemaexperiência

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intelectualdeleroutrosintérpretesdele,comosquaistentoestabelecerumdiálogomaisdireto.Refiro-me,principalmente,aJohnGledsoneaRobertoSchwarz.Oprimeiroincentivou-mealgumasvezes,emconversaspessoaiseporcorrespondência,edevoagradecer-lheporissotambém.

Aosagradecimentos,pois.Comosempre,minhadívidaprincipaléparacomoArquivoNacional,onderealizeipraticamentetodaapesquisa.SoumuitogratoaHelena,Rogério,SátiroeValéria,quemeauxiliamháanosnasaladeconsultadoArquivo.NaUnicamp,utilizeiasbibliotecasdoInstitutodeFilosofiaeCiênciasHumanas,doInstitutodeEstudosdaLinguagemedoCentrodeMemória,eagradeçoatodososfuncionáriosagentilezacomquemeatendem.NosEstadosUnidos,estivenoInstitutefortheHumanities,daUniversidadedeMichigan,noprimeirosemestrede2000.Durantealgunsmesestrabalheiemcondiçõesexcelentes,apoiadoporequipeatenciosaepelaótimabibliotecadauniversidade.Ocnpqprestaauxíliofinanceiroaoprojetodesde1996,pormeiodebolsadeprodutividadeempesquisa;aFapespconcedeu-mebolsadepós-doutorado,oquepermitiuprolongaraestadianaUniversidadedeMichigan.

SãotantosanosaapresentarsemináriosepalestrassobreMachadodeAssis,noBrasilenosEstadosUnidos,queéimpossívellembrardetodosquemebrindaramcomsugestõesecomentárioscríticos.NosEstadosUnidos,agradeçoemespecialaPeterBeattie,DainBorges,BrodwinFischer,RichardGraham,SandraGraham,AimsMcGuinness,RebeccaScotteThomasTrautmann.Muiespecialmente,aSueannCaulfield,quemeacolheuemMichiganeincentivouesteprojetotodootempo.DavidTreeceenviou,deLondres,comentáriossobreversãoanteriordoterceirocapítulo.NaUnicamp,meucarinhoegratidãoàsamigaseparceirasdetantosanos:MariaClementinaPereiraCunhaeSilviaLara.Nossosdebatesemsemináriossãoàsvezestãointensos,sempretãoricos,queépossívelqueeutenharoubadoumaououtraidéiadelassemmedarconta.RobertSlenescontinuameumestre,ponto.Foielequemsugeriu,hámuitotempo,talveznemselembre,oretornoaMachadodeAssis.AindanoâmbitodoCentrodePesquisaemHistóriaSocialdaCultura(Cecult),CláudioBatalhaeCarlosRobertoGalvãoSobrinhoapoiaramsempre,criticaramquandonecessário.Cláudiofeztambémagentilezademeresolverinúmerosassuntosdomésticosquandoestiveporlongoperíodo,ecomtodaafamília,nosEstadosUnidos.HenriqueEspadaLimaFilhoeLeonardoAffonsodeMirandaPereira

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foramgrandescompanheirosdetrabalhonoCecult;econtinuosobaproteçãoindispensáveldeUlianaFerlimeLucianaBarbeiro.MichaelHallleu,comentouecorrigiuasprimeirasversões—redigidaseminglês—dossegundoeterceirocapítulos.AosfuncionáriosdoArquivoEdgardLeuenroth,daUnicamp,agradeçoaconsultaaumououtrodocumento,massobretudoapaciênciacomqueaturaramumdiretorumtantoavoado,outroquantoausente,nessesúltimosmeses.ReginaHortaDuarteenviousugestõesecríticasdeBeloHorizonte.MargaridadeSousaNevescomentouversãodoterceirocapítuloemmesa-redondadaAnpuh/2001—comaquelaamálgamadeagudezacríticaecarinhodequesóelaparececapaz.Otextofoidefendidocomoteseemconcursoaocargodeprofessortitular,naUnicamp,emjulhode2003.Agradeçoaosmembrosdabancaporsualeituraatentaegenerosa:ArnaldoContier,JaniceTheodorodaSilva,AngelaMariadeCastroGomes,JoãoJoséReiseÍtaloTronca.Finalmente,umagradecimentoespecialaMartaGarcia,daCompanhiadasLetras,pelagentilezaecuidadonapreparaçãodemeuslivros.

Éumprazerreconhecerqueestetrabalhofoiconcebidoenutrido,emgrandeparte,nassalasdeaula.Ministreivárioscursossobrehistóriaeliteraturaaolongodadécadade1990,váriosdelessobreMachadodeAssis.Ostrêsprimeiroscapítulos,defato,surgiramnapreparaçãodasaulasparataiscursos.Nesseperíodo,váriosalunosquefreqüentaramessasdisciplinasformaram-senagraduação,fizerammestrado,concluíramdoutorado,ingressaramnopós-doutorado...,ouseforamparaoutrasuniversidades.Outroscontinuaramàroda,algunsnatorcidaexplícitaparaqueeuconcluísseotexto.Sougratoatodospelasperguntasepeloceticismoconstrutivo,expressoàsvezesnumacareta,numolharenviesado.Mencionotrêsdeles,dequemtenhoaprendidomuito,naleituradoqueescrevem,enaquiloquedizemsobreoqueescrevo:GabrieladosReisSampaio,JeffersonCanoeLeonardoAffonsodeMirandaPereira.

Quantoàfamília,apoioincondicional,quenãohácomoagradecer,ficandoaesperançaderetribuirdeigualmodo.Paisesogrosacolheram-menoRio,emtantasviagensdepesquisa.Nacasademeuspaisencontreirefúgioparaescrever,vezououtra,quandoprecisavadededicaçãointegralaotexto.Sandracontinuaameulado,firme,umateseatrásdaoutra.Qualquerpalavradegratidãoépouca.LucaseLaranasceramecrescemenquantoopailêeescrevesobreMachadodeAssis.Nosúltimosmeses,mostram-serevoltadoscomtantos

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finsdesemanamornos,semgraça.Laraprometecolocar-me“decastigo”:“ummêssemtrabalharnocomputador”.Lucasquernavegarnainternet.Alegria,crianças,podembrincarnestageringonça.

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1.PaternalismoeescravidãoemHelena

argumento

Aocontarsuashistórias,MachadodeAssisescreveuereescreveuahistóriadoBrasilnoséculoxix.Essahipótesevemsendodefendida,ameuverdeformabastanteconvincente,porcríticosliterárioscomoRobertoSchwarzeJohnGledson,etemsereveladoimportanteparadesvendarepotencializarsignificadosnostextosmachadianos.1NaóticadeSchwarz,aobradeMachadoéinterpretadacomoumcomentário“estrutural”,porassimdizer,sobreasociedadebrasileiradoséculoxix:oromancistaexpressaeanalisaaspectosessenciaisaofuncionamentoereproduçãodasestruturasdeautoridadeeexploraçãovigentesnoperíodo.Schwarzprocuramesmoexplicaratrajetóriadaobramachadianacomoumprocessodeexperimentaçãoebuscadeum“dispositivoliterário”que“captaedramatizaaestruturadopaís,transformadaemregradeescrita”.2Gledson,poroutrolado,estámaispreocupadoemperseguiromovimentodahistórianosescritosdeMachado:ocríticodemonstra,numprocedimentosistemáticodedecifraçãodealusõesealegorias,queoromancistacomentouintensamenteastransformaçõessociaisepolíticasdeseutempo.SeapenadeGledsonrevelaumMachadoempenhadoeminterpretarosentidodahistória,tambémmostraquetalesforçoéacompanhadodeumprocessonãomenosintensodedissimulaçãoedespistamentodoleitor,quenãorarovêoseuesforçodeentendimentosolenementeenviadoparaascalendasgregas.

ÉclaroqueasperspectivasdeSchwarzeGledsonsecompletam,equequestõesdeestruturaedemovimentosãopertinenteseprecisamestarpresentesnaanálisedatexturasemprecomplexa,quandonãodeliberadamente

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minada,doromancemachadiano.Afinal,opróprioMachadojánosmandaraatodosparaascalendasgregasnocapítulolxxiideMemóriaspóstumasdeBrásCubas.Láestáocríticoebibliômano,umsujeitomagro,amareloegrisalho,que,setentaanosdepois,encontraumexemplarúnicodasMemóriaseseempenhaemdecifrarseusaparentesdespropósitos.Essesujeito,quepareceamaroslivrosacimadetodasascoisas,equetambéméestrábico,míope,calvoecorcunda,viraereviraaspalavras,examina-aspordentroeporfora,efinalmentedesanimadetentarentenderosseussignificados.Issosoacomoadvertência,porémfuncionacomovertigem.

Nestecapítulo,oobjetivoéapresentarummododelerHelenaemqueavisãodeMachadosobreahistóriasocialepolíticadoBrasilemmeadosdoséculoxixocupaocentrodaconcepçãoeestruturanarrativadaobra.Emresumo,esseromanceseriaumainterpretaçãodasociedadebrasileiraduranteoperíododehegemoniadoprojetosaquarema—“otemposaquarema”,naexpressãocunhadaporIlmarMattos.3EmHelena,osacontecimentosnarradosestãosituadosnadécadade1850,oquepermiteaMachadoumaanálisepormenorizadadavigênciadeumahegemoniapolíticaecultural,historicamenteespecífica,queinformaeorganizaareproduçãodasrelaçõessociaisdesiguais.Emoutraspalavras,umapolíticadedomínioassentadanainviolabilidadedavontadesenhorialenaideologiadaproduçãodedependentesgaranteumaunidadedesentidoàtotalidadedasrelaçõessociais,queparecementãoseguiroseucursonaturaleinabalável.Todavia,Helenanãopodiaserapenasoregistrodecertaestruturadedominação:Machadoescreveutalromanceem1876,evocandoaspráticassociaiseo“clima”vigentesnadécadade1850.Ouseja,éprecisolerHelenaemsuasduashistoricidades:adanarrativa—anos1850—eadoautor—1876—,econsiderarquehouve,depermeio,acrisesocialeosdebatespolíticosintensosqueculminaramnaleide28desetembrode1871,depoisconhecidacomoLeidoVentreLivre.Escritonaperspectivadequempresenciaraaemergênciadacrisenasformastradicionaisdedomínio,Helenasetornatambémumarevelação,àsvezessutil,outrasvezesabertaeatéinformadapelopropósitodadenúncia,dosantagonismosedaviolênciainerentesàsrelaçõessociaisvigentesdurante“otemposaquarema”.

aideologiasenhorial:descrição

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Oscapítulosiniciaisdoromance,eespecialmenteosegundo,sãoumacuidadosadescriçãodaideologiasenhorial.MortooconselheiroVale,personagemdefamíliatradicionalepertencenteàs“primeirasclassesdasociedade”,asaçõesetensõesconvergemparaasdisposiçõestestamentáriasdofinado.Oepisódiopareceexemplareconcentraosignificadosocialmaisdecisivoaumdeterminadoideáriodedominaçãodeclasse:avontadedochefedefamília,dosenhor-proprietário,éinviolável,eéessavontadequeorganizaedásentidoàsrelaçõessociaisqueacircundam.Umdosmomentosmaiscruciaiseritualísticosdesseidealdedominação/subordinaçãoéodamorteseguidadaaberturadetestamento;defato,oqueficaexpressoemtalcontextoéqueavontadesenhorialcarregatamanhainérciaquecontinuaagovernarosvivospostumamente.Porumlado,otestamentoéamanifestaçãomáximadeumavontadesenhorial,sendoaomesmotempooencaminhamentodacontinuidadedeumapolíticadedomínioqueprecisasobreviveraoatoderradeirodaquelavontadeespecífica.Poroutrolado,asituaçãodotestamento,eposteriorinventário,apresentasempreumpotencialdetensãoeconflito:osherdeirosdefendemseusinteresses,efreqüentementesedesentendem,noprocessodepartilhadosbens;osagregadosedependentesemgeralvivemaincertezadapermanênciadearranjospassados;eosescravos,viaderegraoelomaisfrágil,enfrentamoriscodeversuasfamíliasecomunidadesdivididasentreosherdeirosoubruscamentedestruídasportransaçõesdecompraevenda.

OconselheiroVale,todavia,tiveraumúnicofilho,ojovemEstácio,personagemderobustasqualidadeseformadoemmatemáticas.Naausênciadetensãoepartilhaentreherdeiros,osricaçosdoAndaraípoderiamtalvezesperarumprocessotranqüilodesucessãofamiliar.Abertootestamento,comtodasasformalidadesdepraxe,descobre-sequeoconselheiroreconheciaumafilhanatural,denomeHelena,declaradaherdeiradapartequelhetocassedeseusbens.Maisainda,enumademonstraçãocabaldequeoespíritodomortoconheciaperfeitamenteoseudireitodegovernarosvivos,oconselheiroordenavaqueameninafossevivercomafamíliaemAndaraí,equetodosadeveriamtratar“comdesveloecarinho,comosedeseumatrimôniofosse”(H,cap.ii).4Emoutraspalavras,nãosatisfeitoemlegarassuaspropriedades,oconselheiroValedispunhaqueosseustambémlhedeviamherdarossentimentos.

Nocéuazulelímpidoarmou-selogoatempestade,eMachado,emseguida,

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eaindasemabandonarporumalinhasequeropontodevistaestritamentesenhorial,estudaastensõesinternasàclassedominante.Aquilonãopodiaser,revoltava-sed.Úrsula,irmãdofinado,tiadoguapodonzeldasmatemáticas.SeoreconhecimentodeHelenajáeraporsisó“umatodeusurpaçãoeumpéssimoexemplo”(H,cap.ii),aboasenhorapareciaespecialmenteirritadacomofatodeodefuntoprocurarimpingir-lheamenina“noseiodafamíliaedeseuscastosafetos”(H,cap.ii).Queofinadoperfilhasseamenina,válá,sãoastais“licençasjurídicas”,masgovernar-lheossentimentosemsituaçãotãomelindrosaéquenãohaviadeser.Narealidade,todaaarengaded.Úrsulasobreaseveridadedoscostumeseapurezadeseussentimentosacabaseamoldandoàformadeumpreconceitodeclasse:nadasesabiasobreaorigemdessamenina,nadaconstavasobreamãe,alémdonome.Comofazerascenderassimuma“mulherdeordeminferior”?Aquiloforaumexcesso,argumentavaporseuturnoodr.Camargo,médicoeamigodafamília.Essedr.Camargotinhaumsonho,queconsistiaemcasarsuafilhaEugênia,“aflordosseusolhos”(H,cap.i),comoherdeirodoAndaraí;porconseguinte,oditoesculápiointerpretouaperfilhaçãodeHelenacomoumasubtraçãoindevidaaosbensque,nofuturo,seriamdeEugênia.Foradefinitivamenteumexcesso,“àcustadedireitosalheios”(H,cap.ii).Machadoéimpiedosoquantoaosmotivosdodr.Camargo,chegaacompará-loaum“réptil”(H,cap.vii),esedeliciaemdescreverafrívolaEugêniacomo“umadasmaisbrilhantesestrelasentreasmenoresdocéufluminense”(grifomeu,H,cap.v).

Ofato,porém,équeospreconceitosded.ÚrsulaeacupidezpecuniáriadodoutoracabaramseesvaindodiantedeEstácio,olegítimoherdeirodasprerrogativasmoraisemateriaisdoconselheiro.Nãosurpreendequetenhadeserassim,poisofilhoeraoprincipalinteressadoemqueasúltimasvontadesdopaifossemcumpridas;comefeito,oritualdesubmissãoàsdeterminaçõesderradeirasdofinadosignificavasolidificaraprópriacondiçãodeEstáciocomodetentor,daíemdiante,dopoderdeexercíciodavontadesenhorial.Naficçãoouinvençãocaracterísticadessapolíticadedomínio,Estáciopassavaaencararomundoàsuavoltacomomeraexpansão,quiçáumaconcessão,desuavontade.Machadofazcomqueojovemencareoseventoscomoumaespéciededestinodeclasse,echega,comefeito,aexplicar“queelenãocedianemesquecianenhumdosdireitosedeveresquelhedavamaclasseemquenascera”(H,cap.ii).ÉaEstácio,portanto,queficaaincumbênciadeapararasdivisõesinternase

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disciplinarasresistênciaseambiçõesquepoderiamcomprometerorumo“natural”dascoisas.Eorapazbateomartelo,comfirmeza,mascomapolidezeaelegânciaqueeramumdeveremsuacondição.Assim,aoconstatarainsatisfaçãodatiacomoreconhecimentodeHelena,Estácioconcluiporémque“umavezqueseupaiassimoordenava[...]eleaaceitavatalqual,sempesarnemreserva”(H,cap.ii);emseguida,aoresponderàsponderaçõesdodr.CamargodequeoconselheiroteriasidomaispráticoejustocasotivesseselimitadoadeixarumlegadoaHelena,orapagãodoAndaraídisparaque“aestritajustiçaéavontadedemeupai”(H,cap.ii);cadavezmaisincisivo,Estáciopingapontofinalàdiscussão:“Nãoquerosaber[...]seháexcessonadisposiçãotestamentáriademeupai.Seohá,élegítimo”(H,cap.ii).Diantedafirmezainquebrantáveldomancebo,sórestaaoréptilumrecuoestratégico:Camargoadmitesereminúteisosseusesforçoseafirmaqueomelhoreracumpriraresoluçãodofinado,“lealmente,semhesitaçãonempesar”(H,cap.ii);poucoadiante,emconversacomd.Úrsula,odoutorobservaqueEstácioaceitavaosfatos“filosoficamenteeatécomsatisfação”,econcorda“quemaisnadahádoquecumprirtextualmenteavontadedoconselheiro”(H,cap.ii).AsatisfaçãodeEstácio,queodoutordizianãocompreender,éfacilmenteexplicável:eleconseguiramanterocontroledosacontecimentos,entravanoplenoexercíciodesuasprerrogativassenhoriais,eevitavaaindaoriscodeumadivisãodefinitivadopatrimônionumapartilhanãoamigável.Afinal,avontadedoconselheiroexpressaemtestamentotinhaforçalegal,eHelenaadquiriadireitosque,casousurpados,poderiamoriginarumalonga,incertaedesgastantebatalhajudicial.Estácioera,efetivamente,ohábildepositáriodeumatradição,umchefedefamília/senhor/proprietário,garantidorecontinuadordetodaumahegemoniapolíticaecultural.

aideologiasenhorial:umaleituraacontrapelo

DisseEstácio:quevenhaamenina.Eassimsefez.Moçafeita,dedezesseisparadezesseteanos,educadanumcolégiodeBotafogo,Helenatinhaprendastaisquedeviamempalidecerasmoçoilasbem-nascidasàsuavolta:“magníficavozdecontralto”,“pianistadistinta”,ótimadesenhista,fluenteemfrancêsesabendoumpoucodeinglêseitaliano,alémdacosturaedosbordadosde

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costume(H,cap.iv).Noquetangeàbeleza,belíssima.Apesardomistérioquantoàsuaorigem,edaresistênciainicialquecomeçavanatiaÚrsula,passavapelosamigosdafamíliaechegavaatéàssenzalas,Helenaacabouseduzindotodos—menos,éclaro,oréptildoCamargo—,poisadonzela“conseguiapolirosásperos,atrairosindiferentesedomaroshostis”(H,cap.iv).

Nadadisso,todavia,eraaindaomelhordeHelena.SenoscapítulosiniciaisdolivroMachadodescreveraaideologiasenhorialeexploraraastensõesinternasàclassedominante,comHelenaelenoslançanobojodosantagonismosdeclasseconstitutivosdessapolíticaespecíficadedomínio.Oprocessoéextremamentesutil,porissotenhodificuldadedeavaliarotantodeplanejamentoeoquantodeintuiçãohavianosprocedimentosnarrativosdeMachado.Achavedoproblema,talvezachavedolivro,consisteemperceberquehánapersonagemHelena,apesardasaparênciasemcontrário,umavisãodemundoquelheéprópria,equenãopodeserentendidasereferidaapenasàideologiasenhorial.Ditodeoutraforma,aprotagonistadecertoconheciaecompartilhavaossignificadossociaisgeraisque,regidosporEstácioecriaturassemelhantes,reproduziamaqueleuniversoderelaçõessociais;ofatocrucial,noentanto,équeHelena,porsuaposiçãoambivalente,estácondenadaaumaintrojeçãocríticadosvaloresesignificadosqueorganizamomundoapartirdopontodevistadeEstácio.

OprimeiroaspectoaobservaréqueHelenatemummétodopróprio,porassimdizer,deconversarede,conversando,interpretararealidadeàsuavolta.Talmétodoestáexpostoemdetalhenocapítulovi,emmeiadúziadepáginassurpreendentes.Tudocomeçacomumaaparentepuerilidadedamocinha:estandoemcompanhiadeEstácioeded.Úrsula,afilhadoconselheirorevelaque,aofolhearumlivrodegeometria,tiveraodesejodeaprenderamontaracavalo.Comonãopareciahaveraíqualquerrelaçãomanifestadecausaeefeito,oespantofoigeral.Apimentinha,satisfeitadatravessura,explicaentãoquefolheavaolivrodegeometriaquandoouviuumtropeldecavalose,chegandoàjanela,ficaraencantadacomagarbosidadedaamazonaquepassava;estavaesclarecido,porconseguinte,odesejodeaprenderamontaracavalo.Nalinhaabaixo,Estáciojáseofereceparadarliçõesdeequitaçãoàirmã,eosdoisacertamumaaulaparaamanhãseguinte.

Oepisódioétãoinsólitoepuerilqueoleitordificilmentesedeteráem

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examinaroqueHelenaestáfazendonapassagem.Noentanto,aleitoraatentasuspeitarátalvezqueHelenamentiu.Apuerilidadedomotivoinicialedepoisadescriçãovisivelmenteforçadaeidealizadadaamazonaprovocamasuspeição.Amocinhapretendepassearacavalo,porémnãoquerpediressefavorabertamenteaEstácio,elogoelainventaumahistóriaqueobrigaodonzeldoAndaraíaoferecer-lheaslições.OfundamentalnocontextoéqueHelenasabeinduziremEstácioocomportamentoquelheinteressaaela;emoutraspalavras,amoçoilaconheceperfeitamenteascadeiasdecausaeefeitoqueconstituemaestruturamentaldomancebo.

Atramatorna-semaisclaranodiaseguinte,naocasiãoemquehaviadeocorreratalauladeequitação.Helenaapresenta-seacaráter,supostamentecompenetradadesuacondiçãodealuna.Logoadiante,ohomemdasmatemáticasdescobre,primeiroespantado,depoisbem-humorado,queagalhofeiradairmãsabiacavalgarperfeitamente.Digomal,poishámuitotutanonasupostagalhofa.Leiacomatençãoodiálogoentreosdoisjovens:

—Nãomedirávocê,perguntouele,porquemotivo,sabendomontar,pedia-meontemlições?—Arazãoéclara,disseela;foiumasimplestravessura,umcapricho...ouantesumcálculo.—Umcálculo?—Profundo,hediondo,diabólico,continuouamoçasorrindo.Euqueriapassearalgumasvezesacavalo;nãoerapossívelsairsó,enessecaso...—Bastavapedir-mequeaacompanhasse.—Nãobastava.Haviaummeiodelhedarmaisgostoemsaircomigo;erafingirquenãosabiamontar.Aidéiamomentâneadesuasuperioridadenesteassuntoerabastanteparalheinspirarumadedicaçãodecidida.(H,cap.vi)Porumlado,tem-seaquiaconfirmaçãodeque,dopontodevistadaleitora,

énecessárioacompanharosmovimentosdeHelenaemestadodealertamáximo;ouseja,emcertosentido,hásempreapossibilidadedearaparigaestarmentindo,oudeestaromitindocoisas,elogoelanãoéconfiável.Poroutrolado,eumavezcompreendidoqueapequenatemumintelectosofisticadoeécapazdedissimulações,percebemosqueelasetornabastanteconfiávelcomointérpretedaideologiasenhorial.Helenasabeque,nomundoidealdeEstácio,coisasepessoasaparecemapenascomoexpressãodavontadedele,elogoorapazeseussemelhantesgostamdeseimaginarcontroladoresdeumaespéciedeeconomiadeconcessõesefavores.Helenatambémsabe,comoveremosadiante,oquantoessavisãounilateraldomundoencerradepossibilidadedearbítrioesoluçãoviolentadeconflitos.Nomomento,bastareterqueamoça

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percebiaqueamelhormaneiradeobteralgumacoisadeEstácioerainculcar-lheumasuperioridadequalquer;emoutraspalavras,eladecodificacomprecisãoosmotivosdo“Senhorgeômetra”,ecomissoconseguearrancardeleaquiloquedeseja,comastúcia,massempedirnada,nemtampoucolutarabertamente.Ecomoomomentoédegalhofa,abeldadechegaaexplicaraorapagãooquantohaviasidofácilinduzi-loadeterminadocomportamento.

ÉclaroqueHelenanãopoderiasertãoastuciosasenãofossecríticanamesmamedida—istoé,acondiçãodesuaastúciaéacapacidadedeanáliseedistanciamentoemrelaçãoaopontodevistadeEstácio.Defato,onúcleodométodocríticodeHelenaconsistenarelativizaçãosistemáticadaperspectivadeEstácio.Ométodoseanuncia,comoqueporacaso,aindanotrechoemqueelaapareceprontaparamontaraéguaMoemaeiniciaraauladeequitação(H,cap.vi).Emestilogrotescamenteprofessoral,Estácioadverte:“Vençaprimeiramenteomedo”.Amoçarespondenabucha:“Nãoseioqueémedo”.Surpreso,mastentandonãoperderaposedeprofessor,odonzelironizaavalentiadaaprendizadeamazona,eafirmaqueele,desuaparte,sabiaoqueeraomedo.Ajovem,contudo,prossegueimperturbável:“Omedoéumpreconceitodosnervos.Eumpreconceitodesfaz-se;bastaasimplesreflexão”.Emseguida,Helenacontaqueempequenanãoentravaemsalaescuraporquelhehaviamensinadoaacreditaremalmasdeoutromundo;maistarde,interrogou-sesobreapossibilidadedeumapessoamortavoltaràterra,ecomofazeraperguntaerajálhedarresposta,livrou-sedetamanhatolice,declarando-seagoracapazdeirpassearànoitenumcemitério.Háaqui,denovo,umquêetantodegalhofa;todavia,issonãonosdeveludibriarquantoaosignificadodapassagem:contraasidéiasfeitas—ospreconceitos—deEstácio,Helenaanunciavaatitudedereflexãoecríticasistemática;maisdoqueisso,areflexãoeraarmadiantedaqualospreconceitossedesfaziam.OmundodeEstácio,portanto,pareciaprestesasofrerumassaltodeexameecrítica.

Eassimsefez.Osdoisjovenspasseavam,eaconversaemcertomomentoversavasobreas“vantagensdariqueza”;disseEstácio:

Valemmuitoosbensdafortuna[...];elesdãoamaiorfelicidadedaTerra,queéaindependênciaabsoluta.Nuncaexperimenteianecessidade;masimaginoqueopiorquehánelanãoéaprivaçãodealgunsapetitesoudesejos,desuanaturezatransitórios,massimessaescravidãomoralquesubmeteohomemaosoutroshomens.Ariquezacompraatéotempo,queéomaispreciosoefugitivobemquenoscoube.Vêaquelepretoquealiestá?Parafazeromesmotrajetoquenós,terádegastar,apé,maisdeumahoraouquase.

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AntesdeacompanharmosoqueHelenairáfazerdessepedacinhode

filosoficesenhorial,cabemalgumasobservações.AfaladeEstácioapresentaummovimentointeressante:afortunavalemuitoporquegaranteaindependênciaabsoluta;ora,seaindependênciaéabsoluta,asobrigaçõesouosdeveressãonenhuns.Ouseja,navisãodemundodeEstácionãohaverialugarparaanoçãodereciprocidade,nãoexistiriaespaçoparaoreconhecimentodosdireitosdeoutrem.Emsuaformapura—istoé,casoexistisseforadeumcontextodelutadeclasses—,aideologiadeEstácioseriacomooDeusdoGênesis:criariaummundoapartirdonada;ditodeoutraforma,criariaummundoqueseriaameraexpansãodesuavontade.Todavia,comoessaideologiaéprodutoeaomesmotempoinstituintedeumcontextodelutadeclasses,elaéapenasaquiloquepermiteaEstáciopensaredizerqueestáconcedendoquando,naverdade,estivercedendoapressões,ouaomenosreconhecendoaexistênciadeantagonismossociais.

OsegundomovimentodafaladeEstácioéaoposiçãoentre“independênciaabsoluta”e“escravidãomoral”.Comovimos,nasituaçãoideal,atal“independênciaabsoluta”,Estácionãotementravesmorais,poisamoraletudoomaissãoapenasprodutosdesuavontade;oopostodissoéadependênciamoralabsoluta,aescravidão.Aexpressão“escravidãomoral”nessecontextonãoéapenaseufemismoouqualqueroutrorecursoderetórica:aocontrário,elaexprimeolugarprecisodainstituiçãodaescravidãonoimagináriosenhorial.Aescravidãoéasituaçãodemáximadependêncianessasociedadeemqueocentrodapolíticadedomínioéaproduçãodedependentes.Nãoéporacasoque,logoemseguida,Estácioprocuraexemplificarereforçaroseuargumentocontrastandoasuasituaçãodiretamentecomadopreto,queera,“aoparecer,escravo”.Senhoreescravosãoosdoisextremosdeumacadeiaquecomeçana“independênciaabsoluta”eterminana“escravidãomoral”,nasubmissãocompleta,queseriaacaracterísticadaescravidão.

Insisto,porém,quecontinuamosnoâmbitodomundoqueEstáciogostavadeimaginar.SeEstáciofosseDeus,eoromancedeMachadodeAssissetornasseoGênesis,aindaassimestaríamosapenasnosversículosiniciaisdasEscrituras.Poisqueentãovenhaohomem,elogoamulher,elogo,logoopecado,everemosqueaideologiadeEstáciooperanummundoquesefaznalutadeclasses—sóparainsistirnessaexpressãoirritante,ridícula,forade

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moda.Chega,porém,deblasfêmias,eéEva,oumelhor,Helena,quemprocuratrazerEstáciodevoltaàTerra,eintroduzi-loaopecado.

Helenaatentounoquadroqueoirmãolheindicava.Viuumpretocomcercadequarentaanoseduasmulas.Sentadonocapim,opretoesburgavaumalaranjaedeitavapedaçosdacascaaofocinhodeumdosanimais.Ohomemmostrava-sealegrecomopassatempo—“infinitamente”alegre,segundoonarrador—e,noentanto,pareciatratar-sedeumcativo.ApequenarefletesobreoquedisseraEstácio,arespeitodeariquezapossibilitaracompradotempo,eretrucafinalmente:

Temrazão,disseHelena:aquelehomemgastarámuitomaistempodoquenósemcaminhar.Masnãoéistoumasimplesquestãodepontodevista?Arigor,otempocorredomesmomodo,queroesperdicemos,queroeconomizemos.Oessencialnãoéfazermuitacoisanomenorprazo;éfazermuitacoisaaprazívelouútil.Paraaquelepretoomaisaprazívelé,talvez,essemesmocaminharapé,quelhealongaráajornada,elhefaráesquecerocativeiro,seécativo.Éumahoradepuraliberdade.(H,cap.vi)OobjetivodeHelenanapassagemémostraraEstácioqueavisãodemundo

delenãopodeserocritérioouamedidadetodasascoisas.Amoçatenta—inutilmente,comoveremos—fazercomqueomancebopercebaquesuarelaçãocomomundoprecisaconteralgoalémdeprocedimentosautoconfirmadores.Hávalores,conceitos,formasdeinterpretararealidadequenegam,oupelomenosrelativizam,aideologiadeEstácio.Oexemploemtornodoqualocorreodiálogoentreosdoisjovensé,naverdade,umtantoesdrúxulo.Afinal,nãoseentendebemoporquêdeoguapodonzeldoAndaraíestarpreocupadoemcomprarhoraseminutos,poisqueeleviviadebrisa—oumelhor,dosaluguéiseoutrosrendimentosdafortunaqueherdara.HelenanãocriticaráaperspectivadeEstácioporessecaminho,sebemquepoderiafazê-lo,eoverdadeiropaidamenina,Salvador,ofarádeformamuitodidáticaeamarganumtrechoquelogoveremos.Amoçanãoparteparaumdiscursodedenúncia;elaprocuradesfazercomargumentos,comoanunciara,ospilaresdesustentaçãodopensamentodeEstácio.Deinício,Helenaapresentaumargumento,digamos,teórico:aexperiênciadapassagemdotempodependedopontodevista;assim,ameninacontrastaaconcepçãoprodutivistadefendidapelorapaz—adeumtempoquesecompra,nocasodeEstácio,semhaverumporquê—comaidéiadetempoútilouaprazível—queremeteaumanoçãopré-capitalista,detempoportarefa,semoritmomarcadopelorelógiooupelaprodução.EssanegaçãoteóricadaperspectivadeEstácio,porém,nãobastaa

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Helena.Opretoàbeiradaestradatalvezestivesseadministrandootempodemodoalidarmelhorcomocativeiro,procurandoquemsabeampliarougarantirumespaçodeautonomiajáarrancadoaosenhor—“éumahoradepuraliberdade”.Areferênciaagorasefazprática,eEstácioépressionadoaencararosantagonismossociais.

AtentativadeHelenafoiinútil,eorapagãonãoabandonouporumsegundosequeroseucírculodeidéias.Estácioriu,insinuouqueadonzelaestavasofismando,eelogiouahabilidadedairmãparadefender“ascausasmaismelindrosas”.Emseguida,resumiunumafraseoqueentenderadafaladeHelena:“Nemestoulongedecrerqueoprópriocativeirolhepareceráumabem-aventurança,seeulhedisserqueéopiorestadodohomem”.AspalavrasdeEstáciooperamumainversãoretóricacuriosa,poisele,quenãoconseguiapensaranãosercomosenhordeescravos,acusavaHelenadereabilitaraescravidão.Naverdade,oraciocíniovaronilpermaneceomesmo:aescravidãoéasituaçãodemáximadependência,eessacondição,paraquemprezaa“independênciaabsoluta”,é“opiorestadodohomem”.Porconseguinte,Estáciosóconsegueimaginaraquiloquepossapensarumescravo,emqualquercircunstância,comoreflexoouespelhamentodesuaprópriamaneiradeverascoisas;emoutraspalavras,osescravosconceberiamasuacondiçãosempreapartirdossignificadossociaisgeraisimpostospelossenhores.OintuitodeHelenaforasugerirqueofatodasubordinação—nocaso,ocativeiro—nãoacarretavaainexistênciadeformasalternativasdeinterpretararealidadee,seestoucorreto,adonzelapercebeatémesmoquetaisvaloresalternativossurgemnoprocessocotidianodelutacontraaopressão—opretoprocuravalidarcomotempodemodoa“esquecerocativeiro”ealcançar“umahoradepuraliberdade”.

AfrasedeEstácioinsinuandoqueHelenaedulcoravaaescravidãonãofazdoguapodonzelumcríticodetalinstituição.Estácio,aocontráriodeHelena,sóconsegueacessoàinstituiçãodaescravidãodeformaabstrata:comoeleéincapazderelativizarvaloresedeperceberdiferenças,ojovemnemsequerchegaaconceberaidéiadeopressão.Paraogeômetra,osoutrosexistemapenascomodependentes,ouseja,comoelementosconfirmadoresdedeterminadapolíticadedomínio,elogoaescravidãoestáexplicadacomoparteconstitutivadaordemnaturaldascoisas;aconteciatão-somentequeosescravoseramosmaisdependentesentreosdependentes.Éapenasnessesentidoque

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devesertomadoocomentáriodeEstáciosobreocativeirocomo“opiorestadodohomem”.AperspectivacríticaestáemHelena;Estácioémerorepetidordaóticadosescravocratas.

OritmovertiginosoeadialéticadessaspáginasdeMachadonãocessamdesurpreender.Seoleitorrelaxaporuminstante,jálhevaioentendimentoparaascalendas.DiantedapéroladeEstácio,queacabamosdever,Helenaparecedesanimardeumadiscussãosériaeretornaràzombaria.Oirmãolançara-lheodesafiodedefenderacausa“melindrosa”dequeocativeiroerauma“bem-aventurança”;aindaconduzindoaéguaMoema,amoçaresponde:

Sim?retorquiuHelenasorrindo;estouquaseafazer-lheavontade.Nãofaço;prefiroadmiraracabeçadeMoema.Veja,vejacomosevaifaceirando.Estanãomaldizocativeiro;pelocontrário,parecequelhedáglória.Pudera!Senãoativéssemoscativa,receberiaelaogostodemesustentareconduzir?Masnãoésófaceirice,étambémimpaciência.(H,cap.vi)

Cáestamos,semdúvida,devoltaàgalhofa.Ocorre,porém,queHelenacontinuaafalardecativeiro.Numasociedadeescravista,escravoseanimaisencontram-semuitasvezesemlugarsemelhantenoquetangeàestruturalegaleatéàsrepresentaçõessociais:numinventáriopost-mortem,porexemplo,escravoseanimaisaparecemladoaladocomoosbenssemoventesdosenhor/proprietário;nosdiscursosdedenúnciacontraaescravidão,eracomumqueoscríticosdoregimeacentuassemseushorrorestraçandoparalelosentreacondiçãodosescravoseadosanimais“irracionais”àsuavolta.PoisentãoagalhofadeHelenatorna-sedissimulação.Eladeclaraquenãovaifazeravontadedoirmãoe,portanto,nãodefenderáacausadequeocativeiroéuma“bem-aventurança”.Todavia,elacomeçaimediatamenteafalardeumacativaquenãomaldizoprópriocativeiro,quetem“ogostodemesustentareconduzir”—istoé,quetem“orgulhodeservilidade”,paralembrarotítulodeumdoscapítulosdeMemóriaspóstumasdeBrásCubas.Estácionadapercebe,massuavisãodemundoestá,denovo,sobfogocerrado.Aexplicaçãoésimples:sendoimpossívelfazercomqueEstáciorelativizenemporummomentosequerasuaprópriaideologia,Helenavoltaaoexercíciodeexportalideologia,sóquedeformaumtantoirônica,atédebochada.Narealidade,ofilhodoconselheiropoderiaimaginaracondiçãodoescravodeduasmaneiras,ambasrigorosamentecoerentescomoseucírculodeidéias.Aprimeiraéaquejáfoimencionada:Estáciosecomparadiretamenteaoescravo,avaliaa

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condiçãodooutroapartirapenasdosvaloresqueservemparadimensionarasuaprópriacondição,eentãoconcluiqueocativeiroé“opiorestadodohomem”.AsegundamaneiraéaqueHelenadesenvolvemetaforicamentepormeiodeMoema:nessecaso,osenhornãosecomparaaoescravodemododireto,masimaginaaquiloqueocorrenamentedocativoquandoestepensaaprópriacondição.Comooescravoseriaumdependentemoraldosenhor,eleavaliaasuasituaçãotendocomocritérioopodersenhorialeaconseqüenteproteçãoquetalpoderlheconfere.Estácioeraumhomempoderoso,logoseuscriadosdeviamterboadosede“orgulhodeservilidade”.ÉtambémoqueocorrecomMoema,quesesentetodafaceiraporqueestáconduzindoocorpinhoesbeltodeHelena;éistooquenosexplicaagalhofeiranarcisista,quandopergunta:“Senãoativéssemoscativa,receberiaelaogostodemesustentareconduzir?”.Emsuma,eaocontráriodoquedeclarouaEstácio,Helenadesenvolveuoargumentodequeaescravidãoerauma“bem-aventurança”,eteveaindaaperspicáciadefazê-lodaúnicaformaemqueseriacoerentecomavisãodemundodeEstácio.OguapodonzeldoAndaraícontinuousementender.

HelenaaindaexploraumpoucomaisametáforadeMoema.Osmeneiosdecabeçadaéguatalveznãofossemapenasfaceirice;poderiamdenotarimpaciência.Talsentimentodaéguaexplicar-se-iapelodesejodesaircorrendopelaestradadaTijucaafora,“sentindo-sealgumacousasenhoraelivre”(H,cap.vi).Nessecaso,acativanãoestariasentindo“orgulhodeservilidade”,porémdesejodeliberdade.Nafraseseguinte,HelenainclinaacabeçaecomeçaaconversarcomMoema;porummomento,eaindanumclimademerachacota,ameninaseidentificacomaéguacativa,estandoambassujeitasaodomíniodeumhomem“queéaomesmotempomeuirmãoemeuinimigo”.Há,portanto,umcertomovimentoemtodoessediálogo:primeiro,Moemaéumanimalquetemseussentimentoshumanizadoseentão,sendoaéguadependentedeHelena,parece“quelhedáglória”asituaçãodecativadetãoaugustasenhora;segundo,Helena,queésenhoraemrelaçãoaMoema,sente-sesobodomíniodeEstácio,elogocompartilhacomaéguaasagrurasdadependênciaeoimpulsoemdireçãoàliberdade.Emsuma,háaquiadescriçãodeumalógicaoupolíticadedominaçãoquereapareceesereforçaeminúmerassituaçõesespecíficasdecontroleesubordinação.

Nessemomento,Estáciodesconfiadealgumacoisa;Helenapoderiaestar

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prestesadispararcomaégua.Emoutraspalavras,amoçatalvezpensasseemcometerumadesobediência,poisorapazrecomendaraenfaticamentequeopasseiodeveriaocorrercomamáximaprecaução.Helenativeramesmodeprometerqueiria“pacificamente”.Denovo,Machadodescreveaideologiasenhorialdemodobastantepreciso:paraEstácio,adiferença—istoé,aexpressãodevontadesoutrasquenãoasuaprópriaeadeseuspares—sópoderiaserentendidacomodesobediênciaourebeldia.Foradasubordinaçãocompleta—poisnaóticasenhorialasubordinaçãoésemprecompleta,nãoobstanteofatodeosdependentesestaremhierarquizados—,sóhaviaarebeldia.ZumbiouPaiJoão,rebeldiaoucoisificação,assimrezaatradição,enãoapenasadeEstácio.ParachamarHelenaàdisciplina,Estáciofechaumavezmaisoseucírculomental.Vejamosacontinuaçãododiálogo:

—Helena!interrompeuEstácio;vocêémuitocapazdedispararacorrer.—Esefosse?—Eudeixava-air,enuncaatrariaemmeuspasseios.Vocêmontabem;masnãodesejoquefaçatemeridades.Nóssomosresponsáveis,nãosóporsuafelicidade,mastambémporsuavida.(H,cap.vi)

Orapazretornaàidéiadeummundoqueéaprojeçãodesuavontade:nãosóafelicidade,mastambémavidadeHelenapassaadependerdoguapodonzel.Ameninanãodeixadenotaraespeciosidadedetalargumentoe,apósoinstantehabitualdereflexão,relativizaoutravezopontodevistadeEstácio:

—Querdizer,perguntouela,queseeufossevítimadeumdesastre,nãofaltariaquemoimputasseàminhafamília?—Justo.—Singulargente!Nãohádesertantoassim...(H,cap.vi)

misériaechocolate

Atéesteponto,temosobservadoEstáciocomoexpressãodepoder—istoé,comovigênciadedeterminadahegemoniapolíticaecultural.Todavia,Helenatambémpercebiaquantohaviadeforçavirtual,depotencialparaahumilhaçãoeaviolência,navisãodemundodeEstácio.Defato,amoçapareceagircomoquemestáconscientedequeaqualquermomentopodeseencontrarsobaameaçadeinvasãoerapina.OenredointrincadodoromanceacabaressaltandoafragilidadedaposiçãodeHelena,que,aofimeaocabo,descobre-se

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completamenteindefesa.Supondoquetenholeitores,esupondo,oqueéinfinitamentemaisrazoável,quetaisleitorestambémosãodeHelena,todosselembrarãoqueoconselheiromentiraemseutestamento.Helenanãoerafilhadoconselheiro;este,tendoumavidaamorosapoucocatólica,arranjaraumcasoextraconjugalcomamãedamenina,esefizeraprotetordeambas.NaorigemdaposiçãodeHelenajuntoàfamíliaVale,portanto,haviaumatodepuravontade,depuroarbítriosenhorial:oconselheiroinventaraessapaternidade,produzindoumaficçãodeenormesconseqüênciasparaaspessoasàsuavolta.EssacaracterísticadatramapropõeumaexplicaçãoformalparaofatodeHelenasabermais,deelapodercaptarcomperfeiçãoacomplexidadedasrelaçõesdepodernaqualestavainserida.Afinal,Helenaencontrava-senacondiçãosingulardeterduplafiliaçãopaterna:opaiverdadeiro,Salvador,eraalguémqueamargaratodasashumilhaçõesesofrimentospelosquaispoderiapassarumhomempobreedependentenessasociedade;opaiadotivo,oconselheiroVale,eraosenhortodo-poderosoebenevolente,queabraçararesolutamenteacausadaproteçãodemãeefilha.Ereparemqueninguémémal-intencionado:apesardemulherengoporíndoleedistração,oconselheironãotiveraopropósitodehumilharSalvador,poisamãedeHelenasedisseraviúva.Enfim,umametadedeHelenaestavanaposiçãodecompreenderinteiramenteosofrimentodeumdependente—papaiSalvador—,aopassoqueaoutrametadenãopodiadeixardereconheceresesentirgratapelaproteçãooferecidaporumsenhor/proprietário—papaiVale,oconselheiro.Nummomentocrítico,opróprioSalvador,aodescreverasituação,afirmaque“opailutavacomopai”(H,cap.xxvi).Amoçamove-seemterrenosocialambíguo,liminar,poisestáimbuídadeumsentimentodegratidãoedeumaagudezacríticaquelhessãoigualmenteinescapáveis.

OquesesegueéqueHelenatemplenaconsciênciadopotencialdeviolênciainerenteàposiçãodeEstácio.Secontrariado,esendoincapazdeadmitiraalteridade,Estácioexigiriaqueooutroseanulasse,ouentãoelemesmopartiriaparaaempresadedestruição.Comovimos,Helenaadministraocotidiano,epreservaoseutantodeautonomia,comastúciaedissimulação,temperandoaindaassuasatitudescomumapitadadechalaça.Àsvezes,porém,emsituaçõesdeperigoiminente,araparigaéobrigadaaescolherentreasubmissãoearebeldia.

Elaserecolheàsubmissão,porexemplo,logoapósterexplicadoaEstácioo

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ardilqueutilizaraparainduzi-loàsaulasdeequitação.Orapazsorriaprincípio,masficasérioapósuminstante,ocorrendoentãoaseguintecena:

—Jálhenegamosalgumprazerquedesejasse?Helenaestremeceueficouigualmenteséria.—Não!murmurou;minhadívidanãotemlimites.(H,cap.vi)Surgindonumcontextodemanifestafranquezaecordialidade,apergunta

repentinadofilhodoconselheiroequivaleaumaagressão:EstácioobservaaHelenaofatodequeelaestásobasuaproteção,sendoafortunaeaposiçãofamiliardomoçoaorigemdapossibilidadedearaparigaagoraterdesejosepodersatisfazê-los.ÉclaroqueEstácionãotemadimensãoexatadaviolênciadogolpequedesfechara,poiselenãosabiaaindadamentiradotestamento.Dequalquermodo,Helenaestáprostrada,esuarespostaéacapitulação:“minhadívidanãotemlimites”.AcapitulaçãopermitequeEstácioretorneàsuaatitudehabitual,eeleofazdeformaexemplar.Aoperceberquecometeraumadescortesia,elerompeosilêncio:

—Vocêficoutriste,disseEstácio;maseudesculpo-a.—Desculpa-me?perguntouamoçaerguendoparaoirmãoosbelosolhosúmidos.—Desculpoainjúriaquemefez,supondo-megrosseiro.(H,cap.vi)Emsuma,temosdevoltaovelhoEstácio:foielequemcometeuainjúriae,

paradoxalmente,éeletambémquemsearrogaaprerrogativadedesculparainjuriada.NessapassageméEstácioqueassumeumtomdebrincadeira,procurandodesanuviaratensãoqueeleprópriocriara.Oconteúdodachalaçaédeverassignificativo:Estácioconsumaaagressãoeatribuiasimesmoodireitodeperdoar;istoseexplicaporquenãoháqualquerreferencialexternoaomundodohomemdasmatemáticas,elogoseriainconcebívelqueelecometesseumatodeviolência.Comefeito,nãohácomoconceberumatodeagressão,jáqueomundoimaginadoporEstácioéconstituídopordependentese,nolimite,ummundodedependenteséanegaçãodaalteridade.Logo,nãosereconheceaexistênciadeum“objeto”externopassíveldeseragredido.Seriadesnecessárioinsistirnotantodeonanismomentalqueháemtalconcepçãodemundo,etoliceignoraroquantoMachadomostra-secientedissomuitoantesdeescreverasMemóriaspóstumasdeBrásCubas.

EmoutracenaemqueEstácioparteparaumacondutainvasiva,areaçãode

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Helenaémaiscomplexa,nãopodendoserinterpretadacomosubmissão,enãosendoexatamenterebeldia.Estácioteimavaemdescobrirquemeraomanceboporquemairmãestavaapaixonada;Helenadeixaraescaparumameiaconfissão,nãopodiarevelaroresto,eorapazacabacedendo“aummauimpulso”.Vejamosapassagem:

Umdia,ainsistênciadeEstáciotevetalcaráterdeautoridade,quepareceuconstrangeremolestarHelena.Elareplicoucomumremoque;eleredargüiucomumaadvertênciaáspera.Ouvindoapalavradoirmão,Helenasusteveopasso,efitou-ocomumolhardigno,umdessesolharesqueparecemvirdasestrelas,qualquerquesejaaestaturadapessoa.(H,cap.x)Estácio,portanto,procurouutilizarsuasprerrogativassenhoriais—a

“autoridade”—paraarrancarosegredoàirmã.Ameninatentouseesquivarcomodehábito—“comumremoque”—,masodonzeltornou-seaindamaisincisivo.Parasusterainvasão,HelenadeixaclaroaEstácioqueelanãosesubmeteria,lançando-lheotalolharvindodasestrelas.Orapazentendeentãoqueprosseguirseriaoptarpelarapina,pelaforçapuraesimplesmente.Aoresolverpelaretratação,Estácioélevadoareconhecerquehálimitesparaoexercíciodavontadesenhorialerecuadiantedacontingênciadeterdeseaprofundarnousodaforça.EsseéuminstanterarodeEstácionoromance,poiseleéobrigadoaadmitirqueexisteummundoparaalémdocomprimentodopróprionariz.Aliviadacomorecuodoagressor,Helenaexplica,deformanecessariamenteenigmáticaparaEstácio,oporquêdeelaprecisarresistir:

nãoévãmelindre,éapróprianecessidadedaminhaposição.Vocêpodeencará-lacomolhosbenignos:masaverdadeéquesóasasasdofavormeprotegem...Poisbem,sejasempregeneroso,comofoiagora;nãoprocureviolarosacráriodaminhaalma.(H,cap.x)Estáciocontinuavaaignorarologrodotestamento,elogonãopodia

perceberoalcancedaspalavrasdeHelena.AraparigaconseguiraresistiraoataquedeixandoclaroaEstácioquehavialimitesàautoridadedele,haviaumespaçodeautonomiapeloqualelairiazelarequelhegarantiaainviolabilidadedo“sacráriodaalma”.EstácionãoavançaraporquereconheceraalegitimidadedodireitodeHelenaaessaautonomiarelativa.OdramadeHelena,porém,équeelasabiaquesuaposiçãonãoeralegítima,quesuaautonomiaera,nolimite,indefensável,poisseudireitonãoforafrutodeumaconquistaoudeumapaternidadeverdadeira,masdeumamentirabenévolaeprotetorado

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conselheiro.Emoutraspalavras,Helenareconheciaque,casoaverdadeviesseàtona,elaestariareduzidaàcondiçãodedependênciamaisabjeta,semqualquerdireitoao“sacráriodaalma”eobrigadaàsubmissãocompleta.Enfim,descobertaatramadotestamento,HelenasetornariaaqueladependentequepovoavahabitualmenteoimagináriodeEstácio:umnada,semdireitoalgum,cujaprópriavidapareceriaumaconcessãodavontadesenhorial.Helenatinhademorrer,poistamanhadependênciasópodiaexistirmesmonumainstânciaimaginária,eoromancemachadianoprocuravaomovimentohistóricoreal.

OmomentodemaiorviolênciadeEstácionoromance,todavia,aindaestavaporvir.Helenaprocuravaescaparaoamorimpossívelquesurgiaentreelaeaquelequeeraaomesmotemposeuirmãoeseuinimigo.AbeldadeempurravaEstácioparaosbraçosdeEugênia,afilhadeCamargo,estrelamaisbrilhanteentreasmenoresdofirmamento,aomesmotempoque,auxiliadapelopadreMelchior,arranjavaumnoivoparasiprópria.NãolhefoidifícildescobrirqueLuizMendonça,omelhoramigodeEstácio,ardiaaseuspés.OfilhodoconselheirosoubedonoivadodairmãduranteumaviagemaCantagalo,ondeodr.Camargoefamíliaesperavamimpacientementepelamortedeumafazendeiraquetalvezlhesfizesseumlegado.Desvairadocomanotícia,EstáciovoltaàCorteprontoparafazervalerasuacapacidadedehumilharesubmeteroscircundantes.Consultadosobreocasamentodairmã,elenegaoseuconsentimento.Numlancebrutal,EstáciohumilharaMendonçareferindo-seaseu“crédito”,einsinuandoassimque“ofimexclusivo”donoivoera“ariquezadamoça”(H,cap.xix).Dessavez,noentanto,aatitudedeHelenaédecompletainsubmissão.Elanãoaceitaadecisãodoirmão,dispõe-searenunciaràherançadoconselheiroparaafastarasuspeitadequeonoivoagiaporinteresseedesafiaabertamenteorapagãodoAndaraí:“Mendonçaéjáofrutoproibido,concluiuamoça;começoaamá-lo.Seaindaassimmeobrigaradesistirdocasamento,adorá-lo-ei”(H,cap.xix).

Emsuma,oquevimosatéomomentoéque,emHelena,Machadoempreendeumaanálisebastantelúcidadaspolíticasdedomíniovigentesdurante“otemposaquarema”.AhistóriadeEstácioeHelena,antesqueodramachorosodeumamorimpossível,éadescriçãodoperíododehegemoniaincontestedaclassesenhorial-escravista,cujacriseprofundaoromancistavivenciaraentre1866e1871,ecujodesmanchareleassistiacomolharinvestigativonodecorrerdadécadade1870.AoescreverHelena,Machadonão

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tinhamaisilusõesquantoàcontinuidadedasestruturastradicionaisdepoder.Aperspectivadeanálisejáébemcríticae,decertaforma,elefazemergirasuaabordagemdeixandoqueHelenafaleporele.SeMachadonãotemmaisilusões,sofreporémcomoimpasseenãovêalternativa.Aambigüidadedapersonagemprincipaltraduziaaexperiênciahistóricadeumsem-númerodedependentesnessetempoesociedade:aindaseduzidosdealgumamaneirapelaideologiasenhorial,Helenaeseussemelhantespodiammostrar-sesinceramentegratosaseussenhoresoubenfeitoresespecíficos,eassimpermaneciamrelutantesemsacudirainérciadasestruturastradicionaisdepoder;outrossim,osanosdecrisehaviamagudizadoaperspectivacríticamaisgeral,explicitandoasinjustiçasinerentesàpolíticadedomíniosenhorial.Porumlado,acrisetornaraacríticainevitável—acreditarerajáimpossível;poroutro,nãopareciahaverumasaída,eodiscursoqueeradeanáliseacabasereestruturandocomodenúncia.

SemetadedeHelenaéaanálisefinaejáoutrotantoirônicadedeterminadosmecanismosdepoder,aoutrametadetorna-sedenúnciaamarguradadasiniqüidadesvigentesemtaispráticasdedominação.Duaspersonagensencarnamosentidodedenúnciadoromance:umalgoz,odr.Camargo,eumavítima,opapaiSalvador.Nãovoumeocuparaquidasvilaniasdodr.Camargo,poisorepertórioéodesempre:frio,calculista,interesseiroechantagista,aúnicacaracterísticamarcantedodoutoréqueeletinhaorequintedebeijarafilhaapenasnasocasiõesemquesobrevinhamacontecimentosquepareciamfacilitar-lheaambiçãodecasarEugêniaeEstácio.Assim,ameninafoibeijadaquandodofalecimentodoconselheiro,quandodoalmejadopedidodecasamentoe,muitoafetuosamente,quandodamortedeHelena.

Masdeixemosdeladoosbeijosdoréptil,poisécomSalvadorqueoconteúdodedenúnciadolivroassumeumcaráteraomesmotempomaisabrangenteehistoricamenteespecífico.Nessemomento,MachadoabandonaosprocedimentostãosutisquantodemolidoresdeHelenaeparteparaodiscursodiretoecontundente.Asofisticaçãoanalíticaeadissimulaçãodameninadeixamocentrodanarrativa;oleitorpodeafundar-senapoltronaesimplesmenteacreditarnoqueestálendo.TendopilhadoHelenanoinstanteemqueestasaíadacasadepapaiSalvador,Estácio,queaindaignoravaaverdadeirahistóriadamenina,utilizacomopretextoanecessidadedecurarum

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ferimentoparatentararrancaralgumacoisaàqueledesconhecidocomquemHelenatravavarelações.Omoçonãoescolhetalalvitresemcertahesitação,pois“oespetáculodapobrezalherepugnavaaosolhossaturadosdeabastança”(H,xxi).Apósalgunsminutosdeconversa,Salvadorfezumcomentárioqualquersobreosmotivosdesuapenúria.OdonzeldoAndaraí,quenãotinharazãoalgumaparapressaporémqueriacomprarhoraseminutos,queviviadebrisaporémexaltavaasvirtudesdotrabalho,retrucaqueumhomemaindajovem,forteeinteligente“nãotemodireitodecairnapenúria”(H,cap.xxi).OpaideHelenarespondesemrodeios,pararessaltarotantodeingenuidadequehavianopontodevistadosenhor/proprietário:

Suaobservação,disseodonodacasasorrindo,trazosabordochocolatequeosenhorbebeunaturalmenteestamanhãantesdesairparaacaça.Presumoqueérico.Naabastançaéimpossívelcompreenderaslutasdamiséria,eamáximadequetodoohomempode,comesforço,chegaraomesmobrilhanteresultado,hádesempreparecerumagrandeverdadeàpessoaqueestivertrinchandoumperu...Poisnãoéassim...(H,cap.xxi)Otomdacríticamudabastantenessecontexto:ondeanteshaviasutilezae

galhofa,temosagoraadenúncia,sebemquemantendoaindaaironia.Dequalquermodo,oconteúdodacríticaéomesmo:tantoHelenaquantopapaiSalvadorcolocam-senumaperspectivaexterioràideologiasenhorial,etentamfazercomqueEstáciorelativizeasuamaneiradepensar.Ofilhodoconselheiro,todavia,permanecebebendoochocolateetrinchandooperu,atéque,algumaspáginasadiante,oshomensencontram-sedenovo,empresençadopadreMelchior,eSalvadorcontaentãotodaasuahistória(H,cap.xxv).OpaideHelenaenfatizaoutravezaidéiadeque,emsuavida,quantomaistrabalharamaisempobrecera,edepoisnarracomoforalevadoaabrirmãodelutarpelamulherepelafilhaemfunçãodaproteçãoedasegurançaqueoconselheirodispunha-seaproporcionar.Essahistóriaderenúnciaehumilhação,cujaorigemestavanopoderenoscaprichosdavontadesenhorial,chegaaemocionarojovemmancebo,masnãosabemosatéquepontopodialheabalarasestruturas.AmortedeHelenainterrompeoprocesso,emantémaverossimilhançadoromance.Afinal,Helenanãopodiaexistirnoestadodesujeiçãomaisabjeta,eadescobertadamentiradotestamentoarrebatava-lheapossibilidadedeumaperspectivacríticaeautonômica.Emsuma,osantagonismossociaisestãoidentificadosedelineados,masaindanãosãodescritosnumprocessodemudançahistórica.MachadodeAssisestá,em1876,

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ainterpretarasociedadedoperíodoanterioràcrisede1871;oaprofundamentodosantagonismoseoconseqüentedesmanchardaspolíticastradicionaisdedominaçãoserãotemaspresentesemIaiáGarcia.

entreatoteórico

ÉclaroqueestaleituraquevenhopropondoparaHelenadevebastanteaRobertoSchwarzeàsuadescobertadequeMachadodeAssis,aocontráriodasaparênciasedeinterpretaçõesconvencionais,sempretevemuitoadizersobreasrelaçõessociaisdedominaçãovigentesnoBrasildoséculoxix.Noentanto,eapesardeconcordarcomSchwarznessesentidomaisessencial,meuargumentoapresentaespecificidadesquevaleressaltar.

ParaSchwarz,oobjetivodeMachadoemHelenaécontribuirparao“aperfeiçoamentodopaternalismo”.5Segundoele,aideologiadoromanceseriaadequecabeàseveridadedoamorfamiliareaosentimentocristãoamoralizaçãodasdiferençassociais,paraqueestassetornemlivresdasbaixezasedashumilhaçõesquepossameventualmenteinspirar.Ouseja,aideologiadolivro,bastanteinsípida,seriaadequeafamíliaeareligiãodeveriamcivilizarosricoseconsolarospobresedependentes,edessaformaHelena,tantoquantoosdemaisromancesdaprimeirafasedeMachado,poderiamserdescritoscomotrabalhos“deliberadaedesagradavelmenteconformistas”.6O“movimentoprofundo”deHelenaestarianocontrasteentreessa“intençãomorigeradaecivilizatória”maisgeraleocomportamentodeverasturbulentoeindisciplinadodaspersonagens.7Esseobjetivoconformistaacabariaporconteraforçapotencialmentedissolventedaanáliseracionaleprofundadopaternalismo,queSchwarzdemonstraestarpresente,masque,emsuaopinião,nãochegaasercrítica,“poisnãoseinteressapelomovimentodascontradiçõesreaisneminterfere”.8

PensoqueSchwarznãopercebeutodooalcancedacríticaeaforçadadenúnciacontidosemHelena,eháaomenostrêsexplicaçõesparaisso.Emprimeirolugar,eapesardecorreroriscodeseraindamaisrepetitivo,enfatizoodeslocamentodeenfoquequemepareceessencialnaleituradesseromance:comovenhotentandodemonstrar,o“movimentoprofundo”deHelenaéadescriçãodosantagonismosconstitutivosdaspolíticasdedomíniovigentesnoperíodoanterioràcrisedefimdosanos1860einíciodadécadade1870.Como

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fezquestãoderegistrareminúmerostextos,MachadodeAssisconsideravadecisivososanosdeagitaçãopolíticaesocialqueculminaramnapromulgaçãodaleide28desetembrode1871e,defato,muitodaquiloqueescreveunasdécadasseguintestinhaapreocupaçãodeinterpretarosacontecimentosdaqueleperíodo,assimcomoavaliarasconseqüências.AcrisehaviaprovocadoemMachadoumdistanciamentocríticoquenãotinhavolta.Ele,queconheciaasrelaçõespaternalistasporexperiênciahistóricaetrajetóriaindividual,expõeemHelena,comlucidezeclarezatalvezimpossíveisantesde1871,tantoaunilateralidadedavisãodemundosenhorialcomoasdificuldadeseperigosinerentesàposiçãododependente.AchavedeHelena,oromance,éaambivalênciadeHelena,apersonagem:elaestánointeriordaideologiasenhorialporquepossuigratidãoeporqueconheceemanipulabemossímbolosevaloresqueconstituemeexpressamtalideologia;elaestáforadasrelaçõespaternalistasdevidoaofatodequeconseguerelativizá-las,elogopercebê-lasclaramenteenquantopodere,nolimite,forçaouimposição.AperspectivacríticapermiteaHelena,comojáfoidito,apreservaçãodecertaautonomia,sendoqueaimpossibilidadedetalautonomia,nofimdoromance,éadestruiçãodaambivalênciaedapossibilidadecrítica—aalternativaéamorte,ouatransformaçãohistórica.AtransformaçãohistóricaseriaoassuntodeIaiáGarcia;emHelena,ocenárioaindaéahegemoniadoprojetosaquarema.Enfim,nãoconsigoveremHelena,porummomentosequer,queMachadopudesseteremvistao“aperfeiçoamentodopaternalismo”.

Osegundoproblema,aliás,éaquiloqueseentendeporpaternalismo.Meusleitores,supondosemprequeostenho,terãonotadoqueevitei,atéhápoucaslinhas,utilizaressapalavra.Éóbvioqueanão-utilizaçãodapalavranãosignificaqueeutenhaignoradoosproblemaspertinentesatalconceito;aocontrário,boapartedestetextotemsidoumaanálisedopaternalismoapartirdainterpretaçãodaquiloqueumromancedeMachado,analisadocomotestemunhohistórico,podenosrevelararespeitodeumasociedadeemquetalideologiaassumecaráterhegemônico.Oconceitodepaternalismoécomplexo,apalavraprecisaserusadasemprelevando-seemcontacertascautelas,eentãoeviteiempregá-laatéquehouvessecondiçõesdeesvaziá-ladesuavocaçãoparacausarconfusão.HáelementossuficientesemMachadoparafundamentarumadefiniçãoconvencional,porassimdizer,depaternalismo:trata-sedeumapolíticadedomínionaqualavontadesenhorialéinviolável,enaqualos

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trabalhadoreseossubordinadosemgeralsópodemseposicionarcomodependentesemrelaçãoaessavontadesoberana.Alémdisso,epermanecendonaóticasenhorial,essaéumasociedadesemantagonismossociaissignificativos,jáqueosdependentesavaliamsuacondiçãoapenasnaverticalidade,istoé,somenteapartirdosvaloresousignificadossociaisgeraisimpostospelossenhores,sendoassiminviávelosurgimentodassolidariedadeshorizontaiscaracterísticasdeumasociedadedeclasses.NãoéprecisoobservarqueosmovimentosdeEstácionoromancesãoumaexposiçãomaisdoqueconvincentedessaacepçãodapalavrapaternalismo.

Todavia,jáhácercadetrêsdécadasdeproduçãoacadêmicanaáreadehistóriasocialparademonstrarque,seentendidounicamentenosentidomencionado,opaternalismoéapenasumaautodescriçãodaideologiasenhorial;ouseja,nessaacepção,opaternalismoseriaomundoidealizadopelossenhores,asociedadeimagináriaqueelesseempenhavamemrealizarnocotidiano.Emtextosfamosos,escritosdesdeoiníciodadécadade1970,ThompsoneGenovese—esteabordandoumcontextoemquetambémhaviaescravidão—,edepoismuitosoutroshistoriadores,mostraramqueavigênciadeumaideologiapaternalistanãosignificaainexistênciadesolidariedadeshorizontaise,porconseguinte,deantagonismossociais.9Emoutraspalavras,eparacitarRebeccaScott,outraespecialistanahistóriadaescravidão,subordinaçãonãosignificanecessariamentepassividade,e“oshistoriadoresvêmencontrandonumerosasmaneirasdeexaminarasiniciativasdosescravossemdesconsideraraopressão,deexploraracriaçãodesistemasalternativosdecrençasevaloresnocontextodatentativadedominaçãoideológica,deaprenderareconheceracomunidadeescravamesmoconstatandooesforçocontínuoderepressãoaalgumasdesuascaracterísticasessenciais”.10AspalavrasdeScottajudamapensarnãosóasituaçãodosescravos,mastambémadosdependentesemgeral,emsociedadesemquehaviaahegemoniapolíticaeculturaldopaternalismo.NãoéprecisoobservarqueosmovimentosdeHelenanolivrosãoumaexposiçãomaisdoqueconvincentedacomplexidadehistóricadoconceitodepaternalismoedavigênciadaalteridadenocentromesmodosrituaissenhoriaisqueinsistiamemignorá-la.Emresumo,meuargumentoéque,talveztolhidoemexcessopordefiniçõesconvencionaisdepaternalismo,comunsàépocaemqueescreveuAovencedorasbatatas,Schwarznãotevecomodescortinarinteiramenteadialéticaextraordináriadosmovimentosde

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HelenanoromancedeMachado.Finalmente,eoleitoratentojáterásuspeitado,oterceiroproblemaéaquilo

queseentendeporescravidão.Porumlado,parececlaroqueparaMachadoacrisedasociedadesenhorial-escravistaoriginava-sebasicamentenoprocessohistóricodeemancipaçãodosescravos.Poroutrolado,asreferênciasàinstituiçãodaescravidãonosromancesmachadianosnãosãomuitofreqüentese,aoqueparece,nemcentraisaodesenvolvimentodanarrativa.TantoSchwarzquantoGledsonregistramoseudesconfortodiantedessesupostoparadoxo.Schwarzofereceumasoluçãoteóricaparaoproblema:aescravidãoeraarelaçãoprodutivafundamental,porémnãoseconstituíanonexoefetivodavidaideológicanoBrasildoséculoxix.Aexplicaçãodissoestarianofatodequeasubordinaçãodostrabalhadoresna“relaçãoprodutivadebase”—istoé,naescravidão—estaria“asseguradapelaforça”.11Jáosagregadosedependentesemgeralviam-seenvolvidosnateiacomplexadofavor,quegarantiaasubordinaçãodapessoapormeiodemecanismosdeproteçãocomcontraprestaçãodeserviçoseobediência.Assim,sendoaescravidãomantidaunicamentepelaviolênciadireta,nossosescritoresoitocentistaspreferiamtematizaroBrasilapartirdoproblemadopaternalismoedocontrolesocialdosdependenteslivres,semdúvida“maissimpáticodoqueonexoescravista”.12Estariaexplicado,então,oporquêdeaescravidãonãosero“nexoefetivodavidaideológica”.

Certavez,numdebatesobreasuaprópriaobra,Schwarzafirmouqueénecessário“entenderessarealidadecomoumaestrutura:dependente,escravo,proprietário”,eobservouquea“relaçãoparticularcomosdependentesdependedaexistênciadaescravidão,seconfiguraapartirdela,inclusiveumdospavoresbásicosdodependenteerasertratadocomoescravo,coisaqueeleprecisavaevitaratodocusto”.13Estaúltimaobservaçãoébastantepromissora,masSchwarznãochegaaexploraroseupotencial;emsuma,elepostula,porémnãodemonstra,aexistênciadovínculoestruturalentreescravidão—istoé,ocontrolesocialexercidosobreostrabalhadoresescravos—epaternalismo—apolíticadedomínioquegarantiaasubordinaçãodosdependentes.OresultadopráticodesseproblemanaobradeSchwarzéqueeleexcluiotemadaescravidãodaobradeMachado;ouseja,comooassuntonãopareceestarpresente—edefatonãoseapresentadeformaostensiva—,entãoseconcluiqueeleefetivamentenãoestápresente.TaléoprocedimentodeSchwarzao

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analisarotemadaescravidãoemMachado;todavia,eparasermosapenasjustos,SchwarzéexatamentequemmaisfezatéhojeparademonstrarainsuficiênciadesemelhantemétodoemsetratandodainterpretaçãodostextosdobruxodoCosmeVelho.

JohnGledsonencaminhaoutrasoluçãoparaoproblema.EmseucapítulosobreQuincasBorbaemFicçãoehistória,GledsonargumentaqueparaMachado“aescravidãoéumimportanteelementocausaldemudança”equeumadasexplicaçõesparaadificuldadedoromancistanaredaçãodesselivroforaexatamenteabuscadeumasoluçãoartísticaqueexprimisseasuainterpretaçãodahistóriadoperíodo.Emsíntese,paraGledson,eraassimqueoproblemaapareciaparaMachado:aaboliçãodaescravidão“nãoocorreuatravésdosprópriosescravos,quenãopodem,assim,representá-la”;todavia,tambémnãopareciacorretodescreveroprocessocomosimplesexpressãodosinteressesdosproponentesdaemancipaçãogradual.14Oassuntoeracomplexo,eMachadoteriaencontradoumamaneiraderegistraraimportânciadaescravidãopormeiodosconflitosinternosdeRubiãoeseulentoprocessodealienaçãomental,sendoqueàsvezesessapersonagempareceexprimiro“inconscientecoletivo”daquelasociedade.15AsoluçãodeGledsonéengenhosa,equasequecertamentenãoéequivocadaaosuportantaengenhosidadeemMachado,porémpermaneceassumidamenteumatentativadeabordarasintençõesmanifestasdoromancista;penso,porém,quenoqueconcerneaotemadaescravidão,emespecialtalveznosromancesanterioresaBrásCubas,boapartedotestemunhohistóricodeMachadopodeestaralémdesuasintenções.

escravidão

EmHelena,quasetudooquesedizsobreainstituiçãodaescravidãoestácontidonosmovimentosdeVicente,opajemdaprotagonista.Emsuaprimeiraaparição,Vicenteédescritocomo“criadacasaeparticularmenteestimadodoconselheiro”(H,cap.iv).Taldescriçãodocativotemobjetivobemdefinido:comopautavamseussentimentospelosded.Úrsula,osescravosdafamíliaficaraminicialmenteinsatisfeitoscomachegadadeHelena;Vicente,noentanto,pelofatodehaversidotãoestimadopeloconselheiro,aceitoulogoaquelaqueselheapresentavacomofilhadofinadosenhoresetornouentão

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“umfielservidordeHelena,seuadvogadoconvictonosjulgamentosdasenzala”(H,cap.iv).Ocomentáriomaiscrucialdapassagem,todavia,éodequeadedicaçãodeVicenteàraparigaera“despidadeinteresse,porqueaesperançadaliberdade,seapodiahaver,eraprecáriaeremota”(H,cap.iv).Anecessidadedemencionaraesperançadaalforria—ouatédejustificarasuapossívelausência—numcontextoemqueseprocuravaenfatizaradedicaçãodeumescravoébastantereveladora:comojáabordeicomdetalheemoutrotexto,umdosaspectoscentraisdapolíticadedomínionaescravidão,pelomenosaté1871,eraofatodequeoatodealforriarconsistiaemprerrogativaexclusivadossenhores.Emoutraspalavras,cadaescravosabiabemque,excluídasasfugaseoutrasformasradicaisdenegaçãodocativeiro,suaesperançadeliberdadedependiadotipoderelacionamentoquemantivessecomseusenhorparticular.Aidéiaeraconvencerosescravosdequesuaschancesdealforriapassavamnecessariamentepelaobediênciaefidelidadeemrelaçãoaosproprietários.Alémdisso,conformeoexemplonotáveldoafricanoRaimundoemIaiáGarcia,aconcentraçãodopoderdealforriarexclusivamentenasmãosdossenhoresfaziapartedeumaamplaestratégiadeproduçãodedependentes,detransformaçãodeex-escravosemnegroslibertosaindafiéisesubmissosaseusantigosproprietários.16

Emsuma,essaprimeiravisãodeescravidãoconstanteemHelenasugerequeháumimportanteelementoemcomumnaspolíticasdedomínioexercidassobreescravosedependentes:emambososcasos,epermanecendosemprenaóticadaclassedossenhoreseproprietários,asrelaçõessociaisdedominaçãoestãoassentadasnopressupostodainviolabilidadedavontadesenhorial.SeforessemesmooconteúdodotestemunhohistóricodeMachado,entãoserápossíveltraçarmaisparalelismosentreosmovimentosdeVicenteeosdeoutrosdependentesquetemosacompanhadonoromance.UmacenainteressanteéaquelaemqueHelenaresumeparaEstácio,emtermosqueseriaminteligíveisparaomancebo,qualotipoderelaçãoqueelatinhacomVicente.Estácioficaraamuadoporqueairmãfizeraopasseiomatinalacavalosemasuacompanhia;elesediziapreocupadocomapossibilidadedeamoçoilasofrerumacidente.InterpeladoporHelena,quefingianãoentenderbemomotivodacasmurricedorapaz,EstácioconfessaquenãogostaradesaberqueamoçasaíraapenasemcompanhiadeVicente:“Estácertadequenãocorrenenhumperigoindosócomopajem?”.Emseguida,EstáciopedeaHelenaque

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“nãosaianuncasemmim”.Vejaaresposta:Nãoseisepodereiobedecer.Nemsemprevocêpoderáacompanhar-me;alémdisso,indocomopajem,écomosefossesó;emeuespíritogosta,àsvezes,detrotarlivrementenasolidão.(H,cap.ix)Ouseja,Helenanãopodiaobedecer,poisVicenteeraseucúmplicenas

visitasquefaziasecretamenteapapaiSalvador;eentão,parajustificardiantedeEstácioospasseiosquedecertocontinuariaafazeremcompanhiadomoleque,araparigaempregaorecursoquesabiautilizartãobem:elanarraaEstácioumaversãoparaasuarelaçãocomVicentequesemostraapenasumareproduçãodaideologiadoguapodonzel.Assim,VicenteéumnadadiantedavontadedeHelena,eamoçachegaaproduzirapéroladeque“indocomopajem,écomosefossesó”.

Essemomentofoi,obviamente,outroexemplodedissimulaçãodapequena.Adiante,onarradordahistóriaéquemnosofereceversãodiferenteparaorelacionamentoentreHelenaeVicente.AmoçaforafazermaisumavisitaapapaiSalvador,porémvoltavatristeporquenãooencontraraemcasa.Opajem,quetambémvinhatristeporquepautavaosseussentimentospelosdasenhora,naverdadenãopautavaosseussentimentospelosdasenhora(sic):

Opajemlevavaosolhosnamoçacomumardeadoraçãovisível;mas,aomesmotempo,comaliberdadequedáaconfiançaeacumplicidadefumavaumgrossocharutohavanês,tiradoàscaixasdosenhor.(H,cap.xv)Otrechoénotável,poissugerequeomovimentodeVicenteemrelaçãoa

HelenaésemelhanteaodeHelenaemrelaçãoaseusprotetores/algozes:porumlado,háoreconhecimentopelaproteçãosenhorial—a“adoraçãovisível”deVicenteeagratidãodeHelena;poroutro,háapossibilidadede“traduzir”essaobediênciaemconquistasouespaçosdeautonomia—aliberdadedefumarocharutohavanêsemVicente,odireitoao“sacráriodaalma”emHelena.AreferênciaaocharutoémaisinteressanteaindaporquequiçáremetiaoleitordeHelenaaocontextodaescravidãourbana,queera,afinal,otantodeexperiênciahistóricamaisfamiliaraMachado.PerdigãoMalheirofazoseguintecomentáriosobreasituaçãodosescravosurbanosnasúltimasdécadasdainstituiçãodaescravidão:

Nascidadesjáseencontramescravostãobem-vestidosecalçados,que,aovê-los,ninguémdiráqueo

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são.Atéousodofumo,ocharutosobretudo,sendoaliásumvício,confundindonopúblicotodasasclasses,nivelando-asparabemdizer,háconcorridoaseumodoparaessaconfraternidade,quetemaproveitadoaoescravo;oempréstimodofogooudocharutoacesoparaqueumoutroacendaoseuefume,temchegadoatodossemdistinçãodecornemdeclasse.Eassimoutrosatossemelhantes.17

MesmocomodevidodescontoàsidealizaçõeseexagerosdePerdigão

Malheiro,parecerelevanteofatodeMachadoutilizaroexemplodocharutoparaexprimirotantodeliberdadeconquistadoporVicente.Echaruto“tiradoàscaixasdosenhor”,paraserfumadonafrentedasenhora.Machadotalvezregistreaquialgoqueépercebidopelosescravoscomoumaaproximação,aomenossimbólica,àcondiçãodeliberdade.Naverdade,eapesardaobservaçãoinicialsobreodesinteressequehavianadedicaçãodeVicenteaHelena,oquevemoséqueacondutafieleobedientedopajemacabaportornarmaisconcretaasuaesperançadealforria.ÉEstácioquemnosinformaaesserespeito:tendovistoHelenadeixaracasadeSalvadoremcompanhiadopajem,elecogitaeminterrogarocativo—que“eraoconfidenteeocúmplice”deHelena.Ofilhodoconselheiroacabadesistindodeutilizaressealvitre,masantesaindaserecorda“dequeHelenalhepediraumavezaliberdadedaqueleescravo”(H,cap.xxi).

AintervençãomaisimportantedeVicentenahistóriaocorrenoaugedacriseentreHelenaeafamíliadoconselheiro.Aodesconfiarqueasenhorapadecia,opajeminterpelaopadreMelchiorparadescobriroqueestavaocorrendo.Opadredesconversaemandaomolequesossegar,masestepermaneceinquietoecomentaque“háalgumacoisaqueoescravonãopodesaber”;emseguida,eparareafirmarasuaresoluçãodefazeralgoporHelena,Vicentedizaopadreque“tambémoescravopodesaberalgumacousaqueosbrancostenhamvontadedeouvir”(H,cap.xxiv).Opajempareceestaragindode“movimentopróprio”,comodirádepoisMelchior(H,cap.xxiv),eumainterpretaçãohistoricamenteverossímilparaaatitudedeVicente,alémda“adoraçãovisível”pelasenhora,seriaadequeeleentendiaquesuaesperançadealforriaestavaestreitamenteligadaaodestinodeHelenaeàpossibilidadedeestamanteroexercíciodavontadesenhorial.Nãoéesse,todavia,oencaminhamentoexplícitoqueMachadodáaoproblema.TudooquetemoséainterpretaçãoqueHelenaofereceparao“movimentopróprio”deVicentee,nessemomento,amoçaapenasreproduz,aliáscombastantepieguice,aideologiasenhorial.Assim,aosaberqueVicenterevelaraaopadreaversãoque

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elalhecontara—istoé,adequeSalvadoreraseuirmão—,apequenafazumaoraçãoaDeus“porqueinfundiuaínocorpovildoescravotãonobreespíritodededicação.Delatou-mepararestituir-meaestimadafamília”(H,cap.xxiv).Sepensarmosnagalhofeiradeliciosadeoutraspartesdoromance,torna-sepatentequeHelenaagoradescarrilou,poisconseguesertãoinsossaquantoEstácio.Ofato,noentanto,équeodescarrilamentodeHelenaé,àsuamaneira,umtestemunhohistórico:sendoasenhoradeVicente,amoçarepeteemrelaçãoaeste,pelomenosnummomentodecrise,determinadalógicadedomínio,eentãointerpretaomovimentodoescravocomomerasubordinaçãoàvontadesenhorial.

Emsuma,seháemHelenaelementossuficientesparacolocaremxequeadefiniçãoconvencionaldepaternalismojámencionada,tambéméverdadequehánesseromanceindíciossuficientesparaquestionaraidéiadavigênciadeumaseparaçãomuitomarcadaentrepaternalismoeescravidão,outropressupostoimportantenachavedeleituradeSchwarz.VoltemosàpreciosaobservaçãodopróprioSchwarzdequeasituaçãodos“dependentesdependedaexistênciadaescravidão,seconfiguraapartirdela,inclusiveumdospavoresbásicosdodependenteerasertratadocomoescravo,coisaqueeleprecisavaevitaratodocusto”.Aobservaçãoécorreta,corretíssima,edáensejoàsobservaçõesfinaisdestecapítulo.Emprimeirolugar,háalgoquevenhorepetindonestetextoàexaustão:dopontodevistadeEstácioecriaturassemelhantes,opressupostodainviolabilidadedavontadesenhorialestavapresentenaspolíticasdedomíniotantodeescravosquantodeagregadosedependentesemgerale,comoaescravidãoeraasituaçãodemáximadependência,éissoqueesclareceosentidodaafirmaçãodequeasituaçãodosdependentesseconfiguraapartirdacondiçãodosescravos.Emsegundolugar,eistoseseguedaobservaçãoanterior,opavordodependenteemsertratadocomoescravoerabastanteconcreto,talvezfreqüentementeinformadopeloperigorealdeescravização.Sabemosaomenosquehaviaamplossetoresdapopulaçãodita“livre”queviviamsobapressãoconstantedeumapossívelescravizaçãooureescravização.Nocasodosnegrosquejáhaviamrecebidoacartadealforria,asituaçãoeravariada.Haviaaquelesquetinhamdecumprircláusuladeprestaçãodeserviços,oqueoscolocavaporalgumtempo,àsvezesporváriosanos,numaposiçãoambíguaentrealiberdadeeocativeiro.Atéapromulgaçãodaleide1871,existiaaindaapossibilidadedeosenhorrevogara

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alforriapormotivodeingratidão,oquerealçaasubordinaçãoeaincertezacontidasnessa“liberdade”conferidaaoslibertos.Emsuma,haviacondiçõesintermediáriasentreaescravidãoealiberdadeque,aomesmotempoemquematizamavisãotradicionaldeumasociedaderigidamentedivididaemsenhoreseescravos,sugeremotantodeprecariedadeinerenteàcondiçãodessesdependentes.

Alémdisso,continuamafaltarpesquisassistemáticassobreaameaçaeaocorrênciaconcretadaescravizaçãoilegal.Atranqüilidadeescandalosacomquecentenasdemilharesdeafricanosintroduzidosnopaísapósaleiantitráficode1831permaneciamilegalmenteescravizados—assimcomoseusdescendentes—saltaaosolhosesugereamagnitudedessecostumesenhorialeotamanhodoperigoquerondavaapopulaçãolivredecoremgeral.Tambéménecessárioobservarcomdesconfiançaapráticacomum,naCorteealhures,dedeterparaaveriguaçõesindivíduos“suspeitosdeseremescravos”.18Numasociedadeemquehaviaaescravidão,elogoavigênciadeumalógicadedominaçãoassentadanaprivatizaçãodocontrolesocial,umdependente,especialmentesepobreedecor,arriscavabastanteaoseafastardavizinhançaemquepodiaserimediatamentereferidoadeterminadouniversoderelaçõespessoais.Aredequeperseguiaecapturavaescravosfugidostinhaumentrelaçamentoprecisoeregularoulançavaaameaçaeasuspeiçãosobreamplossetoresdapopulação“livre”decor?Ditoisso,eapesardessetantoqueháemcomumnapolíticadedomíniovigenteparaescravosedependentes,éclaroqueacondiçãodeescravoeramuitodiferentedaqueladolivredependente.Sabemosissoporqueosescravoslutavamintensamentepelaliberdade,eviaderegraorganizavamsuasvidasemfunçãodaexpectativadealcançaresseobjetivo.Ascaracterísticasmaisessenciaisdotipodedependênciaaqueestavamsubmetidososescravoseramocastigofísicoeacondiçãodepropriedade—estaosdeixavasempresobaameaçadastransaçõesdecompraevendae,porconseguinte,diantedapossívelrupturadeseuslaçosdefamíliaecomunidade.

Enfim,meuargumentoéque,aocentrarsuashistóriasnosantagonismosentresenhoresedependentes,MachadodeAssisabordava,naverdade,alógicadedominaçãoqueerahegemônicaeorganizavaasrelaçõessociaisnoBrasiloitocentista,incluídoaíoproblemadocontroledostrabalhadoresescravos,a“relaçãoprodutivadebase”.Aofazerisso,oromancemachadianoproduzia

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outroregistrorealistaextremamentesutileeficaz:comoaambiênciasocialdostextoserabasicamenteointeriordepropriedadessenhoriaisdaCorte,nãoseriaverossímilfundaroenredonaescravidão.Defato,nasegundametadedoséculoxix,emaisaindaapósaleide1871,Estácio,BrásCubas,Bentinhoetodososdemaismembrosdessagaleriaviviamnummundoemqueavisibilidadedaescravidãopermaneciainevitável,masaostentaçãodetalvisibilidadeseriaumagafe,umpecado,ouquemsabesobretudoumperigo.AoescolheraambiênciasenhorialurbanadaCorte,MachadodeAssistambémadotouaaparênciaquesuaspersonagensprocuravamaparentar;noentanto,qualquerleitordoséculoxixsaberiaobservaressaaparênciaacontrapelo,eobruxocertamentecontavacomesseolhar.

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2.Apolíticacotidianadosdependentes

percursoeargumento

Aocompletaropercursodocapítuloanterior,chegávamosàconclusãodequeaspolíticasdedominaçãovigentesnasociedadebrasileiradoséculoxixpoderiamserapropriadamentedescritascomopaternalistas.Vimosquetallógicadedomínioestavapresentetantonasestratégiasdesubordinaçãodeescravosquantodepessoaslivresdependentes,equesuacaracterísticaprincipaleraaimagemdainviolabilidadedavontadesenhorial.Omundoerarepresentadocomomeraexpansãodessavontade,eopodereconômico,socialepolíticopareciaconvergirsempreparaomesmoponto,situadonotopodeumapirâmideimaginária.Opaternalismo,comoqualqueroutrapolíticadedomínio,possuíaumatecnologiaprópria,pertinenteaopoderexercidoemseunome:rituaisdeafirmação,práticasdedissimulação,estratégiasparaestigmatizaradversáriossociaisepolíticos,eufemismose,obviamente,umvocabuláriosofisticadoparasustentareexpressartodasessasatividades.

AomenosdesdeapublicaçãodolivroclássicodeRobertoSchwarz,Aovencedorasbatatas,sabemosqueMachadodeAssisfoimestrenessesmeandroseexpositorargutodetaltecnologiadedominação.1EmHelena,ocenáriodesenhadoemtornodaaberturadotestamentodoconselheiroValeédescriçãoexemplar,sebemquelevadaàsfronteirasdoabsurdo,deumritualdeafirmaçãodavontadesenhorial:oconselheiroétãoconhecedordesuasprerrogativas—“aestritajustiçaéavontadedemeupai”(H,cap.ii),diriaEstácio—queresolvenãosólegarseusbens,mastambémseussentimentosemrelaçãoaHelena.EmIaiáGarcia,Valérialutacontraaintençãodofilhoemescolherumaesposasemlevarnadevidaconta“astradiçõesdefamília”,

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“cabedais”e“relaçõesadquiridas”,elementosdefinidoresdas“primeirasclassesdasociedade”(conformeovocabuláriodeH,cap.i).Sendoassim,adotaoalvitredemandarJorgeàguerraparasepará-lodavirgem—amada,porémpessoa“decertaespécie”—,erecorreà“honranacional”paradar“coloridonobreeaugusto”(IG,cap.ii)àcausaedissimularseusverdadeirosobjetivos—“deumcasodomésticosaíaumaaçãopatriótica”(IG,cap.iii).EmHelena,Estáciobuscaestigmatizarosadversáriosdeformaimpiedosa.Mendonçaéesmagadocomumabrevealusãoaseu“crédito”(H,cap.xix),atribuindo-se-lhedessaformamerointeresseeconômiconocasamentocomHelena.EmseuprimeiroencontrocomSalvador,Estácioprocurarecriminá-loporsuapobreza,pois“umhomemforte,moçoeinteligentenãotemodireitodecairnapenúria”(H,cap.xxi).Ouseja,paraoguapodonzeldoAndaraí,queviviadebrisa,oumelhor,dasrendasprovenientesdeseus“cabedais”,pobrezaédefeitomoral,imputando-seassimaSalvadorasuspeitado“vício”daociosidade.Quantoaoseufemismosdadominaçãopaternalista,estavamportodaparte,emMachadoealhures,ebastalembrarquenoBrasiloitocentistaatorturarotineiradetrabalhadoresescravoseraconhecidacomo“castigojusto”.Quantoàexistênciadeumvocabulárioespecíficoaessatecnologiadepoder,fizaoleitoro“favor”de,atítulodeexemplo,pinçarváriasexpressõesemMachado—sãoamaioriadasqueaparecementreaspasnesteparágrafoqueoraencerro.

“Aspolíticasdedominaçãovigentesnasociedadebrasileiradoséculoxixpoderiamserapropriadamentedescritascomopaternalistas.”Poderiam?Nãosemalgunsinconvenienteseprecauções.Aideologiadesustentaçãodopodersenhorialincluíaaimagemdequeaquelaeraumasociedadeemqueospontosdereferência—ouseja,deatribuiçãoeformulaçãodeconsciênciadelugaressociais—definiam-setodosnaverticalidade.Seoproblemaconsistiaemsaberaopiniãodosescravos,sobreHelena,porexemplo,bastavasaberque“essespautavamossentimentospelosded.Úrsula”(H,cap.iv).EmIaiáGarcia,LuísGarcia“amoldaraascousasaseujeito”,portanto“nãoadmiravaqueamoldassetambémohomem”;assim,Raimundo,“escravoelivre”,“pareciafeitoexpressamenteparaservirLuísGarcia”(IG,cap.i).Nomundoconstruídoportalideologia,mundosonhado,amedidadosujeitosãoasrelaçõespessoaisnasquaisestáinserido(“relaçõesadquiridas”;H,cap.i).Nãoexistelugarsocialforadasformasinstituídas—formalmente,mastambémpelocostume—dehierarquia,autoridadeedependência.Ossujeitosdopodersenhorialconcedem,

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controlamumaespéciedeeconomiadefavores,nuncacedemapressõesoureconhecemdireitosadquiridosemlutassociais.Foradosreferenciaisdaverticalidade,haveriaapenaspulverização,átomossemexistênciasocial.

Emoutraspalavras,naideologiadopaternalismo,tomadaemseusprópriostermos,demodotransparente,écentralosentidodeencobrimentodeinteressesesolidariedadeshorizontaisentreos“dominados”,“subordinados”,“subalternos”,“dependentes”—ouseiláoquemais,ecadaumescolhaaexpressãoquelheaprouver.Oqueinteressaénotarque,emsemelhanteacepção,opaternalismoéapenasomundoidealizadopelossenhores,asociedadeimagináriaqueelessonhavamrealizarnocotidiano—sonhoimpossível,noqualEstácioeBentinhoaindapuderamacreditar,talvezingenuamente,masqueBrásCubaseDomCasmurroaprenderamaglosarperfeitamente,emparteporautocomiseraçãodiantedaconsciênciadaderrota.

Éclaroqueossenhoressabiamqueassolidariedadesentreseustrabalhadores(escravose/oulivresdependentes)estavamlá,paraalémdofatocomumdesuaprópriasubordinação,ereconheciamtacitamentealgunscostumeslocais,laçosétnicos,dialetos,manifestaçõesreligiosas,artesdecuraeoutrosofícios,edemaispráticasculturais.Oproblemaéqueessaalteridade,essaautonomia,queerareal,nãotinhalugarenquantotalnoimagináriosenhorial.Àspráticasautônomasdosdominadosnãoeramatribuídos,viaderegra,sentidosdealteridade,menosaindadeantagonismo.Elasexistiamporqueossenhoresteriamconcedidoaostrabalhadoresapossibilidadedeexercê-lasouinventá-las.Sendosoberanaeinviolávelavontadedossenhores,asaçõesdosoutrossujeitoshistóricosapareciamcomoorigináriasdessavontade,comosuasimplesextensão.Oqueescapavaaesseenquadramentoerainsubordinaçãoourevolta,algoaseresmagadocomaincivilidadedequesãosemprecapazesospoderosos.

Havia,porém,territóriossociaismaisambíguos,indeterminados,nosquaispráticaspolíticasoutrasquenãoaaparentesubmissãoouoantagonismoabertoestavaminstituídaseeramconstantementeacionadas.Eramosterritóriosdodiálogo,dastrocascotidianasdiretasentresenhoreseescravos,senhoresedependentes.Tratava-seesses,certamente,deterritóriosmapeadospelossenhores,poisossignificadossociaisgeraisreconhecidospelossujeitoseramosatinentesàpolíticadadominaçãosenhorial.Ofato,contudo,équeaalteridade,adiferença,vazavaarotinamesmadodiálogoinevitávelentresujeitos

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socialmentedesiguais.MachadodeAssisfoiumintérpreteincansáveldodiscursopolíticopossívelaosdominadosemtaissituaçõesque,postoquerotineiras,traziamsempreoriscododeslize,dapalavraditaemmáhora,provocandoemcontrapartidaosatosdeagressãoehumilhaçãodosdetentoresdasprerrogativassenhoriais.2

Dopontodevistadodependente,oenredobásicodetaisdiálogoserasempreomesmo.SegundoDomCasmurro,CapituexplicoucertavezaBentinhoprecisamenteaquiloquetenhodeassinalaraqui.ParamostraraBentinhoqueJoséDias,oagregado,seriaaliadohábilnacampanhaparaevitaroseminário,Capituencetaoseguintediálogocomonamoradinho:

—Vocênãoselembracomoéquefoiaoteatropelaprimeiravez,hádousmeses?D.GlórianãoqueriaebastavaissoparaqueJoséDiasnãoteimasse;maselequeriairefezumdiscurso,lembra-se?—Lembra-me;dissequeoteatroeraumaescoladecostumes.—Justo;tantofalouquesuamãeacabouconsentindo,epagouaentradaaosdous...Ande,peça,mande...(DC,cap.xviii)Ocenáriodesenhadonapassageméclaro.Omotivodeclaradodaconversa

estavanodesejodeBentinhodeiraoteatropelaprimeiravez.D.Glória,porém,nãoconcordavacomaidéia.Oassuntomorreriaaí,nãofosseofatodeJoséDias,oagregado,tambémquereriraoteatro.Homemdependente,vivendodefavornapropriedadedosSantiago,JoséDiasnãopodiateimarcomaviúva;“bastava”ofatodequeasenhora“nãoqueria”queBentinhofosseaoteatroparaqueelenãoinsistisse.Mascomooqueestavaemquestãoeraaconveniênciaounãodeomeninoiràrepresentação,JoséDiasfez“umdiscurso”defendendoatesedeque“oteatroeraumaescoladecostumes”.Ouseja,oagregadoconstruiuumargumentoprocurandocomprovarquedeviaservontadedaviúvaenviaromeninoaoteatro—que,afinal,tornara-seagorauma“escola”.D.Glóriaacabouconcordando;istoé,passouaservontadedelaqueBentinhofosseaoteatro.JoséDiasfoientãodesignadoparaacompanhá-lo,atendendo-seassimàvontadedomenino,queaparentementeforaquemoriginaratodaasituação.Digo“aparentemente”porqueomóvelrealdosacontecimentoseraoutro.TalveztivessesidoopróprioJoséDiasasugeriraBentinhoqueurgiairpelaprimeiravezaoteatro.Eraoagregadoquemtinha,defato,odesejodefazê-lo—earrumouumjeitodeirdegraça,pois,comonãoescapouaCapitu,aviúvapagara“aentradaaosdous”(grifomeu).

Seobservarmosessapassagemnaquiloqueelacontémdedescrição

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estrutural,deanálisedaspossibilidadesdeatuaçãopolíticadesujeitossubmetidosarelaçõessociaisprofundamentedesiguais,característicasdadominaçãopaternalista,vemosque:primeiro,emnenhummomentoasprerrogativasdavontadesenhorialsãoquestionadas—aocontrário,elassãoreforçadasereverenciadasacadapasso;segundo,aosdependentesrestaperseguirobjetivosprópriostentandoprovocarnossenhoresosmovimentosquelhesinteressamaeles,dependentes.Emoutraspalavras,impossibilitadosdelutarabertamenteporseusobjetivos,JoséDiaseseussemelhantestentamobterseusdesígniosfazendocomqueseussenhoresimaginemqueévontadedeles,senhores,fazeraquiloqueeles,dependentes,queremquesejafeito.

Açõesoutramaspolíticasdessetipopressupõemapossibilidadedoqueestouchamandoaquidediálogo—nosentidoliteral,detrocadepalavrasentresujeitos,enosentidometafórico,poistaistrocasocorrememarenasinstituídasdalutadeclasses.MeuargumentonestecapítuloéqueMachadodeAssis,emváriosdeseusescritos,testemunhoueanalisousistematicamenteopontodevistadodominado—oudodependente,oudosubalterno,ousejaláoquemais—emtaissituações,queeramrotineiraseagudamenteperigosasaomesmotempo.

Emsuma,avigênciadoenredodadominaçãopaternalistanãosignificavaqueossubordinadosestavampassivos,incapazesdeperseguirobjetivospróprios,impossibilitadosdeafirmaradiferença.Aocontrário,apesardoperigoconstantedeinvasãoerapinaporseusalgozes,edecertoporissomesmo,odesafiodeHelena,LuísGarcia,Capituetantosoutroseraafirmaradiferençanocentromesmodosrituaisdadominaçãosenhorial.Tratava-sedeumaartearriscada,queratificavaaideologiapaternalistanaaparênciamesmoquandolheroíaosalicerces.Artedesobrevivênciaemmeioàtiraniaeàviolência,exercidanocentrodoperigo,taldiscursopolíticodosdominadosenvolviaacapacidadedeatingirobjetivosimportantesutilizandodeformacriativa—ereforçando,aomenosaparentemente—osrituaisassociadosàprópriasubordinação.Tratava-sedaproduçãodeumoutrotexto,contratexto,queserevelavanasentrelinhas(masnãoaqualquerobservador),napiadatalvezingênua,noditochistoso,naambivalênciadaspalavras,naambigüidadedaintenção.EssaeraaartedodiálogoemMachadodeAssis.Passoacomentaralgunsoutrosexemplos.

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dehelenaaiaiágarcia

QuasetudooquehaviaadizersobreHelenanessecontextojáapareceunoprimeirocapítulo,eoleitorteráadivinhadoissomesmoaoacompanharaspáginasanterioreselembrardasconversasentreHelenaeEstácio.IssoabreviaocaminhoatéIaiáGarcia.Antes,porém,cumprefrisaraindaumououtroaspectodeHelena,paramostrarqueMachadodeAssistinhaum“plano”,digamos,napassagemdeumromanceaoutro.Seuobjetivoconsistiaemdesenvolverumainterpretaçãoconsistentedahistóriapolíticaesocialdopaísentreaproximadamente1850e1871,easmudançasnaartepolíticadosdependenteseramparteimportantedahistóriaquehaviadesercontada.

Comovimos,EstáciopoucoounadaentendedosmovimentosdeHelena.Ouseja,Helenaanalisaaideologiasenhorialepersegueobjetivosprópriospordentrodetalideologia,permanecendoporissoindecifrávelparaEstácio.OantagonismoentresenhoresedependenteséclaroepassíveldeanáliseparaHelena—amoça,afinal,estácientedafragilidadedesuaposiçãoetentaesculpiraprópriasobrevivênciaapartirdetalpercepção.TalvezomomentohistóricoretratadonoromanceajudeaexplicaraformacomoMachadodeAssisconstruiuapersonagemsenhorialprincipalnessetexto.Estamosnadécadade1850,períodoquenamemóriapolíticaconstruídanoséculoxixconfigurou-secomooapogeudoSegundoReinado.Asupressãodasrevoltasprovinciaisquehaviammarcadooperíodoregencialeadécadade1840,oarrefecimentodasdisputaspolíticascomaformaçãodosgabinetesdeconciliaçãodospartidos,oafastamentodoperigodeintervençãoinglesacomofimdotráficonegreiro,tudoissoserviuparaconstruiraimagemdepazeprosperidadedasdécadasde1850e1860(“otemposaquarema”),aomenosatéoadventodaGuerradoParaguaiedasprimeirasescaramuçasparlamentaressobre“aquestãoservil”—parausaroeufemismopreferidoàépoca.Porconseguinte,Estácioestá“satisfeitoconsigomesmo”,exercendocomoquenaturalmenteos“direitosedeveresquelhedavamaidadeeaclasseemquenascera”—“direitosedeveres”essesque“elenãocedianemesquecia”(H,cap.ii).Emoutraspalavras,Estácio,postadodiantedoespelhodaalcova,aparececomoorepresentantedeumadominaçãoincontestada,orgânica,virtuosa,abençoadapelareligião(padreMelchior)epolidapelaciência(omancebotinha“vontade”e“paixãodosaber”e“entregara-seàciênciacomardore

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afinco”;H,cap.ii).Apossibilidadedediscernirintuitodeverdadepolíticaesocialnaforma

comoEstácioédesenhadonoromancesereforçanaobservaçãodeseuantecessorimediatonoexercíciodasprerrogativassenhoriais.Emcontrastecomavirgindadeeacandidezdofilho,oconselheiroValetiveravidaamorosapoucocatólica,e“matronahouve,enãosóuma,queviuiraenterrarcomeleamelhorpáginadasuamocidade”(H,cap.i).Ocomportamentoamorosodesregradodoconselheiroestánaorigemdasinjustiçasesofrimentosnarradosnahistória(“nãosecolhemfigosdosabrolhos”;H,cap.xxiv);apesardaspromessasderegeneraçãofeitasváriasvezesaopadre,ovelhonuncaseemendara(“promessafeitanaareia;oprimeiroventodocoraçãoapagouaescritura”;H,cap.iv).

Essaimagempoucovirtuosatrazàlembrançaaleituraquegeraçõesposterioresfariamdoperíodohistóricoanterioraosanos1850,especialmentedoperíodoregencialnadécadade1830.Talépocateriasidomarcadaporpaixõespolíticasdesenfreadaseilegalidadesescandalosas,especialmentenoqueconcerneaotráficoafricano,que,oficialmenteabolidoem1831,foiretomadoemmeadosdosanos1830.3Ocontrabandodeafricanosprosseguiueintensificou-seatéanovaleideaboliçãode1850,contandosemprecomaconivênciadepolíticoseautoridadespúblicas.Comoconseqüência,milharesemilharesdeafricanos,introduzidosilegalmentenopaís,foramreduzidosàescravidãonoperíodo,e“reduzirpessoalivreàescravidão”eracrimeprevistonocódigocriminaldoImpério.Em1850,Helenatinha“dezesseisadezesseteanos”(H,cap.iii),oquesituariaseunascimentoem1833ou1834.Ocasoentreoconselheiroeamãedameninadatariaentãodofinaldadécadade1830,poisHelena“contavaseisanos”(H,cap.xxv)quandoSalvadorviajouaoSul,deixandoocaminhoabertoaoconquistadorimpenitentedoAndaraí.ÉtalvezimpossívelsaberseMachadotinhaemmentesemelhantesminúciasaocomporaspersonagens.Parececerto,contudo,eRobertoSchwarzjáodemonstrou,quehaviaapreocupaçãoderevelarverdadeshistóricasestruturais,porassimdizer,naformadeconstruiraspersonagens.Talpreocupaçãoincluíaatentativadedescrevereinterpretarasmudançashistóricasaolongodotempo—como,aliás,JohnGledsonjáodemonstrou—,eéissoqueexplicaabuscadocontrasteentreoconselheiroVale(décadasde1830e40)eEstácio(décadade1850).4

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EmIaiáGarcia,romancepublicadooriginalmenteem1878,anarrativasemoveostensivamenteparaosanosqueopróprioMachadopercebiacomodecisivosnacrisedopaternalismo—1866a1871—,sendoentãotraçadoumamplopaineldasmudançashistóricasdoperíodo.Noiníciodoromance,temosaexposiçãodouniversalismodalógicadedominaçãobaseadanaideologiadaproduçãodedependentes;emseguida,vemosomomentodeexplicitaçãodacriseeseudesenrolar,culminandonaexploraçãoumtantoretraída,ejáoutrotantocética,dasalternativaspossíveisparaumnovoordenamentosocial.Nessenovocontexto,noqualtensõeseantagonismosestãomaisevidentesparaossujeitos,osdependentescontinuamamostrardeferênciaesubordinaçãoaossenhores,enquantoprocuramlaboriosamentediscernirouinterpretarasreaisintençõesdosadversários.Operigocintilamaisemcadasituação,echisteseironiastornam-sedifíceis,poistalvezaprincipalnovidadedocenárioestejanofatodequeosdependentesseconfrontamcomumavontadesenhorialmaisconscientedesi,cientedaresistênciaaseusdesígniosedecididaafazervalerasuaautoridadeatravésdaastúciaemesmodafraude,nãohesitandoemviolentarossubordinados.

TudoissoestápresentedeformalapidarnaconversaentreLuísGarciaeValéria,logonocapítuloiideIaiáGarcia.Valéria,“viúvadeumdesembargadorhonorário”,masmulher“robusta”eainda“fresca”,chamaraLuísGarciaàcasacomointuitodeconvencê-loaaliar-seaelanacampanhaparaalistarofilhoJorgecomovoluntárionaGuerranoParaguai.Oassuntoéinopinado,eLuísGarcia,homem“céptico”,quebuscavaaindependênciapermanecendo“alheioàscousasestranhas”(IG,cap.i),malconseguedisfarçarasurpresaeaincredulidade:

—Sr.LuísGarcia,disseaviúva;estaguerradoParaguaiélongaeninguémsabequandoacabará.Vieramnotíciashoje?—Nãomeconsta.—Asdeontemnãomeanimaramnada,continuouaviúvadepoisdeuminstante.NãocreionapazqueoLópezveiopropor.Tenhomedoqueistoacabemal.—Podeser,masnãodependendodenós.—Porquenão?Eucreioqueéchegadoomomentodefazeremtodasasmãesumgrandeesforçoedaremexemplosdevalor,quenãoserãoperdidos.PelaminhapartetrabalhocomomeuJorgeparaqueváalistar-secomovoluntário;podemosarranjar-lheumpostodealferesoutenente;voltarámajoroucoronel.Ele,entretanto,resisteatéhoje;nãoéfaltadecoragemnemdepatriotismo;seiquetemsentimentosgenerosos.Contudo,resiste...—Querazãodáele?—Dizquenãoquerseparar-sedemim.

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—Arazãoéboa.(IG,cap.ii)Eisumdiálogonoqualarepresentantedopodersenhorialnãodizoque

realmentepensa,eodependentenãoacreditanaquiloqueescuta.Ambossabemperfeitamentequeéissomesmoqueestáocorrendoentreeles.LuísGarciapermanecedesconfiado,cauteloso,“comumpéatrás”,comosecostumadizer,procurandodecifrarasintençõesverdadeirasdeValériaportrásdaspalavrasquebuscamapenasencobri-las.Suasintervençõessãocurtas,eeleficaàespreitadeumapalavraoudeslizequerevelealgomaisconcretosobreosdesígniosdaviúva(“Nãomeconsta”,“Podeser”etc.).Aquelepatriotismoouinteresserepentinopelacousapúblicaéquenãohaviadeser;a“animação”deValériaaotratardoassuntoparecia“maissimuladaquesincera”(IG,cap.ii).MasLuísGarcianãopodeseatrever“aformularasuspeitaeadúvida”abertamente,buscandoentãoargumentarquenãosedeviainsistircomorapaz,seaelerepugnavaaidéiadeseparar-sedamãe.Obrigadaaaduziroutrasjustificativas,Valériareconhecehaver“umpoucodeinteressepessoal”naempreitada,sóqueomotivoreferidoéanecessidadedefazerdofilhoumherói,honrando“assimonomedeseupai”(IG,cap.ii).Omotivoalegadoénobre,masabsolutamenteimprovável(“algumhaveriaqueelanãoquiseraounãopuderarevelar”),eLuísGarciapareceadmiradocomoespetáculodecomoalguémpodiamentirtantopondoarazãodoseuprópriolado.Adificuldadedodiscursosinceroafiaaretóricadaviúva,queprosseguefalandoemconsideraçõesdeordem“superior”edemaisdissimulaçõesdogênero.

Odueloentreasenhôraeoaspiranteàindependênciaprosseguepormaisalgumaslinhas,numesgrimirconstantedeargumentoseperíciaverbal.Aoacompanharosmovimentosdadamasenhorilcom“osolhosagudosdasuspeita”,odesafiodoermitãodeSantaTeresapareceserodeexercitaraartederesistiremanterassimasuaautonomia,etalobjetivodependeempartedesuahabilidadeemnãodeixarasituaçãodescambarparaoconflitoaberto.Encurraladoàparede,semdesejaraderiràcampanhadeValériaparalevarofilhoàguerra,mastambémsemquerer“abertamenterecusar”,ebuscandomanter“apróprianeutralidade”,oque“erapuramentedifícil”,LuísGarciaacabacedendo:“Faço,disseelefrouxamente”(IG,cap.ii).Orecuoéestratégico—eleconcorda“frouxamente”,oqueequivaleaconcordardiscordando—,poisnãopodendomaisresistiraoassédiodaviúvasemmelindrarasuaprópria

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posição,océticobuscaganhartempopara“encaminhar-seasaberqualeraamolasecretadaaçãodaquelasenhora”,qualseriaa“vantagemespecialmentesua”queelaperseguianaquelenegócio.

Nojantardodiaseguinte,LuísGarciainterpelaofuturovoluntárioedescobrequeoamordomancebopormulher“decertaespécie”(IG,cap.ii)estavanaorigemdasdesavençasentremãeefilho.Surpreende-se,porém,aoconstataroalcancedadeterminaçãodeValérianoassunto.ElahaviaditoaJorgequeeraopiniãodeLuísGarciaqueeledeviasealistarparairaoParaguai.Océticosereprimeesilenciadianteda“piafraudedeValéria”.Amentirarevela-sedenovonocentrodoprocedimentodaviúvaquandoelainduzLuísGarciaàconclusãodequeoamordeJorgeerainaceitávelporquesetratavadeumamulhercasada(“Suponha...quesetrata...deumasenhoracasada?”;IG,cap.ii).Dessavez,LuísGarcianãopodeperceberafraude,eficaassimcomumentendimentonecessariamenteincompletodetodaasituação.Dequalquerforma,otemadafalsificaçãonocernedasideologiasdesustentaçãodopodereracaroaMachado,nesseeemoutrosescritos,etodoslembraremosdofraudulentoesboçogenealógicodafamíliaCubasnoterceirocapítulodasMemórias.OpaideBrás,queinventaraagenealogia,acabaraacreditandosinceramentenela—“umaimaginaçãograduadaemconsciência”,comodiriaBrás(BC,cap.xliv).Damesmamaneira,LuísGarcia“nãoduvidavadoempenhopatrióticodeValéria”,massabiaqueasenhôraesperava“algumavantagemespecialmentesua”comonegócio(IG,cap.ii).Oresultadodessaspequenasfiligranasnosenredosdosromances—apartirdeBrásCubas,taisfiligranassãooenredodosromances—émostrararelatividadedasideologiasdesustentaçãodopoder,suatransitoriedade.Taisideologiassãoinvençõesdatadas,surgidasemprocessoshistóricosespecíficos,eportantopassíveisdecrítica,elogodedesnaturalizaçãoesuperação.Submetidaàcrítica,aideologiapaternalistaécomoomedo,“umpreconceitodosnervos”,e“umpreconceitodesfaz-se;bastaasimplesreflexão”,comodisseHelena(H,cap.vi).

EmIaiáGarcia,osacontecimentossedesenrolamemmomentospolíticosdecisivos,eseriapossíveldemonstrarahipótesedequehánoromanceumahistóriaexpostaouescritapormeiodomovimentodaspersonagens,oudasrelaçõesquesetecementreaspersonagensaolongodotempo(asaçõescomeçamem1866evãoatéoiníciodosanos1870,sendoqueacronologiaécuidadosamentemarcadanotextoatéprecisamentesetembrode1871).Mas

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deixoparadesenvolverissoemoutraocasião,sehouver,eéclaroquesetratariaapenasdeexplorartrilhascujaexistênciaJohnGledsonseencarregoudeindicar.OquemeinteressanomomentoéobservarqueemIaiáGarciaoantagonismoentresenhoresedependenteséexplícitoeclaramentepercebidopelossujeitosenvolvidos.NocasododiálogoentreValériaeLuísGarcia,quevimosanalisando,issoseevidencianaprópriaformadeintervençãodonarradordahistória.NosdiálogosentreEstácioeHelena,nocapítulovideHelena,onarradornãoémuitodidático,eraramenteinterfereparaexplicaraoleitorosignificadogeraldaquiloqueestálendo.OssentidoscríticosdosmovimentosdeHelenaparecem-meevidentes,massuapercepçãoexigedoleitorquedecodifiqueporsimesmoamaiorpartedostrejeitosegracejosqueconstituemaartedaresistêncianarapariga.Eleprecisadesconfiar,depoisentender,queaideologiadeHelenanãoéamesmadeEstácio,apesardasabundantesaparênciasemcontrário.Oantagonismoéinerenteàsociedade,porémpassadespercebidoaosincautos,eaEstácioaindaépossívelaautoconfiançaqueofazquaseinteiramenteobtusoaoqueocorreàsuavolta.Enfim,sebobear,oleitorentracomo“estácio”nessahistória—“sujeitotolo,fácilderoubar”,segundoosentidoatribuídoaessapalavranocuriosíssimo“vocabulário”intitulado“Gíriadosgatunoscariocas”,publicadonoiníciodoséculoxx.5EmIaiáGarcia,aocontrário,onarradorauxiliaconstantementeoleitor,descrevendoasestratégiasepensamentosocultosdossujeitosenquantoelesdesempenhamseuspapéisdiantedosoutrosatoressociais.ÉverdadequevemosaquimuitodasjogadaseartimanhasdeValéria,ealgumacoisadeJorge,masoquehádemelhoremaissistemáticonoromanceémesmooestudodopontodevistadosdependentes,dasfiligranasquesãoobrigadosafazer,emmomentosdecriseemaiorexplicitaçãodasdiferenças,paraconseguirseusobjetivoseescaparàviolênciaeàhumilhação.

bráscubaseasmulheres

BrásCubaseDomCasmurro,herdeirosdesenhoresepossuidoresdeterraseescravos,elesmesmossenhoresepossuidoresdeescravoseconfortáveispropriedadesnosagitosdaCorte,sãoosnarradoresdesuasprópriashistórias.EmMemóriaspóstumasdeBrásCubas,o“defuntoautor”,narradorvivíssimoaliás,aproveita-sedesuacondiçãoparacontarepisódiosdesuavidacom

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independênciaesinceridade,pois“afranquezaéaprimeiravirtudedeumdefunto”.Desafrontadodomundo,desdenhosodasopiniõesalheias—“nãohánadatãoincomensurávelcomoodesdémdosfinados”(BC,cap.xxiv)—,Bráspodeagoraconfessar“lisamenteoquefoi”,“estender”aosoutrosasrevelaçõesqueantessópodiafazeràprópriaconsciência.Osentidopolíticodessascaracterísticasdonarradorépotencialmenteexplosivo:afinal,umlegítimorepresentantedaclassesenhorial,emvidaumherdeiroecontinuadordesuasprerrogativas,resolveseexporabertamente,dizeraverdadesobresimesmoe,porconseguinte,sobreaquelesqueaeleseassemelhamquantoàs“tradiçõesdefamília”,“cabedais”e“relaçõesadquiridas”.Bráséàsvezestãoarrojadoquechegaareconhecer,aomenosemtese,ocaráterdesestabilizador,quasesubversivo,desuaconduta:comolheensinaraJacóTavares,“averacidadeabsolutaeraincompatívelcomumestadosocialadiantado,e[...]apazdascidadessósepodiaobteràcustadeembaçadelasrecíprocas”(BC,cap.lxxxvii).Dequalquerforma,Brásprofessacombinarfranquezaegalhofa,esendoaverdade,pordefinição,graveeatésisuda,oleitordasMemóriaspodesempreperguntarseoquetalnarradorconfessasobresimesmodizalgodesiouserveantesparaembaçaravisãodosoutros—“limpaosóculos[...]—queissoàsvezesédosóculos”(BC,cap.xxxiv).

EmMemóriaspóstumasdeBrásCubas,MachadodeAssisreescreveuHelena.Amaiorpartedasaçõessedesenvolveentre1840e1869,eMachadocifraosignificadodoromancenatrajetóriadeBrás,queéoBrasilqueviveraaté1869,eentãoagonizara,morreraeforaentregueaosvermesem1870e1871,anosdeintensamovimentaçãopolíticaemtornodaquestãodo“elementoservil”.6AssimcomoHelena,asMemóriassereportamaumperíododehegemoniapraticamenteincontestedopaternalismo,dapolíticadedominaçãoassentadanaimagemdainviolabilidadedavontadesenhorial.EstácioeBrássãoirmãosnahistória,nutridoseungidosnoexercíciodasprerrogativasdeumaclasse,flores“dessaterraedesseestrume”,parausaraautodescriçãojocosadoherdeirodosCubas(BC,cap.xi).AdiferençaéqueEstácionosénarrado—muitasvezesatravésdeHelena—,enquantoBráspretendenarrarasimesmo.Assim,comovimos,éadonzelaquemnosexpõeaideologiadeEstácio,especialmentenoquedizrespeitoaessacapacidadedeversemprenasaçõesdosoutrosaexpansãodesuaprópriavontade.ValeparaEstáciooqueBrásobservaracertavezarespeitodopai:aoolharosoutros,“Elenãovianada;via-

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seasimesmo”(BC,cap.xii).Se“omeninoépaidohomem”(BC,cap.xi),BráséfilhodeEstácio.Ambos

compartilhamafilosofiadapontadonariz.Aoruminarcertavezquestõesobscurasdefilosofia,Brásélevadoaquestionarumateoriadodr.Pangloss,segundoaqual“onarizfoicriadoparausodosóculos”(BC,cap.xlix).Aexplicaçãoverdadeiraedefinitivaparaaexistênciadesseórgãoencontra-senaobservaçãodocostumedofaquir,quegasta“longashorasaolharparaapontadonariz,comofimúnicodeveraluzceleste”.Osegredodofaquirestánofatodeque,aofincarosolhosnapontadonariz,eleperdeo“sentimentodascousasexternas”,desvincula-sedaTerra,“dissolve-se,eteriza-se”.Brásachapossívelconstatarqueafaculdadedeconcentrar-seassimtãointensamentenapontadonariznãopertenceaofaquirsomente;é“universal”,tendocadahomema“necessidadeepoderdecontemplaroseupróprionariz”.Paraveraluzceleste,dissolver-senoimpalpável,comoofaquir?Decertoquenão;aocontrário,paraBrásacontemplaçãodonarizconcentrapoder,poispermiteaeliminaçãodas“cousasexternas”—istoé,onão-reconhecimentodeatoreseaçõespolíticasqueexprimemantagonismoemrelaçãoàsuavisãodemundo.Paranãodeixardúvidasobreametáforadedominaçãopolíticaesocialcontidanessapassagem:oprincipalefeitodacontemplaçãodonariz“éasubordinaçãodouniversoaumnarizsomente”,etalefeito“constituioequilíbriodassociedades”(BC,cap.xlix).ParaBrásacontemplaçãodonariznãoéa“sublimaçãodoser”,comoparaofaquir,masoprópriocentrodeumserpolíticoespecífico,historicamenteconstituídoedatado,equepodemosapelidar,porcomodidade,declassesenhorial,vivendooperíododeapogeudeseupodereprestígiosocialnoSegundoReinado.

SeEstácioeraautoconfiante,“satisfeitoconsigomesmo”(H,cap.ii),Brásnãodeixapormenos,ecompraz-seemexplicarrepetidamenteaoleitorcomopersonagenseacontecimentosdanarrativajustificam-sesomentelevando-seemconsideraçãoosseuscaprichosousupostasnecessidades.Veja-se,porexemplo,aidéiadearrumarumacasinha,comalcoviteiraetudo,parapermitirseusencontrossecretoscomaamante,mulhercasada,irresistívelVirgília.Brásachalogoacasinha,“expressamentefeita”(BC,cap.lxvii),numrecantodaGamboa,jardimnafrente,trepadeiranoscantos,mistério.Emseguida,passaadivagarsobreosentidodoesconderijo.Àprimeiravista,temosapenasosdelíriosdepossedomoço:amantedemulhercasada,acasinhadaGamboalhe

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davaa“aparênciadeposseexclusiva”,“dedomínioabsoluto”.Masasdivagaçõesevoluemrapidamenteparaaatribuiçãodeumsignificado“social”,porassimdizer,paraacasinha;aomenos,alinguagemeosconceitosutilizadosexprimemvigorosamenteomundosonhadosegundoosparâmetrosdaideologiapaternalista(ousegundoamodafilosóficadacontemplaçãodonariz).Numamesmafrase,háatransiçãocompletadoreferencialpessoaledomésticoparaaafirmaçãodoprincípiogeraldedominaçãosocial:

Acasaresgatava-metudo;omundovulgarterminariaàporta;—daliparadentroeraoinfinito,ummundoeterno,superior,excepcional,nosso,somentenosso,semleis,seminstituições,sembaronesas,semolheiros,semescutas,—umsómundo,umsócasal,umasóvida,umasóvontade,umasóafeição,—aunidademoraldetodasascousaspelaexclusãodasquemeeramcontrárias.(BC,cap.lxvii;grifomeu)AsMemóriasreescrevemHelenanãoapenasnoscomentáriosgerais,

estruturais,sobredominaçãosocial.Hátambémaquiaatençãoparaoprocesso,apreocupaçãoemdescrevertransformaçõeshistóricas.TraceiatrásalgunscontrastesentreoconselheiroValeeEstácio,asduaspersonagenssenhoriaispredominantesemHelena,procurandosugerirquesesucediamnotempocomointuitodemetaforizarsentidosatribuídosàhistóriapolíticaesocialdopaísnasdécadasde1840e1850.Nessaperspectiva,BrásenfeixaasduaspersonagensdeHelena.Denovo,oadultériorepresentaumperíodohistóricodeturbulênciapolíticaedevigênciadailegalidadeconsentidadotráficonegreiro.OromancedoconselheiroValecomamãedeHelenacomeçaranofinaldadécadade1830,prosseguindonosanosseguintes;osamoresclandestinosdeBráseVirgíliaocorreramduranteadécadade1840.Tambémsignificativamente,oanode1850,noqualocorreuaaprovaçãodaleiqueresultounaextinçãodefinitivadotráficoafricano,aparececomodecisivonosdoisromances.OconselheiroValemorreuemabrilde1850;e“matronahouve,enãosóuma,queviuairenterrarcomeleamelhorpáginadasuamocidade”.Ouseja,conselheiroematronasretiram-sedecenaparadarlugaraojeitoplácido,matemático,quaseassexuado(ousexualmentereprimido),deEstácio.ApósofimdoidílioamorosocomVirgília,Brásaparecetentandoaregeneraçãopormeiodocasamento,em1850;porémanoiva,Nhã-loló,falecevítimadaprimeiragrandeepidemiadefebreamarela.Aassociaçãotemáticaentrefebreamarelaeregeneraçãoésignificativa:aepidemiadefebreamarelade1850ajudouaaprovaraleideaboliçãodotráficodeafricanosno

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parlamento,poiso“infamecomércio”erasuspeitodehaverintroduzidooflagelonopaís.7Naverdade,mesmoHelenapodetersidovitimadapelaepidemiaquecomeçouem1850,apesardenãohavernoromancemençãoexplícitaàfebreamarelaeseumaisterrívelsintoma,o“vômitopreto”(oquecertamentenãoseriadebom-tomreferir);diz-seapenasque“Afebre[...]tomaracontaenfimdapobremoça”(H,cap.xxviii).NasMemórias,cujosacontecimentosnarradosseestendempeladécadade1850,asalusõeshistóricascontinuamcomumaatençãoobsessivapelodetalhe:duranteoGabineteParaná,odaconciliaçãodospartidos,BrásCubas,jáentãodeputado,sobeàtribunaparaproferirseudiscursosobreotamanhodabarretinadaGuardaNacional—queeraanti-higiênica,segundoele(BC,cap.cxxxvii).AexperiênciapolíticadaconciliaçãodospartidosveioarepresentaraprópriapacificaçãodopaíseoapogeudoSegundoReinado,navisãodehistoriadoresdoOitocentos;8aalegoriadeMachado,todavia,pareceapontarparaainsipidezdadiscussãopolíticanoperíodo.Emsuma,seemHelenatemosumEstáciovirtualmenteassexuadoassumindoasprerrogativassenhoriaisapartirde1850,nasMemóriasvemosBrás,àmesmaépoca,discutindoosexodosanjosnoparlamento.

Enfim,reafirmoqueasMemóriasreescrevemHelena.NãoéàtoaqueBrás,ovivíssimoBrás,émuitavezum“estácio”comasmulheres.ElejamaisconseguedobraroorgulhodeEugênia,“aflordamoita”,coxaebela,assimcomoEstácionãodobraasuaEugênia,noivaquelhearranjaram,“umadasmaisbrilhantesestrelasentreasmenoresdocéufluminense”(H,cap.v).EstácionãoobtémtampoucoasubmissãodeHelenanosmomentosdecisivosdodramalhãoquesedesenrolaentreosdois,assimcomoJorgenuncadomaoorgulho“fera”(IG,cap.xvii)deEstela.NasMemórias,asmulheresfazemgatoesapatode“umgalhodaárvoreilustredosCubas”(BC,cap.xliv),amanteautoconfiante;assimcomoHelenafizeragatoesapatododonzeldoAndaraí,queera“satisfeitoconsigomesmo”;assimcomoameninaIaiáGarciapintaraebordaracomJorge,aomesmotempoemquefaziaomancebopensarqueela,IaiáGarcia,era,imaginem,“suaobra”(IG,xiv).Marcela,primeiranamoradinhadeBrás,devora-lheoscontosdaherançapaterna,enquantooguapocavalheiropensasereleadevorá-la.VirgíliatraiomaridocomBrás,etraiBráseomaridocomoutros“peraltas”queselheapresentam.Antológico,aesserespeito,éocapítulolxxvii,intitulado“Entrevista”.Ocapítulonarrauma

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conversaentreBráseVirgília;istoé,temosumdiálogoentreohomempossessivoesuperioreamulhersubmissaecordata,comoéderigor;ouentreoamanteciumentoeamulheroblíquaedissimulada,comoédepraxe.Acenaéumarrufoentrenamorados.Virgília“valsaraduasvezescomomesmoperalta”nobailedaantevéspera.Brásfulminaraaamantecomoolhar;mostrou-se-lheindiferenteorestodafesta;cometeraadesfeitadenãocompareceraocháoferecidoporLoboNeves,omaridodeVirgília.AoentrarnacasinhadaGamboanavezseguinte,Virgíliadizia-sezangadacomotratamentorecebido.AosaberdomotivodocomportamentodeBrás,ficoupasmada.“Bocasemi-aberta”,“sobrancelhasarqueadas”,“estupefaçãovisível”,Virgíliaabanouacabeça,incrédula,emofoudociúmedomancebo:“Ora,você!”.Tudoterminouemgalhofa,eBrás/Estácio,convencidodasvirtudesdaamante,e“satisfeitoconsigomesmo”,concluidoepisódio:“Eraclaroquemeenganara”.Fraseambígua,poismostraBrássegurodequeseenganaraaopensarqueVirgíliaflertaracomoperalta;esugerequeVirgíliaenganaraBrásflertandocomoperalta.

Talvezahistóriaded.Plácida,amoradoradacasinhadaGamboa,intermediáriadosamoresdeBráseVirgília,condense,numcasoextremo,oargumentoquebuscoapresentarparaasMemórias:porumlado,ojeitoabusadoeautoconfiantedeBrás,seuscaprichosearbitrariedades—ousuavolubilidade,comoprefereSchwarz—registramainterpretaçãohistóricadequeaclassesenhorialviviaoaugedesuahegemoniapolíticaeculturalnaprimeirametadedoSegundoReinado;poroutrolado,anarrativadeBrásdeixapassarmuitodasoposiçõeseresistênciascotidianasaseupodereinfluência,semqueelepercebanecessariamenteoqueestáocorrendo.Emsuma,d.PlácidaéprovavelmenteadependentemaishumilhadaetripudiadanahistóriacontadaporBrás;aindaassim,cabefiltrarasaçõespolíticaspossíveisàalcoviteirapormeiodasfiligranasnarrativasdo“defuntoautor”.

D.PlácidaforacostureiraeagregadanacasadeVirgília,porquemtinha“verdadeirafascinação”(BC,cap.lxvii).Mulheresforçada,trabalhadora,aceitaoofíciodealcoviteirapornecessidade,porémcomcertovexame—“tinhanojodesimesma”,conformeonarrador(BC,cap.lxx).Brásesforça-sepor“angariá-la”,procurandoobter-lheaconfiança,aomenosabenevolência.InventaumahistóriafantásticasobreoposiçõesfamiliaresaoamorentreeleeVirgíliaquandoamoçaeraaindasolteira,eacreditapiamentequeaalcoviteira

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acreditarapiamentenahistória“pornecessidadedaconsciência”(BC,cap.lxx).AcabautilizandooscincocontosderéisqueacharaembrulhadosemBotafogoparafazerumpecúlioàmulher;estaagradece“comlágrimasnosolhos”,epassaarezarporeletodasasnoites,“diantedeumaimagemdaVirgem”,tudosegundocrêoescritordefunto.Bráspensahaver-lhecompradoassimosescrúpuloseadiscrição.

AspáginasdeBrássobred.Plácidasãominuciosodiscursodedemonstraçãodafilosofiadacontemplaçãodonariz.Aoruminarumavezmaisquestõesobscurasdefilosofia,Brásenfrentaodesafioderefletirsobreosentidodavidaded.Plácida.Suaprimeirarespostaéqueamulhervieraaomundo

paraqueimarosdedosnostachos,osolhosnacostura,comermal,ounãocomer,andardeumladoparaoutro,nafaina,adoecendoesarando,comofimdetornaraadoeceresararoutravez,tristeagora,logodesesperada,amanhãresignada,massemprecomasmãosnotachoeosolhosnacostura,atéacabarumdianalamaounohospital;foiparaissoquetechamamos,nummomentodesimpatia.(BC,cap.lxxv)

Ouseja,nãoépossívelatribuirqualquersentidoàvidaded.Plácida.Malresolvidaassimaquestão,Brásvoltaaseocupardelacapítulosdepois.D.PlácidaacabarademorrernaMisericórdia,paraondeBrásalevaraapósencontrá-la“ummolhodeossos,envoltoemmolambos,estendidosobreumcatrevelhoenauseabundo”:

Outravezpergunteiamimmesmo,comonocapítulolxxv,seeraparaistoqueosacristãodaSéeadoceiratrouxeramDonaPlácidaàluz,nummomentodesimpatiaespecífica.Masadvertilogoque,senãofosseD.Plácida,talvezosmeusamorescomVirgíliativessemsidointerrompidos,ouimediatamentequebrados,emplenaefervescência;talfoi,portanto,autilidadedavidadeD.Plácida.Utilidaderelativa,convenho;masquediachoháabsolutonessemundo?(BC,cap.cxliv)Ummassacre,umtriunfototaldavolubilidadesenhorial,talaimpressãoque

ficadaleituradessaspassagenssobred.Plácida.AconclusãofinaldeBráséqueapobremulhervieraàexistênciaporqueforanecessidadedele,Brás,queelaviesse.As“cousasexternas”sóestãonomundoquandoconfirmamaideologiadeBrásesupremassuasprecisõesmateriaiseespirituais.Virgília,numoutroexemplo,“éotravesseirodoseuespírito”;bempesadasascousas,“nãoeraoutraarazãodaexistênciadeVirgília”(BC,cap.lxii).Emsuma,seBrásestáolhandoagoraparadeterminadaárvore,aárvoreexiste;seeleviraeolhaemdireçãooposta,atalárvoredeixadeestarnomundo.Aochegarnesseponto,

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mudoderumooudescubrosemelhançasprofundasentreideologiadesenhoresdeescravoseepistemologiarelativistapós-moderna.

Definitivamente,mudoderumo.AquiloqueBrásdizserd.Plácidanãopodedizertudosobred.Plácida.Brásreconheceissomesmo,àsvezes—eaindaqueimperfeitamente—,talvezdevidoàperspicáciaesinceridadeadquiridasnoestudodageologiadoscampossantos.Apesardehumilhada,tripudiada,reduzidaaoestadodamaisabjetadependência,d.Plácidaparticipadojogopolítico,ensejamovimentosparaobterdesígniospróprios,paraprovocarnossenhoresaçõesouinterpretaçõesqueinteressamaela,alcoviteira.ClaroqueBráseVirgíliadependiamvisceralmentedadiscriçãoefidelidadedaagregada;umpequenomovimentocontráriodamulhereláseiamparaobrejoosamoresclandestinosdosdois,quiçácomhonrademaridotraídolavadacomsangue,“seosanguelavassealgumacousanessemundo”(BC,cap.xxxiv).Brásachavaquecompravaaconsciênciaeafidelidadedaagregada;aagregadatalveztivesseaprendidoaperseguirobjetivosprópriosfazendocomqueBrásacreditasseprecisamentenisso.Jámencioneiumpecúliodecincocontosobtidopelamulher.Noutraocasião,d.Plácidarecusamaisumavezoconvitedosconcubinosparaqueelasesentecomelesàmesadoluncheon.Virgíliapareceofendida,dizqued.Plácidanãolhetinhamaisafeição.Arespostadaalcoviteiraésegurarasmãosde“Iaiá”eolhá-la“fixamente,fixamente,fixamente,atémolharem-se-lheosolhos,detãofixoqueera”.Brásretribui-lheademonstraçãodeafetodeixando-lhe“umapratinhanaalgibeiradovestido”.OleitordasMemóriassóapreended.Plácidadispondo-sealero“defuntoautor”acontrapelo.Éclaroqueacenaéambígua:aoolhar“fixamente,fixamente,fixamente”paraasenhora,aalcoviteiraesforçava-separaterlágrimasnosolhos,provocandoassimnossenhoresainterpretaçãoquelheinteressavaaela—lágrimasdeafeição,pagascompratinhanaalgibeira(BC,cap.lxxiii).9Issoépolíticadedependentes,exercidaàsuamodadeles,pordentrodaideologiasenhorial,mesmoporque,namaiorpartedasvezes,nãohaviaalternativaparaescaparàhumilhaçãoeàviolência.

Oargumentoficamaisclaroaoacompanharmosaatuaçãoded.Plácidanasrusgasentreosamantes.Certavez,BráschegacommaisdeumahoradeatrasoaGamboa.Virgíliasefora.D.Plácida,“aflitadeveras”,andadeumladoparaooutro,suspira,abanaacabeça,repreendeoamanterelapso:“istonãosefaz”.Outrossim,descreveareaçãodeVirgílianoepisódio:“queelaesperaramuito,

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queseirritara,quechorara,quejuraravotar-meaodesprezo,eoutrascousasmais”.Tudoissoaalcoviteirapronunciaemlágrimas.Logoemseguida,assumeopapeldeintermediárianareconciliaçãodocasal.Aoqueparece,tudoseesclarece:

Trêsdiasdepois,estavatudoexplicado.SuponhoqueVirgíliaficouumpoucoadmirada,quandolhepedidesculpasdaslágrimasquederramaranaquelatristeocasião.NemmelembraseinteriormenteasatribuíaD.Plácida.Comefeito,podiaacontecerqueD.Plácidachorasse,aovê-ladesapontada,e,porumfenômenodavisão,aslágrimasquetinhanosprópriosolhoslheparecessemcairdosolhosdeVirgília.Fossecomofosse,tudoestavaexplicado...(BC,cap.ciii)Tudoexplicado?NãoaslágrimasdeVirgília,quedecertonãochorara,como

talveznãotenhaseirritado,nemjuradoBrásaodesprezo.Quemsabesequeresperaramuitotempopelomancebo.AexplicaçãodaslágrimasdeVirgíliaestavaemd.Plácida,masnãopelosimplesmotivodosolhosembaçados,comoimaginaBrás:aimpressãoqueficaéqueaalcoviteiramanipulavaassituaçõesdecriseentreosamantes,tornando-asmaisagudas,paraemseguidaarrogarasiumpapeldecisivonareconciliação.Pode-seentãoimaginarmaispratinhasvoandodaalgibeiradeBrásemdireçãoàd.Plácida,emimosdiversospartindodeVirgília.OpróprioBrásreconhecequeacaseiramentiaàsvezes,“porqueaumeoutroreferiasuspirosesaudadesquenãopresenciara”(BC,cap.ciii).Emsuma,atéaalcoviteira,pobred.Plácida,tripudiada,humilhada,massacrada,subordinadaaonarizdeBrás,tinhaopoder“universal”decontemplaropróprionariz—ouseja,deencetardiálogospolíticoscomseusalgozeseperseguirobjetivosprópriosnocernemesmodoexercíciodavontadesenhorial.

aexperiênciadaderrota

EmDomCasmurro,MachadodeAssisvoltaaabordarastransformaçõeshistóricasquehaviamsidocentraisàrealizaçãodeIaiáGarcia.Osriscospotenciaisquecorremosdependentesnessesdiálogospolíticoscotidianoséumdostemasaestruturaroromance.Nomomentoemqueosdetentoresdasprerrogativassenhoriaiscomeçamadesconfiardaautenticidadedosmovimentosdossubordinados—passandoaatribuir-lhescapacidadederepresentação,deteatralização—,entãoficamprestesaadotaravisãodequeessessãosempreeuniversalmentefalsos,enganadoresementirosos.Dom

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Casmurroéumaalegoriadaexperiênciadaderrotadetodoumprojetodedominaçãodeclasse.Onarrador,DomCasmurro,escrevendonofinaldadécadade1890,estáempenhadoemencontrarjustificativasparaoseuempobrecimentoedecadênciasocial.Nãoasencontraemoutrolugarsenãonoantagonismoimpenitente,masentãoinsuspeitado,queseussubordinadoslheteriamfeitoaolongodavida.Nahistóriainteressadaeteleológicaquecompõe,DomCasmurroreinterpretadiálogosesituaçõescotidianas,reorganizandooseuentendimentodasexperiênciaspassadas.Ele,quandoaindaeraingênuo,aindaBento,Bentinho,nãopuderaperceberamalícia,aperfídia,afalsidadedecadamovimentodeCapitueoutrosdependentesàsuavolta.Incapazdelidarcomasdimensõespolíticasdaprópriaderrota,restaconstruirparasiolugardevítima,esequeixardatraiçãoeingratidãodaquelesmesmosaquemteriadispensadobenefícioseproteção.Emsuma,apercepçãodequehaviaartederesistênciaemCapitusobeàconsciênciadeBentinho/DomCasmurro,eláseconfiguracomofalsidade,traição.Estavaaíoperigodecadasituação,decadadiálogopolíticocotidiano.Capitunãopodeentãoescapardesofrerosataqueseasanhavingativadomarido,queiraDeustraído,deDomCasmurro.10

DomCasmurro,onarradordoromance,éconcebidoemmarçode1871—logoapósasubidaaopoderdoGabineteRioBranco,queaprovariaaLeidoVentreLivre—,noexatoinstanteemqueosolhosderessacadeCapitutragamocadáverdeEscobar,provocandoasuspeitadeadultérionoherdeirodosSantiago(DC,cap.cxxiii).AlémdeEscobar,portanto,éBentinhoquemmorrenessemomento.Aqui,maisumavez,odramadomésticorelatadoémetáforapolítica.Torturadopeladerrotapolíticacujomaiorsímbolotalveztenhasidoaaprovaçãodaleide1871,procurandorefletirsobresemelhanteexperiênciadentrodoshábitosdepensamentodaclassesenhorial,DomCasmurroempunhaapenaparademonstrarqueforavitimadopelaingratidãodosdependentes.ÉcomoseEstáciotivessefinalmentecompreendidoquehavia“cousasexternas”,algoparaalémdocomprimentodopróprionariz,e,incapazdelidarcomsemelhanteevidência,passasseadenunciaraperdadesipróprio,nostálgicodomundoquesefora—“Emtudo,seorostoéigual,afisionomiaédiferente.[...]faltoeumesmo,eestalacunaétudo”(DC,cap.ii),afirmaDomCasmurrologoaoiniciaranarrativa.Osdependenteshaviamcausadoasuaderrota;estiverainadvertidamentedesarmadoeindefesodiantedeles.Sendoassim,restaaDomCasmurroconstruirBentinhocomoumEstáciolevadoao

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paroxismo.Paracompletaroquadro,CapituéediçãorevistaeampliadadasastúciasdeHelena—ou,maisrigorosamente,deIaiáGarcia,queéversãodesabrochadadeHelena.

BastaráfocalizarocapítuloxviiideDomCasmurro,intitulado“Umplano”,paracompreenderametodologiaeapolíticadonarradornaconstruçãodeBentinhoeCapitu.BentinhoacabaradecontarànamoradaqueJoséDias,oagregado,puxaraconversacomsuamãesobreanecessidadedecumprirapromessadeenviarofilhoaoseminário.Capitufaz-se“cordecera”,meteosolhosemsi,todaparada,“umafiguradepau”.Bentinho,porseuturno,rompeembravatas,jurando“pelahoradamorte”quenãoiriaparaosemináriopormaisqueteimassemcomele.Capituacabaexplodindocontrad.Glória,aquemchama“Beata!carola!papa-missas”.Taisimpropériossãoevidentementechocantes,desferidosassimnasbochechasdeumembriãodepadre.Emresposta,Bentinhorepeteosjuramentos,prometedeclararemcasanaquelamesmanoiteque“pornadanestemundo”iriaparaoseminário.Melhorbeberodiálogoàfonte:

—Você?Vocêentra.—Nãoentro.—Vocêveráseentraounão.Calou-seoutravez.Quandotornouafalar,tinhamudado;nãoeraaindaaCapitudocostume,masquase.Estavaséria,semaflição,falavabaixo.Quissaberaconversaçãodaminhacasa;eucontei-lhatoda,menosapartequelhediziarespeito.—EqueinteressetemJoséDiasemlembraristo?perguntou-menofim.—Achoquenenhum;foisóparafazermal.Éumsujeitomuitoruim;mas,deixeestarquemehádepagar.Quandoeufordonodacasa,quemvaiparaaruaéele;vocêverá;nãomeficauminstante.Mamãeéboademais;dá-lheatençãodemais.Pareceatéquechorou.—JoséDias?—Não,mamãe.—Chorouporquê?—Nãosei;ouvisódizerqueelanãochorasse,quenãoeracousadechoro...Elechegouamostrar-searrependido,esaiu;euentão,paranãoserapanhado,deixeiocantoecorriparaavaranda.Mas,deixeestar,queelemepaga!(DC,cap.xviii)Numprimeiromomento,DomCasmurrodescreveoestadode

insubordinaçãodeCapitu,meninaque“nãotemvintém”,cujafamíliadeviafavoresetinhadívidasdegratidãoparacomosSantiago.Oleitordeveficarimpressionadocomaaudácia,comacapacidadederevoltadadependente:Capitublasfema,debochados“costumesreligiosos”ded.Glória;mostra-seingrataaoproferir“nomestãofeios”contrasenhoradefamíliaàqualasua

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própriadeviaproteçãoefavores;finalmente,ridicularizaaspromessasderesistênciadeBentinho,quesabiasubmetidoàautoridadedamãee“aosdireitosedeveres”da“classeemquenascera”(H,cap.ii).Nãobastassetantodesrespeitoavaloresquedeviamser“osseus”,háaformaassustadoraadotadaporCapitu:os“impropérios”chegamaosberros,comoquemparece“dispostaadizertudoatodos”;cerraosdentes,abanaacabeça,nãodeixaqueBentinhodefendaamãe.Este,coitado,trêmuloeassustado,permanecejurando“pelavidaepelamorte”quenãoentrarianoseminário.

Atordoadooleitor,malacreditandoem“tamanhaexplosão”,DomCasmurromudarepentinamentedeenfoque.Passaadescrevereanalisarasofisticaçãopolítica,acapacidadedeatuaçãoestratégicadamenina.Agoraséria,semaflição,falandobaixo,CapitupedeaBentinhoquelhecontetodaaconversaqueouviraatrásdaporta;quersaber“circunstâncias”,“asprópriaspalavrasdeunsedeoutros,eotomdelas”.Emseguida,fazperguntasclaramentedestinadasadescobriraintençãodossujeitos,aavaliaraposiçãoeosmovimentosdaspersonagensenvolvidas.Écomose,instauradaacrise,Capitusentasseàmesaparajogarxadrez,comoantesfizeraIaiáGarcia:“Dasqualidadesnecessáriasaoxadrez,Iaiápossuíaasduasessenciais:vistaprontaepaciênciabeneditina;qualidadespreciosasnavida,quetambéméumxadrez,comseusproblemasepartidas,umasganhas,outrasperdidas,outrasnulas”(IG,cap.xi).

“Vistapronta”,capacidadedeentendernumrelanceosmovimentospossíveisdosadversários.EnquantoCapituprocurareunirelementosparadesvendarintenções—“queinteressetemJoséDiasemlembraristo?”—,Bentinhoprocedecomoumdébilmental.Desculpem-me;procedecomoumestácio.EleachaqueJoséDiasfezoquefezsemnenhuminteresse,“sóparafazermal”,“éumsujeitomuitoruim”;etomeameaças,“fechandoopunho”:quandoforodonodacasa,colocaráoagregado“paraarua”,“queelemepaga!”,“deixeestar”.“Capiturefletia”;azardelaqueoselementosdequedispunhaparaareflexão,naquelemomento,eramosoriundosdotestemunhodeBentinho.Eraprecisoatravessá-losembuscadesignificação.D.Glóriachorara.Bentinhonãosabiaarazãodochorodamãe:

AtençãodeCapituestavaagoraparticularmentenaslágrimasdeminhamãe;nãoacabavadeentendê-las.Emmeiodisto,confessouquecertamentenãoerapormalqueminhamãemequeriafazerpadre;eraapromessaantiga,queela,tementeaDeus,nãopodiadeixardecumprir.Fiqueitãosatisfeitodever

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queassimespontaneamentereparavaasinjúriasquelhesaíramdopeito,poucoantes,quepegueidamãodelaeapertei-amuito.Capitudeixou-seir,rindo...(DC,cap.xviii)DomCasmurrodescobreemCapituumacapacidadequejáobservamosem

Helena,LuísGarcia,mesmoemd.Plácida:elaconseguepenetraralógicasenhorial,desvendá-la,eentãointerpretarcorretamenteasmotivaçõeseatitudesdeseusantagonistasdeclasse.Aspessoasnãosãoboasoumás,comopensaBentinho,apenasexpressamseuspreconceitossociaiseculturais.Ofervorreligiosoded.Glória,viúvatementeaDeuseàstrovoadas—comotantasoutrasmulheresdotempo,segundoalenda—,explicaoseuchoro:nãopodiafaltaràpromessasagradadefazerdofilhoumpadre;doía-lheaseparação,entãoaslágrimas.Capituentenderaumaparteimportantedoproblema;precisavabuscarumasoluçãoquelivrasseonamoradodoofíciodepadresemmelindrarareligiosidadeded.Glória.Tinhadeperseguirobjetivosprópriosagindopordentrodospreconceitosreligiososdasenhora.EpordentrodospreconceitosdopróprioBentinho,aliás,poisesteentendeocomentáriodeCapitucomoumaconfissãodeerroeumpedidodedesculpaspelos“impropérios”antesdesferidoscontramamãe.“Capitudeixou-seir,rindo”paraBentinho;rindodeBentinho.

“Paciênciabeneditina”éoutrorequisitoparaoxadrezpolíticodosdependentes.EnquantoCapitueraagorasóreflexão,Bentinhocontinuavaavociferarinfantilmente,fazendo“projetosderesistênciafranca”.DomCasmurro,narradormatreiro,acusadorenrustido,procuraunir,namesmaCapitu,ainsubordinaçãoeaastúcia.Aoscatorzeanos,ameninadeMata-Cavalos“tinhajáidéiasatrevidas”,“maseramsóatrevidasemsi,napráticafaziam-sehábeis,sinuosas,surdas,ealcançavamofimproposto,nãodesalto,masaossaltinhos”.Nãoimportaquãograndiosa,quãoatrevidaaidéia,punha-searealizá-la“pormeiospequenos”.Nasituaçãoempauta,aomesmotempoemquerecusavaasbravatasdeBentinho,nãosurpreendeque“fosseantespelosmeiosbrandos,pelaaçãodoempenho,dapalavra,dapersuasãolentaediuturna,eexaminasseantesaspessoascomquempodíamoscontar”.Enfim,dissimulação,estratégia,astúcia,eramosmeiosdisponíveisparaenfrentarantagonistaspoderososesempreprontosatrucidarsubordinadosinsubordinados.ParaDomCasmurro,eramosmeiosdatraição,osardisqueproduziriamasuaderrotapolítica;“afrutadentrodacasca”(DC,cap.cxlviii).

EmmaisumamanobraquedeixaBentinhoembasbacado,Capitucolocaa

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situaçãodeponta-cabeça,econcluiqueamelhorsaídaparaelesconsistiaembuscaraintervençãodeJoséDias,oagregado,aquelemesmoquecausaratodaaencrencaaolembrarapromessaded.Glória.Aoprojetodepadre,CapituparecelembraraliçãodeElifásaJó:“NãodesprezesacorreçãodoSenhor;Elefereecura”;elamesmatalvezlembrasseooráculopagão,segundooqual“alançadeAquilestambémcurouumaferidaquefez”(DC,caps.xviexvii).Napassagememfoco,CapituavaliapossíveisaliadosnopropósitodelivrarBentinhodoseminário.RejeitasucessivamentetioCosme,primaJustinaepadreCabral.Quantoaoúltimo,nãohaviadetrabalharcontraaIgreja,amenosqueBentinhoconfessassequenãotinhavocação:

—Possoconfessar?—Pois,sim,masseriaaparecerfrancamente,eomelhoréoutracousa.JoséDias...—QuetemJoséDias?—Podeserumbomempenho.—Massefoielemesmoquefalou...—Nãoimporta,continuouCapitu;diráagoraoutracousa.Elegostamuitodevocê.Nãolhefaleacanhado.Tudoéquevocênãotenhamedo,mostrequehádeviraserdonodacasa,mostrequequerequepode.Dê-lhebemaentenderquenãoéfavor.Faça-lhetambémelogios;elegostamuitodeserelogiado.D.Glóriapresta-lheatenção;masoprincipalnãoéisso;équeele,tendodeserviravocê,falarácommuitomaiscalorqueoutrapessoa.—Nãoacho,não,Capitu.—Entãováparaoseminário.—Issonão.(DC,cap.xviii).OquevemosinicialmenteéqueCapiturecusaaviadoconfrontodireto;

confessarafaltadevocaçãoseria“aparecerfrancamente”.Escolheaviasinuosa;ouseja,procurainduzirnosoutrossujeitosmovimentosquelheinteressamaela,Capitu.AmeninaconhecebemaposiçãodeJoséDias.Agregado,dependente,fielàfamília—fidelíssimo,diria—,deviapreocupar-secomofuturodesuasituação.OfuturoeraBentinho.Seonamoradinhoperdesseporumminutoaatitudedecriançolaefizesseoagregadoenxergarneleo“donodacasa”,calculavaCapitu,seriapossívelobteraadesãodeJoséDiasàcausa.Oagregadopareciatalhadoparaatarefa.ComoCapitu,conheciaaartedodiálogopolíticopossívelaosdependentes—ouseja,dominavaaartedeperseguirobjetivosprópriospordentrodaideologiasenhorial(sópararepetiraidéiapelaenésimavez).Énessecontextoquesurgenolivroapassagem,jácomentada,naqualCapituexplicaaBentinhoosmovimentossinuososdeJoséDiasparaconseguirrealizaravontade,todasua,deirao

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teatro.Dequalquerforma,CapituprecisaprimeiroensinarBentinhoadesempenharoseupapel,aexercereostentarasuaautoridade.“Mostrequequerequepode”,“Dê-lheaentenderquenãoéfavor”;linhasabaixo,numasínteseprimorosadaquiloquedeviacaracterizaroexercício“natural”davontadesenhorial,CapituinsistecomBentinhoparaquefaleaJoséDias“comboacara,masassimcomoquempedeumcopodeáguaapessoaquetemobrigaçãodeotrazer”.OsentidopolíticodasartimanhasnarrativasdeDomCasmurroéclaro.EmBrásCubas,diz-sequeomeninoépaidohomem;emDomCasmurro,ameninaémãedamulher.AtraiçãoestavananaturezadeCapitu;eraasuaterraeoseuestrume.Lendoametáfora,encontramosanotaçãosenhorialpossívelparaaidéiadeantagonismodeclasseeparaaexperiênciadaderrotapolítica:traiçãodosdependentes.Semprequesujeitosdahistória,osdependentestraemossenhores.Seéestaaúnicaclavepossível,podemosrespiraraliviados:CapitutraiuBentinho.

históriaeformaliterária

PensoqueépossívelsugerirumahomologiaentreessamaneiradeanalisaraatuaçãopolíticacotidianadosdependenteseoconceitodearteliteráriaqueMachadodeAssisveioapraticar,aindaqueelejamaissedispusesseaexpordetalhadamenteasuaformadeconceberaliteratura.Machadofoibastanteexplícitoapenasquantoaoprojetoliterárioquerejeitava.AsfamosascríticasquedirigiuàsobrasdeEçadeQueirósforamcontundentes.Emtextodeabrilde1878,explicouoquelhedesagradavaemromancescomoOcrimedopadreAmaroeOprimoBasílio:

Nãoseconhecianonossoidiomaaquelareproduçãofotográficaeservildascoisasmínimaseignóbeis.Pelaprimeiravez,apareciaumlivroemqueoescusoeo—digamosoprópriotermo,poistratamosderepeliradoutrina,nãootalento,emenosohomem,—emqueoescusoeotorpeeramtratadoscomumcarinhominuciosoerelacionadoscomumaexaçãodeinventário.Agentedegostoleucomprazeralgunsquadros,excelentementeacabados,emqueoSr.EçadeQueirósesqueciaporminutosaspreocupaçõesdaescola;e,aindanosquadrosquelhedestoavam,achoumaisdeumrasgofeliz,maisdeumaexpressãoverdadeira;amaioria,porém,atirou-seaoinventário.Poisquehaviadefazeramaioria,senãoadmirarafidelidadedeumautor,quenãoesquecenada,enãoocultanada?Porqueanovapoéticaéisto,esóchegaráàperfeiçãonodiaquenosdisseronúmeroexatodosfiosdequesecompõeumlençodecambraiaouumesfregãodecozinha.Quantoàaçãoemsi,eosepisódiosqueaesmaltam,foramumdosatrativosd’OCrimedoPadreAmaro,eomaiordeles;tinhamoméritodopomodefeso.Etudoisso,saindodasmãosdeumhomemdetalento,produziuosucessodaobra.

[...]

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Resta-meconcluir,econcluiraconselhandoaosjovenstalentosdeambasasterrasdanossalíngua,quenãosedeixemseduzirporumadoutrinacaduca,emboranoverdordosanos.Estemessianismoliterárionãotemaforçadauniversalidadenemdavitalidade;trazconsigoadecrepitude.Influi,decerto,embomsentidoeatécertoponto,nãoparasubstituirasdoutrinasaceitas,mascorrigiroexcessodesuaaplicação.Nadamais.Voltemososolhosparaarealidade,masexcluamosoRealismo,assimnãosacrificaremosaverdadeestética.11

“Voltemososolhosparaarealidade,masexcluamosoRealismo...”Ouseja,

aliteraturabuscaarealidade,interpretaeenunciaverdadessobreasociedade,semqueparaissodevaseratransparênciaouoespelhoda“matéria”socialquerepresentaesobreaqualinterfere.AMachadodeAssis,comoJohnGledsonjásugeriu,interessavadesvendarosentidodoprocessohistóricoreferido,buscarassuascausasmaisprofundas,nãonecessariamenteevidentesnaobservaçãodasuperfíciedosacontecimentos.Arepresentaçãoliteráriadessessentidosmaiscruciaisdahistóriaexigiaumanarrativamaissinuosa,cheiademediaçõesenuances;naexperiênciadoleitor,assimcomonadodependente,averdadenãoselheapresentavatalqual,osentidodosacontecimentosnãoeraevidente—distanciamentocríticoeobservaçãoperseverantetornavam-serequisitosbásicos.OdependenteJoséDiasqueriairaoteatro,depreferênciasempagaroingresso;trabalhouasituaçãodemaneiraafazercomquefossevontadedasenhora,d.Glória,arealizaçãododesejoqueeratododele,dependente.Paraconseguiroquequeria,JoséDiassoubedizerapenasaquiloqueosoutros—seussenhores—esperavamouvir.JoséDiaseCapituseguiamamesmametodologia,porassimdizer,emsuasrelaçõescomossenhores:nãoimportavaquãoatrevidasassuasmetasouidéias,“eramsóatrevidasemsi,napráticafaziam-sehábeis,sinuosas,surdas,ealcançavamofimproposto,nãodesalto,masaossaltinhos”(DC,cap.xviii).OautorMachadodeAssisfezdametodologiadedependentescomoCapitueJoséDiasumdosprincípiosdesuaarteliterária:inventoupersonagens,diálogose,apartirdeMemóriaspóstumas,narradoresquepareciamvivereexpressarapenasaquiloqueerarigorosamentecompatívelcomasexpectativasdosleitores/senhores.Aofazerisso,obruxorealizouoobjetivo,todoseu,dedizerasverdadesquebemquissobreasociedadebrasileiradoséculoxix.

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3.CiênciaeideologiaemMemóriaspóstumasdeBrásCubas

anedotarequentadaeargumento

AoabordarasMemóriaspóstumasdeBrásCubasnocapítuloanterior,contei-lhesumaanedotadeBrássobreautilidadedosnarizes.Pararelembrar,onarradorrefletiasobreaafirmaçãododr.Pangloss,ootimistadeVoltaire,deque“onarizfoicriadoparausodosóculos”(MPBC,cap.xlix).1BráschegalogoàconclusãodequePanglosserrara,poisaexplicaçãosobreosentidodetalórgãoestavanaobservaçãodohábitodofaquir,que“gastalongashorasaolharparaapontadonariz,comofimúnicodeveraluzceleste”.Aofincarosolhosnapontadonariz,ofaquir“perdeosentimentodascousasexternas,embeleza-senoinvisível,apreendeoimpalpável,desvincula-sedaTerra,dissolve-se,eteriza-se”.Essacapacidadedesublimaçãodoserpelapontadonarizseriafaculdadeinerenteaohomem,qualidade“universal”dele.Emseguida,numsúbitodesvioderotaquefazdaanedotametáforapolíticaabrangente,Brássugerequea“necessidadeepoder”dohomemdecontemplaroseupróprionarizsãomododeobter“asubordinaçãodouniversoaumnarizsomente”,cousaessencialparagarantir“oequilíbriodassociedades”.Interpreteiapiadaàminhamaneira,conferindo-lhesentidohistóricopreciso:acontemplaçãoexclusivistadopróprionariz,tãosalienteemEstácioeBrás,seriaaessênciadeumserpolíticoespecífico,historicamentedeterminado,aquiapelidado“classesenhorial”.2Disseaindaqueoromancebuscavarepresentaraclassesenhorialnoperíodoemqueviveraoápicedeseupodereprestígiosocial—ouseja,entreosanos1840eoaprofundamentodacrisepolíticaqueresultarianaleide28desetembrode1871.Comosabemos,MachadodeAssisentregouocorpinhodeBrásaosvermesem1869.

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OquedevemosaindaapurarnessainterpretaçãoéahistoricidadedonarradordasMemórias.Afinal,BrásCubasédefuntovivíssimo.Apesardesedescrevercomoum“punhadodepó”espalhado“naeternidadedonada”(MPBC,cap.vi),elecontinuaateraexperiênciadahistória.Naverdade,comoétãofreqüenteemMachado,aomenosquantoaojeitodelê-loquemeinteressa,umadecifraçãoadequadadesselivrodependedaanáliseatentadosmodoscomooromancistaincrustaoseuentendimentodahistória—doBrasiledoOcidente—nafixaçãodaperspectivadeBrásenquantonarradordasMemórias.Assim,nãoimportaquãoindiferentesejaapassagemdotempoparaaquelesquevivemalém-mundo,podemospartirdahipótesedequeBrásescrevesuanarrativaem1880,anoemquefoipublicadapelaprimeiravez,sobreeventosocorridosentreocomeçodoséculoxixeadécadade1860.Entreamortedo“defuntoautor”,em1869,eoaparecimentodotexto,em1880,houveosacontecimentospolíticosesociaisdecisivosdadécadade1870,osquaisconformam,defato,oconteúdoeotomdorelatodeBrás.Amortedonarradortorna-seentãoumembuste,poisqueBrásdemonstrapercepçãoagudadasconseqüênciasdoprocessohistóricodaquelesanosparacriaturasque,comoomemorialista,desejavamperpetuar-senacondiçãodesenhoresdeterrasepessoas.Haviaváriostemaspalpitantesnosanos1870—emancipaçãodosescravos,mudançasempolíticaspúblicas,emergênciadenovasidéiaspolíticasefilosóficas,eassimpordiante.QuiçápararespeitarasinclinaçõesmanifestadaspelopróprioprotagonistadasMemórias,estecapítuloocupar-se-áapenasdastaisnovidadespolíticasefilosóficas.Sujeitocompendorpararefletir,àsuamodadele,sobreosdilemassenhoriais,Brásdizia-sehabituadoacontemplara“injustiçahumana”;defato,aprendera“aatenuá-la,aexplicá-la,aclassificá-laporpartes,aentendê-la,nãosegundoumpadrãorígido,masaosabordascircunstânciaselugares”(MPBC,cap.xi).Acostumara-seaveromundodessaperspectivadesdemenino,ecomo“omeninoépaidohomem”(MPBC,cap.xi),ficou-lhesempreotiquedecomentar,atéglosar,asjustificativaseosrituaisdepoderdaclassesenhorial.AsmemóriasdeBrástornam-se,porconseguinte,umtestemunhohistóricoimportantesobreastransformaçõesnasideologiasdesustentaçãodopodernoperíododecrisedasociedadeescravista.OargumentodestecapítuloéqueBrásbuscaarticularapolíticadedomíniopaternalista,sobfogocerradonosanos1870,comaspectosdaondadeidéiascientificistaseuropéiasdotempo—especialmentenoquetangeaodarwinismosocialcomo

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formadeexplicaraorigemeareproduçãodasdesigualdadessociais.Ocapítulocomeçoucomumaanedotasobreautilidadeeosignificadodos

narizes,eterminarácomoutradeigualjaez.Narizescomoobjetodecontemplaçãoemetáforadepodersenhorialdarãolugarafungadoresinchadose,logodepois,amputados.Nãoserãomenosalegóricosaindaquandoextirpados.Pensadororiginal,Brásruminouatransiçãodafilosofiadonarizpaternalistaparaametafísicadonarizcientífico;aofazê-lo,amalgamoutraçosdeambos,legando-nososeutestemunhosobreafisionomiaideológicadumaclassesocialqueentãoencarava,muitoacontragosto,anecessidadedepensaromundosemescravidão.

sobregenealogiaeoutrosassuntosdefamília

Mortoeenterrado,supostamenteindependenteemrelaçãoaassuntosmundanos—“Agora...queestoucádooutroladodavida,possoconfessartudo”(MPBC,cap.ii),eseolivro,“finoleitor”,“tenãoagradar...pago-tecomumpiparote”(MPBC,“Aoleitor”)—,econscientedasmudançassociaisepolíticasocorridasduranteadécadaposterioràsuamorte,Bráséagoracapazdeobservareexporaspectosdaideologiasenhorialapartirdeumpontodevistaumtantocrítico,outroquantocínico.Segundoafórmuladotempo,“tradiçõesdefamília”,“relaçõesadquiridas”e“cabedais”definiamas“primeirasclassesdasociedade”(H,cap.i).Vejamosoquedizonarradorsobrecadaumdessespilaresdadominaçãopaternalista.

ÉfreqüentequeBráschegueaperceberfeiçõesdomundonoqualforacriadoaorelembrarditosefeitosdoprópriopai.Sobreastradiçõesdafamília,porexemplo,haviaumtantinhodeverdadeemuitodeinvençãonomodocomoovelhoCubascostumavacontá-las.OfundadordafamíliahaviasidoumcertoDamiãoCubas,que“floresceu”naprimeirametadedoséculoxviii.Foratanoeirodeofício,mastornou-selavrador,plantou,colheu,ganhouboasehonradaspatacasemorreu,“deixandogrossocabedalaumfilho”(MPBC,cap.iii).Essefilho,olicenciadoLuísCubas,derarealmenteinícioàfamília,aomenossegundoaversãocorrentenoclã,poisqueDamiãohaviasidoumsimplestanoeiro,talvezmautanoeiro.LuísCubas,emcontraste,estudaraemCoimbra,participaradosnegóciosdoEstado,foraamigoparticulardovice-reiCondedaCunha.Masdizerapenaspartedaverdadenãobastava.Haviao

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nome“Cubas”,quecheiravademaisatanoaria.Cubaspaitentaraentãoentroncarafamílianadofamosohomônimodofilho,capitão-morBrásCubas,fundadordaviladeSãoVicentenoséculoxvi.Osdescendentesdocapitão-mornãoforamcomaburla,logopapaitevedearrumaroutra.InventouqueoapelidodeCubas“foradadoaumcavaleiro,heróinasjornadasdaÁfrica,emprêmiodafaçanhaquepraticou,arrebatandotrezentascubasaosmouros”.Onarradorobservaqueopaifora“homemdeimaginação”,poisescaparaàtanoaria“nasasasdeumcalembour”(MPBC,cap.iii).Afinal,arrumaraumancestralnobreeguerreiroparaafamíliae,dequebra,vincularaaorigemdesualinhagemaumfeitodaguerracontraosinfiéis.

OquemaisimpressionavaBrás,contudo,eraofatodeopaiterpassadoaacreditarpiamentenahistóriaquefabricara.OlogronatentativadearranjarocasamentodofilhocomVirgília,porexemplo,deixaraopatriarcadeverasabatido.Virgíliavinhadefamíliarica,influentenavidapolítica,eocasóriologofariadeBrásummembrodoparlamentoimperial.Noivaeposiçãopolíticaarrebatadasporumrivalimpetuoso,ovelhoCubasexclamavaincrédulo:“UmCubas!UmgalhodaárvoreilustredosCubas!”.Emseguida,omemorialistareparaquepapai“diziaistocomtalconvicção,queeu,jáentãoinformadodanossatanoaria,esqueciuminstanteavolúveldama,parasócontemplaraquelefenômeno,nãoraro,mascurioso:umaimaginaçãograduadaemconsciência”(MPBC,cap.xliv).Brásmostrava-secompreensivoquantoàdificuldadedovelhoemaceitarafrustraçãodoplanomatrimonial.Narealidade,éatéprovávelqueofilhovissevirtudemoralnofatodeoprogenitoracreditarnalendaquecriara;numapassagemdolivro,assimfilosofaonarrador:“omelhordaobrigaçãoéquando,àforçadeembaçarosoutros,embaça-seumhomemasimesmo,porqueemtalcasopoupa-seovexame,queéumasensaçãopenosa,eahipocrisia,queéumvíciohediondo”(MPBC,cap.xxiv).Omododeapresentarafalsagenealogiadafamília,oscomentáriossobreareaçãodopaiaologromatrimonialeareflexãosobreavirtudequehaviaemchegaraacreditarnasprópriasmentirassugeremqueonarradorestáconscientedofatodequeajustificativaparasuaposiçãodepodereprivilégionaquelasociedadeoriginava-seemmitosouficções.Àsuamaneira,odefuntoautorregistraqueafalsificaçãohistóricaocupavaocentrodaideologiapaternalista.

Alémdeancorartradiçõesdefamílianumpassadolendário,gentecomoosCubasvalorizavamuitoasrelaçõesqueentretinhacomseusiguais.Onarrador

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recordava-sebemdaimportânciaqueopaiatribuíaaospadrinhosqueescolheraparaofilho.Seriamdescendentesde“velhasfamíliasdoNorte”,comumpassadomitológicopróprio.Nessecaso,osfundadoresdosclãshaviamlutadocontraosholandesesnoséculoxvii,contribuindoassimparaaexpulsãodosinvasoreseapreservaçãodoterritóriodafuturanaçãoindependente—taisfamílias“honravamdeverasosanguequelhescorrianasveias”(MPBC,cap.x).Brásachavaquearecitaçãodosnomesdospadrinhosforadasprimeirascoisasqueaprenderaafazerdireitonavida,tamanhaafreqüênciacomquehaviaderepeti-laaquantosestranhosadentrassemacasapaterna:

—Nhonhô,digaaestessenhorescomoéquesechamaseupadrinho.—Meupadrinho?éoExcelentíssimoSenhorCoronelPauloVazLoboCésardeAndradeeSousaRodriguesdeMatos;minhamadrinhaéaExcelentíssimaSenhoraD.MariaLuísadeMacedoResendeeSousaRodriguesdeMatos.—Émuitoespertooseumenino!exclamavamosouvintes.—Muitoesperto,concordavameupai;eosolhosbabavam-se-lhedeorgulho...(MPBC,cap.x)Tambémeraimportanteaparentarproximidadeemrelaçãoaomundodo

governo.AquedadeNapoleãoem1814provocaraeuforiaentreosnobresportuguesesexiladosnoRiodeJaneiro.OsCubasnãosecontentavam“emterumquinhãoanônimonoregozijopúblico”,logoacharamindispensávelpromoverbanqueteparafestejaraderrocadadoimperador.Planejarambanquetetalqueoreieseusministrosnãopoderiamficarindiferentesaoevento.Chegadaahora,expostaavelhapratariaherdadadevovôLuísCubas,emaisastoalhasdeFlandreseasjarrasdaÍndia,emortoocapado,vindasascompotaseasmarmeladas,epolidososcastiçais,arandelasetudoomais,“achou-sereunidaumasociedadeseleta”.Haviaojuizdefora,oficiaismilitares,comerciantes,letrados,altosfuncionários,todosacompanhadospormulheresefilhase“comungandonodesejodeatolaramemóriadeBonapartenopapodeumperu”(MPBC,cap.xii).

Namemóriadonarrador,todavia,oqueficaraverdadeiramentedofamosobanqueteforaaimagemdesatisfaçãodopaiaocongregartantosvisitantesilustres.Comodehábito,Brásrecorreaumaanedotaparaapresentarasuavisãodosacontecimentos.Ele,meninodeoitoounoveanosàépoca,cobiçavacertasobremesa—umdocedecompotadosquefaziamafamadasmadresdoconventodaAjuda—,porémoprazerdedegustá-lavinhasendointerminavelmenteadiadopelodr.Vilaça,advogadoeexímioglosador,quenão

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paravadeimprovisarversosfossequalfosseotemaqueaplatéialheoferecia.Todosdistraídosàsuavolta,ogarototentavaatrairaatençãodopaiparaoseu“problema”.Emvão,poisquedessavezovelhoCubasnãoreparavanofilho:

Meupai,àcabeceira,saboreavaagolesextensosaalegriadosconvivas,mirava-setodonoscarõesalegres,nospratos,nasflores,deliciava-secomafamiliaridadetravadaentreosmaisdistantesespíritos,influxodeumbomjantar.Euviaisso,porquearrastavaosolhosdacompotaparaeleedeleparaacompota,comoapedir-lhequemaservisse;masfazia-oemvão.Elenãovianada;via-seasimesmo.(MPBC,cap.xii;grifomeu)Papaicontemplavaapontadopróprionariz,enlevadopelopodersimbólico

queobanquetelheproporcionava.Narealidade,onarradormostra-seobservadoratentodasdimensõessimbólicasdopoder,muitomaisconscientedessasdoquedaintimidaçãoedaviolênciainerentesaoseuexercício.Porexemplo,eapesardavantagemdoolharretrospectivo,elepermaneceinsensívelaosofrimentodosescravos.Aodescreverospreparativosparaobanquete,refere-sedepassagemaofatodeque“lavaram-se,arearam-se,poliram-seassalas,escadas,castiçais,arandelas,asvastasmangasdevidro,todososaparelhosdoluxoclássico”(MPBC,cap.xii).Nenhumamençãosequeraotrabalhodosescravosdomésticos,quesemdúvidaforamossujeitosdosverboslavar,arearepolirnacitaçãoacima,assimcomodepois,nafaxinaapósacomilança,epodemosapenasintuiramovimentaçãoeaansiedadedelespararealizarastarefasnecessáriasemefeméridescomoessa.Emcontraste,Brásforaexaustivamenteinstruídonaartedeexercerasprerrogativasda“classeemquenascera”(H,cap.ii).Umaocasiãoparaliçõesdeteatropolíticopaternalistaofereceu-sequandoovelhoCubasbuscavaconvencerofilhoaaceitarocasamentoeacarreirapolíticaquepensavahaver-lhearranjadopormeiodeVirgília.Ojovemmanceboresistiuinicialmente,mastevedecederaosargumentosdopai:

nãogasteidinheiro,cuidados,empenhos,paratenãoverbrilhar,comodeves,eteconvém,eatodosnós;éprecisocontinuaronossonome,continuá-loeilustrá-loaindamais.Olha,estoucomsessentaanos,massefossenecessáriocomeçarvidanova,começava,semhesitarumsóminuto.Temeaobscuridade,Brás;fogedoqueéínfimo.Olhaqueoshomensvalempordiferentesmodos,equeomaissegurodetodosévalerpelaopiniãodosoutroshomens.Nãoestraguesasvantagensdatuaposição,osteusmeios...(MPBC,cap.xxviii)Naseqüência,onarradorcomentaosermãodopaicomahabitualironia.

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Comparaovelhoaummágico,asacudirdiantedele,Brás,umchocalho,comocostumavamfazerseusfamiliaresquandoerapequeno,naexpectativadequeaprendesselogoaandar.Comoresultado,aflordahipocondriarecolheu-seedesabrochououtra,menosamarelaenadamórbida:“asededenomeada”,o“amordaglória”(MPBC,cap.ii).Brásaceitaentãotudoqueopailhepropunha.Otrechosugere,denovo,queonarradorconseguedistanciar-sesobremaneiradossímboloserituaisdadominaçãosenhorial.Noentanto,elenãodemonstraqualquerinclinaçãoparaabordarasestruturasdepoderquegarantiamareproduçãodeseusprivilégiosnaquelasociedade.Seuolharretrospectivoparececapazdedetectarfrivolidadeevacuidadeemcertoscerimoniaisdapolíticadedomíniopaternalista—“Colhidetodasascousasafraseologia,acasca,aornamentação...”(MPBC,cap.xxiv)—,masnãoosfatosdeexploraçãosocialeeconômicaquesustentavamopodersenhorial.Dissotudo,comoveremos,Brásconcluirálogoqueépossível“trocarderoupasemmudardepele”,comosediz,empenhando-se,porconseguinte,emjustificara“injustiçahumana...aosabordascircunstânciaselugares”(MPBC,cap.xi).

Aestreitezacríticadodefuntoautornoqueconcerneàsestruturassociaistorna-semaisevidenteemseuscomentáriossobre“cabedais”oupropriedade,oterceiropilardahegemoniasenhorial.Excluídososexcessospecuniáriosduranteoperíododepaixãoadolescentepela“lindaMarcela”,Brásabraçousempreoconselhopaternodequenãoestragasse“asvantagens”dos“teusmeios”.Oproblemaéquetodaafamíliarezavapelamesmacartilha.OsvermesmalhaviamcomeçadoaroerasfriascarnesdocadáverdeCubaspaieosherdeirosjáseengalfinhavamemtornodadivisãodoespólio.Navisãosenhorialdemundo,trabalhareraverbodefectivoinconjugável,logoapropriedadeherdadaafigurava-seessencialàindolênciafutura—“coube-meaboafortunadenãocompraropãocomosuordomeurosto”,disseodefuntoautornobalançofinaldesuavida(MPBC,cap.clx).ÉverdadequeBrásreprovouemQuincasBorba,àépocaumfilósofomaltrapilhoaesmolaroalmoço,ofatodeestesenegaratrabalhar.Ofilósofofez“umgestodedesdém”quandoBráslhesugeriuoalvitre,edepoisdisse“positivamentequenãoqueriatrabalhar”.Omemorialistadizterficado“enjoadodessaabjeçãotãocômicaetriste”,preparando-separaseguircaminho(MPBC,cap.lix).Apesardasaparências,onarradornãoprofessaaquiqualquerapreçoespecialpelaéticadetrabalhocapitalista;aocontrário,apenasreproduzavelhamáximasenhorialde

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queosdespossuídoshaviamdetrabalharparadesfrutedosproprietários.Deviam,naverdade,“servir”,inserir-seemrelaçõesdefavoroudependência,eBráschegouadizeraQuincasqueoprocurasse,poisque“podereiarranjar-lhealgumacoisa”(MPBC,cap.lix).Pensotambémqueomemorialistadesdenhariafrancamentequalquersugestãoparaquesetornasseumempreendedorburguêsdequalquertipo,contagiadopelabossadaacumulaçãodecapital.Nissoaexperiênciaalém-túmulopoucointerferiu.

Assim,Brásqueriagarantiromelhorquinhãodaherançapaterna,suairmãSabinaeocunhadoCotrimnãooqueriammenos,logovieramasrusgasfamiliares.ComopareciatípicoàsclassesproprietáriasdaCortenoperíodo,osCubasviviamfundamentalmentedarendaobtidapormeiodoalugueldeescravoseimóveis.Talinformaçãonãoaparecedeformadireta—talvezfossealgoóbviodemaisparaosleitoresdotempo—,masvemososherdeirosadiscutirasperamenteopreçodecasasecativos,emmeioaquizilasoutrassobrequemficariacomacarruagem,apratariaetrastesdiversos(MPBC,cap.xlvi).SabemostambémqueafamíliaSantiago,emDomCasmurro,umclãemtudosimilaraodosCubas,possuíanovecasaseumpunhadodeescravos,amealhando,sócomoalugueldosimóveis,aconsiderávelsomade1contoe70mil-réismensaisnadécadade1850(DC,cap.xciv).AsituaçãoficoutãotensaduranteapartilhaqueBrás,numgestodeconciliação,chegouasugerirqueelesdividissemaprata;Cotrimriuazedoeperguntou“aquemcaberiaobuleeaquemoaçucareiro”(MPBC,cap.xlvi).Osirmãoschegaramareconciliar-sedepois,masasrelaçõesentreBráseCotrimpermaneceramumtantoestremecidas.

Talveznemtanto,poisemcertomomentoonarradordedicaoseguintepanegíricoaocunhado:

elepossuíaumcaráterferozmentehonrado.Eumesmofuiinjustocomeleduranteosanosqueseseguiramaoinventáriodemeupai.Reconheçoqueeraummodelo.Argüiam-nodeavareza,ecuidoquetinhamrazão;masaavarezaéapenasaexageraçãodeumavirtudeeasvirtudesdevemsercomoosorçamentos:melhoréosaldoqueodeficit.Comoeramuitosecodemaneirastinhainimigos,quechegavamaacusá-lodebárbaro.Oúnicofatoalegadonesteparticulareraodemandarcomfreqüênciaescravosaocalabouço,dondeelesdesciamaescorrersangue;mas,alémdequeelesómandavaosperversoseosfujões,ocorreque,tendolongamentecontrabandeadoemescravos,habituara-sedecertomodoaotratoumpoucomaisduroqueessegênerodenegóciorequeria,enãosepodehonestamenteatribuiràíndoleoriginaldeumhomemoqueépuroefeitodasrelaçõessociais.(MPBC,cap.cxxiii)ApassagemrevelabastantesobreasopiniõessociaisepolíticasdeBráse

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sugerequeestastalveznãotenhammudadomuito—nosentidodequepermaneceramrigorosamenteconservadoras—entre,digamos,1850e1880.OcomentáriosobreocunhadoaparecenanarrativanomomentoemqueBrásrumavaparaocasamentocomEulália,umasobrinhadeCotrim,esabemosqueanoivamorreuem1850,maisumavítimadaprimeiragrandeepidemiadefebreamarelaaatingiraCorteimperial.Assim,areferênciaaofatodeCotrimter“contrabandeadoemescravos”eaimputaçãodequeera“bárbaro”remetemaocontextodaslutasemtornodofimdotráficoafricanodeescravosparaoBrasil.Ilegaldesde1831,eintensificadocomocontrabandonadécadade1840atéquenovaleifosseeficazparadetê-lonoiníciodosanos1850,o“infamecomércio”nãoeraatividadetalquepudesseservistacomtantaleniêncianoiníciodadécadade1880,emplenavigênciadaprimeiragrandevagadomovimentoabolicionistanoBrasil.3Onarradorchegaadesculparocunhadoporenviarescravosasessõesdetorturanocalabouço,poistalpráticapareciainerenteàqueletipodenegócio,logo“nãosepodehonestamenteatribuiràíndoleoriginaldeumhomemoqueépuroefeitodasrelaçõessociais”.Oargumentoécurioso,digamos,dopontodevistahistórico.Aoconceberacena,éprovávelqueMachadodeAssistivesseemmenteadoutrinapresentenofamosodiscursodeEusébiodeQueiroz,entãoministrodaJustiça,proferidonaCâmaraem1852,noqualprocurarajustificartantosanosdeconivênciadepolíticoseautoridadescomotráficoilegal—opróprioEusébiodeQueirozforachefedepolíciadaCorteduranteavigênciadocontrabandodeafricanos.Segundooministro,otráficoafricanoprosseguiraapósaleide1831porque“prendia-seainteresses[...]dosnossosagricultores”,tendoporissoapoio“natural”da“opiniãopública”.Assim,continuá-loforauma“necessidade”reconhecidapor“todosospartidospolíticos”,nãopodendotalcondutaserconsiderada“umcrime”,ouatémesmo“umerro”.Aomenosnoiníciodosanos1880,aespeciosidadedessetipodeargumentonãoescapavaagentecomoJoaquimNabuco,queestranhavaa“moralidadedadoutrina”dequeumcrime—nocaso,odesrespeitoàleidecessaçãodotráficode1831—deixavadesê-losecometidopela“naçãointeira”.4Dequalquermodo,otrechodeBrássobreCotrim,alémdoutroexemploconspícuodesuadisposiçãoemexplicar“ainjustiçahumana”aosabor“dascircunstâncias”,testemunhaolugarpolíticodomemorialistaaolongodoprocessodecriseeextinçãodaescravidão.NãoimportaquãoazedasasdesavençasfamiliaresentreBráseCotrim,eramaliados

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políticos:em1850,sonhavamemprolongarindefinidamenteocontrabandodeafricanos;em1880,seriadifícilqueBrásadotassedefesaideológicadainstituiçãodaescravidão,mashaveriavontadedesobra,neleeemseuspares,paradefenderapropriedadeescravaexistentecontraasincursõesdosabolicionistas.Estes,aliás,jávinhampromovendobatalhasjudiciaisincômodasaorecorreràleide1831paraargumentarquetaisouquaiscativos—edescendentes—tinhamdireitoàliberdade,umavezquehaviamsidointroduzidosnopaísaoarrepiodalegislaçãovigente.5

Oqueseconcluidetudoissoéqueaconsciênciapolíticadonarradorpareciaumtantofraturada.Porumlado,especialmenteaotratardepapai,demonstravaperceberqueasideologiasdelegitimaçãodopodersenhorialnãomaissesustentavam,ouaomenospodiamserdesafiadaseatédenunciadascomoilusãooufalsificação.Poroutrolado,continuavafirmementeapegadoaseupodereprivilégios,mostrando-seassimdispostoaadequarasideologiasdedominaçãosocialaocontextodoprocessodeemancipaçãodosescravoseconseqüentesmudançasnasrelaçõesdetrabalhonasdécadasde1870e1880.DigamosqueBráschegoudealgummodoàconclusãodequeerapossíveldissociarossímboloserituaisdopodersenhorialdasestruturasque,defato,osustentavam.Enfim,assuperioridadessociaiseramnaturais,logonecessáriasejustificáveis,aindaqueastaisjustificativasfossemhistóricasourelativas.NãoadmiraqueBrásapreciassetanto,novelhoCubas,acapacidadedeescaparaocinismoacreditandonasprópriasimposturas.

sobreborboletas,superstiçãoesuperioridadenatural

UmbelodiaBrásestavaemseuquartoquandoumaborboletagrandeenegraentroujanelaadentro,esvoaçoumuitoaoredorelhepousounatesta.Oguapoaespantou,oqueafezgrudarnavidraça.Escorraçadadenovo,aterrissouemcimadeumantigoretratodovelhoCubas.Onarradorestápois,denovo,àsvoltascompapai.Aborboleta,“negracomoanoite”,permaneceusobreoretrato,movendobrandamenteasasas“comumcertoarescarninho,quemeaborreceumuito”(MPBC,cap.xxxi).Brásretirou-sedoquartoporalgunsminutose,aovoltar,encontrandooinsetonomesmolugar,quiçánamesmaatitudedesdenhosa,sentiu“umrepelãonosnervos”,sacouatoalhae

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lhedesferiuumgolpefatal.Brásficouumtantoincomodadocomodesfechoeinterrogouasimesmose

odestinodaborboletateriasidodiferentecasoelativessenascidoazul.Emseguida,imaginouoquepassarapelacabeçadoinsetonosminutosfinaisdesuaexistência:

Imagineiqueelasaíradomato,almoçadaefeliz.Amanhãeralinda.Veioporalifora,modestaenegra,espairecendoassuasborboletices,sobavastacúpuladeumcéuazul,queésempreazul,paratodasasasas.Passapelaminhajanela,entraedácomigo.Suponhoquenuncateriavistoumhomem;nãosabia,portanto,oqueeraohomem;descreveuinfinitasvoltasemtornodomeucorpo,eviuquememovia,quetinhaolhos,braços,pernas,umardivino,umaestaturacolossal.Entãodisseconsigo:“Esteéprovavelmenteoinventordasborboletas”.Aidéiasubjugou-a,aterrou-a;masomedo,queétambémsugestivo,insinuou-lhequeomelhormododeagradaraoseucriadorerabeijá-lonatesta,ebeijou-menatesta.Quandoenxotadapormim,foipousarnavidraça,viudalioretratodemeupai,enãoéimpossívelquedescobrissemeiaverdade,asaber,queestavaaliopaidoinventordasborboletas,evoouapedir-lhemisericórdia.(MPBC,cap.xxxi)Comosevê,otrechoalegorizahábitosmentaisevisõesdemundo

senhoriaisdemodosemelhanteàquelaanedotainicialsobrenarizes.Brásimaginaqueoqueestáàsuavoltaexisteporqueeleassimodesejou;tudoestásubordinadoàsuavontade—eleé“divino”,“colossal”e“criador”,aoutraé“modestaenegra”.Eletambémsupõequeossubordinados,comoaborboleta,simplesmentereproduzemasuavisãodascoisas—emoutraspalavras,osprópriosdependentesachavamqueexistiamparaservi-lo.Deumaperspectivaestrutural,atentaaonexoideológicopossivelmentepresenteatémesmoemeventososmaistriviaisouanedóticos,taisalegoriasreproduzemapolíticadedomíniohegemônicanaquelasociedade.Parairaocentrodoproblema,todavia,bastapensarnaideologiadaalforriavigentenasociedadeescravistabrasileira.Ossenhoresdeescravosconsideravamasuaprerrogativaexclusivadeconceder,oudenegar,liberdadesumdosfatoresmaisdecisivosnocontrolesocialdetrabalhadoresescravos.Ressentiam-sedequalquerintervençãodopoderpúblicoemtaisassuntos,sustentandoresolutamenteaidéiadainviolabilidadedavontadesenhorialemtudoqueconcerniaàliberdadedeescravos.Borboletaseescravosnãotinhamvontadeprópriaouespaçodeaçãoautonômica.Viveriamseossenhoresassimodesejassem,ficariamlivressetaisalgozesquisessem.

Entretanto,aleide28desetembrode1871haviamudadoascoisasdemaneirasignificativa,poiscriaraviasinstitucionaisparaobteraalforria

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independentementedoconsentimentosenhorial.Asuaaprovaçãofoipassodecisivonalutaparasubmeteropoderprivadodossenhoresaodomíniodalei,abalandoassimaideologiapaternalistaque—aoladodaviolênciafísicadireta—garantiraocontrolesocialnaescravidãoporséculos.6Porconseguinte,podehavermaisadesvendarnomododeonarradorrelataroseuencontrocomaborboletanegra(“Tambémporquediabonãoeraazul?”;MPBC,cap.xxxi).

Aquelaera,naverdade,asegundaborboletanegraqueBrásviaempoucashoras.Nodiaanterior,elevisitavad.Eusébia,antigaconhecidadafamíliaqueseencontravanavizinhançacomEugênia,suafilha,quandoumaborboletapretaapareceranavarandaavoaraoderredordavelhasenhora.Estaseassustou,“deuumgrito,levantou-se,praguejouumaspalavrassoltas:—T’sconjuro!...Sai,diabo!...VirgemNossaSenhora!...”(MPBC,cap.xxx).D.Eusébiaacreditavatalvezqueumaborboletadetalcorsignificassemauagouro,ouatéquefosseumabruxaemformadeinseto.Dequalquermodo,Brásassenhoreou-sedasituação,disseàsenhoraquenadatemesseeenxotouaintrusa:“D.Eusébiasentou-seoutravez,ofegante,umpoucoenvergonhada;afilha,podeserquepálidademedo,dissimulavaaimpressãocommuitaforçadevontade.Apertei-lhesamãoesaí,arircomigodasuperstiçãodasduasmulheres,umrirfilosófico,desinteressado,superior”(MPBC,cap.xxx).

Oepisódioexemplificaestratégiautilizadarepetidamentepelonarradorparaprovarasuasupostasuperioridadesobreosoutros:eleeraracional,“filosófico”ecientífico—“aciênciamoagradecerá”,dizeleaoiniciarorelatodeseudelírionocapítulovii;osoutroseramsupersticiosos,logoinferiores.Noutromomentodolivro,omemorialistamencionaassuperstiçõesded.Plácida,aalcoviteiradeseusamoresclandestinoscomVirgília.D.Plácidanãopodiaverumsapatovoltadoparaoar.“Quetemisso?”,perguntava-lheBrás,paraouvircomoresposta,simplesmente:“Fazmal”.Onarradorobserva,emseguida:“Disseram-lheissoemcriança,semoutraexplicação,eelacontentava-secomacertezadomal”.Deformasimilar,d.Plácidatinhacertezadequeapontarumaestrelacomodedodavaverruga(MPBC,cap.lxxxiv).

Nocasoded.Plácida,Bráslidavacommulherdecondiçãosocialinferior—alguémporquemeletinhapoucoounenhumrespeito—e,comovimosnocapítuloanterior,elechegouatémesmoàconclusão,tãoàmodadele,dequeapobremulherviveraapenasparafacilitaroseuromancecomVirgília(MPBC,cap.cxliv).Assuperstiçõesded.Plácida,emcontrastecomasuposta

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racionalidadedeBrás,apenasilustramacondição“naturalmente”inferiordadependente.Porconseguinte,onarradorapreciamaisaindaasoportunidadesdedemonstrarsuperioridadesobrepessoasdesituaçãosocialsemelhanteàsua.Deliciou-semuitíssimonumcertoepisódiocomLoboNeves,ohomemquelhearrebataraVirgíliaeoparlamento.Onarradornãoescondeoorgulhoporhaversetornadoamantedamulherdooutro,lograndovingançanoterrenomesmodacompetiçãoentrepredadoressexuais.Alémdeinsinuarpublicamenteasuafaçanhasemprequepossível—“Virgíliaeraumbeloerro,eétãofácilconfessarumbeloerro!”(MPBC,cap.lxxxii)—,Brástentademonstrarquetambémsuperavaorivalnodomíniodarazão.UmavezsucedeudeLoboNevestersidoconvidadoaexercerapresidênciadumaprovínciadoNortedopaís.Ohomemtinhaambiçõespolíticaseficaraexultante.Paraosamantes,seriaaseparação.VirgíliamanipuloutãoastutamenteomaridoqueocoitadoteveaidéiadeconvidarBrásaseguircomele,nopostodesecretário.Bráschegouaaceitaraoferta,masembeveceu-sedefatoaoandararuadoOuvidoreadjacências,para“espalharquetalvezfosseparaoNortecomosecretáriodeprovíncia,afimderealizarcertosdesígniospolíticos,quemeerampessoais”(MPBC,cap.lxxxii).OsconhecidosligavamdeimediatoessanotíciaàdanomeaçãodeLoboNeves,e“sorriammaliciosamente,outrosbatiam-menoombro”.

QuisodestinoqueosamoresclandestinosdeBráseVirgíliacontinuassemsempassotãoarriscado.LoboNevesvoltouatráserecusouapresidênciaporqueodecretodenomeaçãoapareceranumdia13.Brásdegustoutriunfocompleto:alémdemaridotraído,LoboNeveserasupersticioso,alheioàsrazõescientíficas,sujeitodeintelectoinferior.SegundoVirgília,oesposohavialhecontadoqueaquelenúmeroeraparaeleuma“recordaçãofúnebre”—o“paimorreunumdia13,trezediasdepoisdeumjantaremquehaviatrezepessoas.Acasaemquemorreraamãetinhaon.13.Etcoetera”(MPBC,cap.lxxxiii).TudoissosoariaridículoeLoboNevesbemosabia,tantoquejamaisconfessouosseusmotivospublicamente.Umtantofilosófico,jáoutroquantocientífico,odefuntoautorcomenta:

Nãomeconfessouomaridoacausadarecusa;disse-metambémqueeramnegóciosparticulares,eorostosério,convencido,comqueeuoescutei,fezhonraàdissimulaçãohumana.Eleéquemalpodiaencobriratristezaprofundaqueominava;falavapouco,absorvia-se,metia-seemcasa,aler.Outrasvezesrecebia,eentãoconversavaeriamuito,comestrépitoeafetação.Oprimiam-noduascousas,—a

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ambição,queumescrúpulodesasara,7elogodepoisadúvida,—etalvezoarrependimento,—masumarrependimento,queviriaoutravez,seserepetisseahipótese,porqueofundosupersticiosoexistia.Duvidavadasuperstição,semchegararejeitá-la.Essapersistênciadeumsentimento,querepugnaaomesmoindivíduo,eraumfenômenodignodealgumaatenção.(MPBC,cap.lxxxiv)Nissoaborboletapretapousadenovonestemeucapítulo.Haviaum

contextomaisamploparaoepisódiodasuperstiçãoded.Eusébia,etalvezdeEugênia,emrelaçãoaoinseto.BráseEugênianamoricavam,etudoindicaque,pelaprimeiraeúnicaveznavida,ojanotapercebeuquearriscavaamarumamulher.Paraarredaraameaça,Brásesforça-seemarticularrazõesquetornariamajovemumaconsorteimprópriaparaele.Primeiro,haviaaorigemsocialdamoça,queonarradorconsiderainferioreatémoralmenteduvidosa.D.EusébiasurgiraumaprimeiraveznorelatodeBrásquandodocélebrebanqueteparaatolaramemóriadeNapoleãonopapodeumperu.Omenino,recorda-seoleitor,ficarasemdocedecompotaporqueodr.Vilaçaglosarainterminavelmente.Determinadoàdesforra,otravessopassouaespreitaroglosadorportodaparte.Nãobastavaorabodepapeloucrianciceigual,poisVilaçaerahomemsérioemedido,47anos,casado,pai.Paratorná-loridículohaviadesercousagrande.Derepente,Brásnotouqueodoutorseenfiaramoitaadentrocomd.Eusébia,entãoumadonzelonarobusta,quenãoerafeia,nembonita.Minutosdepois,ouviuestalarumbeijo,“muitoaodeleve”,“omaismedrosodosbeijos”.Bastouparaqueocapetinhapulasseforadoesconderijoagritar:“Odr.Vilaçadeuumbeijoemd.Eusébia!”(MPBC,cap.xii).Apesardoescândalo,nãoseemendaram,etemposdepoisd.Eusébiadariaàluzumafilha,chamadaEugênia.

Brásrememoravaissotudoenquantoseinteressavadeveraspelamoça.Paralutarcontratalinclinação,concebeuaidéiadequeEugênia,porserfilhailegítima,nãoeramoralmentedignadele,“umgalhodaárvoreilustredosCubas”,comodiziapapai.Paradepreciá-laaindamais,onarradorrefere-seàfilhaded.Eusébia,repetidasvezes,como“aflordamoita”.Nemtodosessespensamentosmesquinhos,cruéis,sacadosaorepertóriodepreconceitosdaclassesenhorial,mostraram-sesuficientesparareverteraatraçãodeBrásporEugênia.Opassoseguintefoientãoomaiscruel,francamentebrutal.Brásdescobriraqueamoçatinhaumdefeitofísico;era“coxadenascença”(MPBC,cap.xxxii).Reflexivo,comodehábito,disseonarrador:

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Opioréqueeracoxa.Unsolhostãolúcidos,umabocatãofresca,umacomposturatãosenhoril;ecoxa!Essecontrastefariasuspeitarqueanaturezaéàsvezesumimensoescárnio.Porquebonita,secoxa?porquecoxa,sebonita?Taleraaperguntaqueeuvinhafazendoamimmesmoaovoltarparacasa,denoite,sematinarcomasoluçãodoenigma.Omelhorquehá,quandosenãoresolveumenigma,ésacudi-lopelajanelafora;foioqueeufiz;lanceimãodeumatoalhaeenxoteiessaoutraborboletapreta,quemeadejavanocérebro.(MPBC,cap.xxxiii)Bráseliminouaborboletaporqueelaeranegra(“Tambémporquediabonão

eraelaazul?”);econsiderouEugênia—cujonomesignifica“abem-nascida”—imprópriaparacasarporqueelaeracoxa(“Porquebonita,secoxa?porquecoxa,sebonita?”).Anegritudedaborboletaeodefeitocongênitodagarotaeramcaracterísticasnaturais,nãoatributossociais.Portanto,aoqueparece,Brásescolheu-asparahumilhareextinguirdevidoàsupostainferioridadenaturaloubiológicadelas,oqueastornavaincapazesdeenfrentaraslutasnecessáriasdavida.Apassagemfinaldonarradorao“enxotar”Eugênia—“essaoutraborboletapreta”—fundealegaçõesdesuperioridadebiológica,degêneroedeclasse:

Comefeito,foinodomingoesseprimeirobeijodeEugênia,—oprimeiroquenenhumoutrovarãojamaislhetomara,enãofurtadoouarrebatado,mascandidamenteentregue,comoumdevedorhonestopagaumadívida.PobreEugênia!Setusoubessesqueidéiasmevagavampelamenteforanaquelaocasião!Tu,trêmuladecomoção,comosbraçosnosmeusombros,acontemplaremmimoteubem-vindoesposo,eeucomosolhosem1814,namoita,noVilaça,easuspeitarquenãopodiasmentiraoteusangue,àtuaorigem...(MPBC,cap.xxxiii)Otrechoexemplificaamaniadomemorialistadeacharquetodasas

mulherescomasquaisserelacionaraaolongodavidaestiveramaospésdele.Enganara-sesempreaesserespeito,aindaquepormotivosdiferentes.NoscasosdeMarcela,Virgíliaed.Plácida,Bráslidavacommulheresquetrabalhavamassituaçõesdemodoaprovocarneleaimpressãodequecontrolavaoandamentodascousas.Nãolheseradifícilincrustartalilusãonomancebo,eissolhesdavaapossibilidadededissimularobjetivospróprioselutarparaatingi-lossemconfrontá-lodiretamente.Emcontraste,“oolhardeEugênianãoeracoxo,masdireito,perfeitamentesão;vinhadeunsolhospretosetranqüilos.Creioqueduasoutrêsvezesbaixaramestes,umpoucoturvados;masduasoutrêsvezessomente;emgeral,fitavam-mecomfranqueza,semtemeridade,nembiocos”(MPBC,cap.xxxii).Ouseja,Eugênianãosepermitiaoperarpordentrodalógicasenhorial;buscavapreservarasuaalteridadea

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qualquercusto,oqueacabouporprovocarareaçãocrueledestemperadadeBrás.Narealidade,odefuntoautortentailudir-searespeitodaraparigatodootempo.Aonarrarovôodaborboletapretaaoredorded.Eusébia,Bráscontaquedeixaraacasadasvizinhas“arircomigodasuperstiçãodasduasmulheres,umrirfilosófico,desinteressado,superior”(MPBC,cap.xxx).Todavia,talafirmativacontradizcomentárioanterior,noqualsetornaclaroqueelenãoestavasegurosobreareaçãodeEugênia:“afilha,podeserquepálidademedo,dissimulavaaimpressãocommuitaforçadevontade”(MPBC,cap.xxx;grifomeu).Noutrapassagem,omemorialistadizque“aopédessacriaturatãosingela,filhaespúriaecoxa,feitadeamoredesprezo,aopédelasentia-mebem,eelacreioqueaindasesentiamelhoraopédemim”(MPBC,cap.xxxiii;grifomeu).Denovo,apesardeseuempenhoemdepreciaremenosprezarEugênia,Brásnãopodiatercertezadequeelaestavasobseudomínio.QuandoeledecidedeixaraTijucaparafugirdapequena,aterradodiantedoriscode“viraamardeveras”,Eugêniarecusa-seaembarcarnoengododequeaseparaçãoseriatemporária:“Fazbememfugiraoridículodecasarcomigo”(MPBC,cap.xxxv).Numdosúltimoscapítulosdolivro,Brásrelataque,muitosanosdepois,aovisitarumcortiçoparadistribuiresmolas,láencontraraEugênia.Pareceu-lhe“tãocoxacomoadeixara,eaindamaistriste”.Masaindaestavadispostaaencará-losemrebuços:“Ergueulogoacabeça,efitou-mecommuitadignidade.Compreendiquenãoreceberiaesmolasdaminhaalgibeira,eestendi-lheamão,comofariaàesposadeumcapitalista”(MPBC,cap.clviii).

AassertivadonarradordequeEugênianãopodia“mentiraoteusangue,àtuaorigem”éambivalente.Areferênciaà“origem”aludecertamenteaonascimentoilegítimoeàcondiçãosocialinferiordamenina.Amençãoao“sangue”deEugênia,porém,parecemaisdifícildeinterpretar.Porumlado,podeseroutromododerealçaracondiçãodeinferioridadesocial,poisBrásésupostamenteumvarãodedescendênciailustreetradicional—gentecomoelegostavadeseimaginararistocratadesangueazul,etalvezporissoomemorialistafosseapreciadordeborboletasazuis.Poroutrolado,podesugerirsentimentodesuperioridadenatural,biológica.Afinal,Eugêniaera“coxadenascença”,logoseusanguepareciaadulteradooudegenerado—“filhaespúria”—,quiçátingidodenegrosemelhanteàqueledaborboletapreta,queeraumacriaturaservil,aocontráriodeEugênia,poisquesemostroudispostaabeijaroCriadordasborboletasepedir-lhemisericórdia.Eugênia—“minha

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VênusManca”(MPBC,cap.xxxiii)—,borboletasnegras,escravoseoutrosdependentesexistiamtodosparaserviratéexaurirem-se,depoisbastavadescartá-los.Ésignificativoque,aodecidirfugirdamoçadevidoàdeformidadefísicadela,onarradordigaque“enxoteiessaoutraborboletapreta,quemeadejavanocérebro”(MPBC,cap.xxxiii).Assimqueaborboletapretaexpirou,vieram“aspróvidasformigas”(MPBC,cap.xxi);logoanaturezaseguiuoseucurso.QuantoàEugênia,odefuntoautornãosabedizerseaexistênciadelafora“muitonecessáriaaoséculo”;talvez“umcomparsademenosfizessepatearatragédiahumana”(MPBC,cap.xxxvi).

Dequalquerforma,ofatoéquearesistênciaobstinadadeEugêniaaodomíniodeBrásfazcomqueomemorialistaarticule,retrospectivamente,váriasracionalizaçõesparasuasupostasuperioridadesobreela.Aorevolveropassado,onarradorbuscaconvencer-sedequehouveramotivoslegítimosparaconsiderarameninapessoaimprópriaparaomatrimônio.Recorreassimtantoàsalegaçõestradicionaispertinentesàideologiapaternalistaquantoàsnovasrepresentaçõescientificistasdeque“vidaéluta”(MPBC,cap.cxli),comoensinavaQuincasBorba,elutanaqualomaisaptohaviadeprevalecer.Porconseguinte,pareciaindesejáveldesposargarotacoxa,aindaquebela,poispresumia-seasuainadequaçãoparaareproduçãobiológicasaudável.Éprecisoconsiderar,todavia,queodefuntoautorescreveoseurelatoem1880,tornando-seentãoprovávelqueelereconstruísseosmotivospassados,aomenosemparte,segundoasuainterpretaçãodosentidodosacontecimentosnomomentodaescrita,nãoconformeavivênciadecercadequatrodécadasantes.Emconseqüência,podemossuporqueasnovasidéiascientificistasderivadasdeDarwinestãopresentesnaestruturamentaldoautord’além-mundo,nãonadodândidemeadosdoséculoxix.Háindíciodetaldistânciaentrenarradoredândinopróprioepisódiodaborboleta.Talvezestemeucapítulovoedemaisnasasasduminseto,maspensoqueocontrastequeonarradorbuscatraçarentreojovemBrásed.Eusébiaquantoasuperstiçõesrevela-seimprocedente,apesardetodooseuesforçoemfirmá-lo.Comovimos,Brásaborreceu-secomoinsetoporquejulgouqueele“tinhaumcertoarescarninho”,advindoemseguidaotal“repelãodosnervos”quemotivouogolpefatal(MPBC,cap.xxxi).Ora,entãonãoapenasd.Eusébiaeopresenteautortendemaconferirsentidosdemaisàsasasdaborboleta:Brásvislumbroucertaatitudenosmovimentosdoinsetoeamuou-secomela,oquedemonstraqueelecompartilhavadealguma

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formaassuperstiçõesded.Eusébiaarespeitodeborboletaspretas.Onarradortentaafastarodândideoutroradetaissuperstições,masoseuprópriorelato,lidoacontrapelo—istoé,aoarrepiodesuasintenções—,testemunhaproximidadesentreBrásed.Eusébianesseponto.

Dequalquermodo,nãoimportaquaisfossemasidéiasdeBrásnadécadade1840,ofatoéqueem1880elepareciaprontoaponderar,quiçáadotar,o“sistemadefilosofia”doamigoQuincasBorba.

vidaéluta

BráseQuincashaviamsidocolegasdeescola.Oreencontrodelesocorreuprovavelmentenasegundametadedadécadade1840,ajulgarporumaououtrapistapresentenotexto,eQuincas,apóserguer-sedemaltrapilhoaabastadoporefeitodumaherança,passalogoaexporaooutroasuadoutrina.

OconceitocentraldosistemafilosóficodeQuincasBorbaeraoHumanitas,princípiodeterminanteoucausaprimeiradetodososfenômenoshumanos.AssimcomoBrás,Quincastinhaocostumededesenvolverassuasdemonstraçõespormeiodeanedotasoudaobservaçãodeacontecimentososmaiscorriqueiros,comoalgumamanifestaçãodosentimentodeinveja,aocorrênciadecertaepidemia,umabrigadecães,ouatéumaasadefrangoservidanoalmoço.Elediziaqueseusistemadefilosofiaseriaaruínadetodososoutros,poisque“retificaoespíritohumano,suprimeador,asseguraafelicidade,eenchedeimensaglóriaonossopaís”(MPBC,cap.xci).Sobreainveja,porexemplo,sentimentounanimementecondenadopormoralistasgregosouturcos,cristãosoumuçulmanos,opensadorpropunhainterpretaçãoquelheinvertiaosentidodemodoradical.Aocontráriodeseuspredecessores,equivocadostodos,Quincasfaziaoelogiodainveja,essaexpansãodeHumanitas,aforçapositivabásicainerenteàhumanidade:

Orabem;abremãodosvelhospreconceitos,esqueceasretóricasrafadas,eestudaainveja,essesentimentotãosubtiletãonobre.SendocadahomemumareduçãodeHumanitas,éclaroquenenhumhomeméfundamentalmenteopostoaoutrohomem,quaisquerquesejamasaparênciascontrárias.Assim,porexemplo,oalgozqueexecutaocondenadopodeexcitarovãoclamordospoetas;massubstancialmenteéHumanitasquecorrigeemHumanitasumainfraçãodaleideHumanitas.Omesmodireidoindivíduoqueestripaaoutro;éumamanifestaçãodaforçadeHumanitas.Nadaobsta(eháexemplos)queelesejaigualmenteestripado.Seentendestebem,facilmentecompreenderásqueainvejanãoésenãoumaadmiraçãoqueluta,esendoalutaagrandefunçãodogênerohumano,todos

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ossentimentosbelicosossãoosmaisadequadosàsuafelicidade.Daívemqueainvejaéumavirtude.(MPBC,cap.cxvii)Discípuloestupefato,filósofotriunfante,poisQuincasprovavaque

Humanitaseramesmooprincípiodeterminantedascoisashumanas,equesemanifestavapormeiodoimpulsoparacompetircomossemelhantes,superá-loseatémesmodestruí-los.Osmaisaptosbeneficiavam-sedosrecursosdisponíveis,arrebatavam-lhesaosoutros,exauriam-nos,logoseadaptavameperduravam.ObserveacomplexidadedaasadefrangoqueQuincas“chupavafilosoficamente”:

Maseunãoquerooutrodocumentodasublimidadedomeusistema,senãoestemesmofrango.Nutriu-sedemilho,quefoiplantadoporumafricano,suponhamos,importadodeAngola.Nasceuesseafricano,cresceu,foivendido;umnaviootrouxe,umnavioconstruídodemadeiracortadanomatopordezoudozehomens,levadoporvelas,queoitooudezhomensteceram,semcontaracordoalhaeoutraspartesdoaparelhonáutico.Assim,estefrango,queeualmoceiagoramesmo,éoresultadodeumamultidãodeesforçoselutas,executadoscomoúnicofimdedarmateaomeuapetite.(MPBC,cap.cxvii)ParecehaversemelhançasestruturaisprofundasentreasreflexõesdeBrás

quantoaosignificadodosnarizeseessaidéiadeQuincasBorbasobreaexistênciadeumaconcatenaçãoatlânticadeesforçosapenasparagarantir-lheofrangodoalmoço.Aoabordaraanedotadonarradorsobreonarizpaternalista,argumenteiquesuaconclusãodeque“oequilíbriodassociedades”requeria“asubordinaçãodouniversoaumnarizsomente”erametáforadapolíticadedomíniopertinenteàclassesenhorialescravistabrasileira—ouseja,avigênciadaimagemdainviolabilidadedavontadesenhorialesuaprerrogativadecriaromundoàsuafeição.Naalegoriadofrango,asrepresentaçõessociaisoriginam-se,aoqueparece,nopólooposto.Emoutraspalavras,emvezdeumavontadetodo-poderosaadescendersobreasociedadeeregularseufuncionamento,háopostuladodeumacausanaturaloubiológicaprimordialqueconstituiasociedade“debaixoparacima”,porassimdizer,paragarantirsobrevivênciaedesfruteaossupostamentemaispreparadosparaenfrentaraslutasnecessáriasdavida.Apesardamudançasignificativanalinguagemmetafórica—e,presume-se,noaparatosimbólicoeritualísticodopoder—,oquerealmenteimpressionanasanedotasdonarizedofrangoéaparecençaentreasduasnoquetangeàpirâmidesocial,àcontinuidadedasrelaçõessociaisdesiguais.Nãohaviaqualquerpendorparaconceberrupturasnadistribuiçãodosprivilégios

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sociais—ou,numaoutrachave,paraexpandireaperfeiçoardireitosdecidadania—nesseprocessodetransiçãoentreimagensdedominaçãosocial—“Queprofundasquesãoasmolasdavida!”(MPBC,cap.cx),disseonarradorcertavez.

QuincasBorbadesfilavaumexemploatrásdooutroparademonstraranoçãodequeasobrevivênciadosmaisaptoseraaforçapropulsoradetodososfenômenoshumanos.Aguerra,calamidademaioràprimeiravista,tornava-se“umaoperaçãoconveniente”;afome,“eelechupavafilosoficamenteaasadofrango”,apareciacomo“umaprovaaqueHumanitassubmeteaprópriavíscera”(MPBC,cap.cxvii).OexemplomaisreveladorsurgiutalvezquandoanoivadeBrás,Eulália,acabarademorrer,vítimadefebreamarela,em1850.Onarradorrelataassimosseussentimentossobreoocorridoeoqueentãoouviraaofilósofo:

doeu-meumpoucoacegueiradaepidemiaque,matandoàdireitaeàesquerda,levoutambémumajovemdama,quetinhadeserminhamulher;nãochegueiaentenderanecessidadedaepidemia,menosaindadaquelamorte.Creioatéqueestamepareceuaindamaisabsurdaquetodasasoutrasmortes.QuincasBorba,porém,explicou-mequeepidemiaseramúteisàespécie,emboradesastrosasparaumacertaporçãodeindivíduos;fez-menotarque,pormaishorrendoquefosseoespetáculo,haviaumavantagemdemuitopeso:asobrevivênciadomaiornúmero.Chegouaperguntar-mese,nomeiodolutogeral,nãosentiaeualgumsecretoencantoemterescapadoàsgarrasdapeste;masestaperguntaeratãoinsensata,queficousemresposta.(MPBC,cap.cxxvi)Apassageméreveladoranãotantopeloqueafirma—afinal,trata-seapenas

deoutroexemplodeapropriaçãoporMachado,parafinssatíricos,doconceitodarwinistaclássicodeseleçãonatural—,maspeloquedeixasubentendidoarespeitodosignificadodafebreamarelanoBrasildasegundametadedoséculoxix.Aocontráriodocóleraedavaríola,afebreamarelafazianúmerobemmaiordevítimasentreapopulaçãobranca,especialmenteimigrantesrecém-chegadosaopaís.Em1850,quandoadoençaatingiuproporçõesepidêmicasnoImpériopelaprimeiravez,amedrontousobremaneiraossenhoresdeescravos,poishaviaotemordequeosnegrosaproveitassemadesorganizaçãomomentâneadavidaentreseusalgozesparaorganizarrevoltas.Em1880,anoemqueBrásescreveusuasmemórias,afebreamarelatornara-seobstáculoformidávelparafazendeirosepolíticosinteressadosempromoveraimigraçãomaciçadetrabalhadoreseuropeuscomoformadesuavizaroimpactoeconômicodoprocessodeemancipaçãodosescravos.Alémdisso,aolidarcom

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interpretaçõescorrentesnoinesgotávelmanancialracistaeuropeu,segundoasquaisamiscigenaçãodegeneravaospovos,haviapolíticoseintelectuaisbrasileirosesperançososdequeoinfluxodesangueeuropeu,“superior”,produzisse,aocontrário,obranqueamentogradualdapopulaçãoe,nofuturo,aprópriaregeneraçãonacional.8Porconseguinte,aidéiadeQuincasdequeaquelaepidemiadefebreamarelaexpressaraapenasavigênciadaseleçãonaturalafigurava-seabsurdaparaBrás.Afinal,a“lógica”dapragaamarelaeradesconcertante:dizimavabrancos,serestidosporsuperiores,enãocausavamaioresestragosentreosafricanoseseusdescendentes.Porissoonarradornuncachegara“aentenderanecessidadedaepidemia”.BrásnãoquestionaaafirmativadeQuincasdequeepidemiasbeneficiavamaespécie.Seafebreamarelapareciacontradizeroesquema,urgiaerradicá-la,enãomodificaroquadroteóricogeral.Assim,nahistória,coerentementecomaficção,afebreamarelapermaneceuprioridadeabsolutadaspolíticasdesaúdepúblicanopaísatéacampanhabem-sucedidaparacontrolá-lanoiníciodoséculoxx.Dequalquermodo,oparadigmadarwinianoemergentedosanos1880émaisdecisivoparaonarradordoqueforaparaBrás,osenhordeescravosdosanos1850,entãoprovavelmentepreocupado,comotodososoutros,comaspossíveisconseqüênciasdaquelaepidemiaparaocontrolesocialdaescravaria—ouseja,opresentereinterpretaopassadoeoreconfigurasegundoaslutaspolíticasdomomento.Nãoobstanteosmotivos,quemudaramaolongodotempo,ofatoéqueafebreamarelapermaneceudoençainfelizparanarrador,dândieseusparesdurantetodaasegundametadedoséculoxix—doença“absurda”,“insensata”,oquetalvezsugiraaexistênciadeoutras“úteisàespécie”.

Apósessaexposiçãodo“sistema”deQuincasBorba,énecessárioponderaraspossíveisintençõesdeMachadoaoconcebertalsátirafilosófica.Àprimeiravista,pode-sepensarqueoprincipalalvodoromancistaeraopositivismo.Defato,QuincasBorbainiciaasuaapresentaçãodoHumanitismoaBráscomaleidastrêsfasesdeHumanitas:“aestática,anterioratodaacriação;aexpansiva,começodascousas;adispersiva,aparecimentodohomem”;previaumaquartafase,acontrativa,“absorçãodohomemedascousas”(MPBC,cap.cxvii).IssolembraComtedeveras,esualeidosestádiosdeevoluçãodahumanidade;alémdisso,opositivismotornava-setãopopularentreaselitesintelectuaisepolíticasbrasileirasdoperíodoqueéfácilimaginaroprazerdeMachadoemzombardesemelhantecaceteação.Todavia,achoqueJohnGledsonestácorretoao

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argumentarqueMachadosuspeitavadetodotipodemonismo,ouseja,dequalquerexplicaçãoparaosfenômenosdanaturezaedasociedadebaseadanalgumprincípioúnicooudeterminaçãoestrita—porconseguinte,oobjetodasátirageneraliza-se,paraincluirabiologiadarwinistaeideologiassociaisdaíderivadas,assimcomooutrosacepipesintelectuaisdeigualsabor.9Nãoéoutraaorigemdaquase-maniadeMachadodeAssisdeaproximarsempre,edasformasmaisdivertidas,cousasàépocajátãodificilmenteconciliáveiscomociênciaereligião.

Acredito,porém,queconceitosderivadosdodarwinismoconstituam,defato,ocentrodoHumanitismo.ParececertoqueMachadoandarabastanteinteressadoemteoriasevolucionistasnosanosimediatamenteanterioresàredaçãodasMemóriaspóstumas.Jean-MichelMassa,aocompilaroquerestoudabibliotecadoromancista,perguntava:“Dansl’étrangeconstructiondel’Humanitisme,Spencer,Darwinn’ont-ilspasaussiapportéleurpierre?”.10Defato,MachadopossuíaosprincipaistrabalhosdeDarwin,SpencereAlfredWallace,todosemtraduçõesfrancesaspublicadasnadécadade1870.11TantooHumanitismoquantoanarrativadeBrás—sim,porqueodefuntoautoradotao“sistemadefilosofia”deQuincas—estãoimpregnadosdealusõesaidéiasdarwinistas,comoasdeseleçãonatural,sobrevivênciadomaisaptoeoutras.Naturalmente,oobjetivodoliteratoésatírico,nãoqualquerdefiniçãorigorosadedarwinismosocial,logotrata-sedeapropriação“livre”deexpressõescadavezmaiscorrentesàépoca.12Noentanto,podehaveralgonofatodeodarwinismosocial,enãoopositivismocomtiano,serofulcrodoHumanitismo.SegundoMikeHawkins,hádiferençassignificativasentrepositivismoedarwinismosocial.Decerto,abiologiaéimportanteemambos,eComteacreditavaqueanimaisehumanoscompartilhavammuitosatributosbiológicos.Elenãoachava,porém,queasociologiapudesseserreduzidaàbiologia,jáqueaconvivênciasocialentresereshumanosprovocavaaemergênciadepropriedadesnãoencontráveisnomundonatural.Comteargumentavaque,conformeassociedadesevoluíam,beneficiando-sedeconquistasdasgeraçõesprecedentes,constituía-seumlegadoculturaldecisivonaconfiguraçãodementeseaçõeshumanassubseqüentes.Emsuma,Comtepunhaofocoprincipalnatransmissãocultural,nãonadeterminaçãobiológica.Hawkinsconcluiquenãohánada“remotamenteanálogoaomecanismodaseleçãonaturalesobrevivênciadomaisaptonateoriadeComte”.Alémdisso,o

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pensadorfrancêsopunha-sefirmementeàguerraeoutrasformasdeconflito.Naverdade,consideravapatológicosoegoísmoextremo,osconflitosdeclasse,asconquistascoloniaiseasguerrasmodernas,econcebiaasuadoutrinacomoumnovoconsensomoralcapazdeeliminartaisflagelos.13Segue-sequeamáximadeQuincasBorba,“vidaéluta”,pareceanátemaaopositivismocomtiano.

Éclaro,porém,quetaisbossasfilosóficashaviamaparecidonocenáriointelectualbrasileirohaviapoucotempo,quandoodefuntoautorlavrousuasmemórias;porconseguinte,nãoparecedebomalvitretraçardistinçõesmuitorígidasentredoutrinastãoaparentadas.14QuincasBorbaeramuiprovavelmenteumeclético,quiçáumreflexodaagoniamentaldonarradordiantedosdesafiosdotempo—bastapensarqueBrásCubasescreviaem1880,anoderecrudescimentodaslutaspolíticaspelaemancipaçãodosescravos.Dequalquermodo,pensoque,aoescolherodarwinismosocialcomoabasedoHumanitismo,MachadodeAssismostrava-seatentoaopotencialideologicamenteracistadoreducionismobiológico.Veremos,emseguida,queeletentouenviaralúgubremensagem,nasMemóriaspóstumaseemoutrosescritos,sempredeformasutilealegórica,massemfazerqualquerconcessãoalógicasmentaisqueconsideravamistificadoras.

narizesmetafísicos

Narizesabundamnostextosmachadianos.Hánarizespirrador,entupido,empinado,metafísico...Otipometafísicopoderiateraparecidonanarrativadodefuntoautor,masofeznoutrotexto—ocontointitulado“OsegredodoBonzo”,publicadonacoletâneaPapéisavulsos,de1882.15Ahistóriaocorrenoséculoxvi,nodistantereinodeBungo,ondeumsábiochamadoPomadadefendiadoutrinasegundoaqual“seumacousapodeexistirnaopinião,semexistirnarealidade,eexistirnarealidade,semexistirnaopinião,aconclusãoéquedasduasexistênciasparalelasaúnicanecessáriaéadaopinião,nãoadarealidade,queéapenasconveniente”.Discípulosdosábiopercorriamoreinoapregaranovadoutrina.Patimau,porexemplo,juntarapequenamultidãoemtornodesiparaexplicaraorigemdosgrilos,“osquaisprocediamdoaredasfolhasdecoqueiro,naconjunçãodaluanova”.“Patimau,Patimau,vivaPatimau,quedescobriuaorigemdosgrilos”,respondiaamultidão.Oteórico

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dosgrilosagradeciaereafirmavaacrençaemseutrabalho,“tãocertoeraqueaciênciavaliamaisdoqueavidaeseusdeleites”.Outrodiscípuloargumentavaqueosegredodavidafuturaestavaemcertagotadesanguedevaca,sabe-selácomo,eonarradornãooexplica.

Numcertomomento,omédicoportuguêsDiogoMeireles,“ourodaverdadeesoldopensamento”,nogalanteiodeoutrobonzosapientíssimo,resolveufazeroseupróprioexperimentoparatestaravalidadedadoutrina.Grassavaentãonacidadedosbonzosepidemiadeumadoençasingular,cujoprincipalsintomaeraadeformidadedosnarizes,quecresciamtantoetantoapontodetomarmetadedacaraaosdoentes,quetampoucosuportavamcarregarsemelhantepeso.DiogoMeirelesestudouamoléstiaeconcluiupeloalvitrededesnarigarosdoentes,“poistantovaliaumnarizdisformeepesadocomonenhum”.Ospacientes,todavia,nãosesubmetiamàcirurgiaindicadapeloesculápio.Achavamquecarasemnarizeracousaaindapiordoquecaracomoditograndeedeformado.Naimpossibilidadedeconvencerosinfelizes,MeirelesresolveucolocarempráticaaquiloqueouvirademestrePomada,omaissabidodosbonzos.Reuniumuitosfísicos,filósofos,autoridadesepovoparacomunicar-lhesquedescobriraumamaneiradeeliminaroórgãoafetadosemmutilaropaciente;bastava“substituironarizachacadoporumnarizsão,masdepuranaturezametafísica,istoé,inacessívelaossentidoshumanos,econtudotãoverdadeiroouaindamaisqueocortado;curaestapraticadaporeleemváriaspartes,emuitoaceitaaosfísicosdeMalabar”.Apósalgumacontrovérsia,ospresentesconvenceram-sedequevaliaatentativa,especialmenteporqueaepidemiaseagravava,levandopessoasaodesesperoeatéaosuicídio.Alémdisso,omédicodefenderaoseumétodocomtantaenergiaefirmeza...Atocontínuo,Meirelespassouadesnarigardoentescommuitíssimaarte,recolhendoemseguidaumexemplardenarizmetafísiconacaixaqueficavaaoladoparaaplicaraorostodopaciente.Amaiorprovadosucessodanovatécnicaestavanofatodeque,assimcurados,osdesnarigadoslogovoltavamafazerusoregulardelençosdeassoar.

JohnGledsonargumentouqueashistóriasreunidasporMachadodeAssisemPapéisavulsostêmemcomumotemadaidentidadenacional.16Defato,considerandoopapelproeminentedaface,elogodonarizqueestáemseucentro,nadecifraçãodocaráterdospovosemmuitodahistóriadaculturaocidental,pareceapropriadocontarumaanedotasobreidentidadenacionalpor

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meiodaaparênciadenarizes.17Assim,ocontotorna-seoutraalegoriadumanaçãoàprocuradesuaalma,tãodesprovidadeidentidadeverdadeiraquepodeserlevadaanegaroseujeitodeser;ouseja,pegaamaniadeimaginar-sediferente,desejapassarporoutraquenãoelamesma.Anaçãoparecedegenerada,triste,quiçáfadadaapatinharsemprogredir.Essestemasnosfazemlembrarque,àépoca,muitosintelectuaisepolíticosachavamque“obrasileiro”eratipomelancólico;18nãoéporacaso,então,queaomorrerBrásCubasestivesseempenhadoemexperimentosparainventar“ummedicamentosublime,umemplastroanti-hipocondríaco,destinadoaaliviaranossamelancólicahumanidade”(MPBC,cap.ii).Aoqueparece,oproblemaestavanascaracterísticasraciaisdapopulação,comprometidapelamestiçagem;ademais,olegadodaescravidãoeraumpovoindolente,semdisciplinaeéticadetrabalhoapropriadas.Emsuma,naçãodoentemesmo,degenerada.19NahistóriadeMachado,acuraimagináriaresultadacolaboraçãoentreummédicoestrangeiroeumgurulocal—istoé,ciênciaimportadaeconhecimentonativounem-separailudiroshabitantesdoreino.

Ofatodeessecontosobrenarizesestarsituadonoséculoxvipodeajudararevelaroseuassuntoprincipal,queé,achoeu,aciênciaracialdoséculoxix—por“ciênciaracial”entende-seatentativaderelacionarascaracterísticasfísicasdospovosaseussupostosestádiosougrausdecivilização,demodoafazercomqueastaiscaracterísticassejamdeterminantesparaatribuirmaioroumenorcivilizaçãoaessaouaquelanação.20OséculoseguinteàsviagensdeColomboassistiuàexpansãodasífilisnaEuropa,eeraopiniãocorrentequeaepidemiaforaimportadadoNovoMundo.21Narizesdeformadosficaramlogoassociadosàdoença.Asífilisprovocavaainfecçãodoossoeposteriorcolapsodacartilagemdonariz,tornandooórgão“ausente”nocentrodorostoasuamanifestaçãomaissalienteetemida.22ÉcuriosoquePangloss,apersonagemdeVoltairequeinspirouBrásnaalegoriadonarizpaternalista,tivesseperdidoopróprionarizdevidoàsífilis.Cândidoencontrouofilósofocomoum“mendigocobertodepústulas,olhosmortos,pontadonarizcarcomida,bocarepuxada,dentesenegrecidosedevozcavernosa,atormentadoportosseviolenta,eacuspir,emcadaesforço,umdente”.23Panglossrelatouatransmissãosucessivadoflagelodesdeoseupontodeorigem,num“doscompanheirosdeCristóvãoColombo”,atéele.Contraíraadoençaaoterrelaçõessexuaiscomalindacriadadumaaugustabaronesa;osamanteshaviamperpetradooatoatrásde

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“silvados”.24Retornamosassimaostemasdocomportamentosexualsupostamente

desregradoedadegeneração,ad.Eusébiaeaoglosador,eaEugênia,“aflordamoita”,coxaebela.Noiníciodosanos1880,quandoMachadoconcebeuasuahistóriasobrenarizes,asífiliseasdoençassexualmentetransmissíveisemgeralcausavamgrandeapreensãoporqueaciênciaevolucionistahaviadespidoahumanidadedesuasorigensreligiosas,atribuindo-lhelugarespecíficonoreinodanatureza—apenasoutraespécie,nãoimportaquão“superior”,alutarpelasobrevivência.Porconseguinte,areproduçãobiológica“higiênica”tornava-secrucialparaofuturodaespéciehumana.25Alémdisso,outrossignificadoshaviamaderidoaosnarizes.Narizescarcomidosdesifilíticosapareciamaoladode“narizesraciais”,porassimdizer.Difundia-seaidéiadequeaaparênciaeotamanhodosnarizesmarcavamsuperioridadeouinferioridaderacial—logo,europeusdefungadorgrandeecompridodecidiramquenarizesdenegros,porexemplo,eramchatosefeios.Naverdade,oanatomistaholandêsPetrusCamperhavia“descoberto”o“índicenasal”eo“ângulofacial”desdeofinaldoséculoxviii.SegundoSanderGilman,“oíndicenasaleraalinhaqueligavaatestaaolábiosuperiorpormeiodonariz;[...]oângulofacialeradeterminadopelaligaçãodessalinhacomumahorizontaloriginadanamandíbula”.Deinício,oângulofacialinterligavatodasas“raças”dahumanidade,poisserviaparadistingui-lasdeoutrosantropóidessuperiores;depoistornou-semododeestabelecerhierarquiaentreraçashumanas.Aosafricanoscoubeapechadeinferioresefeiosporqueseusnarizes,consideradoscurtosdemais,aparentementeaproximavamasuafisionomiaàdosprimatas.26

Emsuma,cientistaseuropeusdoséculoxix,tãomeditabundosquantoBrásCubasarespeitodautilidadedonariz,chegaramàconclusãodeque,apesardetodasasaparênciasemcontrário,talórgãoserviaparapensar.PodemosimaginarqueMachadodeAssisinventouonarizmetafísicoparaparticipardepassatempotãoconspícuo.Naqueleiníciodadécadade1880,defato,Machadopareciaperplexocomoesforçodepolíticoseintelectuaisbrasileirosparaenraizaremsolopátriotaisderivaçõesracistasdodarwinismosocial—Brásnascera“dessaterraedesseestrume”(MPBC,cap.xi).ÉintrigantequeapersonagemdoromanceconcebidaparametaforizarasrepresentaçõesdifundidaspelaciênciaracialtenhasidodenominadaEugênia—a“bem-nascida”.Eugêniaconcentratalmetáforaporquenela,comovimos,Brásbusca

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relacionarcaracterísticasfísicas—ofatodequeeracoxa—emoralidade—a“flordamoita”,quenãopodia“mentiraoteusangue,àtuaorigem”—paraconcluirqueagarotaeraintelectualmenteinferior(“supersticiosa”,aosolhosdonarrador),27degeneradaeimprópriaparaareprodução“higiênica”daespécie.Aidéiade“eugenia”parecetersurgidoem1883,portantopoucosanosapósapublicaçãodasMemóriaspóstumas,difundidaporFrancisGalton,cientistabritânico,primoeseguidordeDarwin.DeacordocomHawkins,Galtonpropunha“a‘ciência’daeugenianacrençadequeeraobjetivamentepossívelidentificaroselementosindesejáveisemcertapopulaçãoereduziroseunúmeropormeiodecertoscontrolessociais—eugenianegativa—;aomesmotempo,dever-se-iaencorajarareproduçãodosmelhoreselementos—eugeniapositiva”.28AsugestãodeGaltonnãofoiinfluentedeimediato,masfariacarreiraportentosanasprimeirasdécadasdoséculoxx.29BrásCubas,aindaaobservarosacontecimentosdestemundo,enãoemancipadodetododesuamentalidadepaternalista,poderiadeverasalegarqueforaeleoCriadordesemelhantecousa.

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4.Escravidãoecidadania:aexperiênciahistóricade1871

mariana

Oconto“Mariana”,deMachadodeAssis,foioriginalmentepublicadonoJornaldasFamíliasemjaneirode1871.1AhistóriaéinicialmentenarradaporMacedo,queacabaraderetornaràCorteapósquinzeanosdepasseiopelaEuropa.AformacomoMacedoseapresentaaoleitornasprimeiraspáginasdocontofazlembrarpersonagenssenhoriaissemelhantes,prestesapovoarosromancesdeMachadonosanosseguintes.Prosa,comoBrásCubas,orecém-chegadoachavaquesobreseusamigosdeoutrora“pesavamquinzeanosdedesilusãoecansaço”;ele,aocontrário,“vinhatãomoçocomofora”,eseosseuscabeloscomeçavamaembranquecer,aalmaeocoração“estavamemflor”.Ojanotaarrematouapeçafilosoficamente:“Nãohádecepçõespossíveisparaumviajante,queapenasvêdepassagemoladobelodanaturezahumanaenãoganhatempodeconhecer-lheoladofeio”(p.771).

Poisestenarrador,superioremfilosofiaeformosura,andavapelasruasdacidadedesuainfânciaejuventude,apreciandoegabandoosprogressosdaCorte,atéqueesbarrouemCoutinho,umaalmagêmea.Doisoutros“companheirosdeoutrotempo”juntaram-seaeles,formando-seumarodadeex-rapazesquenãosabiamqueoeram,abeber,comerebabarmulhereseprazeres.Trocavam-seconfidências,eCoutinhotomouapalavra,dispostoanarrarumepisódiosingulardesuajuventude,algoquenuncaconfessaraaninguém.Charutosacesos,nasóculosencaixados,Coutinhodeclarouquejáamaraeforaamadomuitasvezes,“masnemdepoisnemantes,epornenhumamulherfuiamadojamaiscomofui...”.PelaprimaAmélia,comquemquasecasara?Não.ForaamadoporMariana,escrava,criadacasa.Diantedoespanto

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geral,Coutinhoprosseguiuanarrativa,sacudindodistraidamenteascinzasdocharutoe“absortonarecordaçãoqueoseuespíritoevocava”(p.773).

Marianaerauma“gentilmulatinhanascidaecriadacomofilhadacasa,erecebendodeminhamãeosmesmosafagosqueeladispensavaàsoutrasfilhas”.Adiferençaestavaemqueacativanãosentavaàmesanasrefeiçõesenãopodiaaparecernasalaemocasiãodevisitas.Nomais,“eracomosefossepessoalivre”,eatéasirmãsdeCoutinhodispensavam-lhe“certaafeiçãofraternal”.Amenina,porseulado,“possuíaainteligênciadesuasituação”,sabendoque“sólherestavapagarcommuitoreconhecimentoabondadedesuasenhora”.Aindaqueasuaeducaçãonãotivessesido“tãocompletacomoademinhasirmãs”,Marianaaprenderaalereaescrever,alémdostrabalhosdeagulha.Maistarde,desejouaprenderfrancês,oquefezcomomáximoproveito.ChegouaconheceresseidiomatãobemquantoairmãdeCoutinhoquelheministraraaslições.Paracompletarseus“encantos”,Marianatinha“talheesbeltoeelegante,colovoluptuoso,pépequenoemãosdesenhora”,alémde“olhosnegroserasgados”dosquaisrompia“fogoinquietoevivaz”(p.773).

Marianaapaixonou-seperdidamentepelosenhormoço.PassouasofreraodescobrirqueorapazarranjaracasamentocomaprimaAmélia.CoutinhoesuairmãJosefarepararamnatristezadaraparigaeresolveraminvestigar-lheascausas.Suspeitaramdealgumnamoro,masfoiJosefaquematinoucomoverdadeiromotivo,apesardenãoconseguirarrancarumaconfissãodeMariana.Ameninapiorou,ficoudoente,depoissarouporqueCoutinhopediu-lhequevivesse.Lisonjeadocomtantaadoração,oguapocomeçouarepararmaisna“mulatinha”,surgindoemseu“espíritoumaidéiaquearazãopodecondenar,masquenossoscostumesaceitamperfeitamente”(p.778).Marianamostrou-se“acimadasveleidades”dosenhormoço,escapando-lheaoassédioedesaparecendodecasadiasdepois.AmãedeCoutinhoficoutristeeindignadacomaatitudedamoça,doendo-lhe“aingratidãodaescrava”.Jáorapazprometeuenvidaresforçosparacapturá-la,“eumavezrestituídaàcasa,colocá-lanasituaçãoverdadeiradocativeiro”(p.778).Issofoioquedeclarouàmãe;intimamente,gostavadepensarqueamoçafugiraporquenãotolerariavê-locasado,oqueocorreriaemoitodias.MaslogotemeuqueodesesperodeMarianapudesselevá-laaosuicídio,esaiuapressadamenteàsuaprocura“impelidopeloremorso”.

AnarraçãododramadeMarianaprosseguenumritmovertiginoso,fazendo

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lembrar,nesseaspectoeemtantosoutros,odramadeHelena,emHelena.CoutinhoencontrouMarianaeainterrogousobreafuga.Senhordaescrava,tentando“desviardoespíritodaraparigaqualquersuspeitadequeeusoubessedosseusamorespormim”(p.779),Coutinholheperguntousealguémaseduziraparafugir.Aescrava,indignadaqueosenhormoçolhefalasseemseduçãoapósas“veleidades”quecometera,desabafou:“Sealguémmeseduziu?perguntouela;não,ninguém;fugiporqueeuoamo,enãopossoseramada,eusouumainfelizescrava.Aquiestáporqueeufugi.Podemosir;jádissetudo”(p.779).Marianavoltouparaacasadasenhora,continuouasofrer,eointeressequeCoutinhomostravaporelaprovocouciúmesobsessivosnaprimaAmélia,suanoiva.Aescravafugiunovamente,eCoutinhorelembraque,defato,preocupava-omaisodesesperodeMarianadoqueosciúmesdeAmélia:“nãoporqueeucorrespondesseaosseussentimentospormim,masporqueeusentiasériosremorsosdesercausadeumcrime.[...]nãopodiapensarsemalgumterrornapossibilidadedemorreralguémpormim”.Osremorsosdonarradordenadaadiantaram.Coutinhoaindaumavezencontrouaescravafugida,eocontofechacomaraparigacometendosuicídiodiantedohomemamado.

Nãoestouaquiparaavaliaroméritoliteráriodessedramalhão.OpróprioMachadotalvezotenhafeito,aojamaisincluiressahistórianasváriascoletâneasdecontosselecionadosqueorganizouduranteavida.Comodocumentohistórico,todavia,ocontoépromissor,aindaquedifícildeinterpretar.OsparaleloscomHelena,publicadocincoanosmaistarde,sãologoaparentes.Hásemelhançasestruturaissignificativas,poisoromancetambéminicialeveegalhofeiroeacabacomamortedaprotagonista,igualmentetorturadaporumamorqueconsideravasemesperança.2Emambososcasos,aideologiapaternalistadossenhoreseasrelaçõesdedependênciaprovocamsituaçõesdeviolênciaehumilhação.Nãohámaniqueísmonaformadetramarassituações;aspersonagensnãosãoinerentementeboasoumás.Ossenhoresmostramestimapelosdependentes,masaofazê-loproduzemapenassofrimentoehumilhação;osdependentes—escravoselivres,MarianaouHelena—sãosinceramenteagradecidosaossenhores,massabemquenãoháperspectivasequeserãosemprelembradosdesuasituaçãodeinferioridadesocial.Osdoisenredosnoslevamàimbricaçãoentreescravidãoe“liberdade”emsituaçãodedependência,mostrandoquehaviaumaesomenteumalógicahegemônicadereproduçãodashierarquiasedesigualdadessociais.Em

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“Mariana”,onarradorinsisteemdescreverasituaçãodaescravaemsuacasaaproximando-aàcondiçãodeliberdade—“eracomosefossepessoalivre”(p.773),“éstratadaaquicomofilhadacasa”(p.776),“escrava,éverdade,masescravaquasesenhora”(p.776).Osfatosdesmentemadoçuraideológicaacadapasso:aomostrardesenvolturaesentimentospróprios,imprópriosnavisãodossenhores,Marianatorna-seingrata(p.778),“insolente”(p.776),atrevida(p.777),rebelde(p.780),“dissimulada”(p.780),escravafugidaecapturada,epresapotencialdarapacidadesexualdosenhormoçoeatédotioJoãoLuís,paideAmélia,sempreinteressadoemcolocaraquela“florperegrina”sobasua“proteção”(pp.773e779).EmHelena,vimosqueaprotagonistametaforizaasuasituaçãodedependênciaaodialogarcomaéguaMoema,que“nãomaldizocativeiro”,maspareciaimpacienteparacorrerpelaestradadaTijucaafora,“sentindo-sealgumacousasenhoraelivre”.3Aaproximaçãoentreescravidãoeliberdade,paraenfatizaraprecariedadeeoslimitesdequalquerexperiênciadeliberdadenumasociedadepaternalista,organizadaemtornodareproduçãodoslaçosdedependênciapessoal,politizaeficazmenteodramadoprocessodeemancipaçãodosescravos,entãoemevidência.Escravidãoepaternalismo,cativeiroedependênciapessoal,pareciamduasfacesdamesmamoeda.

“Mariana”transforma-seentãoemdocumentosobreumimpassehistórico,visãoouinterpretaçãodeumacrisequemobilizavaasociedadeinteira.Aindaquenãohajanocontoumaidentificaçãoprecisadotempodanarrativa,háapostulaçãodeduashistoricidadestramadas,constituintesdafaladeCoutinho.Sabe-sequeMacedo,onarradorquedizreproduzirahistóriadeoutronarrador(Coutinho),acabaradechegardaEuropaapósquinzeanosdeausência.Comoahistóriafoipublicadaemjaneirode1871,esupondoqueessaseriaadataaproximadadaconversadosex-rapazes,oepisódiorelatadoporCoutinhoestariasituadoemmeadosdadécadade1850—períododeconciliaçãodospartidospolíticos,dehegemoniaincontestadadaclassesenhorial-escravista,deapogeudoImpério,segundoasrepresentaçõesdominantesnoperíodoemqueMachadoescrevia.Emjaneirode1871,quandoocontofoipublicado,umgabinetehaviaacabadodesubiraopoder,chefiadopeloviscondedeSãoVicente,autordeestudosiniciaiseredatordeprojetosdeleisdeemancipaçãogradualnorteadospelaidéiadoventrelivre.Aemancipaçãoeraaquestãodomomento,epraticamentenãosetratariadeoutracoisanoparlamentoaolongo

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detodooanode1871.Oconto,portanto,estásituadonocentrodofuracãopolítico.OrelatodeCoutinhoevocaoutraépoca,umtempodeestabilidadenomundodosescravocratas,eareinterpretaàluzdacrisede1871.Emcertosentido,anarrativadeCoutinhorevelaamáconsciênciadeumsenhordeescravosquesesenteforçadoaencararossofrimentoseastragédiasqueprovocavaàsuavolta.Porissofalaem“remorsos”,até“emremorsosdesercausadeumcrime”.

Emseudesfecho,todavia,ahistóriaretornaaotomdegalhofa,aoclimadeinconseqüênciaedelevezamoralsupostamenteinerenteàvisãodemundodeex-rapazesabastados.ConcluídaanarraçãodeCoutinho,osdândissaíramemexpediçãopelaruadoOuvidor,consciênciasàsnuvenseolhosnos“pésdasdamasquedesciamdoscarros,efazendoaesserespeitomilreflexõesmaisoumenosengraçadaseoportunas.Duashorasdeconversatinha-nosrestituídoamocidade”(p.783).Ocrimedaescravidãoproduziracincominutosde“remorsos”aosquarentõesbem-pensantesque,remoçados,voltamlogoaopapeldepredadoressociaisesexuais.Nocontextodasdiscussõesqueresultariamnaleide28desetembrode1871,asquaisveremosadiante,Machadoparecesugerirquenãohaviasaídaparaoproblemadaescravidãopordentrodasrelaçõesinstituídasentresenhoreseescravos.Amensageminescapáveldocontoéanecessidadedeopoderpúblicosubmeteropoderprivadodossenhoresaodomíniodalei.Eraprecisointervirnasrelaçõesentresenhoreseescravosepromoverasuperaçãodainstituiçãodaescravidão,enfrentandodecididamenteosinteressessociaiseeconômicosqueaindaasustentavam.

Éumtantodifícil,àdistânciadequaseumséculoemeio,perceberaprofundidadeeaabrangênciadacrisede1871.Seriamaiscômodorecorreràssempiternasvisõesevolucionistaseteleológicasdehistóriaeacreditarqueoproblemadaescravidãoeraentãoassuntoresolvido,questão“deformaeoportunidade”,comodiziamosprópriosescravocratas.Ofato,todavia,équehouveresistênciatenazàaprovaçãodaleide28desetembrode1871e,depois,àsuaexecução.Todooprocessofoivividopeloscontemporâneoscomagudosentidodeindeterminaçãoemrelaçãoaofuturo.MachadodeAssiscertamenteapreciouaimagembelíssimautilizadaporJoaquimNabuco,seuamigoecorrespondente,aotentartransmitir“averdade”sobreaquelesacontecimentoseaansiedadequehaviamcausado.Nabucorefere-seao“fenômenodasgrandes

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cataratas,comoadoNiágara”,etudosepassaracomosederepenteasociedade,“orio,maismanso,maistranqüilo,maisdescuidoso”,sentisse“sobsuaságuasquedeslizavamoespaçovazio”,precipitando-senele“comtodooseupeso”.Porummomento,pareciaquetudoiria“pulverizar-senoar”.4Empassagemanterior,masaindanomesmoparágrafo,Nabucosugereaincertezaeaexpectativaocorridasemtornodaaplicaçãodalei:“Averdadesobrealeide28desetembroéqueasreformasdessanaturezanãooperammatematicamente,conformeaspotências,asforçaseasquantidadesprefixasdecadaumadesuascláusulas;nãosãosoluçõesexatas,precisas,queproduzemefeitosdantemãocalculados:sãosempreadecretaçãododesconhecido;obrampeloimprevisto,peloespíritoqueestánelas;sãograndesmoldessociaisdequesaemnovostiposhumanos”(grifodooriginal).5Ouseja,em28desetembrode1871decretou-seo“desconhecido”.E,semdúvida,oquenãosesabia,jádeinício,erasealeiseriacumprida,eemquemedida.Ahistóriarecentedopaísregistravaexemplosconspícuosdeleissocialmentedecisivasque,emgrandeparte,“nãopegavam”,comoaleideproibiçãoaotráficonegreiroem1831ealeideterrasem1850.6Éclaroquehaviaexemplosnosentidocontrário,comoanovaleiderepressãoaotráfico,de1850,arespeitodaqualhouveravontadepolíticaparafazercumprir.Emsuma,apósabatalhaparaaaprovaçãodalei,anunciava-seoutraemtornodesuaaplicação,batalhaestaqueseriatravadasobretudoarespeitodainterpretaçãodeseusváriosecomplexosdispositivos.

SeNabucoestavacorretoaoacharquealeide28desetembrode1871produzira“moldessociais”dosquaisemergiram“novostiposhumanos”,entãomeuargumentonestecapítuloédequeaexperiênciahistóricade1871ajudouadelinearumanovapersonagemliterária:MachadodeAssis.Noscapítulosanteriorestenteimostrar,entreoutrascoisas,queoprocessohistóricoqueresultounaleide1871—assimcomosuasconseqüências—estevenocentrodaconcepçãoderomancescomoHelena,IaiáGarcia,MemóriaspóstumasdeBrásCubaseDomCasmurro.Talprocessoétambémonúcleodesentidonoconto“Mariana”.Aoescreveresseconto,porém,Machadonãopodiasuporqueestaria,poucosanosdepois,profundamenteenvolvidonaaplicaçãocotidianadaleide28desetembro.Em1873,MachadodeAssistornou-sefuncionáriodoMinistériodaAgricultura;apartirdemeadosde1876,passouachefiaraseçãodesseministérioencarregadadeestudareacompanharaaplicaçãodaleideemancipação.Oromancistaformou-seetransformou-seaolongodosanos

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1870emdiálogoconstantecomaexperiênciadofuncionáriopúblicoedocidadão.Defato,épossívelatémesmoinvestigarasrelaçõesentreaexperiênciadofuncionárioeafamosaviradanarrativadoromancista,ocorridaentre1878e1880,ouentreIaiáGarciaeMemóriaspóstumasdeBrásCubas.

Opercurso,porém,énecessariamentelongo,quiçátedioso.Pensoqueinterpretaçõespertinentesdossentidosdaexperiênciadofuncionárioaoacompanharaaplicaçãocotidianadaleidependemdaidentificaçãopréviadetemaseconflitosquefizeramde1871ummarcotãodecisivonahistóriapolíticaesocialdoImpériobrasileiro.Éprecisovoltaraosmomentosemqueos“moldessociais”,elespróprios,estavamsendodebatidos,concebidoseconformados.MachadodeAssis,funcionárioecidadão,terádeinteragircomos“novostiposhumanos”emformação,fazendo-seumromancistaespecíficoeoriginalnointeriordesseprocesso.

aartedebordejar

Nofinalde1865,d.PedroiisolicitouaJoséAntônioPimentaBueno,futurovisconde,depoismarquêsdeSãoVicente,querealizasseestudospreliminareseelaborassepropostasdeaçãolegislativavisandoàemancipaçãodosescravos.OtrabalhodePimentaBuenoseriadepoisdiscutidoemsessõesdoConselhodeEstadopleno.OobjetivodoesforçoeradotarogovernodeprojetodeleisobreemancipaçãoasersubmetidoàdiscussãoeaprovaçãodoLegislativo.PimentaBuenoconcluiuatarefaemjaneirode1866.Todavia,asdificuldadesnaguerracomoParaguaiearesistênciadochefedegabinetenaocasião,omarquêsdeOlinda—escravocrataraivosoeempedernido—,fizeramcomqueoassuntofosseengavetadoporalgunsmeses.Emmeadosde1866,ointeressedoimperadorempromoverodebatesobreoproblemadaescravidãorecebeunovoalentocomacorrespondênciaenviadaporumaprestigiosasociedadeabolicionistafrancesa,aComitépourl’Abolitiondel’Esclavage,solicitando-lhequeusasseoseupodereinfluênciaparaaboliraescravidãonoBrasil.Aresposta,assinadapeloministrodosNegóciosEstrangeiros,indicavaqueonovogabineteliberal,lideradoporZacariasdeGóeseVasconcellos,estavaprontoparapromoveracausa.AemancipaçãonoBrasilpareciacoisadecidida,sendoapenasquestãodeformaeoportunidade.7

Arespostaenviadaaosabolicionistasfrancesessurpreendeupolíticose

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grandesproprietários.Foi,naverdade,amolduraparaosdebatessobreotrabalhodePimentaBueno,entãoviscondedeSãoVicente,noConselhodeEstado,emabrilde1867.Osconselheirosestavamnumasituaçãodelicada.Confrontadoscomadeterminaçãodoimperadoremfazercaminharoproblemadaemancipação,8ficavamtalvezinibidosemoporresistênciadecididaàiniciativa,pormaisqueestafossedeencontroàssuasconvicçõesmaisíntimas.Oresultadodessatensãoentreconveniênciapolíticaeconvicçõesescravocratasfoiaformulação,porpartedamaioriadosconselheiros,deargumentossibilinosdestinadosaconcordarcomoimperadoremqueaemancipaçãoeraquestãodecidida,aomesmotempoquesustentavamaopiniãodequenadadeviaserfeitosobreoassunto.

PimentaBuenoescreveuumaapresentaçãoaoseutrabalho,esclarecedorademotivosqueteriamconvencidooimperadorealgunspolíticosaagirnaquestãodaemancipação.9Haviaosmotivosdelongaduração,porassimdizer,recitadosnopaís,commaioroumenorassiduidade,aomenosdesdeofamosofolhetodeJoséBonifáciodeAndradaeSilvaàAssembléiaConstituintede1823.10Aescravidãoerainstituiçãocondenadapelo“séculoatual”,caracterizadopela“forçairresistíveldainteligência”epelo“clarãocrescentedasciências”;ademais,erainstituição“fatal”,“repugnante”,“odiosa”e“bárbara”,quereduzia“umaporçãodahumanidade”àcondiçãode“máquina”,“vítimadatirania”,condenadaà“obediênciacega”eao“arbítriodosseusabsolutosdominadores”.Aescravidãoimpediaoprogressodopaíseprejudicavaos“própriosopressores,queelacorrompepordiferentesformas”.Também“avozconscienciosaesantadareligião”vinhapenetrandoosespíritosedespertando“oremorso”.11AprofusãoeocoloridodosadjetivosnãofazemdePimentaBueno—edoimperador,cujasombrapodiasevislumbrarportrásdessaspáginas—nenhummilitanteabolicionistaradical.Pelocontrário,sugereoquantoaretóricaoficialsobreaescravidãohaviaavançadonaartedecombinaracondenaçãoretóricadainstituiçãocomadefesadosinteressesdosproprietáriosdeescravos.Emmeadosdoséculoxix,eaomenosatéacrisequeresultounaleide1871,oBrasilimperialofereciaaomundoocuriosoespetáculodeumpaísnoqualtodoscondenavamaescravidão,masquaseninguémqueriadarumpassoparaviversemela.

Algomudara,porém,aolongodosanos1860,paradaràretóricahabitualoutrosentido.OBrasiltornara-seoúltimobaluartedaescravidãonomundo

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ocidental:“RestasóoBrasil;restaoBrasilsó”,declamouPimentaBueno,apósrelataroprocessomundialdeemancipaçãodosescravos,desdeascolôniasbritânicasnadécadade1830atéasrecentes“ondasdesangue”naAméricadoNorte,passandopelalibertaçãodoscativosnascolôniasdeFrança,Portugal,HolandaeDinamarcaepelaimpressionantelibertaçãodeváriosmilhõesdeservosnaRússia.Entreaspotênciascoloniaiseuropéias,apenasaEspanhaaindamantinhaescravosemsuascolôniasnaAmérica—CubaePortoRico.MasPimentaBuenoregistravaqueaEspanhajá“preparasuasmedidas”.Defato,umvigorosomovimentoabolicionistasurgiranaEspanhadesde1865,eresultaria,em1870,naaprovaçãodaLeiMoret,semelhanteemmuitosaspectosàleide1871noBrasil.12OtemadessacompetiçãoincômodacomaEspanha—maisespecificamentecomCuba,colôniaescravistaimportante—,paraverquemganhavaocarimbodemaiorvanguardadoatrasonoOitocentos,surgiucomfreqüêncianosdebatessobreemancipaçãonoConselhodeEstadoe,depois,noparlamento.

Oisolamentointernacionaldopaísfoi,portanto,fatorcrucialparaoiníciododebatepolíticosobreaemancipação.PimentaBuenoevocavaoexemplodaGuerraCivilAmericanaparaargumentarque,emsemelhanteassunto,eraprecisoagirparacontrolaroprocesso.Eleachavaquenãosedeviaconfiaraquestãoà“iniciativaindividual”,dizendoaindaqueo“povobrasileiro”aguardavaaaçãodogoverno“empalpitanteedolorosaansiedade”,poisnasgrandescrises“governoésinônimodealtadireção,desábiainvençãodosmeiosconservadores”(grifomeu).13Oadjetivoécrucial,poisaintençãodePimentaBuenoeramostrarqueosprojetosdeemancipaçãoquepropunhanãoabalariamprofundamenteotrabalhoagrícola,poisnãoteriamimpactosignificativoimediatosobrea“geraçãoatual”deescravos.Elesevitariamaemancipaçãobruscaepreveniriam“adesordemeainfelicidadedospróprioslibertos”,aomesmotempoemqueabririamcanaisinstitucionaispara“emancipaçõesparciaisesucessivas,nuncaemgrandesmassas”.14

AidéiacapitaldosistemadePimentaBuenoerajáa“libertaçãodoventre”.Osfilhoslivresdemulherescravaficavamobrigadosaprestarserviçosaossenhoresdasmãesatéaidadededezesseisanos,nocasodasmeninas,evinteanos,nodosmeninos;ossenhorestinham“odeverdealimentar,tratar,eeducá-los”.Haviaumelencode“medidasauxiliaresdaemancipação”,partedelasvisandofacilitaraobtençãodopecúlioedaalforriaporindenizaçãode

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preçoaosenhor,outrasinterferindodiretamentenasrelaçõescotidianasentresenhoreseescravos—proibiçãodeseparaçãodoscônjugesnasvendasdeescravos,descansoobrigatóriodeumdiaporsemanaetc.PimentaBuenopropunhaaindaarealizaçãodeumregistrogeraldeescravos(matrícula)eoestabelecimentodeumfundodeemancipação,organizadopelogoverno,paracompraraliberdadedeescravosmedianteindenizaçãodepreço.Parasupervisionartodoosistema,previa-seoestabelecimentodejuntasmunicipaisecentraisdeemancipação.Taisjuntasdeveriamser“tutorasecuradoraslegaisdosescravos”paradefendê-losnasaçõesdeliberdadecontraossenhores;teriamtambémdevelarparaqueopodersenhorialfosseexercido“dentrodoslimitesdareligião,edasleis,empregandoparaissoosmeiosdepersuasãoeadmoestação”.AidéiadejuntasdeemancipaçãoparacontrolardiretamenteasrelaçõesentresenhoreseescravosfoibastantecriticadanoConselhodeEstado,consideradaperigosaedestinadaaquebrar“aforçamoral”dossenhores,ameaçandoadisciplinanosestabelecimentosagrícolas.CaiutambémapropostadePimentaBuenodedeclararextintaaescravidãonopaís,indenizando-seosproprietáriosporescravosaindaexistentes,em31dedezembrode1899.Osconselheirosacharamoprazotãolargoqueteriacomoconseqüênciatirarasesperançasdeliberdadeda“geraçãoatual”decativos,levando-osaodesespero.AsoutrasidéiascentraisdePimentaBuenoforamadotadaspelamaioriadosmembrosdoConselhodeEstadoe,depoisderevistasemmuitosdetalhes,permaneceramatéaredaçãofinaldoprojetoaprovadoemsetembrode1871.15

Mastudoissoéintróito,poisosconselheiros,comumahonrosaexceção,pareciamquererdeixaroproblemadaemancipaçãoparaascalendasgregas.Defato,apesardeotrabalhodePimentaBuenoterservidodebaseàsmanifestaçõesdosconselheiros,asreuniõesdosdias2e9deabrilde1867,realizadasnapresençadoimperador,deZacariasdeGóeseVasconcellos—ministrodaFazendaechefedogabinete—,edetodososministros,abordaramfundamentalmenteoproblemadaoportunidadedareforma—ouseja,seerapossíveldeslancharoprocessodeimediatoeque“cautelaseprovidências”seriamnecessáriasparafazê-lo.ÀexceçãodoviscondedeJequitinhonha,favorávelàaçãoimediataaqualquercusto,todososoutrosconselheirosopuseram-seàidéiadepromoverdeprontoareformanoLegislativo.

Havia,obviamente,aquelesqueseopunham(maisoumenos

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disfarçadamente)aqualqueriniciativa,emqualquertempo.Desses,omarquêsdeOlindachegavaaserquixotesco.Impossibilitadodecompareceràreuniãode2deabril,mandouoseuvotoporescrito.Seupronunciamentosintetiza,quaseaopontodacaricatura,osargumentosqueseriamrepetidosnosanosseguintespelosopositoresdalei.Diziaserfavorávelàadoçãodemeiosdiretosparaaboliraescravidão,descartandoportanto,jádeinício,aviadadefesaideológicadainstituição.Maslogoexplicavaque“meiosindiretos[...]nãoosdescubro”,anãoseraimposiçãodepesadosimpostossobreapropriedadeescrava,oqueconsiderava“sobremaneirainjusto,violento,efunestoàagricultura”.QuantoaosmeiosdiretospropostosnosprojetosdeSãoVicente—aliberdadedoventreeasmedidasparapromoveralforriasmedianteindenizaçãodepreço—,considerava-oslentoseperigososparaamanutençãodadisciplinanasfazendas.Defendiaaaboliçãodocativeiro“paratodososescravosindistintamente,eparatodosaomesmotempo”.Maslogoperguntava:“Equandoseráistopossível?”.Pararesponderassim:“quandoonúmerodeescravosseachartãoreduzidoemconseqüênciadasalforrias,edocursonaturaldasmortes,quesepossaexecutaresteatosemmaiorabalonaagriculturaesemmaiorestremecimentonossenhores”.16Emresumo,omarquêsdeOlindajamaisaceitariaapechadeescravocrata;pelocontrário,dir-se-iadefensordaabolição“simultânea”,aindaque“diferida”devidoàscircunstâncias.Oseu“plano”eraapostarnasoluçãodemográfica“natural”—comomorriammaisescravosdoquenasciam,amorteeraaliadadaliberdade—enagenerosidadedosproprietários,poisoscostumessupostamentesuavesebenignosdossenhoresbrasileirosfaziamcomqueconcedessemnúmerosignificativodealforrias.AconclusãodomarquêsédequeoEstadoimperialnãodeveriaintervirnesseassunto,bastandodeixá-loseguiroseucurso“natural”.

Curiosamisturaderetóricafavorávelaofimdaescravidãoedefesaintransigentedostatusquoescravocrata.Aotentarjustificaressasidéiasgerais,omarquêsdeOlindadeixariaclaroqueapráticadoescravocrataapagavainteiramentearetórica“dasluzesdoséculo”:

Anãoseseguiroplanoqueacabodeindicar,nãovejoprovidênciaquenãoponhaoEstadoemconvulsão.Poremancipaçõesparciaisesucessivas,dequalquermodoquesejamconcebidaseexecutadas,nãosefarásenãodaresperanças,eexcitardesejosdeliberdadenosescravos;eentãonãocauseadmiraçãoqueelesqueiramadiantaraépocadaemancipação,ecomestepropósitoselancememinsurreições;etantomaisfacilmenteserãolevadosaisso,quando,olhandoemrodadesi,concebamsendoinstigados,apossibilidadedeelasvingarem.Nãoseesperequeosqueficaremnaescravidãose

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hãodeacomodarcomsuatristesorte,aguardandopacificamentequelhecheguesuavez,econtentando-secomalisonjeiraperspectivadeumfuturodeliberdadequeselhespõediantedosolhos.17

Omarquêsachavaquenãohaviacomoseparara“esperança”do“gozodo

objeto”—ouseja,aperspectivadaliberdadetornavaimperativoodesejodegozá-la.Eprosseguiacommeilfaut,interpretandoaexperiênciadepaísesestrangeiros.NaInglaterra,aemancipaçãogradualadotadapeloparlamentoapenasprecipitaraaaboliçãototal,confirmandoosreceiosde“mestresdapolítica”,comoPitteFox.Lembravaaindaqueoparlamentoinglêsdiscutirarecentementeaquestãodo“excessivo”trabalhoinfantilnasfábricas,epropôsadiminuiçãodajornadadetrabalhodosmeninos.LordPalmerstonargumentaraqueainiciativa“acabariacomaprosperidadedasfábricas”ederrubaraaproposta.“Estessãoosexemplosquenosdãoosmestresdapolítica”,diziaOlinda.Operigoestavanaproliferaçãodas“vozesqueaimprudênciatemfeitosoarquedeummodooudeoutrochegamaosouvidosdosescravos”.Oscativosestavamtranqüiloseconformados,eassimpermaneceriamsenãofossemdespertadospor“essasidéiasdeemancipaçãogradual”;seeraverdadequeopaísestava“emcimadeumvulcão”,comoalgunsdiziam,“nãosejamosnósmesmos”a“promoveraexplosão”.ConcordavacomSãoVicentequeopaísaguardavaasdiretrizesdogovernosobreaquestãodaemancipação“empalpitanteedolorosaansiedade”,eachavaqueacuraparaaansiedadeseriaumadeclaraçãodomesmogoverno,emlinguagem“francaedecidida”,dequerepelia“qualqueridéiadeemancipaçãonoestadoatualdascousas,excetocomascautelasqueindiqueinestevoto”.Ocontrárioseriaabriraporta“amilharesdedesgraças”,poisinsurreiçõespipocariam“acadacantodoimpério”,eserianecessário“numerosoexércitosóparaconterosescravos”,coisaimpossíveldeobterduranteaguerracomoParaguaiemesmodepois.ConcluíacomaobservaçãodequeoshomenspúblicosdaEuropanãoconheciamasituaçãodospaísesnosquaishaviaescravidão;“paracánãoservemsuasidéias”.18Dondededuzoque,seeraescravidãooassuntoàbaila,ospolíticosbrasileirostornavam-seosmestresdos“mestresdapolítica”.

OpronunciamentodeOlindapodeserlidocomoumaespéciedepuxãodeorelhasnoimperador.D.Pedroiijuntara-seaocorodas“vozesimprudentes”desdearespostadogovernoaosabolicionistasfranceses;pareciacederdiantedapressãoestrangeira.Ovelhomarquêsgozavatalvezdaindependênciade

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quemnãotinhamaisnadaaaspirarnavidapública:forachefedegabineteporduasvezesnosanos1860,eraconselheirodeEstado,estavanobilitado,virad.Pedroiipassardemeninoaimperador.Poucolhecustavachutarobaldeemnomedesuasconvicçõesescravocratas.Outrosconselheirostrilharamcaminhosmaistortuososparachegaraomesmofim.UmcasocuriosoéodeJoséMariadaSilvaParanhos,futuroviscondedoRioBranco,quatroanosmaistardeochefedogabinetequeiriaobteraaprovaçãodaLeidoVentreLivrenoparlamento.

Paranhosleuoseulonguíssimoparecer.ApresentouprimeiramenteumaanálisedetalhadadoprocessodeemancipaçãonaFrança,organizandoosfatosdemodoaargumentarque“Comosevê,aquestão[...]foiestudadaediscutidapelogovernoepelascâmarasdaFrançadesde1790,esóveioaserdecididadefinitivamenteem1848”.Fezomesmoesforçoemseguidaparaocasoinglês,chegandoàconclusãodeque“Assim,pois,naInglaterra,estaquestãofoiagitadaediscutida,suscitouváriosexameseresoluçõesdogovernoedascâmarasdesde1792;sófoi,porém,definitivamentedecididaem1838,sendoemtodoesseperíodoobjetodeaturadosestudoseesforços,queaesclarecerameencaminharamparaessedesejadodesfecho”.19Ouseja,ParanhosachavaprematuroencaminharareformaservilnoBrasil,jáquepaísesmaisexperientesecivilizados,eparaosquaisaquestãoerafundamentalmenteconcernenteàspossessõescoloniais,haviamlevadodécadasatéchegaràemancipaçãofinal.Novamente,ofogoeraendereçadoaoimperador,sentadoimpassíveldiantedosconselheiros.Paranhosprosseguiunomesmotemaediapasão,recitandomaisresumidamenteosesforçosemancipacionistasdaDinamarca,Suécia,Holanda,PortugaleEspanha,enfatizandonocasodaúltimaqueaescravidãoaindanãoestavaabolidaemCubaePortoRico—“longedisso”—,comoseissoeximisseogovernoimperialdeconferircaráterdeurgênciaaoassunto.OconselheiroconcluiuasuaauladehistóriacomparadadaemancipaçãocomoexemplodosEstadosUnidosesua“guerraciviltremenda”,naqualcorreram“riosdesangue”;tratava-seentãodeexemploàsavessas,poislheparecia“maisfavorávelaostatuquodoqueàinovaçãoqueatualmentesepretendenoBrasil”.20

Erudito,lustrado,regadoacadapassocomautores,obrasefatos,odiscursodeParanhoschegavaaopontoaossaltinhos,àmodadeCapitu.Todavia,depoisdemeiahoraoumaisdemaciezecríticaveladaàCoroa,sobroufranqueza:no

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“estadoatualdasociedadebrasileira”,diria,“mesmoosespíritosmaisafoitosnãoagitariamsemelhantereforma,seogovernoimperial(VossaMajestadeImperialpermitir-me-áestafranqueza)nãofosseoprimeiroemjulgarqueerachegadaouestavamuipróximaaoportunidadedetãoprofundamudançanomododeserdenossosestabelecimentosagrícolas”.Todosteriamficadosurpreendidoscomosurgimentodaquestão—partidospolíticos,imprensa,CâmarasLegislativas,proprietáriosrurais,comerciantes.Nemmesmoogovernoinglês,notoriamenteinteressado“notriunfouniversaldaidéiaabolicionista”,esperavaque“tãocedosequisessenoBrasil[...]aemancipaçãodosescravosporumamedidageral,maisoumenosapressada”.Alémdosproblemaseconômicosesociaisinerentesàquestão,oquefaziaParanhos“recuarcomterror”eraasituaçãodopaísnaguerracomoParaguai.21

AúltimapartedodiscursodeParanhoséumbordejarconstante,poischegafazendoquenãoquerchegaràidéiadequeogovernoimperialnãodeviaintervirparaobteraemancipaçãodosescravos.22Passoàesquerda,reconheciaquearespostaaosabolicionistasfrancesesealgumasmedidasdogovernoparaenfrentarasnecessidadesdaguerrahaviamcriadopressãoirresistívelafavordaemancipação.Paranhosreferia-seàlibertaçãodeescravosdanaçãoedaCoroaeàalforriadeescravosparticulares,medianteindenizaçãopelogovernoimperial,parapreencherasfileirasdoExércitonacampanhacontraoParaguai.Taismedidasteriam“estimuladoosespíritosmaissôfregosporessareforma,comotambémderramadoessaesperançaporentreosescravos”.Todospodiam“dartestemunhodequeestesefeitossevãosentindo”,sendoimpossível“cruzarosbraços”diantedeumaidéiaquetinha“porsi”aautoridadedogovernoeosmais“santosimpulsosdocoraçãohumano”.23

Cambaleioàdireita,lamentavaasituaçãoquehaviasidocriada.Afinal,aleideaboliçãodotráficodeescravosde1850jáhaviadecretadoaextinçãodaescravatura.Era“leifataldaescravidão”queaspopulaçõesescravas“têmemsimesmasogérmendesuaextinção”.Agrandedesproporçãoentreossexosfaziacomquehouvesseumconstante“excessodosóbitossobreosnascimentos”entreoscativos;esse“movimentonatural”dariacabodaescravidãoemtrêsquartosdeséculo,ounomáximoemséculoemeio.Eesseperíodopoderiaserencurtadoaindamaisdevidoàsalforriasindividuaisinspiradaspelagenerosidadedossenhoresbrasileiros.Curvaàesquerda,admitiaque“hoje[...]nãohaveráquemseanimeaoporsemelhanteplanocontraumamedidamais

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filantrópica,qualaqueseapresentanosprojetoselaboradospeloilustradoSr.viscondedeS.Vicente”.24Modesto,portanto,Paranhosreconheciaqueoseu“plano”deemancipaçãopelamortenaturaldosescravoserainferioraosprojetosdeSãoVicente.Tropeçoàdireita,sugerequeseriadifíciltomarqualqueriniciativadevidoàausênciadedadosestatísticosconfiáveissobreapopulaçãoescrava.Alémdisso,mostrava-secéticoquantoàaplicaçãodeleisdeemancipação,poisissodependeria“daboavontadeeprudênciadenossosproprietáriosrurais,bemcomodaimparcialidade,tinoemoderaçãodasautoridadeslocais”.Tinha“muitomedo”dequetaiscondiçõesnãoserealizassem.Mantendo-sedepé,prestaapoioaosprojetosdeSãoVicente,“reconhecendoapressãoquehojeatuasobretodosnós”.25Equandoseriaoportunotocarareforma?Trôpego,tombaàdireita:seriaprecisoesperarpelotérminodaGuerradoParaguaie,depoisdisso,pelarecuperaçãodasfinançasdoEstado,dalavouraedocomércio,todosemsituação“aflitiva”devidoaoesforçodeguerra.Maisainda,ogovernoteriadeesperarpelamelhoriadasituação“moral”dopaís;diantedessaúltimacondição,amaisimponderáveldasimponderáveis,concluiuqueseria“impossívelassinar[...]umlimitematemático”paraoiníciodoprocessodeemancipação.26Paraascalendas,emsuma.

Aospoucos,odebateentreosconselheiroscentrou-senaquestãodesabersebastavaesperarotérminodaguerraousemaisdilaçãoaindaserianecessáriaantesdesubmeterareformaaoparlamento.OpróprioSãoVicente,autordosprojetosemdiscussão,SouzaFrancoeNabucodeAraújo,porexemplo,pronunciaram-seafavordeiniciaraaçãolegislativaapósotérminodaguerra,semmencionaroutrosmotivosparapostergar,mastambémsemdizercomtotalclarezaqueotérminodaguerraeracondiçãosuficiente.27AartedebordejarnãoeraprerrogativadeParanhos;todosapraticavamcomrequinte,requintadíssimaemconselheiroscomoEusébiodeQueirózeoviscondedeItaboraí,cujasopiniõessãoàsvezesdifíceisdedecifrar.Dequalquerforma,EusébiodeQueirózrevelou-seporinteironumdosmomentosmaisimpagáveisdosdebates,aoproporqueselibertassemosescravosdanação—istoé,pertencentesaoEstado—comacondiçãodeque,passandoaalugarosseusserviçoscomolibertos,entregassempartedeseusjornaisaogovernoparafinanciaracompradenovasalforrias!28Pérolaaparentementeinspiradapelointeresseemabateroscustosdaemancipaçãoparaosgrandesproprietários.

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Parececerto,porém,quegentecomoSãoVicente,SouzaFrancoeNabucodeAraújocompartilhavamaisfirmementeaidéia,naspalavrasdeSãoVicente,deque“nãoépossívelcruzarosbraços,enaimprevidênciaquerermanter-senostatuquoindefinidamente.Cadadiaaumentaráagravidadedaquestão,edosperigos”.29Deixavamclaro,todavia,quenãoabriammãodeesperarotérminodaguerra,poisserianecessárioespalharasguarniçõesdoExércitopelasprovínciasparagarantirasegurançapúblicaantesdetomarqualquermedida.ParaprovarqueapresençadoExércitoeraindispensável,SouzaFrancofaziaumcálculomacabro:“Temosassimquede1.800.000escravos1.000.000a1.100.000devemservarões,edestes1.100.000podecalcular-sequecercade800.000maioresde16anos,estãoaptosparapegaremarmascontraosbrancosemqualquereventualidade,senãoprovávelpelomenospossível”.Nãosepoderiaperderissodevista“nasprovidênciasatomar”antesdareforma.30SóoviscondedeJequitinhonha,umveteranonocombateàescravidão,manifestou-secontrárioaqualqueradiamento.Emvezdebordejar,ogovernodeveria“abrireaceitaradiscussão”.Osargumentosafavordoadiamentotalvezsejustificassemcasoestivesseemjogoa“aboliçãoimediataesimultânea”daescravidão.Jáqueogovernopropunha“aaboliçãoparcialeprogressiva”,oviscondeachavaqueaguerraemandamentonãoembaraçava“aapresentaçãodoprojetoeseudebate”.Quixotescoàsuamodadele,Olindaàsavessas,JequitinhonhaprometiacontinuaralutasozinhonoSenadonahipótesede“ogovernodemorar-semuito”,poisconsideravaoassunto“vitaleurgente”.31

Nogeral,eapesardetodaacondenaçãoretóricaàescravidão,éimpressionantearesistênciaqueosconselheirosopuseramaqualqueriniciativapelaemancipaçãoemabrilde1867.Àprimeiravista,asfiliaçõespartidáriasnãoforamemnadadeterminantesnessesdebates.JequitinhonhaeraliberaleOlindachefiararecentementedoisgabinetesliberais,masosdoishomenspermaneceramirreconciliáveisquantoaoassunto.NabucoeSouzaFrancoeramliberais,eSãoVicenteumconservador,masostrêsuniram-separadefenderareformaapósaguerra,aparentementesemmaisdelongas.Dequalquermaneira,numolharmaisapurado,nota-seumaconstelaçãodeconselheirosligadosaopartidoconservadoresgrimindoargumentosmaisoumenostortuososparaobteroadiamentosinediedequalquermedidaoumesmodadiscussãopúblicasobreotema.Comovimos,foiesteocasodeParanhos,

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mastambémodoviscondedeAbaeté,e,talvezmenosclaramente,asintervençõesdeEusébiodeQueirózedoviscondedeItaboraítenhamtidoessemesmosentido.32Certapartidarizaçãodoassuntoocorriatambémpelaprópriaexistênciadeumgabineteliberal,chefiadoporZacariasdeGóeseVasconcellos,etidocomodispostoapromoverareformaservil.

Oresultadopráticodosdebatesdeabrilde1867foiaindicaçãodeumacomissãodoConselhodeEstado,presididaporNabucodeAraújo,pararevisarosprojetosdeSãoVicentesegundoasopiniõesapoiadaspelamaioriadosconselheiros.33Alémdeexcluiralgunsdispositivos,comoaconstituiçãodejuntasdeemancipaçãoeafixaçãodeumadatafuturaparaaabolição,acomissãobuscariasimplificarosistemaoriginal,transformandooscincoprojetosdeSãoVicenteemapenasum.Acomissãonãohaviasequeriniciadootrabalho,eosconselheiros,poresmagadoramaioria,comovimos,haviamsepronunciadocontráriosaabrirdiscussãopúblicasobreaemancipaçãonoparlamento,quandod.Pedroiisurpreendeudenovo:emseupronunciamentoanualaoLegislativo,aFaladoTronode1867,propôsaosparlamentaresqueincluíssemaquestãodaemancipaçãoemsuapautadetrabalho.34Paralelamente,NabucodeAraújoarregaçouasmangasepôs-searedigirumapropostadeprojetoúnico,apresentadaàapreciaçãodoscompanheirosdecomissãoem20deagostode1867.Osoutrosmembrosdacomissão,TorresHomemeoviscondedeSapucaí—haviaaindaoviscondedeSãoVicente,presenteaostrabalhoscomomembroadjunto—,fizeramassuasemendas,eosconselheiroschegaramaumaredaçãofinalprovavelmentenosegundosemestredomesmoano.35

Ofatoéque,emabrilde1868,oprojetodacomissãochegavaaoConselhodeEstadopleno,paraserdiscutidoitemporitematéaelaboraçãodaversãodefinitivaaserenviadaaoLegislativo.36HámuitosdetalhesreveladoresnotrabalhodacomissãoenosnovosdebatesnoConselhodeEstado,etalvezmencionealgunsdelesadiante.Porora,bastasaberqueotomdosnovosdebatesentreosconselheirosnãomudoumuitoemrelaçãoaoanoanterior.OsbarõesdeMuritibaeOlindalançaram-sefuriosamentecontraaproposta.Emapreciaçãooprimeiroartigo,sobrealiberdadedoventre,Olindaignorouaordemdostrabalhosecomeçouumaalgaraviadosdiabossobreaquestãoda“oportunidade”,poisqueriaesclarecerosentidodaexpressão“depoisdaguerra”,utilizadaportantosdeseuspares.Opontoeraimportanteporquea

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comissãohaviadadocomodecididaaquestãoda“oportunidade”,ficandovitoriosaaposiçãodosquedefendiamoiníciodaaçãolegislativaapósotérminodaguerra.MasOlindarecapitulouoargumento,tambémdeoutrosconselheiros,deque“seránecessárioconservarnasprovínciasumaforçasuperioràqueforanecessáriaparamanteraordem,eestaforçadeverásermuitomaioraindadepoisqueseapresentaroprojetodeleinasCâmaras,epiorserádepoisquepassaralei”.Parajuntaressastropas,prosseguia,seriaprecisoaumentarimpostosecontinuarorecrutamentomesmoapósaguerra;ecomofazerisso,comopaísendividadoeexaurido?Ealguémpoderiaperguntar:“paraquetantatropa”,sea“guerrajánãoexiste”?“Aistoseresponderá:éparaconterospretos.Eparaquetantosimpostos?Sãonãosóparapagaradívida,comoparasustentaratropa,aliásnecessáriaparareprimirospretos.Poisbem,replicar-se-á,nãosabíeisdisto,quandoempreendestesestagrandeobradaemancipação,aqualocasionatãopesadossacrifícios?Esesabíeis,comodevíeissaber,como...”Nessemomentofoiinterrompidopeloimperador.Olindadeveriavoltaraopontoempauta,aliberdadedoventre,edeixaraquestãodaoportunidade,quenãoestavaemdiscussão.37FoiaúnicamanifestaçãodoimperadoremtodosessesdebatessobreemancipaçãonoConselhodeEstado.

Masaintervençãoded.Pedroiiteveefeitosimbólicoimportante;em1871,duranteosdebatesparlamentaressobreemancipação,arusgacomOlindafoilembrada,pelosopositoresdalei,comoevidênciaamaisdequeaCoroahaviaextrapoladoassuasprerrogativaseimpostoaopaísareformaservil.38Emabrilde1868,faziasuspeitarqued.Pedroiiestavadispostoaprosseguir,aindaqueosconselheirosnãoretirassemarecomendaçãodequeoassuntodeveriachegaraoLegislativosomente“depoisdaguerra”.Naverdade,SãoVicente,expressandotalvezumpequenorecuodosconselheirosmaisafinadoscomoimperador,teveapalavrapoucodepoisdoincidentecomOlindaedissequeconsiderava“extemporânea”aquestãodaoportunidade.Devia-seprimeiramenteaprontarotrabalho,parasódepoiscuidardamelhorocasiãodeenviá-loaoslegisladores.39Sejacomofor,oimperadorincluiunovareferênciaàemancipaçãonaFaladoTronodemaiode1868,anunciandoqueogovernohaviaestudadoaquestão,asersubmetidaaoparlamentooportunamente.40

Alinguagemcautelosaded.Pedroiitalvezindicasseadisposiçãoemesperarpelofimdaguerra.Etalvezsugira,quantoaoseventosqueseseguiram,impaciênciaemdarfimàquelaguerra.Paratodososefeitos,porém,Sua

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MajestadeImperialaderiuàartedebordejar,oucoisapior,emmeadosde1868:comZacarias,ochefedogabinete,eoduquedeCaxias,comandantedasForçasArmadasnoParaguai,emfrancarotadecolisão,oimperadorficoucomCaxias,aceitandoarenúnciadoliberalZacariaseconvidandoconservadoresparaformaronovogabinete.Adecisãoeraarbitrária,aindaquelegal,poisosliberaistinhammaiorianaCâmara.Alémdisso,trocava-seumgabinetefavorávelàreformaservilporoutro,chefiadopeloviscondedeItaboraí—etendoParanhoscomoumdosministros—,quelheerafrancamentehostil.ACâmaraacaboudissolvida,easeleições,comodepraxenosistemapolíticoimperial,consagraramopartidoqueashaviaorganizado.41OpaísficouentãocomumgabineteconservadoreumaCâmaraunanimementeconservadora,amboscontráriosàdiscussãodaquestãodo“elementoservil”.Paraosliberaiseoutrossimpatizantesdacausadaemancipação,d.Pedroiideramarchaaré,cedendofinalmenteàresistênciaquepolíticosefazendeirosopuseramdesdeoinícioaoprojetodeemancipação.Aosderrotadosdomomento,restavaoprotesto.42

lucinda,dejoaquimmanoeldemacedo

NabucodeAraújoliderouaresistênciaaonovogabineteconservadornoSenado,afirmandoqueoatodoimperadoraoarredarosliberaisdopoderhaviasido“legal”,masnão“legítimo”,assimcomoasleisdopaísgarantiamalegalidadedaescravidão,instituiçãocujalegitimidadeestavacondenadapelaleidivinaepelasluzesdacivilização.OarrojodeNabucofoiacompanhadopelarevivescênciadoidealdereformasliberaisedemocráticasemváriossetoresdasociedade,queclamavamnãosópelaemancipaçãodosescravoscomopormudançasnosistemaeleitoralepelaaboliçãodaGuardaNacional.Estudantes,escritores,jornalistaseprofissionaisliberaisurbanospegaramdapenaeregistraramasuainsatisfaçãocomaguinadapolíticade1868.43

JoaquimManoeldeMacedo,políticoliberal,romancistafamoso,concebeupeçasliteráriascomoanálisesocialeintervençãonosrumosdapolíticaemancipacionistadoperíodo.44JáemMemóriasdosobrinhodomeutio,sátirapolíticapublicadaoriginalmenteem1867-68,Macedocolocaraemcenaumnarradordesabusado—nissotalvezumprecursordeBrásCubas—,o“sobrinhodotio”,quealegavaesconder-senoanonimatoparadizertodaaverdadesobresimesmoeseuspares,todospolíticosconservadoreseportadores

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damesma“barrigafísicaemoral”.45HaviatambémoalteregodeMacedo,ocompadrePaciência,umliberalhistóricoinconformadocomocinismoeatotalfaltadeescrúpulosdosobrinhodotioesuaturma.Emcertomomento,ocompadrePaciênciadebatiapropostasgeraisdegovernocomumex-ministropertencenteaogrupopolíticodosobrinhodotio.Veioàbailaaquestãodo“elementoservil”.TantoPaciênciaquantoseuscontendorespareciamconcordarcomaidéiadequeaemancipaçãodosescravos“éinevitável”,“oraioécerto”etc.Ocompadreacrescentavaqueopoderpúblicodeveria“irtomandomedidasparaqueasoluçãodoproblemaimplacável”ocorresse“semprecipitação,moderadaecautelosamente,emantidoorespeitoaodireitodepropriedade,salvoodireitodacompensaçãopeloEstado”.Oex-ministroeseuspares,poroutrolado,opunham-seaqualquerintervençãodogovernonoproblema;temiam“provocaroressentimentodosagricultores,ocupando-nosdesemelhantematéria”,“seriaimpolítico”.46Odebate,portanto,consistiaemsaberseopoderpúblicodeveriaounãointervirnodomínioprivadodossenhoressobreseusescravos.AposiçãodePaciência—assimcomoadeMacedo—eraadequeoEstadotinhadesubmeteropoderprivadodossenhoresaodomíniodalei;nãohaviaalternativaparaobteraemancipaçãodosescravos.

Macedovoltariaaotemaem1869,emAsvítimas-algozes.Quadrosdaescravidão,semdúvidaumarespostaaoseventospolíticosde1868.47Oobjetivopolíticodastrêshistóriasquecompõemolivroestáclarodesdeanotainicialaosleitores.Professandonarrarapenas“históriasverdadeiras”,queriafirmar,na“consciência”dopúblico,“asverdadesquevamosdizer”.Obradeconvencimento,portanto,Asvítimas-algozeseratentativadeobrigarosleitoresa“encarardeface,amedir,asondaremtodasuaprofundezaummalenormequeafeia,infecciona,avilta,deturpaecorróianossasociedade,eaquenossasociedadeaindaseapegasemelhanteadesgraçadamulherque,tomandoohábitodaprostituição,aelaseabandonacomindecentedesvario”.48AretóricaésemelhanteàqueladosconselheirosdeEstadoem1867,eMacedorecitaasestrofesdoisolamentointernacionaldopaís,doexemplodaGuerraCivilAmericana,doprocessodeemancipaçãoemCuba,edocaráter“implacável”dareforma,“exigência[...]dacivilizaçãoedoséculo”.49Afirmaqueaescravidãoé“cancrosocial”,quenãose“estirpa[...]semdor”;maso“adiamentoteimosodoproblema”agravariaomal,poisopaíspoderiaterdeenfrentara“emancipação

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imediataeabsolutadosescravos”,colocando“emconvulsãoopaís,emdesordemdescomunaleemsoçobroariquezaparticularepública,emmisériaopovo,embancarrotaoEstado”.50Macedoapoiavaentãoaemancipaçãogradual,iniciadapelaliberdadedoventreecompletadaporoutrasmedidasparafacilitarasalforrias.CompreendiaqueossenhoresseressentissemdaintervençãodoEstado,poisachava“naturalarepugnânciaqueaparecenocampoinvadidoaoprincípioqueinvade:éadorquefazgemernaextraçãodocancro”.51

OcenárioapocalípticoqueMacedoantevêcomodecorrênciadeumapossívelemancipaçãoimediatadosescravosrevelajádeiníciooethosdeseulivro,aformacomofazdesfilarumagaleriamedonhadeescravosastuciosos,trapaceirosedevassos,sempredispostosaludibriarossenhoreseameaçarosvaloreseobem-estardafamíliasenhorial.Preocupadoemnãodeixarnadaporexplicar,Macedoesclarecequehaviadoiscaminhosaseguirparamostraraosleitores“areprovaçãoprofundaquedeveinspiraraescravidão”.Oprimeiroconsistiriaemnarrarasmisériaseossofrimentosdosescravos,suasvidas“deamargurassemtermo”,o“infernoperpétuonomundonegrodaescravidão”.Seriaoquadrodomalqueosenhorfazaoescravo,“aindasemquerer”.Osegundocaminho,aqueleescolhidoporMacedo,mostraria“osvíciosignóbeis,aperversão,osódios,osferozesinstintosdosescravos,inimigonaturalerancorosodoseusenhor”.Seriaoquadrodomalqueoescravofazaosenhor,“deassentadopropósitoouàsvezesinvoluntáriaeirrefletidamente”.52Osdoiscaminhos,apesardelevaremambosàconclusãodequeoEstadodeveriaenfrentararesistênciasenhorialepromoveraemancipação,resultamdeperspectivaspolíticasbastantediferentesemrelaçãoàescravidãoe,especialmente,trazememseubojovisõesdivergentessobreoqueesperardoslibertosumavezobtidaaemancipação.

JávimosMachadodeAssisesculpirMariana,poisentãoseráútilverMacedoconstruirLucinda,naexpectativadequeacomparaçãopossaesclarecerestratégiasdistintasderepresentaraescravidão,aindaquenopropósitocomumdecombatê-la.“Lucinda—Amucama”éoterceiroeúltimoromanceemAsvítimas-algozes.ContaahistóriadeCândida,filhadehonradonegocianteeagricultordointeriordaprovínciadoRiodeJaneiro.Emseuaniversáriodeonzeanos,ameninareceberadepresentedopadrinho,PlácidoRodrigues—“omaisopulentofazendeiroecapitalistadolugar”—,umaescravacrioulachamadaLucinda,dedozeanos,quehaviasidoenviadaàCorteparaaprendera

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servirdemucama.53Amucamalogoconquistouasenhorinhaaodizerquesabiafazerbonecasepenteá-las.Opadrinhoempenhara-seemconseguirumaescravaquepudesseagradaraafilhadaporquesabiaqueameninaandavatristedevidoàrecentepartidadeJoana,“umaboasenhora,mulherpobre,maslivreedesãoscostumes,queforasuaama-de-leiteeaidolatravacomoseuspais”.Joana,queenviuvaraaindamoça,encontrarasegundonoivonum“laboriosoehonradolavrador”,deixandoporissoasuaadoradaCândida“comomaiorpesar”.54

MacedoofereceumaprimeirailustraçãodesuatesenoromanceaocontrastaravirtuosíssimaJoanacomamucamaLucinda.Joanaédescritacomouma“segundamãe”,“criadaamiga”,“companheiradoseuquartodedormir”,mulher“simples,boaereligiosa”.55Cândidaperdera“acompanhiadamulherqueeranobre,porqueeralivre”equeserviacomo“coraçãocheiodeamorgeneroso”,algosópossível“quandoaliberdadeexcluitodaimposiçãodedeveresforçadosporvontadeabsolutadesenhor”.Emsubstituição,ameninareceberaacrioulaquasedesuaidade,“amulherescrava,umafilhadamãefera,umavítimadaopressãosocial,umaondaenvenenadadesseoceanodevíciosobrigados,deperversãológica,deimoralidadecongênita,deinfluênciacorruptoraefalaz,dessemonstrodesumanizadordecriaturashumanas,quesechamaescravidão”.56Diantedessequadroteórico,digamos,osacontecimentosdesenrolam-senaturalmente;omaiordesafioéentenderoporquêdeMacedoterachadonecessárioescreverquasequatrocentaspáginasparacontaressahistória.Amucamatemumainfluêncianefastasobreadonzela,dequemsetornaaúnicaconfidentenosanosseguintes.Ensina-lheoqueocorrequandoameninaviramoça,desperta-lheacuriosidadepelosrapazes,ministra-lheliçõesdeflerteenamoro,mostra-lhesermaisdivertidonamorarváriosrapazesaomesmotempo,eassimpordiante,numdesfilarconstantedeidéiasdestinadasa“excitarossentidos”dadonzelacândidaepura.Asliçõesdeamordamucamaeraminspiradas“pelosensualismobrutal,emqueseresumetodooamornosescravos”;portanto,“amucamaescravaaopédameninaedadonzelaéocharcopostoemcomunicaçãocomafontelímpida”.57

Aestaaltura,apiedo-medoleitor,eresolvodarlogocabodessahistória.Comamucamaescravainfiltradanoquartodadonzela,foipossívelaumconquistadorbaratochamadoSouvanel,umfrancêsestróinaeladrãoaindaporcima,insinuar-seaosamoresdeCândida,conquistá-laefetivamenteetirar-lhe

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omaiorsímbolodahonestidadefeminina.Lucinda,criaturaruimcomonuncaseviumesmoemfolhetinstelevisivoshodiernosdehorárionobre,tornara-seelamesmaamantedeSouvanel,tramaratudocomele,eatéabriraoquartodavirgemparaaconsumaçãododelito.AidéiadosbiltreseraforçarocasamentodeSouvanelcomCândida;dadoogolpedobaú,Lucindaganhariaaliberdadeeficariateúdaemanteúdadofrancês.Nofinal,Frederico,criaturavirtuosacomonuncaseviumesmoemfolhetinstelevisivoshodiernosdehorárionobre,filhodopadrinhodeCândida,apaixonadoporeladesdemenino,perdoaoerrodaamadaecasacomela.Descobrira-sequeSouvaneleranaverdadeDermany,criminosoprocuradonaFrança.Ovilãoépresoedeportado.LucindaeopajemdopaideCândida,tambémenvolvidonatramaparaaproximarSouvaneldadonzela,fogemdossenhores,sãocapturados,masacabamabandonadosaopoderpúblicopelafamília.Frederico,oanjo,fechaoromanceeonossotormentocomumdiscursoabolicionistaqueaquitranscrevo,paramartirizaroleitor,ouaomenosparadividircomeleomeusofrimento.OdiscursoaparecenaspáginastrezentoseoitentaeoitoetrezentoseoitentaenovedosegundovolumedeAsvítimas-algozes(oprimeirovolume,comoutrasduashistóriasquenãovousequercomentar,custouàsflorestasaproximadamenteomesmonúmerodeárvores).Referindo-seaLucindaeaopajem,“essesdoustraidoreseperversos”,Fredericodiz:

Árvore[sic]daescravidãoderamseusfrutos.Quempedeaocharcoáguapura,saúdeàpeste,vidaaovenenoquemata,moralidadeàdepravação,élouco.Dizeisquecomosescravos,epeloseutrabalhovosenriqueceis:quesejaassim;masemprimeirolugardondetiraisodireitodaopressão?...emfacedequeDeusvosdireissenhoresdehomens,quesãohomenscomovós,edequevosintitulaisdonos,senhores,árbitrosabsolutos?...edepoiscomessesescravosaopédevós,emtornodevós,comessesmiseráveisdegradadospelacondiçãoviolentada,engolfadosnosvíciosmaistorpes,materializados,corruptos,apodrecidosnaescravidão,pestíferospelovivernopantanal[“patanal”,nooriginal]dapesteetãovistãoperigosospostosemcontatoconvosco,comvossasesposas,comvossasfilhas,quepodereisesperardessesescravos,doseucontatoobrigado,dasuainfluênciafatal?...Oh!baniaescravidão!...aescravidãoéumcrimedasociedadeescravagista,eaescravidãosevingadesmoralizando,envenenando[“evenenando”,nooriginal],desonrando,empestando,assassinandoseusopressores.Oh!...baniaescravidão!baniaescravidão!baniaescravidão!...PrecisodemaisumparágrafoparabanirAsvítimas-algozesdorestodeste

meutexto,antesqueoleitorofaça,banindo-me.ÉinteressantecontrastaraLucindadeMacedocomaMarianadeMachado.AindaqueMacedoatribuaosdefeitosmoraisdeLucindaeseusparesàinstituiçãodaescravidão,asuadescriçãodoscativosétãoimpiedosamentedesfavorávelquesetornadifícil

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pensarnapossibilidadedequeessaspessoas,umavezlibertas,possamusufruirdedireitosdecidadaniaeparticipardavidapolítica.58Defato,umacaracterísticaintrigantedeváriospronunciamentosfavoráveisàleide1871eraadescriçãodosescravoscomoseresquasedestituídosdehumanidade,poisaviolênciadainstituiçãoosdesproviadecultura,deregrasdecomportamento;porconseguinte,nãodesenvolviamlaçosdefamília,relacionavam-sesexualmentecomoanimais,atacavamossenhorescomobestas-feras—enfim,pareciamcondenadosaumaespéciedecoisificaçãomoral,resultadodiretodesuacondiçãodepropriedade,desuarepresentaçãocomocoisanodireitopositivo.59JáMachadoescolheuenfatizarnãoaameaçaqueosescravosrepresentavamparaossenhores,masosofrimentoqueossenhorescausavamaosescravos.Assim,Marianaemergecomopersonagemsofrida,dilacerada,porémportadoradecultura,capazdeatosdedignidadeeautonomia,algodramatizadocomosuicídionofinal.Porumlado,avisãodeMachadoparececonvergirempartecomargumentosdosopositoresdaleidereformaservil:aexperiênciadaescravidãonãoproduziaadesumanizaçãoradicaldoscativos,comoargumentavamalgunsemancipacionistas.Poroutrolado,issonãosignificavaqueaescravidãonoBrasilera“doce”,noargumentohiláriodeváriosdeputadoscontráriosaoprojeto.Machadoenfatizavaosofrimentorealqueaescravidãocausavaaosescravos,aomesmotempoemquereconheciaosfortesinteressessociaisaelaassociados;significativamente,amáconsciênciadeCoutinhonãobastaparaprovocarqualquermudançaemsuavisãodasociedade.Omal-estardomancebopassarápido,embaladopelosprimeirospezinhosdedamaquecruzamoseucaminho.AvisãodeMachadoétalvezmaispessimistadoqueadeMacedoquantoàpossibilidadedeatuarsobreamentalidadedossenhores:osegundopareciaengajadonabatalhapelaconsciênciadosescravocratas,ouaomenosqueriaaterrorizá-losapontodeconvencê-losaagirparaacabarcomaescravidão;ocontodeMachadoterminacomumanotadecinismoemrelaçãoàpossibilidadedeganharaconsciênciadossenhores.Apressãoparaamudançateriadevirdefora—nocaso,pormeiodaintervençãodoEstado.

Nesseponto,porém,ostextostalvezexpressemasdiferentesconjunturaspolíticasnasquaisforamescritos.OtextodeMacedo,publicadoem1869,éumlongo,longuíssimo,gritodeprotesto,exprimindoadisposiçãodelutarcontraaquiloquesepercebiacomooabandonodosprojetosdeemancipaçãoque

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vinhamsendodiscutidoshaviatrêsouquatroanos.Ogabineteconservadornopodereraafinaflordaresistênciaescravocrata,comoviscondedeItaboraí,obarãodeMuritiba,Paranhos,JosédeAlencar.Talgabineterecusava-seadebateraquestãodaemancipação;aoinvésdisso,pareciaempenhadoemaperfeiçoaraescravidão,emtorná-lamais“humana”,comosedizia.Alencar,queeraoministrodaJustiça,assinoualeide15desetembrode1869,queproibiuoespetáculoconstrangedordas“vendasdeescravosdebaixodepregãoeemexposiçãopública”.Alémdisso,essaleiestabeleceumedidasparaprotegerafamíliaescrava,vedandoaossenhoresapossibilidadedeseparar“omaridodamulher,ofilhodopaioumãe,salvosendoosfilhosmaioresdequinzeanos”navendadecativos.60Amarécomeçouamudarnovamenteemmarçode1870,comofimdaGuerradoParaguai.Emmaio,aCâmaradosDeputadosnomeoucomissãoparaelaborarparecereprojetosobreaquestãodoelementoservil;oestudoestavaconcluídoemagosto,econcordavaemlinhasgeraiscomaspropostasdeemancipaçãoelaboradasanteriormentenoConselhodeEstado.61Todavia,nãopareciapossíveldobrararesistênciadogabineteItaboraí.Piorqueisso,aLeiMoretacabaradeseraprovadapeloLegislativoespanhol,libertandooventredasescravaseconcedendoalforriaaescravosidososemCubaePortoRico.“RestasóoBrasil;restaoBrasilsó”—aspalavrasdePimentaBueno,naapresentaçãoaseusprojetosde1866,voltaramprovavelmenteàmentedeumimperadorruborizadodiantedomundoditocivilizado.RemovidooobstáculodaguerraeauxiliadopelaoposiçãofirmeeconstanteaogabineteItaboraí,lideradaporNabucodeAraújonoSenado,d.Pedroiilivrou-sedogabineteescravocrataeconvidouexatamentePimentaBueno,agoraviscondedeSãoVicente,paraformarministérioeconduziroproblemadaemancipaçãonoparlamento.Erasetembrode1870.Aopublicar“Mariana”,emjaneirodoanoseguinte,MachadodeAssisvivia,comotodoopaís,aexpectativadabreveaberturadostrabalhoslegislativos.Eracertoqueogovernoimperialmovia-senovamenteparaaemancipaçãogradual,aindaquecontraosinteressesdosbarõesdocaféedospolíticosqueosrepresentavam.62

aárvoredaescravidão

Novamudançadegabineteocorreriaantesdoiníciodostrabalhosparlamentaresde1871.Emmarço,oviscondedeSãoVicentecedeuaveza

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ninguémmenosdoqueParanhos,entãoviscondedoRioBranco,oásdobordejonosdebatesdoConselhodeEstadoem1867eumdosministrosdogabineteescravocratadoviscondedeItaboraí.SãoVicentetornara-sepersonagemmuitomarcadapeladefesadacausadaemancipação,eelepróprioaparentementeconcluiuqueassuaschancesdecosturarumamaioriafavorávelàreformanaCâmaradosDeputadosseriampequenas.63RioBranco,aocontrário,tinhaumahistóriade“prudência”,digamos,emrelaçãoaoassunto,ediziateraderidoàcausadevidoàssuasrecentesexperiênciasdiplomáticasnoUruguaienaArgentina.Muitopressionadopelosdeputadoscontráriosàemancipaçãoduranteosdebatesde1871—nãosecansavamdeamuá-locitandotrechosdeseupronunciamentonoConselhodeEstadoem1867—,RioBrancoexplicouqueeleeoutrosmilharesdebrasileirosquehaviammantidocontatocom“ospovosdosestadosvizinhos”nosanosanteriorestinhamcompreendidooquantoapermanênciadaescravidão“nosvexavaenoshumilhavaanteoestrangeiro”.Earrematava:“Cadavezmaismeconvencidequeumadasprincipaiscausas,senãoamaisinfluente,dasantipatias,dasprevenções,ealgumasvezesatédodesdém,comquesomosvistosnosEstadosSul-Americanos,nascemdeumafalsaapreciaçãosobreoBrasilemconseqüênciadoestadoservil”.64SejaqualforaexplicaçãoparaamudançadeposiçãodeRioBranco,ofatoéqueelesemostroutalhadoparaoofício.

Oquemaissurpreendenasdiscussõesparlamentaressobrealeide1871éasuapolarização.Derepente,bordejarnãoeramaispossível,eaolerosacirradíssimosdebatesficamoscomaimpressãodequeapenasosasseclasdeOlindaeJequitinhonhahaviamsobrevividoparaoduelofinal.Apósalgunsmesesdetrabalho,acomissãodaCâmaradosDeputadosencarregadadeexaminaroprojetoencaminhadopelogovernoapresentou,nasessãode30dejunhode1871,umparecerfrancamentefavorávelàsuaadoção.Osparlamentaresdebateramevotaramcadaartigodoprojetonosdoismesesseguintes.

Oparecerdacomissãorevisitaotemadacondenaçãodainstituiçãodaescravidãoperanteareligião,afilosofiaeodireitonatural.Aindaqueosargumentosnãofossemnovos,ofatodeapareceremdesataviadosdeoutrosdestinadosaprocrastinaroprocessodeemancipaçãoparecealteraroseupeso.AreligiãoensinavaqueohomemhaviasidocriadoàimagemdeDeuse,ninguémestandodispostoanegarahumanidadedoescravo,seguia-sequeos

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cativostambémhaviamsidofeitosàimagemdoCriador.JesusCristotomaraaformadoservo“paramorrerhumanamentedamortedosservos”epara“anunciararedençãodoscativos”.TambémaIgrejacatólicapregavahaviamuito“aredençãodoscativoscomoumadasmaismeritóriasobrasdemisericórdia”,eacomissãoprosseguiaparalistar“veementesadmoestaçõescontraaescravidão”proferidaspelospapasaolongodosséculos.Maisimportante,todavia,eraotemadarelaçãoentreescravidãoemoralcristã—oumelhor,anoçãodequeainstituiçãodaescravidãoimpossibilitavaapráticadamoralcristã.NumsermãodeinspiraçãoreligiosaquelembraapregaçãolaicadeJoaquimManoeldeMacedo,osdeputadosafirmavamqueaescravidãoerauma“escoladeperdição”,rodeadapelo“maisasquerosocortejodedesmoralização”.Oescravopagava“aosenhoremódiooquedelerecebeemdesprezo”:

Semeducação,neminstrução,embebe-senosvíciosmaisprópriosdohomemnãocivilizado.Convivendocomagentederaçasuperior,inoculanelaosseusmaushábitos.Semjusaoprodutodotrabalho,buscanorouboosmeiosdesatisfaçãodosapetites.Semlaçosdefamília,procedecomoinimigoouestranhoàsociedade,queorepele.VagaVênusarrojaaosmaioresexcessosaqueleardentesanguelíbico;eoconcubinatoemlargaescalaétolerado,quandonãoanimado,facultando-seassimaosjovensdeambosossexos,paraespetáculodoméstico,omaistorpedosexemplos.Finalmente,comasdegradantescenasdaservidão,nãopodeamaisilustradadassociedadesdeixardecorromper-se.65

Quantoàfaltadejustificativaparaaescravidãonocampodafilosofia,

bastavaatentarparaahistóriadoséculoxix:“Seécertoque,novolverdostempos,cabeacadaséculoumnome,eodesteéséculodaliberdade,comopodiaessamagníficaaspiraçãocoadunar-se[...]comaescravidão?”(grifodooriginal).Afilosofiaafirmavacomoverdadeaautonomia,adignidadeealiberdadedohomem,logonãohaviacomoharmonizaressasidéiascomorebaixamentoeoaviltamentodeumagrandemassadeindivíduos.Ahumanidadeinteirarejeitavaainstituiçãoservil,poisestaera“espelhodetirania,antípodadeliberdade,corruptoradeopressoreseoprimidos,mentirasocial,gérmendedissolução,remoradoprogresso,inimigadetodaaprosperidadeedetodaacivilização”.Paracompletarocapítulodefilosofia,acomissãodiscorriasobreotemaclássicodaoposiçãoentretrabalhoescravoelivre.Oprodutodotrabalhoescravopareciasempre“arremedo,tosco,brutal,moroso,poucolucrativo”;jáotrabalholivre“éinteligente,éhábil,éativo,écriador,élucrativoemdécuplo”.Semexplicaraequaçãoqueresultarano“lucrativoemdécuplo”afavordotrabalhoditolivre,osdeputadospreviamum

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futurorisonhoparaopaísumavezextintaaescravidão.Ofimdocativeiromultiplicariaos“braçosexistentes”,poisoescravoseriatransformadoemcidadão,passandoaproduzirmaisemelhor;ademais,aextinçãodesemelhanteinstituiçãotornariaopaísfinalmenteatraenteaosimigranteseuropeus.66

Aotratardaquestãoàluzdo“direitonatural”,acomissãoatacavafrontalmenteoproblemadoslimitesdapropriedadeescrava.Seahumanidadedoescravoerareconhecidaportodos,ealiberdade“édireitodohomem,natural,congênito,inauferível”,entãoaservidão“émentira”,instituiçãonascidade“umabusodeforça”.Porconseguinte,nãosepodiaconfundir“arelaçãoentresenhoreescravocomodomíniooriundodaverdadeirapropriedade”.Ouseja,nãosedeviaexageraressedireitodepropriedade.Odomínioquealeiconcediaaosenhorpermaneciaincompletodiantedoreconhecimentodequeoescravopossuíapersonalidadeerazãoinerentesàsuacondiçãohumana;aleinãopermitia“trataraoservocomoaocavalo,aoboi,àárvore,aonavio”.Verdadequeos“denominadosproprietáriosdeescravos”(grifodooriginal)tinhaminteressesrespeitáveis,poisoescravoera“capitalvalioso”e“uminstrumentodetrabalho”.Porumlado,talpropriedade,comoqualqueroutra,podiaserexpropriada“porcausadeinteressepúblico”,medianteindenização.Poroutro,devia-seatentarparaasparticularidadesdessetipodepropriedadeaodiscutiraindenizaçãojustaaserpagaaosenhor.Odireitodoproprietáriodeescravo,sendoorigináriodeumatodeforça,enãododireitonatural,existiaapenaspor“razãopolíticadeordempública”.Serianecessáriobuscaroequilíbrioentreodeverde“reivindicarparaoservoanaturalliberdade”eocompromissode“respeitarosinteressesdossenhoresdosatuaiscativos”.67

Oargumentodequehavialimitesaosdireitosdepropriedadedossenhoresdeescravos,assimcomootomaparentementeconciliatóriodoúltimoarrazoado,jáeramformasdelidarcomaresistênciaesperadaàidéia“capital”doprojetodeemancipaçãodogoverno—aliberdadedoventre.EmcontrastecomadiscussãonoConselhodeEstadoem1867,naqualaidéiadaliberdadedoventreencontrouoposiçãoapenasemOlindaeMuritiba,haveriafirmecombateaoalvitrenaCâmaraem1871.Refregaprevista,acomissãocaprichouedissequenaliberdadedosnasciturosestavatodaa“belezadosistema”deemancipaçãoproposto.Odiadapromulgaçãodaleiseria“formoso”,poisemseuprimeiroartigoestariaescritoem“letrasdeouro”quenaterradeSanta

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Cruz“nãoháumsóentehumanoquenasçaescravo”.68Essetipoderetórica—aformosurado“sistema”,a“VagaVênus”eadevassidãodosescravosetc.—eoutrassutilezasdelinguagem—comoapassagemsobreosassim“denominados”proprietáriosdeescravos—irritarameapimentaramaschacotasdeumaoposiçãocombativaeintransigente.

Alémdocoloridodaescrita,acomissãodefendeuoventrelivrecomaalegaçãodequeesseeraomeiomaissegurodeobteraextinçãogradualdaescravidão.Seria“estancar-lheafonte”,oque,combinadocomaadoçãodeoutrasmedidasedadascertascaracterísticasdainstituição,levariaàemancipaçãogeralsemmaioresprejuízosàlavoura.Osdeputadoslembravamque“naraçaescravaosnascimentosnãocompensamosóbitos”,oquejálevavaaumdecréscimocontínuodapopulaçãoescrava;excluídososnascimentosdenovoscativos,atendênciadequedaseriabastanteacelerada.Mencionava-setambémaconcessãodealforrias,cujonúmerocresceradramaticamentedesdeaGuerradoParaguai.Qualquerpretextopareciaservirparaalforriar“nosúltimostempos”—solenidadesreligiosas,festaspúblicas,aniversários.Finalmente,oprojetopreviamedidasdeincentivoàsmanumissões,comoaliberdadeporindenizaçãodepreçoeacriaçãodeumfundodeemancipaçãoadministradopelogoverno.69

Foiprecisodebatertambémametáforadaárvore.Aopensarsobreescravidão,políticoseliteratosfalavamfreqüentementeemraízes,floresefrutosparadefendervisõesasmaisdiversassobreoassunto.JoaquimManoeldeMacedo,porexemplo,refere-seaLucindaeaopajemdopaideCândidacomofrutosda“árvoredaescravidão”,paradizerquenãohaviaoutracoisaquenãodevassidãoeperversidadeaesperardesemelhanteespécie.70Osdeputadosopostosàleigostavamdecompararasescravasàsárvoresdesuasgrandespropriedades;rubiáceasdavamcafé,mangueirasdavammangas,mulheresescravasdavamcrias,etudoerapropriedadedeles,semteroquever.Acomissãocontestouavalidadedessetipodelógica.Osilogismodosescravocrataseramaisoumenosesse:osfrutospertencemaodonodapropriedade;aescravaépropriedadedodono;logo,osfrutosdasescravaspertencemaodonodapropriedade,“enãoélícitoaoEstadodispordoquelhenãopertence”.Sofisma,respondiaacomissão.Osegundoelementodosilogismooriginava-senuma“falsidade”.Nãoeracorretoutilizarotermo“propriedade”para“qualificarasrelaçõesentresenhoreseescravos”.A

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escravidãonãoinstituíapropriedadescomoasoutras.Porumlado,haviatodososlimitesimpostosaodomíniodossenhores:proibiçãodesevíciasepenascruéis,equiparaçãodosservosamenores,disposiçõesafavordaliberdademesmo“contraasregrasgeraisdedireito”etc.Ao“denominado”proprietáriodeescravosnãosereconhecia“jusdeplenodomínio,nemhereditariedadedeopressãooudireitosobreosnascituros”.Poroutrolado,repetia-sequeocativeiroeraviolaçãoaodireitonatural;consistiaeminstituiçãopuramentededireitocivil,“criadaartificialmente”.Logo,eralegítimoqueoEstadointerviesseaqualquermomentoparamodificá-la.Aemancipaçãonãosignificavaaprivaçãododireitodepropriedadeemescravos,mas“anegaçãodele”.AconstituiçãodoImpérioasseguravaaplenitudedodireitodepropriedade,“masdareal,daverdadeira,danatural,daquerecaisobrecousas,poisnãoépropriedadeoquerecaisobrepessoas”.71

Palavrasfortesaecoarnoparlamentodoúltimobaluartedaescravidãonomundoocidental.Aoposiçãoreagiuàaltura,econsiderouoparecerdacomissãofrutodeummovimentodeemancipação“fanático”,“agitador”,“revolucionário”;seusdefensoreseram“emissáriosdarevolução”,“apóstolosdaanarquia”,acabariam“matando[...]alavoura”.Houveaindaaalegaçãodequeoprojetodeleiemdiscussãoeraumaespéciedecortinadefumaça,pois“ogovernopretendefazeraemancipaçãojá,amãoarmada,dechofre”,porqueassimexigiaasociedadeabolicionistafrancesa.ColhiissotudoemdiscursodeJosédeAlencar,deputadoquepulouàfrentedavanguardaescravocrata.72

Semdúvida,oclimaquaseconsensualde1867noConselhodeEstado,acordetantonoconteúdodasmedidasquantonarecomendaçãodeinérciaemexecutá-las,nãoserepetirianosdebatesparlamentaresde1871.Otominflamadodessasintervençõesiniciaispermaneceuaolongodosmesesseguintes,easatasdassessõesregistramapartesconstantesepoucoamigáveis,gritarias,váriasinterrupçõesdostrabalhospararestauraraordem,“paredes”dedeputadosparaevitarvotações,retiradaacintosadegrandegrupodedeputadosquandocertorepresentantedosadversárioscomeçavaoseudiscurso,tiradasgaiatasparadesqualificarosoponentes,eassimvai.Pormaisquetenhamosdeatribuirpartedoclimareinanteaosarroubosretóricostípicosdotempoedaqueletipodegente,eraóbvioque,navisãodosparlamentares,oprojetodeemancipaçãoemdebateeradecisivo,envolvia“asraízesdanossasociedade”,73sóparacontinuarnametáforadaárvore.

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liberdadeaosfrutos

OprojetoenviadopelogovernoeapoiadopelacomissãodaCâmaradosDeputadosdeterminavaqueosfilhosdemulherescravanascidoslivresemvirtudedaleificariam“empoderesobaautoridadedossenhoresdesuasmães”.Ossenhoresteriamaobrigaçãode“criá-losetratá-los”atéaidadedeoitoanoscompletos;atingidaessaidade,osproprietáriosdasmãespoderiamoptarentreentregá-losprontamenteaoEstadomedianteaindenizaçãode600mil-réisemtítulosderendaouutilizar-sedosserviçosdosmenoresatéqueelescompletassem21anos.74Acomissãoesclareciaqueaindenizaçãoemtítulosouserviçosreferia-seaoressarcimentodevidoaosenhorpelasdespesasdecriaçãodosmenores—ouseja,osproprietáriosnãoestavamsendoindenizadospelosfrutosoufilhosdasescravas,pois,comojávisto,contestava-seodireitodepropriedadesobreessascrianças.

Talcontestaçãotornoubastantepolêmicaaquestãodosfilhoslivresdemulherescrava,acomeçarpelanomenclatura.Oprojetodogoverno,origináriodoConselhodeEstado,diziaqueosnasciturosseriam“consideradosdecondiçãolivreehavidosporingênuos”.EssaformulaçãoseguiaaposiçãodefendidaporNabucodeAraújoeParanhosdesdeosdebatesde1867,nosquaisoassuntojáprovocaradivergências.75Oqueestavaemjogo,entreoutrascoisas,eraprecisamenteoreconhecimentoounãodavalidadedoprincípiodeque“opartosegueoventre”—ouseja,aidéia,vigentenaescravidãoocidentalhaviaséculos,dequeacondiçãodofilhoseguiaadoventredamãe.Assim,filhodeventrelivrenasciaingênuo,deventreescravonasciaescravo.Apelidarofilholivredamulherescravade“liberto”,comodefendiamváriosadversáriosdoprojeto,significariareconhecerqueacriança,sendoorigináriadeventrecativo,nasciaescrava,paraserimediatamentelibertada.Issotambémimplicariareconhecerodireitodepropriedadedosenhorsobreosfilhosdasescravas,abrindoapossibilidadedediscussãodopagamentodeindenizaçãoaosproprietáriospelaalforriadessascrianças,enãoapenaspelasdespesasdecriação.Apelidar“ingênuo”aofilhodemãeescravasignificavaencararainstituiçãodaescravidãocomoumuniversodeficçõesouinvençõesdodireitopositivo.Assim,imaginarquesereshumanospodemserproprietáriosdeoutrossereshumanoséabsurdo,contrárioaodireitonatural,ealgopossívelapenasnocampodahistória,dacriaçãodosfatossociais.Porconseguinte,cria-se,por

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meiodelei,aficçãodequeocorpodaescravaéportadordeumventrelivre;segundoessanovaficção,filhodeescravanasceingênuo.Dequebra,confirma-se,aindaqueironicamente,avalidadedamáximadequeacondiçãodacriançaédeterminadapeloventredamãe.Oalvitreexcluía,comoéóbvio,qualquerdebatesobreindenizaçãoporexpropriaçãodapropriedadeescrava.Ascriançasaindapornascernãoerampropriedadesjárealizadas,materializadas,daquelasdefendidaspelaconstituiçãodoImpério;libertadooventre,osnasciturosjáviriamasernacondiçãodelivres,poisque“havidosporingênuos”.

Váriosdeputadosqueseopunhamaoprojetosubiramàtribunaparadiscordardogovernoedoparecerdacomissãoparlamentarnaquestãodoventrelivreedosfilhoslivresdamulherescrava.OsdoisdiscursosdobarãodaViladaBarraestiveramtalvezentreosmaisreveladores,poisomotedobarãoeraimaginaroquepensariamosgrandesproprietáriosdeterrasedeescravosaotomarconhecimentodeumaleideemancipaçãonosmoldespropostos.ViladaBarradesejavaprovarqueoprojetoexcedia-senasgarantiasefavoresconcedidosaosingênuos,aomesmotempoemqueafrouxava“oslaçosdaforçamoraldossenhores”sobreosseusescravos.Numtomconciliatório,aomenosinicialmente,pediacalmanadiscussãoesugeriaqueogovernotalveztivesseatropeladoosdireitosdossenhoressemosaber,pornãoponderardevidamenteasconseqüênciasdoprojetodelei.Resumiaassimaquiloqueogovernopareciadizeraossenhores:

Vósnãotendesdireitoaosfilhosdevossasescravas;soisobrigadosacriá-losdebaixodonomedeingênuos;vósnãotereisremuneraçãoalguma,senãodaquelesquechegarematéaidadedeoitoanos;nãotereisdireitoàindenizaçãodaquelescujasmãesselibertaremantesdestaidade;perdereisosdireitosaosserviçosdosingênuosporvósmaltratados,depoisdeterdesoptadoporessesserviços;sereisobrigados,semindenização,asustentarosfilhosdasescravas,pelosserviçosdosquaistiverdesoptado[...].

Comodizertudoistoaossenhores,econtarogovernocomaboavontadedestesmesmossenhoresparalevaraefeitooidealquesefiguraarespeitodessesingênuos?Énaverdadeinexplicávelsemelhanteprocedimento!Sealguémseencarregassedetomarumadesforradesmoralizadoradossenhoresporpartedosescravos,poucomaisacrescentariaaestecomplexodemedidas!76

Comosevê,navisãodeViladaBarraoprojetonegavadireitosaossenhores

eimpunha-lhesumasériedeobrigações.Naverdade,oprimeirodesafiodossenhoreseralidarcomaprópriaidéiadequenãomaisteriamdireitosdepropriedadesobreosfilhosdesuasescravas.Osdefensoresdapropostaargumentavamqueodireitodepropriedadeaplicava-seapenasacousasjá

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existentes(“inre”),enãoaoqueaindaestava“namassadospossíveis”,comoosfilhosquequalquerdeterminadaescravapudessevirater,concluindoquetalmedida,aplicando-seaseresinexistentes,nãoproduziria“abaloalgum”àlavoura.Obarãoachavaaquestãometafísicademais,edebochavadapretensãodequeamedidanãotrariaprejuízoaossenhores:bastavapensaremGalileu,aoobservarqueninguémpercebiaomovimentodaTerra,maselasemovia—“Epursimuove!Etodaviaproduzabalo!”.77

O“descontentamento”ea“frieza”dossenhoresemrelaçãoàpropostaviravamreceiodiantedo“entusiasmodogovernoarespeitodoscuidadosdequedeviacercarestesingênuos”.Segundoobarão,ossenhoresachavamqueassuasobrigaçõesemrelaçãoaosfilhoslivresdasescravasserviriamdepretextoparaqueaautoridadepúblicapassasseavigiarefiscalizarativamenteaspropriedades,buscandogarantirocumprimentodalegislação.Eseossenhoresnãosesubmetessem,resistissem?Entãoogoverno,sehouvessevontadepolíticadecumpriralei,elogonãopodendosedesmoralizar,recorreriaamultas,aprocessos,aprisões.Qualseriaolimitedessaintromissãodogovernonomundoprivadodasrelaçõesentresenhoreseescravos?Dequalquerforma,oresultadocertoseria“abalonodireitodepropriedadeequebradaforçamoraldossenhores”.Nessemomento,umdeputado,comacabeçacheiadeeventosdahistóriarecentedaFrança,observouque“osingênuosficamdepoisconvertidosempupilosdacomuna”.“Risadas”,registrouoescribadasatas.

Obarãoachavaqueossenhoresestranhariamtambémaformadeogovernocalcularotantodeindenizaçãoquesedispunhaapagar.Aosproprietárioscabiaaobrigaçãode“criaretratar”dosingênuosatéaidadedeoitoanoscompletos.Poderiamentãooptarpelaindenizaçãode600mil-réis.Oproblemaéqueossenhoresnãoteriamdireitoaindenizaçãoalgumapelosmenoresquemorressemantesdecompletaroitoanos,oumesmoporaquelescujasmãessealforriassemantesdesseprazo.SegundoViladaBarra,asestatísticasdisponíveisindicavamquecercademetadedascriançasescravasmorriaantesdosoitoanosdeidade;porconseguinte,namédia,ogovernoestavaoferecendoapenas300mil-réisdecompensaçãopelacriaçãodecadaingênuo.78

Deixemosdeladotaisexercíciosdesovinicesenhorial.Maisinteressanteéoraciocíniodobarãoparamostrarqueosfilhoslivresdamulherescravadeveriamserchamadosde“libertos”,enão“ingênuos”.Semprecomoobjetivo

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dedemonstrarque“aobrigaçãoimpostaaosenhordecriarofruto”doventrelivredaescravacomprometiaocontrolesocialnaescravidão,obarãodisse(achocertagraçanapassagem,eporissocitosemparcimônia):

Lancemosmãodofato,evamosentrarnasuaapreciação.

Umsenhortornalivreoventredeumaescravaefazumliberto.Exerceumdireitoquetem,eexerce-oporsualivrevontade.

Pelofatodeoterexercidovoluntariamenteencarrega-sedaeducaçãodesteliberto.Olibertoeamãerespectivaficam-lhegratos;eassimficamantidaaforçamoraldosenhor,aharmoniacontinuanafazenda.

Vamosaveragoraoreversodamedalha:Ogovernolibertandocompalavrasoventredeumaescrava,quenãoésua,fazumingênuo(apoiadosdaminoria)quequerdizerqueosenhornuncatevedireitoaele,eaprovaéquecustandoaogovernotantoumingênuocomoumliberto,ogovernopreferedar-lheonomedeingênuo,eaindamais,obrigaosenhoracriá-loetratá-lo.Corolário—seogovernoéquemfazoingênuo,nemelenemamãedesseingênuodevemgratidãoaosenhor:oingênuodirá—ogovernofoiquemmefezlivrecontraavossavontade—semecriaisetrataiséporqueogovernovosobriga,eparaissovospaga:tantoprovaqueogovernoquisdesconsiderar-vos,quepodendodar-meonomedeliberto,quelembrariaodireitoquesobremimtivestes,preferiudar-meonomedeingênuoefazer-mevossoigual;éverdadequeatécertopontoogovernotambémmerebaixa,porquemedeixaescravoatéos21anos,edepois,semmeterpreparado,lança-menasociedadecomocidadãolivre,comtodasasprerrogativasedireitos!79

Apassagemremóiaqueixadequeogovernoagiacomofilantropodoalheio,

poislibertavaescravos“compalavras”—ouseja,semindenização.Passoadiante,obarãodesenvolveaidéiadequechamaringênuosaosfilhoslivresdamulherescravacomprometiaapolíticadedomínionaescravidão.Talnomenclaturaindicavaorompimentodaidéiadeinviolabilidadedavontadesenhorial,daimagemdequeossenhorescriavamomundoàsuavoltasempeiasouamarrasdequalquerordem.Aocontrário,aleiinsistiaemdefinir“obrigações”aossenhoresegarantir“direitos”aosfilhoslivresdamulherescrava.O“sujeito”daescravidãomudavadelugar:ogovernofaziaingênuos,àreveliadavontadesenhorial;destituídodopoderdefazerlibertos,osenhorperdiaagratidãodamãeescravaeaforçasimbólicadeseudomínio—era“afrouxaroslaçosdaforçamoraldosenhor”.Emsuma,paraobarãoetantosdeseuspares,nãohaviaescravidãopossívelsemavigênciadanoçãodeinviolabilidadedavontadesenhorial,eelesachavamquealeiproposta,emváriosdeseusdispositivos,destruíaessesignificadosocialcentralaoescravismonoBrasil.

Outropassoadiante,eencontramosotemacandentedosdireitospolíticosdosfilhoslivresdamulherescrava.Criativo,ViladaBarraabandonaporinstantesomotedavisãosenhorialdaleiedizencarnaramentedeum

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ingênuo.Semabandonarporuminstantesequeromotedavisãosenhorialdalei(sic),oingênuodobarãoapreciaaidéiadogovernode“fazer-mevossoigual”,masreclamaqueomesmogovernoodeixavanocativeirodefatoatéos21anos.Alémdisso,prosseguiaoingênuo,“depois[...]lança-menasociedadecomocidadãolivre,comtodasasprerrogativasedireitos!”.Emoutraspalavras,chamar“libertos”aosfilhoslivresdamulherescravaeraadotar,jádeinício,restriçõesaosseusdireitosdecidadania,conformeoestabelecidonaConstituiçãode1824;apelidá-los“ingênuos”eraabrir-lhesapossibilidadedecidadaniaplena.SegundoaConstituição,oslibertospodiamvotarnaseleiçõesprimárias,masnãoeramelegíveis,vedando-se-lhesassimoacessoaumasériedecargospúblicoseletivos.80

Questãodifícil,controversa.JáoforanosdebatesdoConselhodeEstadoem1867e1868.OmarquêsdeOlinda,comoseriadeesperar,defendeuopontodevistadequeosfilhoslivresdamulherescravadeviamserlibertos.MascausapasmosaberqueoviscondedeJequitinhonha,abolicionista-mordoConselho,concordavacomOlindanesseponto.Oviscondepreocupa-sepoucocomargumentossobredireitodepropriedadeemescravos—seguindonissooseufeitio—,eoferecerazõescerradamentepolíticaspararestringirosdireitosdecidadaniadosfilhoslivresdasescravas.Considerá-losingênuos“seriadar-lhesdireitosqueaconstituiçãolhesrecusa”,eprossegue:“Nãoagravemos,contraoespíritodaConstituiçãodoImpério,osmalesquetodosreconhecememnossaseleiçõespolíticas,equesãoconseqüênciadafaltadeluzesedecapacidademoralemgrandenúmerodevotantes”.81Emoutraspalavras,osfilhoslivresdasescravas,marcadospelaherançadocativeiro,estariamdespreparadosparaexercerplenamenteacidadanianumasociedadelivre.OraciocíniodeJequitinhonhapareceserumcoroláriopossíveldeformasdecondenaçãoàescravidãocentradasnumdiscursodecoisificaçãosocialoudeficiênciamoraldoscativoseseusdescendentes—istoé,naidéiadequeaescravidãoproduziaelegavaàposteridadesujeitos“degradadospelacondiçãoviolentada,engolfadosnosvíciosmaistorpes,materializados,corruptos,apodrecidos...”,comodiziaJoaquimManoeldeMacedo.82

AposiçãodeJequitinhonhafoicombatidaporNabucodeAraújo,ParanhoseSãoVicente.Aoinvésdebordejar,aquiParanhosfoidireitoaoponto.Osfilhoslivresdascativastinhamdeser“consideradosingênuos”:

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queocontrárionãosóforaimpolítico,masatéinconstitucional.Seelessãolivres,segundoalei,desdeoseunascimento,comopodemficarnacondiçãodelibertos,istoé,nacondiçãodaquelesqueforamescravosantesdeseremlivres?

Aleinãorestituialiberdadeaosindivíduosaquemvaibeneficiar,estabeleceoprincípiodequedasuadataemdiante,ninguémnasceráescravonoterritóriobrasileiro.Éesseoseupensamento,eporissonãoreconhecenestapartedireitodeindenizaçãoemfavordossenhores.

Ocontrárioestariaemflagrantecontradiçãocomtudoquantosepodealegaresealega,emnomedareligião,dodireitonaturaledasluzesdoséculo,contraoestadodeescravidão.Ocontrárioforacriarentrenósumanovaclassesocialnãomenosperigosa,adecidadãosprivadosdepreciososdireitosemrelaçãoàvidapúblicaepolítica.

Seoslibertosatéhojesemostramresignados,éporquenelesverificam-seosmotivosdaincapacidadeprevistapelaconstituição,enãosãoelesemgrandenúmero,ouseachamemsituaçõesmuitodiversasdelugar,deocasiãoedeidade,vistoqueasalforriassãoindividuais,incertaselentas.Nãoaconteceriaomesmocomoslibertosdanovalei,seelaosdeclarassetais;estesnasceriamlivreseseriameducadosparaaliberdadeesobaliberdade;seriamnumerosos,eachar-se-iamemnúmeroconsiderávelnomesmolugaresoboutrascondiçõesdeigualdade.Constituirãoumaclasseàparte,seaincapacidadelegalosdistinguissedamassageraldoscidadãos...83

Alémdereafirmaroargumentodequeanoçãodeingênuoexcluíaa

indenizaçãoaossenhoresdasmãesescravasdeprolelivre,Paranhospensanãohaverfundamentoparaapretensãoderestringirosdireitospolíticosdetaispessoas.Maisainda,receiaqueadiscriminaçãopolíticadessamassadecidadãosostornasse“umaclasseàparte”,talvezhostilàordemsocial.NabucodeAraújocomplementaoraciocíniodeParanhosdizendoqueoalvitredecriarincapacidadepolíticadessaformajustificava-senosEstadosUnidos,ondehavia“antagonismoderaça”;noBrasil,o“perigo”eraestabelecertalantagonismo,supostamenteinexistente.84

OviscondedeSãoVicenteinterveionodebateparaexporadoutrinaqueinformaraasuadecisãodepropor,nosprojetosoriginalmenteenviadosaoConselhodeEstado,queosfilhoslivresdamulherescravafossemconsideradossimplesmente“decondiçãolivre”—semdefini-los,portanto,“libertos”ou“ingênuos”.Àprimeiravista,voltamosàartedebordejar.SãoVicenteconcordavaqueseria“perigoso”considerá-losingênuos,pelaameaçaàsinstituiçõespolíticasjáexpostasporJequitinhonha.Tidosporlibertos,taisindivíduosficariamsoba“tutela”dogoverno,negando-se-lhes“direitospolíticosparaquenãoestavampreparados”.Todavia,“anota”delibertospareceria“humilhante”paracentenasdemilharesdehomensquejamaisseriamescravos;“seriaacabarcomalutadaescravidãoparaentrarnalutadasincapacidadespolíticas,lutaperigosa,quenadajustificaria”.Seadecisãoeradifícilnaquelemomento,melhorpostergarcomoargumentodaprudênciapolítica:

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Issoquepareceumalacunanãoéumaomissãoesimumpensamentointencional.Nãosequisresolveressaquestãodesdejá,porissoquepor20anosasoluçãonãoéprecisa,bastapororaquefiquedeclaradoquesãodecondiçãolivre.Teremos,pois,tempodeverocomoascousassepassam,ederesolverconvenientemente.85

Emsuma,SãoVicentedispunha-seajogarcomaindeterminaçãodofuturo,

avercomosedariam“ascousas”duranteoprocessodeexecuçãodalei.Naverdade,essesconselheirosqueapoiavamoprojetodeemancipaçãodiscutiamaformamaisprudentedeconduzi-lo:evitaradenominação“libertos”aosfilhosdasescravaseraprevenirindenizaçõesvultosasqueinviabilizariamaaplicaçãodalei;chamar“ingênuos”aessaspessoaseraevitaraemergênciadeódiospolíticoseraciais.Asoluçãodecompromisso,propostaporSãoVicenteevitoriosaaofinal,adiavaodesfecho,dandoaescravocrataseemancipacionistasaesperançadefazertriunfar,aposteriori,asuaprópriainterpretaçãodalei.

NabucodeAraújomanteve-sefirmenaopiniãodequeosfilhoslivresdasescravasdeviamser“consideradosdecondiçãolivreehavidosporingênuos”,eassimredigidooprojetodogovernochegouàCâmara.Acomissãoparlamentarde1871emendouoprimeiroartigodoprojetoeadotouosilênciopropostoporSãoVicente,riscandoaexpressão“havidosporingênuos”,masexplicouqueofaziasimplesmenteparaevitar“redundância”.Aoseexpressardessaforma,indicavaqueacondiçãodeingênuosdessesindivíduoslhepareciaincontroversa,eenfatizavaquealeiproviaumperíododetutelaaosfilhoslivresdasescravasaodeterminarqueelesseriamcriadospelossenhores,comacontrapartidadaprestaçãodeserviços,atécompletar21anos.86Defato,aocortardaleiaexpressão“havidosporingênuos”,osdeputadosfavoráveisaoprojetoconseguiamtalvezaumentarasuabasedeapoio,dandooutropassoparaobteraaprovaçãodaproposta.Osopositoresmaisempedernidosperdiamumdeseusargumentos;jáosemancipacionistasreticentesdispunham-seavotarnalei,consolando-setalvezcomojogodofuturo,quepoderiaquiçádarmarchaaréàhistória.Dequalquerforma,aquiealhuresnessaleide1871,oslegisladoresincluíamdispositivosqueremoviamobstáculosimediatosàsuaaprovação,aomesmotempoemquedeixavamparadepois—maisprecisamente,paraasbatalhasemtornodaexecuçãodalei—adecisãoarespeitodealgunsdeseussignificadosessenciais.

CoubeaoviscondedoRioBranco,porém,estabeleceropontodedoutrina

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aquémdoqualnãoseriapossívelaogovernoretrocedersemdesistir,deantemão,delutarpelocumprimentodalei.Nessaquestãodeingênuosoulibertos,comoemtantasoutrasconcernentesàemancipação,oquehaviademaisrecorrentenafaladosescravocratasconsistianaqueixadequeaintervençãodogovernonasrelaçõesentresenhoreseescravoserailegítima,poisdesrespeitavadireitosdepropriedadeecomprometiaapolíticadedomíniosobreoscativos.Sobrecadaassuntoàbaila,RioBrancoeseusaliadosestranharamecriticaramopressupostodequesenhoresdeescravosgozavamdaprerrogativadeumpoderprivadoindevassávelaosdesígniosdalei.Sobreventrelivreeingênuos,ovisconderecorriaacostumessupostamentevigentesnopaís,esegundoosquaiserafatoobservadoqueasmãesescravas“trabalhameajuntamasdoaçõesquepodemobterparaalibertaçãodeseusfilhos,preferindoaalforriadestesàsuaprópria”.Eossenhores,cuja“notávelhumanidade”nãosecansavamdeapregoarosparlamentares,fossequalfosseoseucoloridoideológico,nãoseopunhamaessajustaaspiraçãodasmãesescravas.Entãoaquevinhatamanhoalaridoquandoogovernopropunhatransformaremdireitoessajustaaspiraçãodasmãesescravas?Dizia-seatéqueasmãesescravasficariamrevoltadasaoverlivresosfilhos,permanecendoelasnocativeiro,oque,segundoRioBranco,contrariavatudooqueseobservavasobreaexperiênciacotidianadaescravidão.87ReclamavaquenoBrasilalegislaçãotendiaaseromissaquantoaosdireitosnaturaisdosescravos,deixandotudoà“humanidadedossenhores”,queentãoconcediamaoscativosaquiloquelhespareciaapropriado.Oviscondearrematavaaobradizendoquealeitinha,sim,oobjetivodegarantirdireitosaosescravos;elavisavatiraroescravodacondiçãodecousae“dar-lheaqualidadedepessoa,masdentrodelimitesqueousojátemconsagradoequeorasetratadeestabelecerpordireito”.88Aescravidãonãoera“cousaexcepcional”,sem“corretivolegaldenenhumaespécie”,nemoacessoaosestabelecimentosruraisestava“interditoàautoridade”.89Nãohaviaformamaisclaradeexporoquedividiagovernoeoposiçãoduranteosdebatessobreemancipação,aindaquealeiincluísseumapencadedisposiçõesambíguasquedeixavamaofuturoadecisãosobreasfronteirasprecisasentreopoderdeintervençãodoEstadoeoexercíciodavontadesenhorial.

pecúlioealforriaforçada

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Oscríticosdogovernoconsideravamnefastasasdeterminaçõesdoprojetoarespeitododireitodoscativosaconstituirpecúlioeutilizá-loparaobteralforriaporindenizaçãodepreçoaosenhor.Acomissãoparlamentarde1871reconheciaseresseassunto“oquemaisclamorestemsuscitado”.90AquestãocausavapolêmicadesdeostrabalhosnoConselhodeEstado,epodeserútilacompanharpartedasfiligranaspolíticassobreotema.Naverdade,bastaobservarasmudançasnaredaçãodosartigosdaleisobrepecúlioeresgatedesde1867atéotextofinaldesetembrode1871.

AcomissãodoConselhodeEstado,em1867,redigiuassimoartigoterceirodeseuprojetodelei:

Oescravo,quepormeiodeseupecúlio,ouporliberalidadedeoutrem,ouporcontratodeprestaçãodefuturosserviços,obtivermeiosparaindenizaçãodoseuvalor,temdireitoperfeitoàsuaalforria,eestasendorecusadapelosenhor,lheseráoutorgadapelaautoridadepública.

P.1oSerámantidoopecúliodoescravo,provenientedesuaseconomias,doações,legadoseherançasquelheaconteçam,eogovernonosregulamentosparaexecuçãodestaleiprovidenciarásobreacolocação,egarantiasdomesmopecúlio.

P.2oOcontratodeprestaçãodefuturosserviçosparaoescravoobtersualiberdade,sóélícitoporseteanosedependentedaaprovaçãodojuizdeórfãos.91

Oartigoaparecianocontextogeraldemedidasdestinadasàemancipação

gradualdas“geraçõespresentes”decativos,poiso“sistema”daleiseriaincompletoselibertasseapenasas“futurasgerações”.92Parajustificarodireitodoescravoàliberdadeporindenizaçãodepreçoindependentementedavontadedosenhor,osconselheirosrecorriam,comodehábito,aodireitonatural:aescravidãoeraumfatosocial,condiçãolegalmasnãolegítima,quedeviaportantocessarcomaindenizaçãodosenhor.Asdisposiçõesdoartigopareciamdesmancharumdosprincipaispilaresdapolíticadedomíniosenhorial:tiravamdosenhoraprerrogativaexclusivadeconcederalforria;aocontrário,garantiamaoescravoodireitodeobtê-la,conferindo-lheinclusivemeiosdeconstituireprotegeroseupecúliorecorrendoàautoridadepública.Emsuma,comonãodeixaramdenotarosdeputadosdaoposição,oartigovisavaconsagraraintervençãodopoderpúbliconasrelaçõesdomésticasentresenhoreseescravos.

Nosdebatesparlamentaresde1871,agritariaprovocadapelasdisposiçõessobrepecúlioealforriaforçadafoiespetáculocuriosíssimo.Emsuaproposta,ogovernorearrumouaredaçãodosconselheirosdeEstadoefirmouessesdireitos,taisquais,noartigoquartodoprojetodelei.RioBrancoqueixava-sede

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queogovernoforachamadode“inimigodapropriedade”eatéde“comunista”porsustentaroartigoquarto.93PerdigãoMalheiroachavaoresgateforçadoamedida“maisgravedetodooprojeto”—sófaltava“chamaràsarmasosescravos!”.94Diziaclaramentequeaformaderesgatesugeridapelogovernoerainaceitávelporqueexcluía“inteiramenteaintervençãodossenhores”,prevendo“revoluções”comoresultadodaadoçãodaproposta.95Essetipodereaçãosurpreendeaindamaispelofatodeocorrerapósaapresentaçãodoparecerdacomissãoparlamentar,quehaviasugerido,comaanuênciadogoverno,modificaçõesaparentementesignificativasnaredaçãodoartigosobrepecúlioealforriaporindenizaçãodepreço.

Vejamosseoexercícioderiscareaduzirpalavras,trocandooestilo,mudaounãooespíritodacousa.Quantoaopecúlio,diziaassimapropostaoriginaldogoverno:“Oescravotemdireitoaopecúlioprovenientedeseutrabalho,economias,doações,legadoseherançasquelheaconteçam”(grifomeu).Acomissãoparlamentaremendouassim:“Épermitidoaoescravoaformaçãodeumpecúliocomoquelheprovierdedoações,legadoseheranças,ecomoque,porconsentimentodosenhor,obtiverdeseutrabalhoeeconomias”(grifosmeus).96Napropostaoriginal,opecúlioé“direito”doescravo;naemendada,torna-sealgopermitido,concedidoaele.Masconcedidoporiniciativadequem?Arespostanãoésimples.Onovotextodoartigobuscavainstituirdoistiposdepecúlio.97Numdeles,provenientede“doações,legadoseheranças”,oproprietáriodoescravocontinuasempossibilidadedeintervir;istoé,nãolheépermitidobarrarachegadadetaiscabedaisaseuscativos.Essetipodepecúlioé,defato,garantidopelopoderpúblicoeindependentedavontadesenhorial.98Aoutrafonteparaaacumulaçãodopecúlioconsistenaquiloqueocativo“obtiverdeseutrabalhoeeconomias”.Arealizaçãodessapossibilidadepassavaadependerexpressamentedo“consentimentodosenhor”.Aorigemdadistinçãoestavanointeressedacomissãoedogovernoemacalmarreceiosdequeodireitoaopecúliopor“trabalhoeeconomias”poderiadesorganizaraproduçãoecomprometeradisciplinanasfazendas.Eraimportantefirmaroprincípiodequeaossenhorescabiadefinirasatividadesprodutivasecontrolarasrelaçõesdetrabalhoemsuaspropriedades.

Emgrandeparte,porém,comissãoegovernorevolverammaisaspalavrasdoqueoconteúdodasmedidas.Oescravocontinuavacom“direito”aopecúlioquelhechegassepordoações,legadosouheranças,ouogoverno“permitia”ao

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escravorecebertaisrecursos—oquedavanomesmo,poisemambasasfórmulasàprerrogativasenhorialsubstituía-seagarantiadopoderpúblico.Quantoàexigênciadoconsentimentodosenhorparaqueoescravoacumulassepecúlioatravésdeseuprópriotrabalho,asoluçãodoslegisladoreséambígua.Novamente,osemancipacionistasdemeia-patacadevemtercedidoàpromessadequeofuturopermaneciaindeterminado,quiçáfosseaindadotroncoedoazorrague.Quantoaosopositoresmaisconvictos,oalvitredepoucovaleu,eRioBrancotalveztenhaapenasaumentadoairritaçãodessaturmaaodizerqueogovernoconcordaracomasugestãodeincluiraexpressão“porconsentimentodosenhor”noreferidoartigoporqueissonãofariaamínimadiferença.Talconsentimentojáestariaimplícitonaproposta.Segundoele,opecúlioobtidopeloescravopormeiodeseutrabalhoestavaenraizadonoscostumesdopaís;nessepontoeemtantosoutrosdoprojeto,RioBrancoachavaqueogovernoapenastransformavaemleioquejáerapráticasocial.Filigranasnotextodaleinãomudariamarealidadedascoisas.Naverdade,dizia,“avantagemdesteprojetoestáemquenadainova”.99

Talvezmaisimportanteparamostrarqueasmudançasintroduzidaspelacomissãoparlamentarnãointerferiramno“espíritodalei”sejaofatodeque,umavezobtidoopecúlio,fossecomofosse,oescravocontinuavasemprecom“direitoàalforria”,expressãoconstanteemtodasasversõesdeprojetocotejadas—istoé,adacomissãodoConselhodeEstado,aoriginaldogoverno,adacomissãoparlamentar,eoprópriotextofinaldalei.100Issobastavaparacaracterizarofatodequeosescravospassavamatermeiosinstitucionaisdeobteraalforriaàreveliadavontadesenhorial.Queissocomprometiaapolíticadedomínionaescravidãopareceóbvio,portudoqueeumesmojádisse,aquiealhures.101Aindaassim,éprecisocravarmaisfundoafacadoraciocínioparaentendertodooalcancedasrepresentaçõespolíticassobreaderrotadaclassesenhorialem1871.

PerdigãoMalheirotevedesempenhodestacadoentreosdeputadoscontráriosaoprojeto,oquetalvezsejadeadmirarpelofatodetersidoeleoautordolivromaisimportantesobreescravidãoeemancipaçãonoBrasilimperial.Parafustigá-lo,osparlamentaresfavoráveisàpropostadogovernodiziamquenadafaziamalémdedefenderasidéiasquePerdigãoMalheirohaviatãobrilhantementeexposto,poucosanosantes,emAescravidãonoBrasil.Osmotivosdodeputadoparaopor-setãoradicalmenteaoprojetosãodifíceisde

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avaliar,pormaisqueeleseesforçasseemargumentarquenãohaviacontradiçãoentreoqueexpuseranolivrode1867eoquesustentavanosdebatesde1871.Achavaoprojetodogovernoinoportuno,precipitado,capazdeprovocaraemancipaçãofinalempoucosanos.Outrossim,houve,duranteosdebatesparlamentares,alusõesaumasupostaambiçãofrustradadePerdigãoMalheiroemparticipardogabineteconservadorquepromoviaoprojetodeemancipaçãonoparlamento.Falava-seemvetodoimperadoraseunome.Sejacomofor,ofatoéqueeleeraadversárioformidável,capazdeentenderoalcancedotemadaemancipaçãoediscorrersobreoassuntocomerudiçãoecriatividade.102

Aotratardoresgateforçado,PerdigãoMalheirobuscouvincularaquestãodapolíticadedomínionaescravidãoaotemamaisgeraldaperpetuaçãodedeterminadotipodedominaçãodeclasseedetodoummododevidaaeleassociado.Recorreuaodireitoromanoparaidentificarasfontesdodireitodossenhoressobreseusescravos:odominiumeopotestas.Quantoaodominium,oescravoeracoisa,propriedade,sujeitoàsleisquearegulavam;comotempo,todavia,devidoaoreconhecimentodofatodequeaescravidãoeraumainstituiçãoquecontrariavaodireitonatural,introduziram-semodificaçõesnasleisparaconsignarahumanidadeinerenteaocativo.Quantoaopotestas,significavaqueosenhortinhapodersobreoescravo,assimcomoomaridotinhadireitosobreamulher,opaisobreofilho.Essaprerrogativasenhorial,opotestas,garantidonalei,constituíaaforçamoraldosenhorsobreseussubordinados—escravos,mulherefilhos,mastambémparentelaeagregados.Perguntavaodeputado:“Tiraiaopaiestedireitosobreofilho,tiraiaomaridoestedireitosobreamulher,proclamaiaemancipaçãodamulheredosfilhos,ondeirãopararasrelaçõesdefamília,aordemsocial,etodasassuasconseqüências?”.103Poranalogia,PerdigãoMalheiroachavaqueapropostadogoverno,aoinstituiraalforriaforçada,destruíaaforçamoraldosenhorsobreoescravo.Adetençãodopoderexclusivodealforriarnasmãosdossenhorespareciaessencialparagarantirasubordinaçãodosescravoseagratidãodoslibertos,poisosnegrosdeveriamtransitardaescravidãoparaaliberdadeemsituaçãodedependência.Diziaaindaqueoresgateforçadoconsistiaemameaçanãosóàordemeconômica,mastambém“àpazdasfamílias”;paracompletar,temiaamanipulaçãodaleiporvizinhosinimigos,tornando-seatémesmo“armaeleitoral”.Nesseponto,PerdigãoMalheiroviaperigonofatodealei

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permitirqueoescravorecebessedoaçõeselegadosparaconstituirpecúlio;segundoele,fazendeirospoderiampromoveraalforriadosmelhoresbraçosdeseusdesafetos,eatéutilizartaisdoaçõesdestinadasàalforriaparaarregimentarhomenslivrespobresdependentes,cabalarvotosealiciarcapangasnosperíodoseleitorais.

Empoucaspenadas,PerdigãoMalheiroenlaçoutodososfiosnumsóargumento:oqueestavaemjogo,inteira,eraumalógicadedominaçãodeclasse,ummododeproduzirsubordinaçãosocial—deescravos,mulheres,filhos,dependentes.Aficçãodainviolabilidadedavontadesenhorialestavanocernedessaformadereproduzirdesigualdades,eo“rompimentobruscoeviolento”detalrepresentação,consubstanciada,segundoele,nainstituiçãodaalforriaforçada,“produziráestilhaços,quenãoseiondeirãoparar”.104PerdigãoMalheirotalvezexagerasse;defato,promoviao“terrorpânico”paratentarlevantar“aopiniãopública”contraabaseparlamentargovernista.AindaqueosdeputadosfavoráveisàpropostatenhamseretiradoacintosamentequandoPerdigãoMalheirosubiuàtribunaem9deagostode1871,odeputadoporMinasGeraiscontavatalvezcomapublicaçãodeseudiscurso,poucosdiasdepois,noJornaldoCommercio,veículoatravésdoqualatingiriaopaísinteiro.RioBrancofezremoquedaestratégiadosoposicionistasdealardearoterror;respondiaqueareformaservilnãofaria“desabar”o“edifíciosocial”,nemogovernoestavaempenhadoem“destruir”os“alicerces”detaledifício.105Paraoviscondeeseusaliados,aocontrário,aerradicaçãodaescravidãoerapontodepartidaparaaregeneraçãodasociedadeinteira.Ainterpretaçãodivergentedosentidodacousamalescondeofatodequenossaspersonagensviamamesmacousa:PerdigãoMalheiroeovisconde,deputadosoposicionistasegovernistas,achavamtodosqueaquestãodaescravidãointerferianalógicadedominaçãovigentenasociedadeinteira.

Outrosdeputados,talvezmenosdoutosemescravidãodoquePerdigãoMalheiro,foramporissomesmomaisdireitoaoponto.SobeàtribunaodeputadoPintoMoreira;reproduzo,denovosemparcimônia,umtrechodediscurso:

Masfere-sehojeaescravidãoemseuprincípio;aleiqueantesaprotegia,acondenaagoracomocousainjusta,contráriaàreligião,àmoraleaodireito;torna-seumainstituiçãocaduca,quemalpodesobreviveraosprincípiosqueasustentavam.Poroutroladocria-seumestadonovodentrodafamíliadolavrador,novasrelaçõesjurídicasaíse

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estabelecem;oregímendosestabelecimentosagrícolasafrouxa;aautoridadedosenhoreaautoridadepúblicadiariamenteseencontramnomesmoestabelecimento;aquelaperdeoseuanteriorprestígio,estanãopodemantermaisaimparcialidade;osdomésticos,escravosoulibertosseentregamàintrigaalimentadaportodasortedeembustes;surgeadenúncia,aquerela;intermináveiscontendassetravam,oespíritoderixaimpera.(Apoiados)Eparaquemaisseagraveacomplicação,aívempelopecúliodejureafamíliacivildentrodafamíliacivil,apropriedadejurídicadentrodapropriedadejurídica,eapesardesta.(Apoiados,muitobem.)Nocentroestáolavrador,opaidefamíliaabandonadoasuasprópriasforças,cobertodeódiopelalei,molestadotodososdiaspelasinvestigaçõesdaautoridade,atormentadopelasmaquinaçõesdavizinhança,expostoàsconspiraçõesdomésticas.106

Impossíveldeixardereconhecer,nessetipodelamento,umbocadodobarro

históricodoqualsefezumnarradorcomoDomCasmurro:láestáopaidefamíliacercadopordependentesintriguistaseembusteiros,“expostoàsconspiraçõesdomésticas”,queacabatraídoeabandonadoportodos.

PintoMoreiraidentificaasbasesdoedifíciosocialnaescravidão,instituiçãoantesprotegidapelasleiseacordecomamoralereligiãovigentesnopaís.Aleideemancipaçãopropostatornariaainstituição“caduca”,malpoderia“sobreviveraosprincípiosqueasustentavam”.Ouseja,segundoele,aleidefatosolapariaostaisprincípiosquenorteavamaescravidão.Oparágrafoseguinteesclareceoqueoprojetopropostodefatocomprometeria:aimagemdopoderabsolutodosenhordeterrasedepessoas.Ao“afrouxar”aforçamoraldossenhoressobreoscativos,areformaservilinterfeririaemoutrasesferasdavida.Aexecuçãodaleireforçariaaautoridadepúblicaemdetrimentodaautoridadesenhorial;aofazerisso,quebrariaoencantodopoderabsolutodosenhoreodeixariaexpostoaoantagonismodosprópriosescravos,libertos,dependentes,quiçádeesposaefilhoscotidianamentetolhidosportaisguapos.Emsuma,odramado“paidefamíliaabandonado”metaforizaasupostadébâcledeumprojetoespecíficodedominaçãodeclasse—degêneromasculino,linguagempaternalista,mantidoàbasedapalmatóriaedobacalhau,invasordeterras,predadordarespública,amantedalibraesterlinaeembasbacadodiantedequalquerbadulaqueintelectualfrancês.

Osdeputadosopostosàleideemancipaçãodefendiamdeterminadahistória,certainterpretaçãodosentidodotempo,magistralmentedescritoporIlmarMattoscomoo“temposaquarema”.107Em1871,porém,ossaquaremaspareciamprestesaquebrarosremos.Orachadopartidoconservador,essencialàaprovaçãodoprojetonoparlamento,comprometeualiderançadevelhoscardeaisdopartido,acomeçarpeloviscondedeItaboraí,quetevedesersacadodopoderparapermitiratramitaçãodaproposta.PaulinoJoséSoaresdeSouza,

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ex-ministronoGabinete16deJulho(Itaboraí),cujopai,homônimo,haviasidoministroimportantenoperíododeconsolidaçãodoprojetosaquarema(iníciodadécadade1850),foiumdoslíderesdaoposiçãoderrotadanaCâmaradosDeputados.EleeseuscorreligionáriosquestionavamalegitimidadedoviscondedoRioBrancoparaconduzirareformaservilemnomedopartidoconservador.Lançou-seàtribunaquandoaderrotaeracerta;altivo,proferiuameaçasevinculouodestinodo“temposaquarema”àsobrevivênciadaprópriamonarquia.Descreveulongamenteomundoqueherdaradopai,equeagoraameaçavaruir:

Aescravidão,senhores,éumainstituição,queseradicouemnossasociedade,prendeu-seaomododeserdenossavidasocial,ecomelaformouumtodocompacto,doqualnãoépossívelarrancá-laviolentamentesemqueessemesmotodoseressintaesemanifestemperturbaçõesnaordemdecousasquesobdiferentesaspectoscomelaafinalveioafazercorpo.Éassimqueaquestãosoboaspectojurídicoentendecomapropriedade,pondoemsobressaltoasfortunasquenessaespéciedehaveresseconstituíram;naordemeconômicarespeitaàprodução,ameaçandodesorganizarotrabalho;naordemsocialvemrompermuitasrelaçõesfirmadasemhábitosqueseconsolidavamnonossomododeviver.Seoedifíciocomplexodoscostumesnacionaisformou-secomotempopelaaçãolentaqueessainstituiçãofoipoucoepoucoexercendo,nelesinfiltrando-seedando-lhesafacequehojeapresentam,éevidentequesótambémcontandocomaaçãodotempoeajudando-apeloconcursopoderosodecertasforçasmoraisemateriais,poderemosobtersemgrandesperturbaçõesoresultadoqueéparadesejardessagrandeeimportantetransformaçãosocial.

Aescravidão,diziaaprimeiraautoridadenestamatéria,formacomoinstituiçãoumapeçainteiranasociedadeemqueestáadmitida:éumestadodecousasquetemsuascondiçõesessenciais;seasdestruís,oedifíciohádenecessariamentedesmoronar...108

Aessaaltura,imaginoquealeitoradispenseumatraduçãodapassagem

acima,poisatéametáforacentraljánoséfamiliar:aescravidãocomoalicercedoedifíciosocial.Melhornãobulircomabasedascoisas,evitarqueopoderpúblicointervenhaeponhatudoaperder.Eumesmodispensariaatranscriçãodotrecho,nãofosseelereiteraçãotãocontundentedofatodequeotemadaescravidãoeraonexofundamentaldasociedadebrasileiradoséculoxix,oliamequepermitiacosturartemaseproblemas,fosseounãoaescravidãooassuntodomomento,enãofosseessefatotãocrucialparaomeumododelerMachadodeAssis(enãosóele).

josédealencareaexperiênciadaderrota

JosédeAlencar,políticoeliterato,viveuintensamenteosacontecimentos

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queresultaramnaaprovaçãodaleide28desetembrode1871.Conformejámencionado,foiministrodaJustiçanogabineteconservadorpresididopeloviscondedeItaboraí,equesubiraaopoder,em16dejulhode1868,comadeterminaçãodebrecarareformaservil.Permaneceuministro—aoladodegentecomoParanhos,PaulinodeSouza,MuritibaeCotegipe—até10dejaneirode1870.DeixoudeserministrodevidoadesavençaspolíticascomCotegipe,quelhesapecouaalcunhade“pirracento”,ecomopróprioimperador.Alencardesejavatornar-sesenadorpeloCearáed.Pedroiiopunha-seaqueumministrofossecandidatoemeleiçãosenatorial.Alencarteimou,ganhouaeleiçãoefigurouemprimeirolugarnalistadeseisnomesencaminhadaaoimperador;estedeveria,noexercíciodasprerrogativasdopodermoderador,escolherdoisfelizardosparapreencherasvagasexistentes.Alencardemitiu-seemseguidadoministérioeaguardouadecisãosobreasenatoria.Oimperadornãooescolheu.OresumodaóperaéqueAlencardeixoudeserministroenãofoisenador.Restou-lheumrancorinvencívelàCoroaeavoltaàCâmaradosDeputados.109AocontráriodeoutrosmembrosdoGabineteItaboraí,todavia,Alencardeixouoministério,maspermaneceufidelíssimoàcausadeestorvarapassagemdeumaleideemancipação.

Livrededespachosministeriais,Alencarvoltouàsletrascomímpetorenovado.Nofinaldoanode1870,consumadaaguinadapolíticaquearredouItaboraídopodereabriucaminhoagabinetesfavoráveisàemancipação,eleconcebeueredigiuOtroncodoipê,publicadoemjaneirode1871110—coincidentemente,omesmomêseanoemqueoconto“Mariana”,deMachadodeAssis,aparecianoJornaldasFamílias.Ahistóriadesenrola-senafazendadeNossaSenhoradoBoqueirão,novaledoParaíbafluminense,duranteadécadade1850.Onarradordatramaapresenta-secomoumaespéciedeviajanteoucuriosoquecismoudedesvendarosupostomistériodoBoqueirão.Comefeito,osprimeirosparágrafosdoromancedescrevemocenárioidílicodeumagrandepropriedadesenhorialem1850:“asituação”era“linda”,com“terrasfertilíssimas”banhadaspelas“águasmajestosas”doParaíba;lavourasematasvirgensabundavam;acasa-grande,“vastoecustoso”edifício,encimavaumacolinadondesevia“soberbohorizonte”;láestavamasfábricasecasasdelavoura,ahabitaçãodoadministradordafazenda,assenzalasdosescravos,emaiscapela,diversossítiosderecreio,jardim,hortaeumpomarcommangueiras,goiabeiras,jabuticabeiras,figueirasetudoomaisparaaguaraboca.

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Apósdescrevertalcenário,onarradorinterrompe-sebruscamenteparadizerque“Tudoissodesapareceu;afazendadeNossaSenhoradoBoqueirãojánãoexiste”.Omotedolivroéentãoexplicaroporquêdeesseparaísosenhorialhaverdesaparecido,poisquesefalavanoabandonodehomensseduzidospelasdelíciasdaCorte,emcomplicaçõesdefamíliaeherança,atéemfeitiçoeintervençãodealmasdooutromundo.111Edesdeoinícioimprime-senoleitorasensaçãodenostalgiaporummundosupostamenteperdido.

Atocontínuo,desfilampersonagenseeventospertinentesatallugar:rapazesgarbosos,àsvezeschibantes,meninas-moçasencantadoras,mucamasalegresegentis,aindaqueumadelasfosse“pernósticaesacudida”,eatépaiBenedito,escravovelho,feiticeirobom;amoresimpossíveis,urdidurascasamenteiras,traições,segredos,suspense,finalfeliz—emsuma,folhetimparalercomprazeraindahoje.AliceeMáriosãoapaixonados,masorapazremóiasuspeitadequeopaidamoça,obarãodaEspera,matara-lheopai,JoséFigueira,eficaracomsuafortuna,reduzindoaeleeàsuamãeàcondiçãodedependentes.Aofimeaocabo,aobarãofaltaracoragemparasalvaropaideMáriodoredemoinhodaságuasdoboqueirão;amortedohomemforaumafatalidade,aindaqueapossedafortunadeletivessesido,defato,umembuste.Embustequenãoespantaecarregapesadadosedeverossimilhança,diantedoquehojesesabesobreovale-tudofundiárioreinantenosbrasisemmeadosdoséculoxix:invasõesdeterraspúblicas,chicanasjurídicas,conflitosentreposseiroseoutrasartimanhaseramomododeconstituiragrandepropriedadeagrícolanoperíodo.112Muitasfiligranasadiante,todavia,obarãoendireitaasuahistória:lutaparacasarMárioeAlice,eassimpensaprotegeromoçodequemsurrupiaraafortunaelhedevolveroscabedaisoferecendo-lheafilhanubente.Paraaceitaroalvitre,porém,Márioprecisouantesdescobrirtodaaverdadesobreamortedopaiemostrar-sesuperioraobarão,dequemjamaispoderiareceberafilhacomosimplesfavor.MárioeAlicedecidempartirparaaCorte,abandonandoafazendadoBoqueirãoeseussegredos,tãodolorososparaMárioeinsondáveisparaagentedolugar.

Achavedessahistóriadebarões,cavalheirosesinhás-moçasestevesemprenacabanadepaiBenedito,oescravofeiticeiro,guardiãodossegredosdoBoqueirão.Aslinhasdoenredo,pormaisindependentesquepareçam,convergeminvariavelmenteparaopretovelho.OpróprioSênio,narradorsupostodahistória,atribuioseuinteresseemdesvendá-laaumavisitafortuita

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quefizeraàcabanadofeiticeiro.Passavapelolocaleavistara,aolonge,ocorpoarqueadodopretovelho,parecendoabraçarebeijarotroncodecepadodeumipê.Deteve-separapedir-lheáguafresca,recebendoentãoaágua,maislimaselaranjas.Buscouinquirirovelhosobreoabandonoemquejaziaolugar,eobtevecomoresposta“Boqueirão!”.Pensouqueopretocaducava,masficouintrigadopeloseucomportamento,abalbuciarpalavrasqueecoavamdesdeoboqueirãoeemergiamatravésdasbrocasprofundasdotroncodoipê:conversavacomofalecidosenhor,opaideMário,pedindo-lhequeperdoassealgumacoisa.

QuantoaMário,osofridoprotagonistadahistória,suspeitaqueBeneditoguardavaosegredodamortedeseupai,maslheocultavatalvezparapoupá-lodeumaverdadedolorosa.Acimadetudo,respeitaafidelidadeeagratidãoeternasdovelhoaseupai,ebuscarefúgioeconsolojuntoaoescravo.Beneditozelapelorapaz,ajuda-onoslancesmaisdecisivosdahistória,comoquandoMárioarrancaAliceaotragodoboqueirão,enofimrevelaaverdadeaomanceboparaevitardesgraçamaior.NãohánafiguradeBenedito,nemnachusmadeoutroscativospresentesnahistória,sombrasequerdaquelarepresentaçãodoescravocomoinimigodomésticodossenhores,sempredispostoadestruir-lhesasantidadedolarefranquearaalcovadasdonzelasaumqualqueraventureiro.Nãohátampoucotraçodaqueleescravo“demôniofamiliar”,ameaçaaossenhores,maspintadocomcertagraçapelopróprioAlencarempeçateatralde1857,113elevadoaoparoxismonolivroengajado,panfletáriomesmo,deJoaquimManoeldeMacedo,Asvítimas-algozes.EmMacedo,aescravidãoimpregnaasociedadeinteira,corrompendo-a;aemancipaçãoéaregeneraçãosocial.EmAlencar,aescravidãoéachavedetodoummododevida,nãonecessariamentemau;se“asluzesdoséculo”ecircunstânciaspolíticasespecíficasexigiamaemancipação,eraprecisofazê-lasemcomprometeracontinuidadedomundosenhorial.Dequalquerforma,otomnostálgicodeOtroncodoipê,escritoepublicadoentresetembrode1870ejaneirode1871,testemunhavaavisãodeAlencarsobreomomentopolítico:abatalhaemtornodaleideemancipaçãoestavapararecrudescernoparlamento,epareciadifícilvencerasforçasdogoverno.

Nosmesesseguintesàpublicaçãodoromance,Alencarjuntou-seaPerdigãoMalheiro,PaulinodeSouzaeoutraspersonagensparacombaterapropostadeleideemancipaçãoeconstruirasuaversãosobreosentidodaexperiência

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históricade1871.Foidosprimeirosasairacampo,movidotalvezporrazõespolíticascomezinhas,poisqueministrofrustrado,candidatomalogradoàsenatoria.Produziudiscursosincisivos,aclamadosquaseacadafrasepelosparlamentaresdeoposição,aomesmotempoemqueprovocavamaverveirônicadeRioBranco,quemisturavamaliciosamentepolíticoeliteratoaoatribuiraforçadetaispronunciamentosà“imaginação,algumasvezesromântica,doilustredeputadopeloCeará”.114

Naverdade,aforçadeAlencarestavanadefesadedeterminadavisãodemundo.Odeputadoamarravasenhoreseescravosnumdestinocomum.Paracomeçar,diziaserfatoreconhecidoportodos“amoderaçãoedoçuradequesetemrevestidosempre,eaindamaisnosúltimostempos,ainstituiçãodaescravidãoemnossopaís(Apoiados.)”.A“índolegenerosadenossaraça”faziacomque,repetidamente,víssemos“noseiodafamília,amãequeridaerespeitada,reclinando-sesobreoleitodedorondejaziaoescravo”,movidanãopelointeressemesquinhodoproprietário,maspelo“sentimentodacaridade,queéoresplendordasenhorabrasileira”.Aleideemancipaçãodogovernosufocaria“essessentimentosgenerosos”,criando“oantagonismoentreraçasqueviveramsempreunidas”.Exortavaosadversáriosameditarsobreosentidodesuaobra:“idesdesuniraquiloqueDeuscriouparaviverunido;idessepararasraças,asgerações,asfamílias,porumabismoimenso,oqueseparaaliberdadedaescravidão.Semeaisoódio,ainveja,aingratidão,ondesódeviareinaroamoreaternura”.115

Dessaúltimaobservaçãointui-sequehaviaproblemaemconcederliberdadeaescravosnasociedadebrasileira.Aescravidãomantinhaospretossobomantodaproteçãoecaridadedossenhores;libertarescravosatravésdaintervençãodopoderpúblico,semrenovarportantotaislaçosdedependência,eraatirar“hordasselvagens”no“seiodeumpovoculto”.Melhordarapalavradevezaoorador,empassagemaclamadapelospares:

Osretrógradossoisvós,quepretendeisrecuaroprogressodopaís,ferindo-onocoração,matandoasuaprimeiraindústria,alavoura.(Muitosapoiadosdaoposição.)

[...]Vósquereisaemancipaçãocomoumavãostentação.Sacrificaisosinteressesmáximosdapátriaa

veleidadesdeglória.(Muitosapoiadosdaoposição.)Entendeiquelibertaréunicamentesubtrairaocativeiro,enãovoslembraisdequealiberdadeconcedidaaessasmassasbrutaséumdomfunesto;éofogosagradoentregueaoímpeto,aoarrojodeumnovoeselvagemPrometeu!(Muitosapoiadosdaoposição.)

Nósqueremosaredençãodenossosirmãos,comoaqueriaoCristo.Nãobasta[...]dizeràcriatura,

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tolhidanainteligência,abatidanasuaconsciência:Tuéslivre;vai;percorreocampocomoumabesta-fera!...116

Emsuma,acontinuidadedaescravidãogarantiaaordemsocial;aliberdade

emmassapatrocinadapeloEstadotraria“revolução”e“anarquia”.Note-se,contudo,queoraciocíniodeAlencarsobreosperigosdaliberdadevinhaacompanhadodeumdiagnósticoácidosobreaqualidadedosdireitoscivisepolíticosnasociedadeimperial.Noutrotrechomuitoaclamadodeseudiscurso,diziaque,emvezdelibertaroventre,devia-sealforriarovoto,“cativodogoverno”,ajustiça,“cativadoarbítrio”,acidadania,cativadaguardanacional,eopaís,“cativodoabsolutismo,cativodaprepotênciadogovernopessoal”.117Odestinodohomemlivrepobrenaquelasociedadeconsistiaemsercapangapolíticooucriminoso,massademanobraparaospoderosos,queoespremiampormeiodorecrutamentoedoarbítriopolicialejudicial.Nessecontexto,achavaquealforriarescravoseraengrossarocaldodainculturapolíticareinante.

OtemadoperigorepresentadopelohomemlivrepobreécentralemTil,romanceescritoporAlencarlogoapósofimdostrabalhosparlamentaresde1871,epublicadooriginalmentecomofolhetimnoperiódicoARepública,dirigidoporQuintinoBocaiúvaeórgãodepropagandadoregimerepublicanonaCorte.Denovo,ocenárioéumagrandepropriedadeagrícola,dessaveznointeriordaprovínciadeSãoPaulo,naregiãodeCampinas.Personagensetemasserepetem:rapazes,sinhás-moças,escravosfiéis;mistérios,amoresimpossíveis,tramasmatrimoniais.HátambémZana,pretaescravaqueenlouqueceraaopresenciaroassassinatodesuasenhorapeloprópriomarido,eque,comoopaiBeneditodeOtroncodoipê,guardaachavedetodoomistério.MashátambémJãoFera,ocapangaqueperambulapelasfazendasdaregiãorealizandoassassinatosporencomenda.ZanaeJãoFeracompartilhamosegredodamortedeBesita,senhoraeprotetora,mãedeBerta,aquemdoravantesedevotam.118

Logonoiníciodoromance,JãoFeraconversacomumhomemquelheencomendaraumamortealegandodesavençaspolíticas:“Seeuguerreeiachapadele;eucásoudogoverno!...”.Dessavez,todavia,ocapanga,aosaberaidentidadedavítima,tentadesvencilhar-sedonegócio.OproblemaéqueavítimaseriaLuísGalvão,decujopaiJãoforaafilhado,tendosidocriadoemsuacasa.ChegaramesmoaservirdecamaradadeGalvão,tornando-seum

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“perverso”eassassinodeencomendaapósseparar-sedeste.OmotivodaseparaçãoforaBesita,porquemJãoFeratinhaverdadeiraadoraçãoeaquemLuísGalvãoacabaviolentando,introduzindo-seemseuquartoduranteumaprolongadaausênciadeseumarido.DessarelaçãonasceBerta.Aoretornaràcasa,omaridodeBesitavingaahonraultrajadaassassinandoamulher,Zanapresenciatudoeenlouquece,JãoFerasaiàcaçadouxoricidaetomagostopeloofíciodematador.Torna-seocapangamaistemidodaregião,apesardeAlencarrechearoromancecomsangüináriosquetais,todosdispostosaarrebataraoFeraacoroademaisperverso.Defato,aomenosnaimaginaçãodoromancista,ocampopareciainfestadodaquelas“bestas-feras”dequefalaraodeputado.Nofinaldahistória,apósumasucessãodeeventosquemedispensoderelatar,Jãoregenera-separaserviraBerta,queoprotege,assimcomoaBrás,sobrinho“epiléptico”e“idiota”deLuísGalvão,eaZana,avelhaescravadesuamãe.OresumodahistóriadeJãoFeraéque,comohomem“livre”,elesóestáintegradoàsociedadequandofirmementeamarradoporlaçosdedependência:tudoestiverabemenquantofora“afilhado”dopaideLuísGalvão,oucamaradadeste,etudoficabemdenovoquandopassaaserviraBerta.Deoutromodo,“percorreocampocomoumabesta-fera!”.

Alencartentavavincularoprocessodeemancipaçãoareformassociaismaisamplas,queredefiniriamosentidodaliberdadenaquelasociedade.Adificuldadedoexercícioeraóbvia.Porumlado,elearticulavacríticasprocedentesàexperiênciadecidadanianoImpério,especialmenteaoenfatizaraviolênciapolíticaemperíodoseleitorais.119Poroutrolado,aestratégiadeentrelaçartudodessemodoeraapostarnoimobilismo.Alémdisso,obrigava-oacriararepresentaçãoda“doçura”daescravidãonoBrasil,fazendoaapologiadavisãosenhorialdemundo.Aliberdadedocidadão,fundadanarazãoenacapacidadedediscernimento,valorizadanaretórica,ficavaadiadaparaumfuturoremoto;remotíssimo,presume-se,poisAlencarvianocativeiroaproduçãodesubordinaçãoatravésdaproteçãodossenhoresedagratidãodosdependentes—istoé,aescravidãogarantiaaordemsocial,masnemele,nemninguémnoparlamento,achavapossívelformarfuturoscidadãosnocontextodetalinstituição.Issoficaráevidentemaisadiante,quandovoltarmosàquestãodosdireitospolíticosdosingênuos.Poragora,bastaverquedeputadoeromancista,temerososambosdasconseqüênciassupostamente“funestas”daliberdade,enveredavampeladefesadaescravidão—oudaemancipação

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“voluntária”,fincadanopressupostodainviolabilidadedavontadesenhorial:“opartidoconservadorsempreesteveconvencidodanecessidadededeixarqueoproblemadaemancipaçãoseresolvesseporsi,porumatransformaçãolentaepelarevoluçãosocialdoscostumes”.120Frasecuriosa,vistoquereivindicaparasenhoresdeescravosainiciativaderevolucionaroseuprópriomundo.Alencardisputavaaosgovernistasaprerrogativadedefinirosujeitodoprocessohistórico.EcomoaverdadeéamassadaHistória,diziaassim:

Éprecisodizeraverdade.Oqueseobservavaeraapenasoprogressocontínuo,suaveenaturaldarevoluçãoíntimaquedesdemuitoseoperanoBrasil,equetendearealizaraemancipaçãopelomelhoramentodoscostumes,pelagenerosidadedocaráterbrasileiro,pelanossacivilização,quepululacomumaforçaimensa.Eraodesenvolvimentodessaregeneraçãomoral,quedentroempoucoextinguiriaaescravidão,independentedosesforçosdogovernoedasdeclamaçõesdospropagandistas.

Eisoquerealmentehavianopaís;eraatendênciamanifestaparaoperarestareformaespontaneamente,semanecessidadedeumalei,oqueseriamuitomaisgloriosoparanós.(Apoiados.)Seriaaemancipaçãofeitapelanação,levadaaefeitoporumimpulsonobredasociedadebrasileira.(Apoiados.)121

Aomesmotempoemquedefendiamaprerrogativasenhorialnoprocesso

deemancipação,Alencareseusaliadoscombatiamaversãodequealeipropostaresultaradainiciativados“representantesdanação”—istoé,dosministrosdogabineteeseuspartidáriosnoparlamento,queestariamrespondendoaosanseiosda“opiniãopública”.Aocontrário,atribuíamapropostadeleideemancipaçãoàvontadedaCoroa:Alencarafirmavaque“édecimaquevemoimpulso.(Apoiados.)Aopiniãonãoexerciapressãoalgumasobreogoverno.Donderecebeueleessapressão?Doalto”.122Osministrosdogabineteapareciamcomotíteresdoimperador,simplesinstrumentosdeseusdesígnios.Opaísvia-seamesquinhadopeloexercíciodoabsolutismomaisdesmedido;oprojetotrazianaorigemo“queroenãoquero!possoemando!”domonarca,segundoPerdigãoMalheiro.123

Oargumentoéinteressanteporqueapresentavaumadificuldadeóbvia.Comovimos,osdeputadosdaoposiçãoviamperigonapropostadogovernoexatamenteporqueachavamqueeladesmanchariaaficçãodopoderabsolutodossenhoressobreseusescravos.Entãocomosaíamacampoparaquestionarosupostopoderabsolutodoimperador?Naverdade,eindependentementedascomplexasquestõesconstitucionaisconcernentesàdefiniçãoeaoslimitesdopodermoderador,osparlamentarespareciamacusaroimperadordehaverdesrespeitadoocostume,desehaverexcedidonoexercício,emprincípio

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legítimo,davontadesenhorial.Maisainda,aopatrocinaraintromissãodoEstadonasrelaçõesprivadasentresenhoreseescravos,d.Pedroiiarriscavaalegitimidadedeseudomíniosobreosprópriossúditos.Seoimperadorinterpunhaopoderpúblicoentresenhoreseescravos,entãonãoseriaocasodereformularasinstituiçõespolíticasdopaísdemodoareforçarasoberaniado“povo”—istoé,dosproprietáriosdeterrasedeescravos—contraasprerrogativasdavontadeimperial?PaulinodeSouzafoiexplícitoaovincularacontinuidadedamonarquiaaoapoiodas“classesimportanteseinfluentesdasociedade”:

TodosnóscompreendemosafalsaposiçãoemqueseachamoSr.presidentedoconselhoeseuscolegas(apoiados);aprudência,porém,jálhesdeviatersugeridoalgumalvitreparanãodeixaremquesedivorciemdamonarquiaclassescomoocomércioealavouraqueatematéhojefirmementeapoiado.Seodesgostoouodesânimoastornarindiferentesàconsolidaçãodainstituiçãoaquesetêmmostradosemprededicadas,queoutroapoioqueronobrepresidentedoconselhodaràmonarquiaparaampará-ladequalquerpropagandaqueporventuracontraaordemdecousasestabelecidaselevanteeameaceavultarnopaís?(Apoiados;muitobem.)Apósbrandiraameaça,PaulinodeSouzaaindaironizouosoponentes

perguntandoseogovernoachavaquepoderiasustentaramonarquiaconstitucionalnoBrasilna“classeprediletadosnovosingênuos”,sujeitosinventadospelaleie“educadosnoregímendaescravidãoatéos21anos”.Enfim,PaulinodeSouzaeosparespareciamdizerqueafrouxarodomíniosenhorialsobreosescravosresultarianoenfraquecimentodopoderdoreisobreosseussúditos—ouatéemsuadeposição.A“propaganda”àqualserefereooradorequepoderia“avultarnopaís”eraobviamentearepublicana.EQuintinoBocaiúvanãoperdeutempo,propondoaJosédeAlencar,talvezomaisaguerridocríticodoimperadornaquelesdias,quefizessedeTilumfolhetimdeARepública.Alencarescreveuaoeditorreafirmandoasuaopçãopeloregimemonárquico,aindaquereformado.MasaceitoudebomgradopublicarahistóriadeBertaeJãoFeranoperiódicorepublicano.124

Naquelemesmoanode1871,NatividadesubiriaomorrodoCasteloparaouviràcaboclaainsinuaçãodequeseusdoisfilhosgêmeos,deumanodeidade—Pedro,oqueseriamonarquista,ePaulo,orepublicano—,teriam“brigadonoventredesuamãe”.Cousasfuturas.125

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matrícula

Apropostadogoverno,comasemendasdacomissãoparlamentar,recebeu61votosdedeputadosfavoráveis,35contrários.Ogabinetelograramaioriaexpressiva,masconfrontadaporumaminoriatambémnumerosa,eaguerrida.NoSenado,causouespécieaoposiçãotenazdeZacariasaoprojeto—elequeforaochefedogabineteliberalalçadoaopoderem3deagostode1866,oprimeiroapromoverdiscussõespúblicassobreumaleideemancipação.Zacariasviadefeitosnapropostadogoverno,queteriamodificadooesboçooriginaldoConselhodeEstadoempontosimportantes,ealegavarazõespartidárias.Outrosliberaisnãooacompanharam,eoSenadovotoueaprovouapropostanasessãode27desetembrode1871.Dasgaleriascaíramflores,“dequeficajuncadoorecinto”,eosespectadores“prorromperamemprolongadoseestrepitososvivasaoSenadobrasileiro”.Aleirecebeuasançãoimperialnodiaseguinte.126

Entreosváriostemasaazedarosdebatesparlamentares,contudo,apareceradeformarecorrenteodaexecuçãodalei.Eracomumqueoposicionistasrecheassemdiscursoscomoraçõescondicionais:“seestaproposta,tãocheiadeperigos[...]passaraqui,eogovernoconseguirlevá-laaefeito”(grifomeu),desafiavaPintoMoreira,paraprosseguirdizendocousasquejánãointeressam.127PaulinodeSouzaePerdigãoMalheirolucubraramlongamentesobreoassunto.Paulinoachavaqueaexecuçãodapropostapoderiaser“contingenteouopressora”.Seria“contingente”seaautoridadepúblicadeixasseaoarbítriodossenhoresocumprimentodedisposiçõesquefossemdeencontroaseusinteressesparticulares.“Opressora”casoselevasseaefeito“afiscalizaçãorigorosa”exigidapara“seuexatocumprimento”.Nessahipótese,asautoridadeslocaischegariamaoaugedesuaprepotência,vistoque,sobopretextodeverificarotratamentodadoaos“novosingênuos”,iriam“devassaracadamomentoacasaeavidaíntimadocidadão”.Paulinopreviaqueaopçãopelaaplicação“opressora”daleiresultariaem“granderesistência”dossenhores,aomenosemsua“inércia”.Aleiacabariadesmoralizada,ouogovernoteriaderecorreràviolênciacontraosproprietários.128

Emsuma,Paulinoapostavanaadoção“contingente”dalegislação.Nessejeitosenhorialdeconceberosentidodasleis,elasapareciamcomosugestões,acumprirdesdequeosproprietáriosodesejassem;aautoridadepública

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permaneciasubmetidaàvontadedecadasenhorparticular.PerdigãoMalheirodavasustentação“empírica”—porassimdizer—aessetipodeteoriaaorecitarexemplosdeleisquenãohaviamvingadonopaísporquehouveraresistênciaàsuaaplicação.Mencionouespecialmenteumdecretoexigindooregistrodenascimentos,casamentoseóbitos,aoqualogovernodesistiradedarexecuçãodevidoà“agitaçãoemcertosmunicípiosdePernambucoeParaíba”.Numoutroatodeprovocaçãoaogoverno,dissequeoprópriodecretodecriaçãodoConselhodeEstadoencontrara“reaçãoarmada”.Chegouàconclusãodequeseria“atécertopontofundada”aresistênciaàexecuçãodeleis“queofendiamosinteressesqueestareformavaiofender”.129

Exprimirtamanhodesapegopelocumprimentodasleisdopaísnaquelecontextoeraarriscado.Acontradiçãoficavaóbviademaisparapassarsemremoqueeprovocavaradicalizaçãonosentidooposto.Empassagemimpagável,PaulinodeSouzaarengavaassimsobreodireitodepropriedadeemescravos:“umaespéciedepropriedadequeosatuaispossuidoresadquiriramlegalmente(apoiados),quelhesveioàsmãos,nãoporliberalidaderégiaouporfavordoEstado(apoiados;muitobem),maspelaformaporqueseobtémesedistribuiariqueza,segundoasleisciviseosprincípioseconômicos”.Aíestáodefensordaaplicação“contingente”daleideemancipaçãoadiscursarsobreanecessidadedeexecução“opressora”deleisquepoderiamsustentaraescravidão.Nesseponto,odeputadoAraújoLima,membrocombativonatrincheiradogoverno,disseemapartequetalpropriedadehaviasidoadquirida“contraalei”.“Contraalei?!Istoéumablasfêmia!”,explodiuodeputadoJansendoPaço.AraújoLimaesclareceuqueapropriedadeescravaexistentenopaísforaobtida“contraaleide1831”.130Referia-seapenasaalgoquetodomundosabia.Sealei“parainglêsver”deaboliçãodotráficonegreirodenovembrode1831fossecumpridaemsuasdisposiçõesrelativasàliberdadedosafricanosintroduzidosnopaísdesdeentão,restariampouquíssimaspessoaslegalmenteescravizadasem1871.Enfim,osescravosexistentesnoImpérioprovinhambasicamentedocontrabandoedaescravizaçãoilegaldepessoaslivres;bastavaaplicarocódigopenalvigenteparaacabarcomaquelahipocrisiatodasobredireitosdepropriedade.Evidentequeasúltimasduasfrasessãodeminhalavra;nãoestouparafraseandoodeputadoAraújoLima.Dequalquerforma,aevocaçãodaleide1831naquelemomentoerasintomáticadoclimareinantenoparlamento.Seguiram-se“outrosapartes”.Diasdepois,PerdigãoMalheirosubiaàtribuna

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parareclamarcontraum“movimentopernicioso”quesupostamentecomeçavanoNortedopaís:“Refiro-me,senhores,àexecuçãoinquisitorialdaleide7denovembrode1831”.Nãodesenvolviamaisoassuntoportemera“agravaçãodosmales”,elamentavaofatodeoparlamentonãoestarreunidoemsessãosecreta.131

Aíestáumamoldurainicial,portanto,paraoprocessodeexecuçãodaleide28desetembrode1871,oqualvamosacompanharapartirdaqui,àsvezescoadjuvadospelofuncionárioMachadodeAssis.OprimeirodesafioerarealizaramatrículadetodososescravosexistentesnoImpério,conformeexigidonoartigooitavo.Esseregistrogeral,contendoo“nome,sexo,estado,aptidãoparaotrabalhoefiliação”decadaescravo,consistiaempré-requisitoessencialparaaaplicaçãodofundodeemancipaçãoeoutrosdispositivosdalei.DesdeosdebatesnoConselhodeEstadoalegava-sequeumadasdificuldadesdoslegisladoresparalidarcomoproblemadaemancipaçãoeraafaltadedadosconfiáveissobreapopulaçãoescravaexistentenoImpério.Agoratodoosistemadaleidependiadaobtençãodessesdados,eéfácilimaginaradificuldadedeorganizarsemelhanteserviço,emtodoopaís,naqueletempo.

OprojetodoConselhodeEstadoestabeleciaque“oescravonãomatriculadopresume-selivrequaisquerquesejamasprovasemcontrário”.132Napropostaaprovada,aredaçãoéumtantodiferente:“Osescravosque,porculpaouomissãodosinteressados,nãoforemdadosàmatrículaatéumanodepoisdoencerramentodesta,serãoporestefatoconsideradoslibertos”(grifomeu).133OsenadorZacariasfezdessamudançaumdeseusmotivosparacombateroprojeto.Segundoele,afórmuladoConselhodeEstadoera“dura,masrazoável”;odaproposta,“brando”,abrindoaporta“àchicana”.Aleideixavadeserrecursoseguropara“traçarumalinhadivisóriaentreosquesãoescravoseosqueonãosão”,poisossenhorespoderiamconcebersubterfúgiosdiversosparareverterafaltadematrícula,alegandoquenãohouveranegligênciadesuaparte.134Enfim,esteéoutroexemplodefiligranaintroduzidanotextodoprojetoparaacalmaraoposiçãoouaomenosfacilitaraadesãodosindecisos,deixando-lhesumabrechaparaadiardefiniçõeseapostartalveznocumprimento“contingente”dalei.

Emdezembrode1871,ogovernopublicouregulamentodetalhadoparaarealizaçãodamatrícula,fixando-lheoprazode1odeabrilaté30desetembrode1872,admitindo-seporémnovasmatrículaspormaisumano,oque,na

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realidade,estendeuoperíododoregistroaté30desetembrode1873.135Em4dedezembrode1873,oMinistériodaAgricultura,principalencarregadodezelarpelaexecuçãodoregistro,encaminhouconsultaaoConselhodeEstadosobreasituaçãodosescravosquenãohaviamsidodadosàmatrículadentrodoprazolegalpordeficiênciasnoserviço.Ouseja,chegavamaoministérioinformaçõesarespeitodemunicípios—daprovínciadePernambuco,nocaso—emqueamatrículanãohaviasidosequeraberta,outrosnosquaiscomeçarapoucosmesesantesdeexpiraroprazofinal.Oartigo19doregulamentodamatrículareafirmavaadeterminaçãodaleide1871dequeosescravosnãoregistradosdentrodoprazoseriam“porestefatoconsideradoslibertos”.Aossenhores,restavaprovarqueaausênciadoregistronãoocorreraporsua“culpa”ou“omissão”.Oregulamentoestabeleciaaindaomododeossenhoresprovaremquenãohaviamsidonegligentes:teriamdemoveraçãojudicialcontraoslibertos,paratrazê-losdevoltaàescravidão.Naprática,nocasodemunicípiosemquenãohouveramatrícula,cadaproprietáriopareciaobrigadoaentrarnajustiçaparareescravizarosprópriosescravos.OMinistériodaAgricultura,nosegundoquesitodaconsultaaosconselheirosdeEstado,perguntavaentãosenãoseriaocasode“marcarnovoprazoparaamatrícula,ouemtodoequalquercaso,estãoosquenãomatricularamescravossujeitosàdisposiçãodaúltimapartedoartigo19doRegulamentode1odeDezembrode1871”.136

Oproblemaemdeliberarnumcasocomoesseeraavaliaraspossíveisconseqüências.Firmadoumprecedentedereaberturadematrícula,sabe-seláquantosmaisteriamdevirdepois,jáqueemdezembrode1873ogovernoestavalongedepossuirdadosgeraisparaavaliarcomsegurançaocumprimentodesseitemfundamentaldalei.137Aseçãodos“NegóciosdoImpério”doConselhodeEstado,compostapelosviscondesdeSouzaFrancoedeBomRetiroepelomarquêsdeSapucaí,analisouospapéisprovenientesdapresidênciadaprovínciadePernambucoeláencontrouainformaçãodequeamatrículahaviasido“fielmenteexecutadanaRecebedoriadeRendaseemalgumasColetoriasmaispróximasdaCapital”,mas“nãoofoiemoutrasdoaltoSertão”.Houveraproblemasdevidoàsgrandesdistâncias,transportesprecários,faltadepessoalparaoserviço.Emalgumaslocalidades,oslivrosnecessáriosàmatrículasóteriamchegadoquaseaotérminodoprazomarcadopelogoverno,ouaté“muitotempodepois”.Paracompletaroquadro,alegava-seque“se

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mesmonaCidadenãosepodedizerqueforammatriculadostodososescravosquealiresidem,menosopoderiasernoSertão”.OinspetordeFazendadaprovínciapediaentãoaopresidentequesolicitasseaogovernoimperialasmedidas“precisas”—istoé,areaberturadamatrícula,presume-sequeemváriosmunicípiosdaprovíncia,oumesmonelainteira.

Osconselheirosmalescondemairritaçãocomtudooqueleram.Asinformaçõeseramvagas,imprecisas.Nãosedesignavamosmunicípiosoufreguesiasnosquaisamatrículanãoforarealizada,ouoforaapenasparcialmente.Tampoucoapareciamlistadososlocaisnosquaisoprazoforaencurtado,eporquaismotivosemcadacaso.Maisinexplicávelaindaeraahistóriadoslivrosquehaviamchegadotardiamenteaseudestino:comoalegarissosóagora,apósfindooprazoparaoserviço,seasautoridadestinhamde“rubricaroufazerrubricar”ostaislivros?Concluíamquenãohouvera“aoquepareceozeloprecisonaexecuçãodalei”.Erecomendavamoenviodeumamensagemclaraasenhoreseautoridadesprovinciaisquepoderiamestarapostandonaaplicação“contingente”damatrícula:

Seumaleidetãograndealcancesocial,políticoeindustrial,emcujapromulgação,assimcomoparasuaexecução,oGovernoImperialempenhouseusmaioresesforços,teveexecuçãotãoincompletaqualadescrevemoPresidenteeInspetordeFazendadaProvínciadePernambuco,tãopróximaedefácilcomunicaçãocomestaCorte,háarecearqueemoutrastambémnãofosseexecutada,edeixasériosreceiossobreafidelidadedaestatísticageraldoshabitantesdoImpério,emqueomesmoGovernocomtantarazãoseesforça.Fechavamoparecerdizendoque“osescravosnãodadosàmatrícula”

haviamadquirido“direitosàsualiberdade”,equeaossenhoresrestavaorecursoàsaçõesjudiciaisprevistasnoartigo19doregulamentodedezembrode1871.Quantoàsolicitaçãodenovoperíodopararegistrarescravos:“QuenãopodeoGovernomarcarnovoprazo;marcadoparaPernambucoter-se-iademarcarparatodooImpério,ealeiperderiade(sic)suaforçaeeficácia”.

Aocontráriodoqueocorriafreqüentementenessassituações,ogovernoimperial,aindasobabatutadeRioBranco,nãotransformouem“aviso”ou“circular”—istoé,emorientaçãoparaprocedimentogeral—esteparecerdaseçãoImpériodoConselhodeEstado.Certamente,temeuasconseqüênciasdeexigirprontamenteaçõesdeescravidãoaproprietáriosresidentesemlocaisnosquaissequerhouveramatrícula.Aoqueparece,resolveudartempoaotempo,aguardarachegadadedadosmaiscompletossobreoqueocorreranoImpério

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comoumtodo,paraentãoavaliaroalcancedeumamedidacomoesta.Enquantoasinformaçõespingavamlentamenteaolongodetodooanode1874,oMinistériodaAgriculturaresolveuencaminharnovaconsultaaoConselhodeEstado,dessavezparaaseçãodeNegóciosdaJustiça,sobreexatamenteosmesmospontosapreciadospelaseçãoImpério.138

Amiradadessesoutrosconselheiros—NabucodeAraújoeoviscondedeJaguary—contrastaradicalmentecomadosanteriores.Achavamqueosescravosemquestãonãohaviamadquiridodireitoàliberdade,nãolhessendoaplicáveloartigo19doregulamentode1871.Fundamentaramoseupareceremmotivosjurídicosepolíticos.Porumlado,alegaramqueanecessidadedeosenhormoveraçãojudicialpararecuperarescravosnãomatriculadospressupunha“aexistênciadoregistroaondeamatrícula”pudesseserfeita.Nãoexistindooserviço,orestotornava-seacessório,pois“aoimpossívelninguéméobrigado”,“contraoimpedidonãocorreotempo”.Verdadequealeiforapublicadaeeradeconhecimentogeral,porémpermanecera“semserexeqüível”paraossenhoresdeescravosresidentesemcertaslocalidades.Poroutrolado,NabucoeoviscondedeJaguaryargumentaramqueosconselheirosdaseçãoImpérionãohaviamlevadonadevidacontaos“gravesinconvenientesdeordempúblicaquepodemresultardeobrigartodosossenhoresdeumlugaraproporaçõesordináriasdeescravidãocontratodososescravosdomesmolugar”.Achavamatédesnecessário“ponderaressesinconvenientesqueocorremàprimeiravista-d’olhos”.Recomendavam,porconseguinte,quenovoprazodevia“sermarcadoparamatrículadosescravosnoslugaresemquenãohouveregistroparafazê-la”,tornando-seamedidaextensivaatodosospontosdoImpérionosquaisteriamocorridosituaçõessemelhantes.

Aindadessafeita,porém,ogovernoimperialnãotransformouumparecerdoConselhodeEstadosobreotemaemorientaçãopolíticaeadministrativa.Senãopareciasegurosujeitartodosossenhoresdecertosmunicípiosamoveraçõesjudiciaiscontraseusescravos,tampoucoseriaalvissareirorecomeçaramatrículaemdiversaslocalidadesdoImpério.Poderiaquiçásugerirquealeinãovinhasendocumprida,equeissonãoproduziriamaioresconseqüências,abrindo-seoflancoamanipulaçõesdiversas.Novamente,optou-sepordartempoaotempo,aguardarinformaçõesmaiscompletas.Assimcorreutodooanoseguinte,ode1875.Emrelatóriodemaiodesseano,oministérioinformavaquehaviamsidomatriculados1410668escravos(onúmerofinal

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chegariaamaisde1540000)equeaindanãodispunhadedadosparaváriasdezenasdemunicípios.139Dizia-setambémqueogovernoexpedira“reiteradasordens”para“aremessadaslistasdematrículaquefaltam,excluídasasdepoucaslocalidadesemque,pormotivosponderosos,nãopôdeefetuar-seesteserviço”.

Dequalquermodo,emdezembrode1875oministériodecidiraseguiraorientaçãodaseçãodeJustiçadoConselhodeEstadoeconsiderarsemdireitoàliberdadeosescravosquenãohaviamsidoregistradospor“deficiência”noserviçodamatrícula.Paraprepararaaberturadenovosprazos,enviavacircularaospresidentesdeprovínciasolicitandoinformaçõesdetalhadassobrecadamunicípioparaoqualalegava-sequeamatrículanãoforarealizadapelomotivoaludido.140Novaesperademuitosmeses—naverdade,foi-seinteirooanode1876.Àprimeiravista,opassodecágadodogovernoemtocaressesassuntosédeespantar.Fazsentido,todavia,nocontextodasreiteradasameaçasderesistênciaaocumprimentodaleiouvidasnoparlamentoduranteosdebatesde1871.Emrelatóriode15dejaneirode1877,oministérioinformavaque,comoresultadodacirculardedezembrode1875,souberaqueapenasemPernambucodera-seocasodemunicípiosnosquaisamatrículanãoserealizara,ouocorreraporperíodomuitoreduzido.Aparentementesegurodequeamedidanãotrariamaioresconseqüências,oministérioarbitraranovoprazoapenasparaoslocaisemqueamatrículajamaisforaaberta.Diziatambémtertomadoprovidênciasparaimpedirqueescravosnãomatriculadosemoutrosmunicípios,eportantojálibertosnostermosdalei,fossemagorafraudulentamentetransferidosparaoslocaisdasnovasmatrículaseláregistrados.141

Osavisosdedezembrode1876regulandoareaberturadematrículaemmunicípiosdePernambucosãoorigináriosdasegundaseçãodaDiretoriadaAgriculturadoMinistériodaAgricultura—ouseja,foramredigidosnosetorentãochefiadopelofuncionárioJoaquimMariaMachadodeAssis.142Apreocupaçãoemevitarqueamedidaoriginassechicanicesénotóriaemtaisavisos.Numdeles,ficavaestabelecidoque,aosubmeterumescravoaoregistroemtaismunicípios,oproprietáriotinhadeprovarqueocativoresidianolocaldesdeantesde30desetembrode1873—oúltimodiadoprazolegaldamatrículaespecial.Provasaceitáveisnessecontextoseriamuma“justificaçãojulgadaporsentençacomcitaçãodocuradordeórfãos”,atestadodeautoridade

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civiloueclesiástica,oudeclaraçãodetestemunhas“dignasdefé”.Osdocumentoscomprobatóriosficariamanexadosàsrelaçõesdematrícula.Difícilsaberatéquepontoessaexigênciapoderiainibirespertalhõesindividuais.Dequalquermaneira,procurou-seacautelarestragosmaiorespormeiodeavisocircularaospresidentesdeoutrasprovínciasdoImpério:nelesediziaqueogovernoimperialreconhecia“efetuadaamatrículaespecialdeescravos”emcadaumadelas;emoutraspalavras,ogovernorecebera“participação”dequeamatrículaforarealizadaregularmenteemtaisprovíncias,deixandoclaroquenãoarbitrarianovosprazosparaquaisquerdeseusmunicípios.143Ajulgarpelorelatórioministerialconsultado,porém,talavisocircularnãofoienviadoaváriasprovíncias:Amazonas,Pará,Maranhão,Bahia,EspíritoSanto,SãoPauloeMinasGerais—além,éclaro,dePernambuco.Issotalvezindiqueque,nofinalde1876,haviaaindapendênciassobreamatrículaemmunicípiosdessasprovíncias.

AomenoshaviafuncionáriosdoMinistériodaAgriculturaquecontinuavamaadvogarcautelamáximanesseassunto.Emmeadosde1877,eramproprietárioseautoridadesdomunicípiodeVilaBela,tambémemPernambuco,queinsistiamnaaberturadenovamatrícula.Nessecaso,amatrículaacontecera,masvigoraraporperíodobeminferioraoestabelecidonoregulamento.Ochefedasegundaseçãonarraahistória:

OPromotorPúblicodeVilaBelaparticipa,noinclusoofício,estaremaliagitadososânimos,pormotivosdeescravosquedeixaramdesermatriculadosnodevidotempo.Dizseriminenteoperigodegrandedesordem,motivadapelodesesperodesenhoreseescravos.

Araizdomaléesta:HouvematrículaemVilaBela,massónosúltimostrêsmesesdoprazo,porqueatéentãonãotinhao

municípionemcoletornemlivros.Ossenhores,quedeixaramdedarescravosàmatrícula,estãoagoraanimadoscomverabertonovo

prazonomunicípiodeIngazeira.Osescravos,pelasuaparte,procuramopromotor,aquemdeclaramnãoquerercontinuarnaescravidão,eossenhorestambémoprocuramparasequeixaremdoGoverno.

OPromotorpensaqueS.Ex.podepôrtermoaoconflito,ouconsiderandolibertososescravosnãomatriculados,ouconcedendonovoprazoparaqueossenhoresosmatriculem.

AconcessãodenovoprazonãomepareceadmissíveldesdequeVilaBelanãoseachanocasodeIngazeira,ondeabsolutamentenãohouvematrículadentrodoprazo.Poroutrolado,seélastimosoquesótrêsmesesantesdefindaroprazodoReg.de1871fosseabertaamatrículaemVilaBela,quandooRegulamentoafiançouatodososmunicípiosdoImpériocercadedousanos,étambémcertoqueasadministraçõesprovinciaislutamcomdificuldadesparaoprovimentodascoletorias.

OcasodeVilaBelaafigura-segrave;masporissomesmoconvém,antesdequalquersolução,ouviraPresidênciadaprovíncia,aquemoPromotorparecequenadacomunicou,devendoaliásfazê-loesóaela,queremeteriaentãoopapelaS.Ex.comasinformaçõesnecessárias.

[...](datado)3-7-77(assinado)MachadodeAssis.144

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OparecerdeMachadoaoministroéinteressante,porumlado,porque

descreverepercussõespossíveisdaleide1871entreescravos:cientesdequealeilhesgarantiaaliberdadepelafaltadematrícula,oscativosprocuravamaautoridadepúblicaparagarantiressedireito.Voltareiaotemadaatuaçãodeescravosedeseusaliadosdiantedaleide1871maisadiante.Poroutrolado,oparecerconsignavaoperigoinerenteaatosdereaberturadoregistro:osproprietáriosdeVilaBelaestavam“animados”comonovoprazoconcedidoalhures,pressionandoporissoogovernoparaobterconcessãosemelhante.Machadoargumentouentãoqueummunicípionoqualoserviçovigoraraporperíodolimitadonãoestavanomesmocasodeoutronoqualoprazosequerexistira.Preocupava-se,éclaro,comamultiplicaçãodedemandasdessetipo.ApósreceberasinformaçõessolicitadasàpresidênciadePernambuco,voltouaescreveraoministro.Ospapéisrecebidosdiziamque“aagitaçãofoipoucoapoucosufocadapelapromessaqueoPromotorfezdesolicitardoGovernoaconcessãodenovoprazo”.ExistiamdeoitentaacemescravosnãomatriculadosemVilaBela.Todavia,umaautoridadefiscaldaprovínciamencionavahaver“outrosmunicípiosnascondiçõesdodeVilaBela,nãoexplicandoquais”.Omaisgraveéqueamesmapersonagemdefendiaatesedeque“emfavordetaismunicípiosdevehaverprazonovoerazoável,ficandoassimaplicadasasmesmasvantagensatodososmunicípiosdoImpério”.Diantedisso,Machadoreafirmavaasuaposiçãooriginaldequeera“diferenteocasodomunicípioemquehouvematrícula,emboraemprazocurto,eodaqueleemqueabsolutamenteanãohouveconformeexpusemminhainformaçãode3dejulho”.Instauradaapolêmica,porém,sugeriaquefosseouvidooConselhodeEstado.OdiretordaDiretoriadaAgricultura,seusuperiorimediato,concordouemremeteroassuntoaosconselheirosdeEstado;observou,contudo,queendossavaaopiniãodasegundaseção:“aossenhoresdosescravosnãomatriculadossócabeorecursodoart.19doReg.de1odedezembrode1871”—ouseja,querelarnaJustiçaparatentarreaverosseusescravos.

MasosconselheirosdeEstadooptarampelosproprietárioseautoridadesdePernambuco,eosescravosdeVilaBelaperderamaparada.Asegundaseçãotevederedigiroavisode22demaiode1878,quemandava“abrirdenovo,peloprazodeumano,amatrículaespecialdeescravosnomunicípiodeVilaBela”.145Esseepisódioéapenasumexemplo,entreváriosoutrosdebatidosno

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interiordaadministraçãopública,nosquaisasegundaseçãodoMinistériodaAgriculturadefendeuaaplicaçãorigorosadeartigosdaleide28desetembrode1871eseusregulamentos.Perdeudessavez,emaisvezes.Ganhououtras.Ocasomaissignificativo,poispareciaassinalaradisposiçãodogovernoemampliaraspossibilidadesderecursoaoJudiciárioparagarantiraliberdadedeescravos,contoucomparticipaçãodecisivadeMachadodeAssis.

OproblemaseoriginaranomunicípiodeResende,provínciadoRiodeJaneiro.OcoletordasrendasgeraisdomunicípioentraraemdúvidasobresedeviaounãoinscrevernolivrodematrículasosescravospertencentesaocidadãoJoséPereiradaSilvaPorto.Osditoscativosnãohaviamsidodadosàmatrículaemtempohábil;osenhor,porém,obtiverasentençafavorávelemaçãoordináriamovidasegundooprevistonoartigo19doregulamentode1odedezembrode1871.Ouseja,ojuizlocalaceitaratantoassuasalegaçõesdequenãofora“culpadoouomisso”pelofatodeosescravosnãohaveremsidomatriculados,quantoasprovasoferecidasdequeoscativospermaneciamsoboseudomínio.Emseguidaàsentença,oproprietáriosolicitaraoregistronacoletoriamunicipal.Ocoletornãosabiasedeviaaceitaramatrícula,“àvistadadisposiçãodoart.7o,parágrafo2o,daLeino2040de28deSetembrode1871”.Tratava-sedoartigoqueestabeleciaaobrigatoriedadederecursoexofficionas“causasemfavordaliberdade”,quando“asdecisõeslheforemcontrárias”.Nãohouverarecurso,voluntárioouexofficio,àdecisãodojuizdeResende;cumpriaentãoautorizaramatrículasolicitadapeloproprietário?146

Outroproblemadelicado,poisnovamenteasoluçãoaserencontradaparaocasofixariaacondutadaadministraçãopúblicaemsituaçõessemelhantes.HouveintensatrocadepareceresnointeriordoMinistériodaAgriculturae,posteriormente,emoutrossetoresdogovernoimperial.Em11deagostode1875,enovamenteem5deoutubro,DinizVillas-Boas,oficialdasegundaseçãodaDiretoriadaAgricultura,pronunciou-seafavordosescravosecontraaconcessãodamatrícula.Oestabelecidonoartigo7odaleide28desetembroaplicava-seaocasodoartigo19doregulamentode1odedezembro.Amatrículasópoderiaserautorizadaseasentençaobtidapelosenhorfosseconfirmadaeminstânciasuperior.Em6deoutubrode1875,AugustoJosédeCastroeSilva,entãodiretordaDiretoriadaAgricultura,sustentouopiniãocontrária.Osprocessosdeliberdadeaosquaissereferiamoartigo7oeramapenasaquelesparaaobtençãode“alforriaporindenizaçãodovalorouremissão”.Talartigo

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nãoseaplicavaaoscasosdefaltadematrículae,ademais,“sendoindependentesospoderespolíticosdoImpério,aoexecutivocompeteacatarasdecisõesdopoderjudiciárioeconseguintementeordenaraoColetordeResendequematriculeosescravosdeJoséPereiradaSilvaPorto”.XavierPinheiro,oficialdaSecretaria,tambémopinouafavordointeressesenhorialem24demaiode1876.

Comoaquestãocontinuavaconfusa,solicitou-separecerdaProcuradoriadaCoroa.Em10dejulhode1876,oprocuradorSayãoLobatoconsiderounecessárioojulgamentoemsegundainstânciaparaaautorizaçãodamatrícula.Em15dejulho,GusmãoLobo,novodiretordaDiretoriadaAgricultura,declarounãopoderconcordarcomoparecerdoprocurador,eachouque“conviria”quesobreamatériasepronunciasse“oatualchefeda2aseção”.Recomendou,ainda,queoditofuncionáriorealizasseatarefa“emprazocurto,comocostuma”,porsetratar“denegóciopendenteháquaseumano”.OdestinatáriodoelogioeraMachadodeAssis,jáentãochefeinterinodasegundaseção.

NãoentendobemoporquêdeodiretorGusmãoLobohaverremetidoocasodevoltaàsegundaseção,paraconheceropiniãodechefeinterinoemassuntojurídicosobreoqualjáseouviraatéaProcuradoriadaCoroa.Aindabemqueofez.MachadodeAssisfoidelongeoautordoparecermaispolitizadoeincisivodasérie.SeudiscursolembraosdeadvogadosabolicionistasqueencontreitantasvezesnasaçõesdeliberdadeestudadasparaaelaboraçãodeVisõesdaliberdade:

ObedecendoaodespachodaDiretoria,examineidetidamenteestespapéis,e,àvistadelesedasdisposiçõeslegais,direiresumidamenteoquemeparece.

NoArt.7oP2odaLeide28desetembrode1871sedizquedasdecisõescontráriasàliberdade,nascausasemfavordesta,haveráapelaçãoex-officio.PeloArt.19doRegulamentodo1odedezembrodomesmoano,osescravosquenãoforemdadosàmatrículaporculpaouomissãodossenhoresserãoconsideradoslibertos,salvoaosmesmossenhoresomeiodeprovar,emaçãoordinária,odomínioquetêmsobreeles,enãoterhavidoculpaouomissãosuanafaltadamatrícula.

Pergunta-se:—Dassentençasque,nahipótesedoart.19,foremcontráriasàliberdade,cabeapelaçãoexofficio?

Minharespostaéafirmativa.Pararesponderdeoutromodo,foraprecisofazerentreosdouscasosumadistinção,quenãoexiste,eque,ameujuízo,repugnaaoespíritodalei.

Oargumentoprincipal,queachonestespapéis,favorávelànegativa,équeascausasdequetrataoart.19doregulamentonãosãoafavordaliberdade,istoé,nãosãopropostaspeloescravo,maspelosenhor,afavordaescravidão,—entenda-se,afavordapropriedade.

Estadiferençanãoéradical,masaparenteeacessória.Ascausasdoart.19écertoquenãoaspropõeoescravo,masosenhor;nãotemporobjetoimediatoalibertação,masaprovadapropriedadedosenhoredaforçamaior,quedeulugaràfaltadematrícula.Masemqueéquetaldiversidadedeorigem

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podeeliminaroobjetoessencialesuperiordopleito,istoé,aliberdadedoescravo?Importapoucoounadaqueorecursoàjustiçapartadoescravooudosenhor,desdequeoresultado

dopleitoédarouretiraracondiçãolivreaoindivíduo,nascidonaescravidão.Acresceque,nahipótesedoart.19,adecisãocontráriaàliberdade,écontráriaàliberdadeadquirida,anulaumefeitodalei,restituiàescravidãooindivíduojáchamadoàsociedadelivre;neste,comonocasodoart.7odalei,éaliberdadequeperece;emfavordeladeveprevaleceramesmadisposição.

Nadiferençaentreaçãosumária(art.7odalei)eaçãoordinária(art.19doregulamento)nãoestará,presumoeu,arazãodadiferençaparaaaplicaçãodorecurso,dequesetrata.Sersumárioouordináriooprocesso,suponhoqueapenaslhediminuioumultiplicaostrâmites,circunstânciaalheiaaopontolitigioso.

Outrossim,convémnãoesqueceroespíritodalei.Cautelosa,eqüitativa,correta,emrelaçãoàpropriedadedossenhores,elaé,nãoobstante,umaleideliberdade,cujointeresseamparaemtodasaspartesedisposições.Éociosoapontaroqueestánoânimodequantosatemfolheado;desdeodireitoefacilidadesdaalforriaatéadisposiçãomáxima,suaalmaefundamento,aLeide28deSetembroquis,primeirodetudo,proclamar,promovereresguardarointeressedaliberdade.Sendoesteoespíritodalei,éparamimmanifestoquenumcasocomoodoart.19doregulamento,emque,comoficoudito,oobjetosuperioreessencialéaliberdadedoescravo,nãopodiaolegisladorconsentirqueestaperecessesemaplicaremseufavorapreciosagarantiaindicadanoart.7odalei.

Taléomeuparecer,quesujeitoàesclarecidacompetênciadaDiretoria.—Em21deJulhode1876.—MachadodeAssis.OdiretorGusmãoLoboreconheceunotextodochefeinterinorazões“das

demelhorquilateparafavoreceraliberdade”;epareciaserfavorávelaumamudançanoregulamentoparatornarclaraanecessidadedorecursoexofficionoscasosdetentativaderevogaçãodealforriaobtidaporfaltadematrícula.Antesdeocorrertalmudança,porém,achavaqueanegaçãodoregistrosolicitadoseriaumdesrespeitoaodireitodepropriedade.Comoaquestãoera“grave”,e“atentaadiversidadedepareceres”,GusmãoLoboconsiderademelhoralvitreaconsultaà“ilustradaSeçãodosNegóciosdaJustiçadoConselhodeEstado”.

Reunidosem20deoutubrode1876,JoséThomazNabucodeAraújoeosviscondesdeJaguaryedeNictheroydecidiramqueorecursoexofficioaplicava-seaocaso.AssimcomoMachadodeAssis,osconselheirosadotaramainterpretaçãodequeoqueinteressavanocasoeraseguir“oespíritodalei”:“quandoseachaobscuridadenaleideveserelaentendidanosentido,quemaisseconformacomaintençãodolegislador”.Emais,tal“espírito”eraevidente:naformulaçãoumtantocomedidadosconselheiros,aleiestabeleceraaapelaçãoexofficiovisandoà“garantiaemfavordaliberdadecomoregrageral,cabidaemtodasasações,quetivessemporobjetoacausadaliberdade”;nalinguagemincisivadochefedasegundaseção,tratava-sede,“primeiroquetudo,proclamar,promovereresguardarointeressedaliberdade”.

ConvémobservardenovooparecerdeMachado,àcatadealgoquenosleve

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adiantenesselabirintoderegrasepormenoreslegaiseadministrativos.Nãohápropriamentenovidadenoarrazoadodofuncionário—sequeroseutomaguerridosurpreende,nocontextopolitizadodoprocessodeexecuçãodaleide1871.Todavia,oparecerresumetalvezospontoscentraisda“doutrina”,porassimdizer,dasegundaseçãonoacompanhamentodaaplicaçãodalei.Primeiro,nãohaviaargumentoafavordaescravidão,queerainstituiçãocontráriaaodireitonatural.Subsistiam,éverdade,determinações“afavordapropriedade”dossenhores,sobreaqualaleifora“cautelosa,eqüitativa,correta”.Essaconsideraçãopelodireitodepropriedade,porém,estavasubordinadaaorespeitopeloverdadeiro“espíritodalei”.Segundo,aquelaerauma“leideliberdade,cujointeresseamparaemtodasaspartesedisposições”;porconseguinte,emcasodedúvida,ouhavendoumabrecha,cumpriaseguiro“espíritodalei”contraointeressedosproprietários.Terceiro,eestepontocomplementaosdoisanteriores,aseçãopautava-sepeloobjetivomaisgeraldesubmeteropoderprivadodossenhoresaodomíniodalei.Assim,nopareceremquestão,busca-seampliaraabrangênciadeumdispositivodalei,fazendo-ovalerparaqualqueraçãocivilnaqualaliberdadedeumcativopudesseestaremjogo.Expandem-seasprerrogativasdopoderpúblico,aumentam-seasgarantiasdoscativos;emcontraste,ossenhoresestãocadavezmaisobrigadosafreqüentaroJudiciárioparamanterodomíniosobreseusescravos.

Arigor,essespontosgeraisdedoutrinanãoeramformulaçãodosbarnabésdasegundaseção.Haviamtriunfadoem1871,eopróprioRioBranco,comovimos,expusera-oslongamenteduranteosdebatesparlamentares.FuncionárioscomoMachadodeAssiseJoséDinizVillasBoas—primeirooficialdaseção,subordinadodiretamenteaMachadoe,aoquetudoindica,principalencarregadodeelaborarasminutasdospareceressobreasquestõesrelativasàemancipação—podiam,nomáximo,proporinterpretaçõesdaleieseusregulamentosdemodoaesgarçaroalcancededispositivoscontráriosaosproprietáriosefavoráveisaospleitosdeliberdadedosescravos.147FoiesteosentidodoposicionamentodeMachadocontrareaberturasdematrículaeafavorderecursoobrigatórionosresultadoscontráriosaosescravosemaçõesbaseadasnoartigo19doregulamentodamatrícula.

Nessesdebatesnointeriordaadministraçãopública,osfuncionáriosdasegundaseçãopodiamàsvezescontarcomoapoiodecididodeGusmãoLobo,diretordaDiretoriadaAgriculturadoministérioapartirdemeadosdadécada

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de1870.Noutrocasoimportanteporsuasconseqüênciasnaaplicaçãocotidianadaleide1871,diretoriaesegundaseçãodefenderamumainterpretaçãorigorosadeartigosdoregulamentodamatrículasobremultaseoutraspuniçõesaproprietáriosefuncionáriosrelapsosquantoàsuaexecução.Aconsulta,encaminhadaàsseçõesreunidasdosNegóciosdaFazendaedoImpériodoConselhodeEstadoem2deagostode1876,eraaseguinte:“Amultadequetrataoartigo35doRegulamentono4835de1odedezembrode1871deveseraplicada,queraosoficiaispúblicos,queraosproprietáriosdeescravos,porumasóvezoutantasvezes,quantosforemosindivíduossobrequeversaraomissão?”.148

Tentareiesclareceroimbróglio.Apósotérminodoperíodoinicialdamatrícula,em30desetembrode1872,nenhumcontratoouatooficialenvolvendoescravosterialugarsemaapresentaçãodas“relaçõesdasmatrículasoucertidãodelas”.Semprovaderegistro,portanto,nãosepoderialavrarescrituradecompraevendadeescravos,nempenhor,hipotecaoucontratodealugueldeseusserviços.Nenhuminventário,oupartilha,ouqualqueroutrolitígioconcernenteaescravosseriaadmitidoemjuízosemodocumentodamatrícula.Findooregistro,osproprietárioscontinuavamobrigadosacomunicar,eosfuncionáriosaanotarformalmente,asocorrênciasrelativasacadacativo:mudançaderesidênciaparaforadomunicípio,transferênciadedomínio,falecimento,obtençãodealforria.Enfim,aidéiaeramanterumacompanhamentodetalhadodomovimentodapopulaçãoescrava.Otalartigo35mencionadonaconsultadoMinistériodaAgriculturaaoConselhodeEstadoestabeleciamultade10a50mil-réisparafuncionárioseproprietáriosquedesrespeitassemessasregras.Adúvida,origináriaprovavelmentedasegundaseção,ajulgarpelocaminhorotineirodessespapéisnointeriordaadministração,consistiaentãoemsaberseamultadeviaseraplicadaumasóvezaofuncionárioouproprietárioemfalta,ouseeraocasodemultiplicarovalorpelonúmerodeescravosenvolvidos.

Odiretor,GusmãoLobo,começouoseulongoarrazoadodizendoqueestavadeacordocomasegundaseção(cujoparecer,desgraçadamente,nãoestátranscritonodossiê):“amultadeveseraplicadatantasvezesquantososescravosomitidosnadeclaraçãodosenhorounosatosdooficialpúblico”.Diziaqueprocederdeoutraformaserianegaroprincípiodequeapenatinhadeserproporcionalaodelito.Verdadequeoregulamentoestabeleciaumagradação

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nasmultas,quepoderiamirde10a50mil-réis.Essa“flexibilidade”talvezajudasseaavaliarmotivosatenuantesouagravantesparataisfaltas,mas“porsinãocorresponderiademodoalgumàescalaemqueaomissãopodedar-se”.Nãoconseguiaacreditarqueaintençãodoregulamentofossepunircomamesmapenaosenhorquedeixassedeinformaratransferênciadedomíniodeumescravoeaquelequeofizesseemrelaçãoacinqüentaoucem.Philosopho,odiretordaAgriculturabateu-secomgostocontraadversários,nãonomeados,queteimavamemaplicaràsituaçãoempauta“oprincípiocorrenteemjurisprudência”de“nãocabermaisdeumapenaaoagentecujodelitoproduzdiferentesresultadosmateriais”—porexemplo,umréunãopodiaserpunidoduasoumaisvezespormatarduasoumaispessoascomumsótiro.GusmãoLobo,aocontrário,achavaquecadafaltanessescasostinhaagravidadedeumtiro,poisdizia“demuitopertocominteressesdaliberdade”.Pensava,porconseguinte,que“podehaverumatoseaomissãoversasobreumescravo,porémhámuitosatosseelaversasobremuitosescravos,etaisatostantosãodiferentesqueosenhorpodeaverbaramudançadeunsescravosenãoodeoutros,dando-seomesmocomofalecimentoeatransferênciadedomínio”.GusmãoLoboobservava,finalmente,queoartigo33doregulamentofaziamençãoexplícitaàmultiplicaçãodasmultas.Defato,esseartigorezavaqueaspessoasnegligentesem“daràmatrículafilhoslivresdemulherescrava”estariamsujeitasàmultade100a200mil-réis,“tantasvezesrepetidaquantosforemosindivíduosomitidosnamatrícula”.Oartigo35,queeraoobjetodaconsultaevinhapoucoabaixo,continha“defeitoderedação”aodeixarapenasimplícitaadeterminaçãodeaplicarapenaparaocasodecadaescravoarespeitodoqualhouvessefaltaouomissãodefuncionáriopúblicoouproprietário.

AopiniãododiretordaAgricultura,segundoelemesmoacordecomasegundaseção,foiapreciadanoConselhodeEstado,em7deagostode1876,porpersonagensconspícuasempartesanterioresdestemeutexto:oviscondedoRioBranco—quejánãoestavachefedegabinete—,omarquêsdeSãoVicenteePaulinoJoséSoaresdeSouza,alémdeTeixeiraJúnioreJoséPedroDiasdeCarvalho.Oparecerunânimedosconselheirosfoide“queamultadequetrataoart.35doRegulamento[...]deveseraplicadasematençãoaonúmerodosindivíduossobrequeversaraomissão”.ApesardeelogiaroparecerdaDiretoriadaAgricultura,discordavamdeleporquedeixavadeinterpretaro

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regulamentodamatrícula“literalmente,comoparecequedeveser”.Atensãoinerenteàfórmulajárevelaadificuldadedosconselheiros.“Parece”queainterpretaçãodeviaserliteral—istoé,elesachavamconvenientequefosseliteralnocasoempauta;aomesmotempo,reconheciamimplicitamentequeseriapossívelencararoproblemadeoutraforma.Afinal,noqueconsistialer“literalmente”disposiçõesfrancamenteambíguasoucontraditórias,poisseosprópriosconselheirosadmitiam,jádesaída,queos“argumentos”daDiretoriadaAgriculturapodiam“provaralgumadeficiêncianasbasesdaLei”?Aresposta,evidentemente,erapolítica.Comotemosvistoàexaustão,nossospersonagensconcebiamalegislação,emgrandemedida,comouma“obraaberta”,aserapropriadasegundoestratégiasoudisputaspolíticasdemomento.

Paracomeçar,osconselheirosobservaramquehaviadiferençasignificativanosobjetivosdasmatrículasdeingênuoseescravos.Nocasodosingênuos,oregistroconsistiaemmeiodegarantiraliberdade.Porissoaleide28desetembrodeterminavaamultade100a200mil-réisparaafaltadematrículapor“negligência”dosenhor,repetidatantasvezesquantosfossemosmenoresnãomatriculados.Atentativade“fraude”noregistrodosfilhoslivresdasescravas—mentirquantoàidade,porexemplo,paramantê-loscativos—seriaenquadradanocódigocriminal,poisconsistiaemreduzirpessoalivreàescravidão.Jáamatrículadosescravosera“distinta”,tinha“outrofimeoutrosefeitos”,“só”era“essencialparaacobrançadataxaespecialeparaaemancipaçãogradualdaescravatura”.Maisainda,afaltadematrículadavaaocativoodireitoàliberdade;nocasodosingênuos,amatrículaatestavaasuacondiçãodelivre.O“Legislador”de1871fixaraem100mil-réisovalormáximodasmultasqueogovernopoderiaimporemseusregulamentos,àexceçãoapenasdosvaloresmaiselevadosarbitradosparaomissõesnoregistrodosfilhoslivresdasescravas.Assim,prosseguiamosconselheiros,taisregulamentostinhamapenasseguidoo“espíritodalei”aoreconhecerquehavia“diferençadesançãoentreosfatospuníveisdeumaeoutramatrícula”.Ademais,ogovernonãohaviasidoautorizadoaarbitrarmultasepenasalémdecertolimite;aofazeristo,comodesejavaaDiretoriadaAgricultura,estaria“agravando[...]arepressãolegaletranspondoolimitedaquelafaculdade”.

Emsuma,oregulamentodamatrículadeviaserlidoliteralmente:“Onde[...]quisamultarepetidadeclarou-oexpressamente”.Dequalquerforma,osconselheirosreconheciamqueosargumentosdaDiretoriadaAgricultura

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pareciam“plausíveis”,oparecerfora“hábil”etc.,dondededuzoque,emoutrascircunstâncias,poderiamterprevalecido.Aofinal,RioBrancoePaulinodeSouza,adversáriosimplacáveisem1871,declararamfrancamenteoqueosuniapoucosanosdepois:

ALeinãoautorizoumultastãoelevadas,eoRegulamentorespeitouoslimiteslegais,ebeminterpretouopensamentodoLegisladornocuidadocomqueestetevemuitoemvistanãoagravarasapreensõesdosquereceberamcommuitosreceiosaLeide28deSetembrode1871,quedecertooperouumareformadasmaisimportantes,cujaexecuçãorequeriamáximaprudênciaeoespíritomaisconciliador.Aleide1871haviaredefinidoarenasdeconflitossociais,tinhalegitimado

umamaiorintervençãodopoderpúbliconasrelaçõesentresenhoreseescravos.Nessesentido,comovimos,comprometeraasbasestradicionaisdainstituiçãodaescravidão.Oritmoeoalcancedessasmudanças,todavia,continuavamasernegociadospassoapassoduranteoprocessodeaplicaçãodalei.Nointeriordaprópriaadministração,haviaaquelesdispostosaesgarçarsignificadoseampliarcontinuamenteasprerrogativasdopoderpúblico.Emmeadosdosanos1870,acreditavamsinceramentequevaliaoesforçodelutarpelaemancipaçãodosescravosatravésdeumaaplicaçãorigorosaeabrangentedaleide1871.Faltava-lhestalvez“oespíritomaisconciliador”,ouoapegoàartedebordejar,naqualeratãosupimpaoviscondedoRioBranco.149

fundodeemancipação

Oartigoterceirodaleide1871instituiuumfundodestinadoapromoveranualmente,emcadaprovíncia,alibertaçãodetantosescravosquantopossívelcomosrecursosdisponíveis.Ofundodeemancipaçãoseriaconstituídopelataxadeescravos,impostossobreatransmissãodapropriedadeescrava,multasdecorrentesdaaplicaçãodalei,seisloteriasanuais,recursosorçamentáriosemais“subscrições,doaçõeselegadoscomessedestino”.Oregulamentode13denovembrode1872estabeleceuoscritériosparaaclassificaçãodosescravosaalforriar.Mandavapriorizarfamíliasaindivíduos,cônjugesquefossemescravosdediferentessenhores,osquetivessemfilhosnascidoslivresemvirtudedalei,eassimpordiante.150Nesseponto,comonoutros,osadversáriosdalei,aindaqueapreciassemaidéiadelibertarmedianteindenização,criticavamaprerrogativadogovernoemdeterminarasregrasparaaemancipaçãopelo

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fundo.Achavamqueossenhoresdeviamcontrolaroprocessodeescolhadoscativosalibertarcomtaisrecursos.

EnquantoofuncionárioMachadodeAssislidavacotidianamentecomaexecuçãodofundodeemancipação,ocronistaMachadodeAssis,sobopseudônimodeManassés,faziapilhéria:

Deinteressegeraléofundodeemancipação,peloqualseachamlibertadosemalgunsmunicípios230escravos.Sóemalgunsmunicípios!

Esperemosqueonúmeroserágrandequandoalibertaçãoestiverfeitaemtodooimpério.Aleide28desetembrofezagoracincoanos.Deuslhedêvidaesaúde!Estaleifoiumgrandepasso

nanossavida.Setivessevindounstrintaanosantes,estávamosemoutrascondições.Mashá30anos,nãoveioalei,masvinhamaindaescravos,porcontrabando,evendiam-seàs

escâncarasnoValongo.Alémdavenda,haviaocalabouço.Umhomemdomeuconhecimentosuspirapeloazorrague.

—Hojeosescravosestãoaltanados,costumaeledizer.Seagentedáumasovanum,hálogoquemintervenhaeatéchameapolícia.Bonstempososquelávão!Euaindamelembroquandoagenteviapassarumpretoescorrendosangue,edizia:‘Anda,diabo,nãoestásassimpeloqueeufiz!’—Hoje...

Eohomemsoltaumsuspiro,tãodedentro,tãodocoração...quefazcortarodito.Lepauvrehomme!151

Melhorcomeçarpelofim,paranotarqueoconhecidodeManassésecoava

receiosjáexpressosnosdebatesde1871.Segundoele,aleidefatointerpuseraopoderpúblicoentresenhoreseescravos,comprometendoalegitimidadedadominaçãosenhorial—tantoassimquesenhorquetorturasseescravonaquelesdiasteriaquiçádeenfrentaraintervençãodeterceiros,osquaispoderiamatéchamarapolícia.Nãoéàtoaque,nasúltimasduasdécadasdaescravidãonaCorte,haviaexemplosrepetidosdeescravosquecometiamcrimes—àsvezescontraosprópriossenhoresouseusprepostos—ecorriamparaapolícia,aoinvésdefugirdela.152Escravos“altanados”—ouseja,conscientesdaspossibilidadespolíticasquelheshaviamsidoabertaspelaleide1871.

Écertoque,pormeiodeManassés,Machadoironizavaessaslamentaçõesdesenhoresdeescravos.Mandava-ossuspirarnacamaqueélugarmaisquente.Chegavamesmoalembrar-lhesdocontrabando“àsescâncaras”doqualseoriginaraasuapropriedade.Equantoaotrechoanterior,sobreofundodeemancipação?Àprimeiravista,épossívelqueManassésfalassesério,enquantoMachadopermaneciasemprecomaquelemovimentomisteriosoaocantodaboca,cheiodemistérios,inventadoporalgumgregodadecadência.Afinal,aleide1871fizeracincoanos,eofundodeemancipaçãosóentãocomeçaraalibertarescravos—230aotodo.Ora,apopulaçãoescravadoImpério,segundo

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amatrícularecentementeconcluída,eradeaproximadamente1,5milhãodepessoas!Onúmerodeescravosalforriadosdessemodoerapífio,ridículo,merecedordechacotaenadamais.

Verdade.MasManassésnãopilheriavanessapassagem,nemMachadopensavadiferentedeManassés.Aleituradapassagemnocontextodacrônicasugereumamudançadetomnanarrativa,queparecetransitardahabitualironiaaoelogiotransparentedaleide28desetembro,pararetornaràironiaendereçadaaossenhoresnofinal.Defato,Manassésdestilarafelaoutrascousaspúblicasnosparágrafosimediatamenteanteriores.Compararaeleiçõeseespetáculolírico:naóperahaviaacabaleta,jánaeleiçãoa“cabala”era“oprimeirotrechomusical”.BrincaraemseguidacomofatodequearuadasLaranjeirascomeçavaasercalçada—depoisdeanosdelamaçal,segundocomentárioemtextoanteriordamesmasérie.153Sóentãosurgeapassagemsobreofundodeemancipação,naqualochiste,seexiste,nãoéevidentecomonasanteriores,oucomonotrechoseguinte,sobrelamúriassenhoriais.

Acrônicaemquestãofoipublicadaem1odeoutubrode1876.Machadotornara-sechefeinterinodasegundaseçãohaviapoucoeandavaenvolvidoemlutaferrenhaparamelhorarodesempenhodofundodeemancipaçãocriadopelaleide1871.Asegundaseçãoexpediudezenasdeavisosecircularessobreoassuntoduranteosegundosemestrede1876.154Naverdade,ogovernodisponibilizaraaprimeiraquotadofundodesdemarçode1875,masasprovínciasnãoconseguiamutilizarosrecursos.Oserviçodeclassificaçãodosescravosmatriculadosemcadamunicípiotornara-se“dificílimoeatéinexeqüível”porváriosmotivos.155Aspessoasencarregadasdotrabalhonãorecebiampagamentoparafazê-lo,logoasjuntasclassificadorasprocrastinavamatarefaounemsereuniam,oqueoriginavaaaplicaçãodemultasaosoficiaisfaltosos,gerandoporsuavezinsatisfaçãoerecursosadministrativos...eassimvai.Quandoasjuntasfuncionavam,nãoconseguiamaplicaroscritériosdeclassificaçãoàtotalidadedosescravosdecadamunicípio.Comofazê-lo,seoregulamentodeterminaraumagamavariadadecritérioscruzados,freqüentementeambíguos?Asjuntasconseguiamclassificarosescravosquemereciamprioridademáximasegundoalegislação,maslogoesbarravamnaexigênciadeclassificartodososescravosdecadamunicípio,enuncaterminavamoserviço.Ademais,paraqueclassificartodososescravosdeumasóvez—tarefacertamentedeendoideceremlocaisondehaviamilharesdeles

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—seosrecursossóeramsuficientesparaalibertaçãodepequenapartedessapopulaçãoacadaano?

Diantedessepanorama,para“facilitaroempregodofundodestinadoàemancipação”,ogovernodeterminoumudançasnoregulamentodaleiemdecretode20desetembrode1876.156Aclassificaçãoparaasalforriaspassavaacompreenderapenasaquelesescravosquepoderiamserlibertadoscomaquotadisponívelemseumunicípioderesidência.Adotava-semaiorflexibilidadequantoàsdatasdereuniõesdasjuntasclassificadorasemudavam-seosprocedimentosnoscasosdelitígioquantoaoarbitramentodovalordaindenização.Emseurelatóriode15dejaneirode1877,oministrodaAgriculturamostravaqueessasalteraçõeshaviampossibilitadooiníciodaaplicaçãoefetivadofundodeemancipação.157Parece-me,portanto,queemoutubrode1876ofuncionárioMachadodeAssisnutriaaesperançadequeofundocomeçasseafuncionarcomoresultadododecretode20desetembro,ecomemoravaasnotíciasdealforriaquejáchegavamàrepartição.Nessecaso,Manassés,onarradorfictíciodacrônica,apenasdeixavatranspareceroestadodeespíritodoautor/funcionáriosobrealeide28desetembro:“Deuslhedêvidaesaúde!”,poisfora“umgrandepassonanossavida”;quantoaosescravocratas,quesuspirassempelos“bonstempos”doazorrague.

Apesardasimplificaçãodosprocedimentos,continuaramosproblemasnaaplicaçãodofundo.Autoridadeslocaiseproprietáriosuniam-seàsvezesparafraudaroprocesso.HálongoparecerdeMachadodeAssisnumcasoqueresumetalvezváriasdastrapaçaslevadasaoconhecimentodoMinistériodaAgricultura.Segundooregulamentodenovembrode1872,depoisdeconcluídosostrabalhosdajuntadeclassificaçãoosinteressadostinhamummêsparaapresentarrecursosaojuizdeórfãos.Eram“competentes”parafazerareclamaçãoodonodoescravoouopróprioescravo,esterepresentadoporcurador.Nãoocorrendoreclamações,outendoestassidodecididaspelojuizdeórfãos,aclassificaçãoestavaconcluída,seguindo-seoarbitramentodaindenização.Talarbitramentoacontecianoscasosemqueovalordaindenizaçãonãohaviasidodeclaradopelosenhordoescravoou,sedeclarado,nãoforaconsideradorazoávelpelaautoridadefiscal.158Mapeadoolabirintoburocrático,lávaitrechodoparecerdeMachadosobrequestãosuscitadanaprovínciadoMaranhão,quesubiudepoisaoConselhodeEstado:

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DiretoriadaAgricultura—2aSeção—OcorreuumfatogravenomunicípiodeCodó,porocasiãodalibertaçãodeescravos.JoséNarcisoMourinho,esgotadooprazoparaosrecursos,requereuaoJuizdeÓrfãosainclusão,

entreoslibertandos,deumseuescravodenomeAgostinho,casadoecomfilho.Foiindeferido.Nãodesanimouopretendente;libertouamulherdeAgostinho,edenovorequereuemfavordoescravo,que,casadocommulherlivre,adquiriadireitopreferente.Ojuizatendeu,edeclaroulivreAgostinhoesuafilha,comprejuízodeoutrosclassificados.

NãoselimitouaissooJuizdeÓrfãos;declaroulibertosaescravaJoanaetrêsfilhas,tambémemprejuízodeoutros,edessavezsemreclamaçõesdeinteressados.

Ossenhoresdealgunsdosescravosprejudicadosreclamaram,peranteaPresidência,contraoatodoJuizdeÓrfãos.APresidênciasustouopagamentoerequisitouasinformaçõesnecessárias.

Asinformaçõesconfirmaramosfatosacimaexpostos,asaber:1o—Nãohouvedentrodoprazolegalnenhumareclamação;2o—Aprimeirareclamaçãode

Mourinhofoifeitamuitoforadoprazo;3o—SódepoisdeindeferidooseurequerimentoéqueMourinhodeuliberdadeàmulherdoescravo;4o—Oprocessodearbitramentoestavafindo,quandofoideferidaasegundareclamaçãodeMourinho;5o—NãohouvereclamaçãoemfavordeJoanaeseusfilhos.

APresidência,vendoquenãosetratavadahipótesederecursoextemporâneo,devidoacasodeforçamaioroujustoimpedimento,emquecabearbítriodojuiz,conformeaconsultadoConselhodeEstadode26deJulhodoanofindo,porissoqueadecisãonãofoidadaantesdoprocessodearbitramento,limitaçãofeitaporaquelaconsulta,emaisporqueofatoquedeulugaràreclamação(liberdadedaconsortedeAgostinho)realizou-sequandoaclassificaçãoestavafinda,ebemassimporquealibertaçãodeJoanaeseusfilhosfoidecretadaex-ofício,aPresidência,digoeu,suspendeuojuizdoexercíciodesuasfunções,sujeitando-oàresponsabilidade.

Feitoisso,consultaaoGovernoseaTesourariadeveefetuaropagamentodaalforriadecretadacominversãodaordemdaclassificação,ehaveremossenhoresdosprejudicadospedidoprovidênciascontraesseato;eporoutroladonãohaverdisposiçãonoReg.quedetermineaqueautoridadecompeteoconhecimentodaquestão.159

Comosevê,atéMachadoédurodeleremestilobarnabé.Todavia,a

históriaénovamentericapararecuperarasuaexperiênciadiantedoprocessodeaplicaçãodaleide1871.Resumidososacontecimentos,ochefedasegundaseçãoprosseguiuparaafirmarqueojuizemquestãoprocedera“irregularmente”equeopresidentedaprovíncia“fezoquedevia”aosuspendê-loesujeitá-loaprocesso.OjuizhaviaacatadoareclamaçãodeMourinho,feitacomevidentemá-fé,depoisdeterminadasaclassificaçãoeoarbitramento;naverdade,aceitaraamanobradoproprietárioaapenastrêsdiasdaaudiênciaparaadeclaraçãoformaldasalforrias.NocasodeJoanaesuasfilhas,ojuizmudaraaordemdeclassificaçãodosescravossemquetivessehavidoqualquerreclamaçãoformalsobreoassunto,oquelheeravedadoeconstituíaabusodepodermaioraindadoquenoepisódioanterior.

ConluiosdessetiponoprocessodeaplicaçãodofundodeemancipaçãonãoeramnovidadeparaosfuncionáriosdoMinistériodaAgricultura.Defato,houvemuitosoutros—umdeles,pasmem,nomunicípiodeMarmelada,

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provínciadeMinasGerais!160MachadoopinouqueasalforriasdeAgostinhoesuafilhadeviamsermantidas,apesardorecursoforadoprazo.Quantoaosescravosqueficariamprejudicadoscomamanutençãodessasalforrias,poisquepreteridosnaordemdeclassificação,ochefedeseçãocitavacasosemelhante,resolvidoporavisode27desetembrode1876,noqualogovernoaprovararecursosextrasparacompletaraquotanecessáriaàalforriadoscativosdiretamenteprejudicados.161Achavaessealvitre“deeqüidadeeconveniênciapública”.Viaderegra,ogovernonãodeveriarevogaralforriasjáconcedidas,nemdeixardegarantirodireitoàliberdadedoscativosclassificadosparaobtê-lasegundoaquotadisponível.Cumpria,issosim,punirojuizquecolaboraranafalcatruadoproprietário.QuantoaocasodeJoanaefilhas,asituaçãoeraaindamaisirregularporquenãohouverasequerrecursodosinteressados.Otaljuizmudaraaordemdeclassificaçãoexofficio,adivinhe-seláomotivo.Nãosesabiasequeraqueautoridadecabiaaanálisedamatéria.OchefedeseçãorecomendavaquefosseouvidooConselhodeEstado,poisapresidênciadaprovínciapareciacorretaaopensarqueessasalforriaspodiamserdesfeitas.Machadofechouassimoseuparecer:

NãoconcluireisemrecordarqueporocasiãodecomeçaraclassificaçãodeescravosemCodófoioGovernoinformadodequeocoletor,paraobteraalforriadeumescravoinválido,ocasaracomoutraescrava,igualmenteinválida,deoutrosenhor.Outrossenhoresfizeramomesmo.OGovernoordenoutodaacautelanaavaliação.Oescândalodaavaliaçãodeudesiasirregularidadesdasalforrias.Juntoospapéisrelativosaestefato,emaisaconsultade26dejulhoeospapéisreferentesaoAvisode27desetembrodoanopassado,citadoacima.18-8-77(assinado)MachadodeAssis.AntesqueospapéisfossemàconsideraçãodoConselhodeEstado,o

presidentedoMaranhãoescreveuaoministérioparadizerquehouveraerroeminformaçãoanteriorsobreasituaçãodeJoanaefilhas.Naverdade,segundonovamanifestaçãodeMachadosobreoassunto,em9deoutubrode1877,essasescravashaviamsidoatendidasdiantede“reclamaçãofeitapelosenhor”delas,“dentrodoprazolegal”.Estavatudonosconformesnesseitem;restava“sóaparterelativaaosescravosAgostinhoesuafilha”.AseçãodeJustiçadoConselhodeEstado—compostaporNabucodeAraújoepelosviscondesdeJaguaryeAbaeté—,apóstranscrevertãolongamenteasinformaçõesdasegundaseçãosobreoassunto,concordou“quenãoháquefazersenãoa

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responsabilidadedoJuizculpado,porqueaalforriaécousajulgadaesemmaisrecurso”.Osconselheirosobservaramaindaque,comefeito,“nãopoucasvezesconvémantesàordempúblicaaconservaçãodoatoproibitivoqueasuaanulação”.Nesseaspecto,portanto,asegundaseçãodaDiretoriadaAgriculturaeoConselhodeEstadotrabalharamjuntosparafirmaradoutrinadeque,emhavendotramóiasnoprocessodelibertaçãopelofundo,asalforriasassimobtidasseriam“irretratáveis”,cabendoporéminvestigarepunirasautoridadesquehaviamdegustadoodocedemarmelo.

Noparecermaislongocitadoacima(começoapegarcacoetedebarnabé...),deagostode1877,MachadodeAssisreferiu-seasenhoresquemanipulavamregrasdofundoparaobteraalforriadeescravosditos“inválidos”.Obviamente,esperavamarrancardogovernoindenizaçãosuperioraovalorqueconseguiriamportaiscativosaonegociá-losnomercado—além,obviamente,delivrarem-sedaobrigaçãodesustentartaispessoas.Cáestáoutroassuntoparaocupartantoocronistaquantoofuncionário.Ocronista,denovoManassés,trataradotemapoucoantes,em15dejunhode1877.162OnarradorcomentainicialmenteahistóriadeumbenfeitoranônimodaSantaCasadeMisericórdia.Osujeitodoaranadamenosdoquevintecontosderéisàinstituição.Espantomaiorcausaraasuaatitudedepermanecerincógnito.Fazercaridadecomtamanhodesinteresseeradeverassanto,poisacondutanormaldos“filhosdoEvangelho”consistiaemfazê-lanasgazetilhas.Comopuderaobenfeitorresistiraumacartinhanos“apedidos”,aumaodeemfolhadiária,ouaumpoemetoquefossenalgumhebdomadário—qualqueralvitreservia,desdequearredasseaqueleanonimatoquenãopareciahumano.NissoonarradorlembraqueoatodobenfeitordaSantaCasainspiraranumseuamigo“umatobonito”.Vejamsó:

Tinhaeleumaescravade65anos,quejálhehaviadadoaganhar,seteouoitovezesocusto.Fezanoselembrou-sedelibertaraescrava...degraça.Degraça!Jáistoégentil.Ora,comosóamãodireitasoubedocaso(aesquerdaignorou-o),travoudapena,molhou-anotinteiroeescreveuumanotíciasingelaparaosjornais,indicandoofato,onomedapreta,oseunome,omotivodobenefício,eesteúnicocomentário:“Açõesdestamerecemtodoolouvordasalmasbemformadas”.

Coisasdamãodireita!Vaisenãoquando,oJornaldoComérciodánotíciadoatoanônimodaSantaCasadaMisericórdia,

dequefoiúnicoconfidenteoseuilustreprovedor.Omeuamigorecuou;nãomandouanotíciaàsgazetas.Somente,acadaconhecidoqueencontraachaocasiãodedizerquejánãotemaClarimunda.

—Morreu?—Oh!Não!—Libertaste-a?—Falemosdeoutracoisa,interrompeelevivamente,vaishojeaoteatro?

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Exigirmaisseriacruel.Parececlaroqueoobjetomaisdiretodaironia,nocontextodacrônica,éa

ânsiadedarpublicidadeaatitudessupostamentegenerosasedesinteressadas.Oato,nessefeitio,contradizacaridadecristãeatéa“teoriadobenefício”nadominaçãopaternalista.Emtese,obenfeitordeviaesquecerofavorconcedidoantesqueobeneficiadoofizesse.163Napassagem,aocontrário,oamigodeManassésamargaaimpossibilidadedealardearaomundoquelibertaraumaescrava—mesmoqueescravaidosa,anecessitaramparonavelhice.Nessaaproximação,muitopresentenaobradeMachado,obenefícioaparecesempresubordinadoaocálculoeconômicoouà“sededenomeada”,praticadodemaneiraaacentuarovácuodeixadopelacrisedaideologiapaternalista,ouaevidenciarasuaapropriaçãoporoutraspolíticasdedomínio.

Dequalquermaneira,oexemplotiradoàescravidãonacrônica—numcomentárioquevisava,inteiro,omododeserdaclassesenhorialàépoca—nãoéfortuito.Exemplosdesenhoresquebuscavampromoveraliberdadedeescravos“inválidos”,idososounão,comoaquelesdoparecersobreCodó,repetiam-secomtalassiduidadequeasegundaseçãoresolveuencaminharconsultaaoConselhodeEstadosobreoassuntoemnovembrode1878.164PerguntavaàsseçõesreunidasdoImpérioedaJustiçadoConselhoseoescravoclassificadoparaseralforriadopelofundo,sendoinválido,deviacontinuarnocativeiroouserdeclaradolivre,aindaquesemindenização.Queriasabertambém“quemdeveráincumbir-sedotratamentodoescravoinválido,declaradolivre?”.

OdossiêdoConselhodeEstadonãotranscreve,dessavez,oparecerdeMachadooudequalqueroutrofuncionáriodesuaseção.Aocontrário,reproduzaopiniãodochefedaDiretoriadaAgricultura,quedizdiscordardasoluçãopropostapelasegundaseção.OsconselheiroseochefedaDiretoriadaAgricultura,maisoprocuradordaCoroa,quetambémopinounocaso,foramtodosunânimesemsustentarodireitodoescravoinválidoàliberdade,chegadaasuaveznaclassificaçãopelofundo,tivesseounãoosenhoralgumaindenizaçãopecuniáriaareceber.Quantoaosustentodoescravo,achavamque“libertado,comonãopodedeixardeseroinválido,devidamenteclassificado,entraelenoregimedodireitocomum,eseráalimentado,comosãoosoutroslibertos,ouaspessoaslivres,quenãopodemtrabalhar,nemtemmeiospróprios

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desustentar-se”.Ouseja,livrepelaclassificaçãonofundooupelacaridadedeseusenhorparticular,oescravotornadoincapazparaotrabalhopassariaàliberdadeparaviverdacaridadepública.165Infelizmente,naausênciadoparecerdasegundaseçãosobreoassunto,éimpossívelsabercomsegurançaoqueadiferençavadosoutrossetoresdogovernonocaso.Estouquaseprontoasugerir,porém,nocontextodoscomentáriosdeMachadosobreastramóiasemCodóparalibertar,pelofundo,escravosinválidos,edesuaironia,pormeiodeManassés,asenhoresquelibertavamescravosidosos,depoisdelhesespremercomobagaço,queasegundaseçãopressionava,nointeriordaadministração,paraqueosproprietáriosdeescravosinválidoslibertadospelofundoficassemresponsáveispelasua“manutenção”,comosedizia.Defato,oprocuradordaCoroaexplicou,enfaticamente,queataislibertosrestavaapenasorecurso“aoEstado,eàsInstituiçõesPias”porque“acitadaleide28desetembrosóimpõeaossenhoresaobrigaçãodemanterosingênuosfilhosdesuasescravas,eaindaassimmedianteindenizaçãoemApólices,ounosserviços...”.Apassageminsinua,semdúvida,quehaviaquemdefendesse,nointeriordaadministração,oalvitredecobraraossenhoresosustentodosescravosinválidosclassificadosparaaalforriapelofundo.Háaqui,porém,muitalacuna,poucacerteza.Fazpartedoofícionosso,dehistoriador,arrostaradúvidaquandonãoépossívelsuprimi-la.

Seriafácilseguirindefinidamentenessearanzelburocrático,arecitarosproblemasocorridosnaaplicaçãodofundodeemancipação.Asredesdepoder,parentescoefavornaslocalidadescontinuaramainterferirnosprocessosdeclassificaçãoearbitramento.166DifícilacreditarqueofuncionárioMachadodeAssistenhacontinuadoaacharalvissareiroesseaspectodaleide28desetembro.Maisprovávelquetenhaacompanhadoo“temperamento”dosgovernos,jáclaramentedesiludidoscomofundonofinaldadécadade1870,coincidindoissotalvezcomoadventodeumnovoperíododepredomíniodegabinetesliberais,apartirde1878,oucomavagaabolicionistade1879e1880,oucomambasascoisas.OrelatóriodoministroBuarquedeMacedo,porexemplo—dequemMachadodeAssisfoi“oficialdegabinete”—,167datadode14demaiode1880,dizia,porumlado,queodecretode20desetembrode1876haviadefatosimplificadoprocedimentosedadoinícioàaplicaçãodofundo.Poroutrolado,“temcaminhadocomvagaresteserviço,jápelainstabilidadedosagentesfiscais,jápelaignorânciadospreceitosregulamentares

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queemnumerosospontosdoImpériosetêmafiguradoextremamentedifíceisdeexecutar,jáfinalmentepelaslacunaseimperfeiçõesqueaprincípiosenotavamnamatrículaespecial,oupelafaltaabsolutadesteregistronalgunsmunicípios”.168Enfim,inoperânciaquasecompleta.Omaischocanteeracompararonúmerodealforriasconcedidaspormeiodofundodogovernocomasmanumissõesresultantesda“liberalidadeparticularouobtidasatítulooneroso”—istoé,compradaspelopróprioescravo.Nomesmorelatório,deBuarquedeMacedo,haviaoregistrode35093alforriasdesseúltimotipo,contra4584pelofundo.Alémdisso,oministroobservavaqueonúmerodeliberdadesobtidasaparticularesestavabastantesubestimado,poisainexistênciaouineficáciadasmultasparaaverbaçõesàmatrículahaviatornadotalregistromuitoprecárioparafinsestatísticos.Dequalquermodo,noImpériodoBrasil,noiníciodadécadade1880,asestatísticasoficiaisdiziamquecontinuavaasermaisprovávelaumescravomorrernocativeirodoqueconseguiraliberdade.169“Jáistonãoeragentil”,pensavatalvezocronista.

númeroilimitadodemembros

Osescravosestavam“altanados”,diziaoconhecidodeManassés,eocontextodapassagemdeixaclaroquetalsupostasoberbaeraatribuídaàvigênciadaleide28desetembrode1871.OutraanedotadocronistaMachadodeAssis,dessaveznapenadePolicarpo,narradordeBONSDIAS!,esgarçabemmaisaimagemdecativosconscientesdeseusinteressesdeclasse,servindodeintróitoàabordagemdaatuaçãodeescravos,libertoseseusdescendentesparaexploraraspossibilidadesabertaspelaleide1871.

Acrônicaapareceuemabrilde1888,vésperasdaleideaboliçãodaescravidão.PolicarpocomentaadeclaraçãodeumacionistadoBancoPredial—noqualhaviamuitahipotecadeescravos—dequejánãoexistiamcativosnopaís.Onarradordizquemaltiveratempodecomemoraranotícia,poislogorecebeu“umamensagemassinadaporcercade600000pessoas”solicitandoacorreçãodoquedisseraotalacionista.Amensagemafirmavaque“Háescravos,elesprópriososão.Estãoprontosajurá-loeconcluemcomestafilosofia,quenãoparecedepreto:‘AspalavrasdoSr.FernandesVilela[oacionista]podemserentendidasdedoismodos,conformeoouvinteouoleitortrouxerumaenxadaàscostas,ouumguarda-chuvadebaixodobraço.Vendoascoisas,de

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guarda-chuva,fica-secomumaimpressão;deenxada,aimpressãoédiferente’”.170Osoloculturaldapiadaera,aomenosemparte,umaspectoconspícuodatradiçãopolíticadosescravocratas:mostravam-sesempredispostosapregaroimobilismoemrelaçãoà“questãodoelementoservil”apartirdoargumentodequeoassuntojáforaresolvidonalegislaçãoexistente.Primeirodisseramqueaaboliçãodotráficonegreiro,em1850,resolveraoproblema;depoisfizeramomesmoquantoàleide1871.Em1888,sustentavamquenãoeraprecisoiralémdaleide28desetembrode1885.Aescravidãodesapareceriagradualmente—oumelhor,“jánãoexistemescravos”.Aoqueparece,osescravocratasachavamqueotempocorriacontraaescravidão;enquantoisso,numparadoxoaparente,lutavamparaqueoslegisladoresdeixassemotempopassar.

Háaqui,talvez,outrasalfinetadasnaculturapolíticasenhorial.Oformatoimagináriodoprotestoescravo—umamensagemescritaeassinadapelas600milpessoasaindacativasnopaís—éironiadiretaàsaçõesdeliberadasdeproprietáriosegovernantesparabarrarqualqueracessodeescravoseseusdescendentesàinstruçãoprimária.Ainstruçãoprimáriadosfilhoslivresdasmulheresescravas,esuarelaçãocomosdireitospolíticosdessesindivíduos,tornara-setemacandentenasegundametadedadécadade1870,eforaresolvidonoiníciodosanos1880demaneiraaprovocardesesperançaemalguémcomoMachado.Voltaremosaesseassuntologoadiante.Poragora,restaobservarque,navisãodePolicarpo,amensagemquereceberadosescravoscontinha“filosofia,quenãoparecedepreto”.Assim,onarradormostrava-sesurpresodiantede“pretos”capazesdeinterpretarosentidopolíticodeacontecimentosquelhesdiziamrespeito;MachadodeAssis,aocontrário,mofava,aindaesempre,deproprietáriosaimaginarescravosedependentessem“filosofia”—istoé,semconsciênciapolítica.

Defato,napiadinhadeMachado,os“pretos”escravizadosnopaísemabrilde1888interpretamasuacondiçãorecorrendoalinguagememetáforapróprias,pertinentesaumadeterminadaculturadeclasse.Vistodeenxadaàscostas,omundoédiferentedoquepareceaquemcarregaguarda-chuvadebaixodobraço.Todavia,diriaumcéptico,oobjetivodapassagemerafazergraça,eaconsciênciapolíticaassimatribuídaatrabalhadoresnegrostorna-sepuroembuste.Podeser.Mas,comodiriaBrásCubas,personagemaquemninguémnegará“filosofia”,seaflor(istoé,apiadinha)brotou,alguma

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experiênciahistóricalhedeuterraeestrume.Emjulhode1874,osmembrosdadiretoriadaSociedadedeBeneficênciada

NaçãoCongaAmigadaConsciênciaencaminharamdocumentoaoimperadorsolicitandoaaprovaçãoformaldeseusestatutos.171Diziamqueaorganizaçãoforafundadahaviamaisdedoisanos,em18defevereirode1872,“paraofimdesocorrerosdesvalidoseenfermosdasupraditanacionalidade”;agoraqueriamaprovaçãoparaexercer“livreelegalmente”assuasatividades.Opresidentedasociedade,ModestoJoséBentodaCruz,assimcomoovice-presidenteetodososconselheiros,nãosabiamlernemescrever,assinandoaseurogooprimeiro-secretário,BernardodeSouzaPernambuco.Nãoconstaoendereçodasededaassociação,masváriosdosmembrosdeclararammoradianafreguesiadeSantana—ruadoConded’Eueimediações—,áreacoalhadadecortiçoseoutrostiposdehabitaçãocoletiva.172

Jánoartigoprimeiro,osestatutosdiziamqueasociedade“compor-se-ádenúmeroilimitadodesóciosefetivos”,utilizandoassimfórmularecorrenteemorganizaçõesdetrabalhadoresdoperíodo,noBrasilealhures.173Noartigosegundo,eemcontradiçãocomo“daNaçãoConga”presentenonomedasociedade,ficavaestabelecidoqueocandidatoasócioteriadepertencer“àNaçãoCongaouaqualqueroutraporémafricana”.Emoutraspalavras,ecomosetratavadeorganizaçãodeafricanos,conclui-sequeseusmembroshaviamsido,talvezmuitosaindafossem,trabalhadoresescravos.Omesmoartigosegundorezavaquesópodiaingressarnasociedadepessoa“quetenhabomcomportamentoenãoestejapronunciado”emprocessocriminal,“queseempregueemqualquermeiodevidahonesto”,e“quegozedeperfeitasaúde”.Asexigênciasdenãoestarpronunciadoedegozardeperfeitasaúdeeramgarantiasnecessáriasnumasociedadequesepropunhaacusteardespesasjudiciaisedesaúdedeseusmembros.Defato,oartigoterceirodiziaqueumadasfinalidadesdaorganizaçãoconsistiaem“socorrercomumamensalidadeosócioqueadoecerenãotiverrecursos,umavezquerequeira”;também“enterrar,comadecênciapossível,osócioquefalecersemrecursos”e“sufragarsuaalmanosétimodia”.Nosartigosseguintes,descreviam-sedetalhadamenteasnormasparaaeleiçãodadiretoriaedoconselho;marcava-seaassembléiaanualordináriaparaoúltimodomingodefevereiro.Diretoriaeconselhotinhamdesereunir“todososdomingos”.Amensalidadepagapelossócioserade1mil-réis.

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OConselhodeEstadoapressou-seemdesqualificarsujeitospolíticostãoinusitados.Reunidosem24desetembrode1874,osviscondesdeSouzaFrancoedeBomRetiroeomarquêsdeSapucaísugeriramoindeferimentodopedidocomosseguintesargumentos:aatadeaprovaçãodosestatutosnãodeclaravaonomedossócioseestavaassinadaapenaspeloprimeiroesegundosecretários,emesmoasassinaturasdosreferidossecretáriosnãoseachavamreconhecidasportabelião;presidenteetesoureironãosabiamlernemescrever;“dizendo-sesociedadedebeneficêncianãoestácontudoorganizadasegundoosprincípiosreguladoresdasassociaçõesdetalnatureza”;intitulava-se“daNaçãoConga”,entretantoaceitavasóciosdeoutrasprocedênciasafricanas;finalmente,podia“admitirescravos,oqueécontrárioàsleis”.Apósessacombinaçãodemotivosburocráticoselegais,osconselheirosapenasinsinuamosentidopolíticodesuadecisão:“PortodasestasrazõesemuitasoutrasqueaSabedoriadoGovernoImperiallhehádelogosugerir,entendeaSeçãoquedeveserindeferidoorequerimento”(grifomeu).OviscondedoRioBranco,chefedogabinete,concordoueoimperadorrubricouoseuapoio.

Oreceiopolíticodosconselheirostorna-semaisexplícitoemseuparecersobreopedidodeaprovaçãodosestatutosdeoutrasociedade,aAssociaçãoBeneficenteSocorroMútuodosHomensdeCor.174Reunidosem23deoutubrode1873,“naruadaladeiradoSenado,número6AemPaulaMattos”,ProcópiodeJesus,FranciscodeJesus,EduardoAntônioPinto,CandidoPedroso,JoaquimAffonsoVianna,JoaquimLeiteBastos,BasílioAmancioeAntônioGaldino,“todoshomensdecorelivres,deliberaramentresiorganizaremumasociedadebeneficenteparaoshomensdecor,sendolidoseaprovadososrespectivosestatutos”.OendereçoindicadoeraaresidênciadeCândidoPedroso,cozinheiro.Denovo,tantoolocaldareuniãocomoosoutrosendereçosfornecidospertenciamàfreguesiadeSantana.OmorrodePaulaMattosficavanumadasextremidadesdafreguesia,jápróximoaoCatumby,enelehaviaumaruadePaulaMattosqueeratransversalàladeiradoSenado.AruadoConded’Euterminava(oucomeçava)praticamenteaopédomorrodePaulaMattos.Nãoseioquantoessainformaçãofoirelevanteparaosconselheirosdoimperador,masofatoéqueassociedades“daNaçãoConga”e“dosHomensdeCor”eramvizinhas.175

Entreos“instaladores”,alémdocozinheiroCandidoPedroso,haviaoartista(ouartesão)ProcópiodeJesusemaisdoisoutroscozinheiros,EduardoAntônio

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PintoeFranciscodeJesus.Oartigosegundodosestatutosdiziaque:“OfimdestaAssociaçãoépromovertudoquantoestiveraoseualcanceemfavordeseusmembros”.Amensalidadedossócioscontribuinteserade1mil-réis,masprevia-setambémaexistênciadesóciosremidosebeneméritos.Paraingressarnaassociaçãoerapreciso“Terbomprocedimento,comotalreconhecido”,“Sermaiordecatorzeanos”e“Serlivre,liberto,oumesmosujeito[istoé,escravo],decorpreta,deumououtrosexo”.Ouseja,aocontráriodasociedade“daNaçãoConga”,quedeixavaissoapenassubentendido,aorganização“dosHomensdeCor”admitiaabertamentemembrosescravos,homensemulheres.Afrase“Serlivre,liberto,oumesmosujeito,decorpreta,deumououtrosexo”significa,suponho,quepor“homensdecor”deve-seentenderpessoas“decorpreta”,oqueresultaria,aparentemente,naexclusãodeliberadadeindivíduostidospor“pardos”.Dequalquerforma,nãoestoucertodessainterpretação,poiselapressupõequeosmembrosdasociedadefaziamtaldistinçãoentre“pretos”e“pardos”,emvezdeusaradenominaçãode“pretos”,deformagenérica,paratodososindivíduosdeorigemafricanaeseusdescendentes.Poroutrolado,parececertoqueaexpressão“deumououtrosexo”,aofinaldafrase,indicasseaadmissãodemulheresàcondiçãodesócias,talvezcomosmesmosdireitosdoshomens.

Emcontrastecomocasodasociedade“daNaçãoConga”,nãoépossívelsaberseaassociação“dosHomensdeCor”existiadesdeépocaanterioraessatentativadelegalizá-laperanteopoderpúblico.Ofatoéqueosestatutosdescrevemprocedimentosminuciososparagarantiravigênciadeumademocraciainternaentreosmembroslivresdaorganização.Aseleiçõesparaadiretoriaeparaoconselhoseriamanuais,“porcédulaseescrutíniosecreto”;presidenteetesoureirotinhamdesereleitospor“maioriaabsoluta”;bastavamaioria“relativa”paraosoutroscargos.Sóossócios“sujeitos”nãopodiamvotarousereleitos.Todosossóciostinhamodeverdepagaramensalidadeede“prestar-separaosserviçosdasociedade”.Osestatutospreviamapoioasóciospresos,pensãoaosenfermos,auxílioàsfamíliasdosmembrosparaenterroemissadesétimodia,pensãode8mil-réismensaisàsfamíliasdosfalecidos,“nocasodequecareçam,eenquantoapensionistaseconservaremestadodehonestidade”—oque,deduzo,visavaaexcluirprostitutasdobenefício.

Umdosobjetivosfundamentaisdaassociaçãoerapromoveracompradaliberdadedeseusmembros“sujeitos”,oquesugereconhecimentodos

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dispositivosdanovalegislaçãoescravistaecapacidadedesearticularparaexplorarasviasinstitucionaisentãoexistentesparaobteralforrias.Nosestatutos,capítulooitavo,artigos43a48,descreviam-seosprocedimentosparapromoveraliberdadedosescravosmembrosdasociedade.Oprogramamínimo,porassimdizer,eraconseguiralibertaçãodedoissóciosanualmente,umdecadasexo.Oslibertandosseriamescolhidosporsorteio,aserrealizado“noaniversáriodainstalaçãodaSociedade”.Haviaumacaixaespecialpararecolherfundosparaalforrias,custeadapormeiodeumajóiapagapelossócios,acadatrêsmeses,novalorde2mil-réis.Seasomaexistentenãofossesuficienteparaasduasalforriasanuais,haveriarateioentreossóciosparacompletaraquantianecessária.Sehouvessedinheirodisponívelemcaixa,maisalforriasseriamobtidas.Oartigo14rezavaqueossócios“sujeitos”,umavezlibertos,“poderãoexercertodososcargosdasociedade,paraosquais,enquantonaquelacondição,nãopoderãosernomeadosoueleitos”.Oartigonãoexcluiasmulheresalforriadasdosnovosdireitos,podendo-setalvezdeduzirqueelastambémentravamnoplenogozodeles.Osestatutospreviamaexistênciadeumprocurador,entrecujasfunçõesestavaauxiliarossócios,“portodososmeiosaoseualcance”,noandamentodequalquerprocessojudicial.Talpersonagempodiaserauxíliofundamentalasóciosescravoslutandoparaobteralforriaemaçõescíveisdeliberdade.Alémdisso,obviamente,oprocuradorprestariaajudaaessestrabalhadoresnegrosnasagrurashabituaisdeumapopulaçãosempreobjetodateoriadasuspeiçãogeneralizada—osnegroseramalvospreferenciaisnasditas“classesperigosas”—,queorientavaaatuaçãodoaparatopolicial.

Seasociedade“daNaçãoConga”haviapreocupadoosconselheirosdoimperador,essa“dosHomensdeCor”fê-losconclamarogovernoimperialàação—ouseja,àrepressão.Osmesmosviscondesemarquês,nomesmíssimodia24desetembrode1874,alegaram,denovo,motivosburocráticoselegaisparabarraraaprovaçãodessaoutrasociedadedetrabalhadoresnegros,livreseescravos.Nofinal,esclareceramomotepolíticodamedida:

AlgumasconsideraçõesdeordempúblicatambémconcorremparaqueestesEstatutosnãosejamaprovadosnemautorizadaestaAssociaçãodenaturezaespecial.

Oshomensdecor,livres,sãonoImpériocidadãosquenãoformamclasseseparada,equandoescravosnãotêmdireitoaassociar-se.ASociedadeespecialépoisdispensável,epodetrazerosinconvenientesdacriaçãodoantagonismosocialepolítico:dispensável,porqueoshomensdecordevemteredefatotêmadmissãonasAssociaçõesnacionais,comoéseudireitoemuitoconvémàharmoniaeboasrelaçõesentreosBrasileiros.

Peloquerespeitaaosescravos,admitidossobotítuloespeciosodehomenssujeitos[sublinhadono

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original],oGovernoonãopodeaprovaremvistadasleisemvigor.AtentativadecriaçãodeAssociaçõesespeciaisquenadaaconselha,aparecepelaprimeiraveznestae

nacriaçãodaSociedadeBeneficentedaNaçãoCongaAmigadaConsciência,sobreaqualaSeçãoconsultatambémhojecomseuparecer.

AsabedoriadoGovernoImperial,decidirá,seconvémounãotomarconhecimentoreservado,pormeiodaPolícia,dosindivíduosqueaspromovemedascircunstânciasquelhesdãocausa:talvezunicamenteesforçosparavivescer(sic)àcustadosincautosquesedeixamenganar.OviscondedoRioBrancoconcordou;oimperadorrubricou.Ariquezadessesdocumentospermiteumasériedeobservaçõesqueajudam

aperceberaexperiênciahistóricaquetornoupossívelochistedeMachadosobreescravoscomconsciênciadeclasse.Emprimeirolugar,temosaquiassociaçõesdetrabalhadoresnegrosinseridasnumcontextomaisamplodeorganizaçãodesociedadesdetrabalhadorescomcaracterísticassemelhantes,naCorte,nasegundametadedoséculoxix.Defato,éincrívelaparecençaentreessassociedadesdenegroseas“sociedadesdetrabalhadoresnoRiodeJaneirodoséculoxix”,estudadasporCláudioBatalhaemartigorecente.176Láecáencontramosademocraciainterna,comgrandepesodaassembléiadesóciosnavidaassociativa,aigualdadededireitosedeveres,mensalidadebaixa,objetivodeangariarnovossócios—“númeroilimitadodemembros”—,tentativadedardignidadeaotrabalho,degarantiraboacondutamoraldosmembros,proverauxíliosdiversos—funeral,doenças,assistêncianoandamentodeprocessosjudiciais.Associedadesdetrabalhadoresnegrostambémtinham“artistas”nadiretoria,realizavamreuniõesànoiteemcasadeassociado,congregavampessoascompoucoounenhumacessoàinstruçãoprimária.Enfim,comodiziamosestatutosdos“HomensdeCor”,oobjetivodetaisagremiaçõesera“promovertudoquantoestiveraoseualcanceemfavordeseusmembros”.Talvezsejapossívelresumirassimasmetasprincipaisdessasorganizações:promoveraalforriadeescravose/ouapoiaraadaptaçãodeex-escravosàvidaemliberdade.Acausapolíticadosafricanoseseusdescendenteseraaliberdade,própriaeadeseuscompanheiros,eaorganizaçãodetaisassociaçõesdetrabalhadoresnegrostemdeserreconhecidacomocapítulocrucialnahistóriadaformaçãodaclasseoperárianoBrasil.

Outraobservaçãoquemeocorre—eelanoslevaráaumadigressão,aomenoscronológica—dizrespeitoàassertivadosconselheirosdoimperadordequetaisagremiaçõesdetrabalhadoresnegrossurgiam“pelaprimeiravez”naCorte.Ora,comoénotório,noBrasilasclassesproprietáriasnãotêmmemória,

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ouatêmapenasnamedidadeseusinteresses.Defato,ointeressedosconselheirosnaquelemomentoconsistiaemevidenciar,eexagerar,osperigosinerentesàorganizaçãodetaissociedadesnoperíodoimediatamenteposterioraoiníciodavigênciadaleide28desetembrode1871.Taisacontecimentospareciamconfirmarospioresreceiosdaquelesqueseopuseramàlei,poisosnegrosmostravam-secapazesdesearticularcoletivamenteparaacionarosnovosdireitosquealegislaçãolhesconferia,ouparatestar,afinal,asviasinstitucionaisabertaspelanovaconjunturalegalepolítica.

Oexercíciodeconsiderarosurgimentodesociedadesdetrabalhadoresnegrosumaconseqüênciadaleide1871revela-se,aofimeaocabo,um“esquecimento”dosconselheiros,ouquiçáignorânciasobreoquejazianosarquivosdopróprioConselhodeEstado.Noiníciodadécadade1860,ogovernoimperialtomaramedidaspararegularizaraformaçãodesociedadesdediferentestipos,sujeitando-asaleisespecíficasquetornavamobrigatóriasaautorizaçãodefuncionamentoeaaprovaçãodeestatutospeloPoderExecutivo,“ouvidaarespectivaSeçãodoConselhodeEstado”.177Emrespostaaessanovalegislação,adiretoriadaSociedadeBeneficentedeNaçãoConga,ProtetoradaSociedadedoRosárioeSãoBenedito,encaminhouaogovernoimperial,emoutubrode1861,opedidodeaprovaçãodeseusestatutos.178

Reunidosemassembléia-geralnodia18demarçode1861,emsua“SaladeSessões”,àruadoHospíciono322,osmembrosdasociedadetinhamdedeliberar“sedeveriapedir-sepermissãoaoGovernoImperial,paraamesmacontinuarafuncionarnaformadaLeino1083de23deAgostode1860,edoDecretono2686de10deNovembrodomesmoano”.Ostrabalhosiniciaram-seàssetehorasdanoite,eossóciosdecidiram“unanimementequesim”.OpresidenteMiguelAntônioDias“levantou”entãoasessão,assinandoaataaseurogo,pornãosaberescrever,DomingosJosédeSeixasSoitoMaior,primeiro-secretário.Ovice-presidentetampoucoassinouaata;osdoissecretários,otesoureiroeoprocurador,porém,ofizeram.OartigoprimeirodosestatutosenviadosàautoridadeimperialdiziaqueessasociedadedeNaçãoConga“serácompostadepessoasquepertençamàmesmanação,equesejamlivres,podendoseradmitidasemseugrêmioosfilhos,efilhasdasmesmasnascidasnesteImpério,equeSejamdecorpretaecompor-se-ádeilimitadonúmerodeSócioseSóciasefetivos,evintehonorários”.Aoqueparece,ajulgarpelaleituraatentadosestatutos,homensemulheresassociadostinhamrigorosamenteos

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mesmosdireitosedeveresnaagremiação.Ofato,porém,équesóhánomesdehomensnaatadeassembléiaapresentadaaogovernoimperial.

Aprimeiracuriosidade,éclaro,consisteemsaberseessasociedadedeNaçãoCongaéamesmaquevimosaparecerem1874,solicitandotambémaprovaçãodeestatutos.Tudoindicaquesãoorganizaçõesdiversas.Osnomesdassociedadessãodiferentes,apesardapresençadoepíteto“deNaçãoConga”emambas.Nãoverifiqueiumacoincidênciasequernosnomesdosassociados.Aagremiaçãodemeadosdosanos1870funcionava,aoqueparecesemsedeprópria,nafreguesiadeSantana;adadécadade1860tinha“SaladeSessões”emendereçodafreguesiadeSacramento.Talvezmaissignificativo,asociedadedosanos1870realizavaasuaassembléiaanualordinárianomêsdefevereiro,odesuafundação,enãotraziaemseusestatutosqualquerreferênciaasantoprotetor;adosanos1860faziaassembléiasnomêsdeoutubro,também“aniversáriodeinstalaçãodaSociedade”,dizia-se“ProtetoradaSociedadedoRosárioeS.Benedito”eestabelecia,emseuartigo69,queNossaSenhoradoRosárioseriafestejadanodiadoaniversáriodaassociação,ocasiãoemquehaveria“missasolene”paraaqualseriaconvidadaa“Lealmesa(sic)daSociedadedeNossaSenhoradoRosário”.Emsuma,nocasodasociedadedosanos1860,pareciahavervínculoorgânicoentreelaeatalirmandadedoRosário.

Ditoisso,nãoseiseosindíciossãosuficientesparadescartarqualquerrelaçãoentreessasduassociedades“deNaçãoConga”.Há,emprimeirolugar,aenormesemelhançaentreosobjetivosdasorganizaçõeseseusestatutos.Éprovávelquenãohajanadademaisaqui,poisamesmaobservaçãoseriatalvezprocedenteparadezenasdeoutrassociedadesdetrabalhadoresnoperíodo.Issopodeindicartrocasdeinformaçãoeexperiência,alémdeamarraslegaiseburocráticas,ainfluenciaraformaçãodetaissociedadesdetrabalhadoresdemaneirageral,masnãocomprovanemmesmosugereapossívelrelaçãoentreasorganizações“deNaçãoConga”empauta.Parecemaissignificativoobservaramaneiracomoessassociedadesdefiniramcritériosdeinclusão—istoé,aformacomorecortaram,nouniversosocial,oscandidatospossíveisaseu“númeroilimitadodesócios”.

Osestatutosdaentidadedadécadade1870rezavamque“parasersócioépreciso”que“ocandidatopertençaàNaçãoCongaouaqualqueroutraporémafricana”.Comovimos,osconselheirosimpugnaramesseitemdosestatutos

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comoargumentodequehaviacontradiçãoentreonomedasociedade—“deNaçãoConga”—eaquiloqueestabeleciaoartigoprimeiro,poisqueseadmitiam“sóciosdeoutrasprocedênciasafricanas”.Ouseja,aorganizaçãodosanos1870buscavaestritamenteentreosafricanosdaCorteoseunúmeroilimitadodemembros.Jáasociedadedadécadade1860diziaqueseussóciostinhamdepertencerà“mesmanação”Conga,“podendoseradmitidasemseugrêmioosfilhos,efilhasdasmesmasnascidasnesteImpério,equeSejamdecorpreta”.Emoutraspalavras,asociedadedosanos1860desejavaexpandir-seindefinidamenteacolhendoosdescendentesdosafricanosditos“deNaçãoConga”.Ajulgarpelaexpressão“decorpreta”,aquiaduzida,fechavam-seasportasaospardos,mulatosoumestiços.Osconselheirosdoimperadorimpugnaramesseitemdosestatutosalegando“quenãoconvémaprovarassociaçõesespeciaisdepretos,mulatos,caboclosetc.”.Achavamqueissoincentivariaosódiosraciais.Poroutrolado,consideravambenéficasasassociaçõesconstituídaspor“membrosdenacionalidadesestrangeiras,esúditosestrangeiros”,taiscomo“Italianos,Franceses...”.

Aoobservaratentamenteessesintercâmbiosentresociedadesdetrabalhadoresnegroseconselheirosdoimperador,pergunto-meseasociedade“deNaçãoConga”dosanos1870nãohaviaacumuladoalgodaexperiênciahistóricadaqueladosanos1860.Aodefinir-secomo“africana”deformaampla—membrosde“NaçãoConga”oupertencentes“aqualqueroutraporémafricana”—,afastando-seassimdeumcritérioracialdireto,pareciaquererarredardesiaobjeçãodequeorganizaçõesdessetipofomentavamo“antagonismo”entreasraças.Aocontrário,apostavam,aomenosparaobteraprovaçãoformal,naidéiadeque“ahomogeneidadesenãorealaomenossupostaéumdostiposdesejadosparaasnacionalidades”,comodiziaexpressamenteoparecerdosanos1860.Aodefinir-secomo“africana”,aorganizaçãodosanos1870pareciaquererassemelhar-seàquelasdeitalianos,franceses,ingleseseoutras,queobtinhamrotineiramenteobeneplácitoimperial.Nãoobtiveramêxito;afinal,osargumentosdosconselheirosvariavamsegundoasnecessidadespolíticasdomomento.

Dequalquermodo,permanecedifícilsaberqualarelaçãoexistente,oumesmosehaviaalgumarelação,entreassociedadesdeNaçãoCongadasdécadasde1860e1870.Aomesmotempo,équaseimpossívelacreditarqueosconselheirosdoimperadortenhamsidototalmentesurpreendidos,em1874,

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pelosurgimentodesociedadesdetrabalhadoresnegros.Diziamquea“tentativadecriaçãodeAssociaçõesespeciaisquenadaaconselha”aconteciaentão“pelaprimeiravez”.Minhaincredulidadediantedessaversãodeve-seaodebateacirradoocorridoentreosconselheirosquandodaelaboraçãodoparecersobreasociedadedeNaçãoConganoiníciodosanos1860.

Aspersonagensdetaldebatesãovelhasconhecidas:PimentaBueno,oviscondedeSapucaíeomarquêsdeOlinda,membros,àépoca,daseçãodosNegóciosdoImpériodoConselhodeEstado.PimentaBuenoeSapucaíunem-senoargumento,jámencionado,dainconveniênciaemautorizarumaassociaçãoqueimpunha,comocritériodeadmissão,queaspessoasfossem“decorpreta”;seria,segundoeles,“opredomíniodacasta,edacor,quenãoconvémaprovar”.PimentaBueno,oredatordoparecer,afirmaenfaticamentequese“osentimentorealdapretendidasociedadeéodebeneficência,eladevealteraressasexpressõeselimitaçõesporqueahumanidadenãosecompõesódacorpreta”.Elearremataoseuarrazoadocomumasériederestriçõesmaistécnicasaosestatutosdasociedade,edesqualificaporfimasolicitaçãoaoafirmarqueostaisestatutos“estãomalredigidos,echeiosdeerros,peloquenãosãodignosdesubiràPresençadoGovernoImperial”.

Entende-seotomaguerridodePimentaBuenodiantedovotodiscordantedomarquêsdeOlinda.Esteconselheiroachavaquea“cláusulaquerestringeaadmissãodossóciosàspessoasdecorpreta,nãomeparecedeverserreprovada.Jádetemposantigosseinstituíramirmandadesdepretos,edemulatos.Eistonuncaseachouquecontrariasseasmáximasdabeneficência”.Aocontrário,Olindapensavaqueovetoàexistênciadetaisassociações,issosim,provocaria“rivalidades[...]nascidasdaorigemdosangue”.Bomdebriga,aomarquêsaortografiadosnegrosnãopareciatãoruimassim,nemesseeramotivo“suficienteparanãodeferirapetição”.

ÉnatréplicaquePimentaBuenodesenvolveoargumentodequenãoconvinhaaprovarassociações“depretos,mulatos,caboclosetc.”.Emprimeirolugar,porque,nocasoespecífico,osproponentesdasociedadeeramos“taisCongos”,“umahordabárbaradaÁfrica”.Segundo,porquea“políticaensinaantesaregradenãofalar-senisso”.Emoutraspalavras,nãosedeviareconhecer,naformulaçãodepolíticasdegoverno,aexistênciadediferençasderaçaoucor.Aposiçãooficialseriacontráriaà“distinçãooudivisãoporcastas”,efavorávelàpromoçãodoidealde“homogeneidade”naconstituiçãoda

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nação.Emsuma,desculpo-mesefuilongedemaisnadigressão,masoraciocíniodePimentaBuenoconsistenumadasmaisprecocesexpressõesqueencontreidotipodeideologiaracialquefincariaraízesnoBrasilapartirdoúltimoquarteldoséculoxix:aproduçãodosilênciosobreaquestãoracialpareciarequisitoessencialparaforjaroidealdenação“homogênea”;aomesmotempo,aconstruçãodatalhomogeneidadepressupunhaasupressãopolíticaeculturaldegentecomoosmembrosdasociedade“deNaçãoConga”,tidacomo“hordabárbaradaÁfrica”.179Haviaassimumsentidopolíticoprecisonofatodeosconselheirosdadécadade1870,diantedesociedadesdetrabalhadoresnegros,afirmaremqueviam“pelaprimeiravez”taltipodemovimentaçãopolítica.Aleide1871forapensadaparaproporcionarabuscaindividualdeescravospelaliberdade;aemergênciadetrabalhadoresnegroscomosujeitoscoletivosdahistóriaeraalgoasercombatido.

Emsuma,eretomandoofiodameada,osconselheirosdecertoexageravamanovidadepolíticarepresentadapelassociedadesdeNaçãoCongaedeHomensdeCorqueencontraramnosanosimediatamenteposterioresàleide28desetembrode1871.180Poroutrolado,seriatolicedesconsiderarapercepçãogeraldequeemergiraumanovaarenadalutadeclassesentresenhoreseescravoscomoconseqüênciadaleide1871.Escravos“altanados”esenhoresnostálgicosforampersonagensmoldadasprecisamentenessaépoca,comonãodeixoudeobservarocronistaMachadodeAssis.

JáofuncionárioMachadodeAssis,nocotidianodoministério,deparava-seregularmentecomhistóriascomoadofazendeiroJoséMigueldeSiqueira,residentenaparóquiadoMello,municípiodeBarbacena.181OcasochegouaoMinistériodaAgriculturanosegundosemestrede1876,quandoMachadodeAssisjáexerciaachefiadasegundaseção.Nãomefurtoatranscreverlongamenteacartaqueoproprietárioencaminhouaogovernoimperial,poispensoencontraraqui,novamente,eaindaquesemavirtuosidadenarrativacaracterística,aspectoscruciaisdaexperiênciahistóricadeDomCasmurroetantasoutraspersonagenssenhoriaismachadianas.OproprietárioestavainconformadocomoandamentodaaçãodeliberdadequeresultarianaalforriaporindenizaçãodepreçodeseuescravoBento—tudosegundoaleide1871.Vejamoseulamento:

ExcelentíssimoSenhor,

Apresso-mealevaraoaltoconhecimentodeV.Exa.oseguintefato,emrazãodeterouvidoontem

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dizer,queosautosdelibertaçãodequevoufalar,estãoaparelhados(sic?)eemordemaeunãoterrecurso.ComeçoporanunciaraV.Exa.queoslavradoresdesteTermoestãoaterradoscomestanotícia.

Éesteofato:PossuoumescravodenomeBento,queestáavaliadonoInventáriodemeufinadosogroem600mil-réis[...].Esteescravotentalibertar-se;nãomeoponho,nemnuncameopusaisso,masindenizando-se-medoseujustovalor,eprocedendo-separacomigopelosmeiosrazoáveis,legaisecuriais;enoentantopraticou-seexatamenteocontrário;poismeasseveramqueoSr.Dr.JuizdeÓrfãosdecretava[...]acartadealforriadesseescravopor200mil-réisquantiaporquemedizemqueforaarbitradosemprecederacordoesemeuserouvido.RelevaponderarqueforjarameajeitaramemBarbacenaessespapéisederam-lhesonomedeautosdelibertação,emedizemqueirãoserjulgadosàrevelia.

CertificoaV.Exa.queeuestavadoentedecamaquandofuiintimado,emedisserammaisqueooficialdejustiçaBalduínoMarquesdaSilveira,infielàsuaobrigaçãoedever,omitiuestacircunstâncianacertidão,emedizemqueporissooprocessocorreuàrevelia,eassimvaiserjulgado.

Tenhoquemmedêpeloescravoemquestãoaquantiade600mil-réis,eoutrapessoamoalugaa10mil-réispormêsporespaçodeseteanos.

Porém,esteescravomefoiarrebatadonodia19dejulhop.p.pelomeirinhoBalduínoMarquesdaSilveiraporummandadoterminantedoSr.Dr.JuizMunicipaledeÓrfãos.Exporei,Exmo.Snr.,fielmenteaquestão:Oescravolibertandofezoseupecúlio,eeudoua[ilegível]faculdadeatodosmeus(sic)escravosdeplantaremecriaremnaminhafazenda,aqualestáagoraameaçadadeserdissolvidacomesteterrívelexemplo;emedizemqueesteescravodepositaraesseseupecúlionasmãosdeumcertoDelfinoFerreiradeCarvalho,oqualseinstituiuseucurador,eporissoautoreprovocadordestatristequestão.

[...]medizemqueotalrequerenteDelfinointerpelava(sic?)constantementeaoJuizrequerendoqueeuandavacomsubterfúgios;oquenãoéexato,porquantoeuporcartasoficiaisrespeitosaslogodesdeocomeçodestaquestãodiziaaoSr.Dr.JuizdeÓrfãosquemedavaporintimado,equecompareceriaquandopudesse,poiseuvivomuitoocupadocomminhalavoura,paraseguir-seregularmenteaaçãodealforria;masnãofuiatendido,eoSr.Dr.JuizdeÓrfãosmetratavaetratouatéfinal(sic),comoseeuforaseupupiloouummentecaptoouumservosemdignidadeehonraesemdireitosaseremrespeitados,mandava-meimperiosamente(eestaéaraizdaquestão)eporúltimocomoseeuforaumdevedorrebeldesobrequempusesse(sic?)umaexecuçãoseqüestrouomeuescravoeláestácomeleemBarbacena!!

Sou,Exmo.Snr.,lavrador,etenhominhapequenafortunaempregadaemescravos;oralibertadoviolentamenteemnomedaleioescravoemquestão,abre-seumprecedentehorrorosoaquinaminhafazenda,cujosescravossãotodoscrioulosladinoseespertos,eeulhesfranqueioabertamenteaaquisiçãodopecúlio,eporistoénaturalqueamanhãtenhaeudeserintimadoporumsegundoescravo,edepoisdeamanhãporterceiro,eassimpordianteatéoúltimo;edissolvidoficaráomeumodestoestabelecimentoagrícola,ficandoeueminhanumerosafamíliareduzidosaotristeestadodeirmosviverdacaridadealheia.

Debalde,Exmo.Snr.,quandomefoiarrebatadooescravo,mandeipormeufilhoomeuformaldepartilhas,ondeestáoescravolibertandoavaliadoem600mil-réis,quemepareciadeverservirdebaseparaoarbitramento,comodesdeoprincípioaindafuidesatendido.Emsuma,expondoestefato,tenhoemvistamanifestaraV.Exa.quealforriooescravo,sendoparaissohonrosamenteconvidado,enãomandado[grifodooriginal],paraacordocomosecostumafazercomoscidadãosqueestãonoplenogozodeseusdireitos,comomeconsidero,eentãonãofaçoquestãodoquantumparaaalforria,sendoeuosignatáriodacarta,poisamesmaleide28de7brode1871,megaranteopoderedomíniodesseescravo,quemefoinodia19dejulhop.p.violentamentearrebatado.

DeusGuardeaV.Exa...ApiadadocronistaMachadodeAssis,pormeiodonarradorManassés,

sobresenhoresquesuspiravamportemposidoseseressentiamdonovodesembaraçopolíticodosescravos,ganhadensidadehistóricaaolermosum

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aranzelcomoessedofazendeirodeBarbacena.Ofuncionárioliaolamento,circunspecto,narotinadarepartição,paraqueoliterato,galhofeirooudissimulado,pudesserecriá-lodepois.Maisimpressionantenodocumentoéomodocomoecoatodoorepertóriodaresistênciaescravocrataàleide1871,pintandovivamenteasbatalhassociaisemtornodesuaaplicação:cáestáosenhordeterraseescravos,habituadoaexercerlivrementeasuavontade,tendodelidarcomosagentesdopoderpúblico,evendonissoameaçaàcontinuidadedocontrolesocialsobreseuscativos.Ofazendeirochegamesmoadizerque“araizdaquestão”estavaexatamentenomodosupostamenteindignoedesrespeitosopeloqualeratratadopelasautoridadespúblicas—nocaso,ojuizeomeirinho.Inadvertidamentelúdico,reclamaqueojuiznãoquiseraesperarqueelesedesembaraçassedeseusafazeresdelavrador—“vivomuitoocupadocomminhalavoura”—paraatenderàintimaçãojudicial.

Nadadissoénovidade,nestenossopercursoquejávailongo.Outrossim,odocumentodofazendeirotrazinformaçõespreciosassobrepercepçõesemodosdeatuaçãopolíticacoletivadosescravos.Éverdadequenãoestamosagoradiantedesociedadesdetrabalhadoresnegros,formalmenteorganizadasparaatingirobjetivosespecíficosquepodiamincluiratémesmoaalforriadesóciosaindaescravizados.Todavia,seriaingenuidadeacharqueessedocumentonosdizapenassobrealutaindividualdedeterminadoescravo,chamadoBento,paraobterjudicialmenteasuaalforriaporindenizaçãodepreço,recorrendoparaissoàsviaslegaisexistentesnadécadade1870.Oprópriosenhordeterraseescravosdeixaclaroquenãoéesseocaso.Emprimeirolugar,forneceinformaçõesimportantessobreasrelaçõesdetrabalhoemsuapropriedade,reconhecendodireitoscostumeirosdosescravoscomosquaisnãopareciapossívelbulir.Assim,aorigemdainiciativadeBentoparaobteralforriaeraopecúlioqueamealharanaprópriafazenda,aousufruirdaprerrogativadeplantarecriarcomautorizaçãodosenhor.Taisroçasdealimentosecriaçãodeanimaiseramconquistascoletivasdosescravos,nessaeemtantasoutrasfazendas,eésignificativoqueolamuriantejamaisquestionealegitimidadedessasituação.Segundo,oarrazoadodosenhorpressupõeaexistênciadeexperiênciaseestratégiasdelutacompartilhadasentreosescravos,poisaameaçarepresentadapelainiciativadeBentoestavaemseucaráterdeexemplo—ouseja,napossibilidadedeelamodificaravisãodosescravossobreaescravidãoesobreosmodosdelutarparasuperá-la.Naopiniãodofazendeiro,

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ahistóriadeBentoconstituía“umprecedentehorrorosoaquinaminhafazenda,cujosescravossãotodoscrioulosladinoseespertos”,eentãoeleimaginavaquetodososoutros,sucessivamente,utilizariamomesmorecursoelevariamàruínaoseumundinhosenhorial.“Crioulosladinoseespertos”émodosenhorialpeculiardeconstataraculturapolíticadetrabalhadoresescravos.

Paraarremataressapequenahistória,restadizerqueoministrodaAgricultura,ThomazCoelho,concluiuquenadahaviaafazersobreoassunto.Antes,oministériohaviasolicitadoaojuizdeBarbacenaqueoferecesseasuaversãosobreoepisódio.Ojuizrespondeucomverveeminúcia,apoiandocadaassertivaemcópiasdedocumentosoriginais.MandoucópiacompletadosautosdeaçãodeliberdademovidaporBento,paramostrarque“oprocessocorreutodosostrâmitesdalei”,nãotendosido“forjados”e“ajeitados”emBarbacena.Desqualificouaqueixadoproprietáriodequeopreçoestabelecidoparaaindenizaçãodaliberdadeforabaixodemais—osperitosarbitraramovalorde200mil-réis;osenhorqueria600mil-réis.Segundoojuiz,aavaliaçãode600mil-réisalegadapelofazendeiroforarealizadaeminventáriodedozeanosantes.Alémdisso,aodaroescravoàmatrícula,em19deagostode1872,osenhordeclarara,nacoluna“aptidãoparaotrabalho”,queBentoera“quaseinútil”.Ironizoutambémapretensãodomandãolocaldequeaautoridadejudicialdeveriaesperá-loatéquepudesseatenderàintimaçãodelevaroescravoajuízoparaoarbitramentodopreçodaliberdade.Imagineo“desempenho”daJustiça,setivessedeesperar“queapessoaintimadaparaqualquerato,tivessevontadedecomparecer”.Porfim,insinuavaqueofazendeiroexageravaaodizerqueoslavradoreslocaisestavam“aterrados”emconseqüênciadasaçõesdeliberdadeemcursonomunicípio;aomesmotempo,diziaqueseoepisódiodeBentoedeoutrosquetaispareciammesmo“terríveis”,nãoera“culpadosjuízesnemdoscuradoresesimdaleiqueofaculta”.182

NahistóriadofazendeirodeBarbacena,destaca-seasuairacontraumcertoDelfinoFerreiradeCarvalho,homemlivre,curadordoescravoBento,eaquemeleconsideravao“provocador”daquelaquerelasobreliberdade.Ora,aleide1871criavacondições,defato,paraqueindivíduosousetoresdasociedadecivilprestassemajudaousolidariedadeaosescravosnaconquistadaliberdade.Aoprotegeropecúliodoescravo,garantindo-lhetambémodireitodereceber“doações,legadoseheranças”,eaodar-lheodireitoàalforriaporindenização

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depreçoàreveliadavontadesenhorial,aleide28desetembroampliavaaspossibilidadesdeoscativoseseusaliadosorganizarem-secoletivamenteparaacompradealforrias.IndivíduoscomoDelfinoesociedadesdetrabalhadoresnegrossolidarizaram-secomosescravizadoseapoiaramasualutapelaliberdade.AdocumentaçãodoConselhodeEstadoregistratambémaocorrênciadeorganizaçõescujoobjetivoeraacompradealforrias,mascujosmembrosecaracterísticasgeraisnadatinhamavercomasagremiaçõesdetrabalhadoresnegrosjáestudadas.Aoqueparece,setoresda“boasociedade”mostravam-sedispostosautilizaraleide1871paracolaborarnasoluçãodoproblemado“elementoservil”.

Naverdade,oprópriogovernoimperialestavainclinadoaincentivaroaparecimentodeassociaçõesparaalforriarescravosnoperíodoimediatamenteposterioràleide1871.EmrelatóriodoMinistériodaAgriculturade1872,oministroFranciscodoRegoBarrosBarretolouvaacriaçãodetaissociedades“nasprovíncias”,maslamentaquenestaCorte“nãoexistamaindainstituiçõesdestanatureza,tendosidorejeitadaspropostasparaarespectivaorganização,porque,nosfavorespedidosaogoverno,mostraramantesdesejosdeespeculaçõesindustriaisdoqueoespíritodecaridadequedevepresidiraestesestabelecimentos”.183Emsuma,naavaliaçãodoministro,associedadespropostasparacompraralforriasnaCortepareciammaisdispostasatirarvantagenseconômicasdaânsiadosescravosparaalcançaraliberdadedoqueemcontribuirparalivraropaísdainstituiçãoservil.

OspareceresdoConselhodeEstadorevelamcertadiversidadedesituações.Emconsultade14dedezembrode1874,porexemplo,osconselheirosviscondesdeSouzaFrancoedeBomRetiroeomarquêsdeSapucaímanifestaram-sefavoráveisàcriaçãodaSociedadeEmancipadora28deSetembro.184O“fimexclusivo”daassociação,segundooartigoprimeirodosestatutos,consistiaempromover“alibertaçãodeescravosnaCorteeProvínciadoRiodeJaneiro”.Osconselheirosacharamqueoobjetivodasociedadeera“muitoútil”e“humanitário”,limitando-seasugeriralgumasmodificaçõesnosestatutos.Entreosváriosreparosdosconselheiros,doissãoespecialmenteinteressantes.Primeiro,elespropunhamoaumentonovalordamensalidadeaserpagapelossócios.Osestatutosestabeleciamamensalidadededuzentosréis;osconselheirosachavamque1mil-réis“pormêsnãoseriapesadoaosqueconfiemnodesempenhodofimsocial”.Defato,duzentosréiseraquantia

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pequena,atémesmoparaosparâmetrosdesociedadesdetrabalhadores.Comovimos,associedadesdeNaçãoCongaedosHomensdeCorcobravammensalidadesde1mil-réis—curiosamente,ovalorsugeridopelosnotáveisdoConselhodeEstado.Dequalquermodo,obaixíssimovalorpropostodeixaclarooobjetivodosorganizadoresemincorporaràssuasfileiras“númeroilimitadodemembros”.Segundo,osconselheiroscriticaramofatodeosestatutosconcentrarempoderesdemaisnasmãosdossócios“fundadores”ou“instaladores”:sóeleseramelegíveisparaoconselhodiretivodaentidade,podiamdissolveraagremiaçãoàreveliada“vontadedosdemaissócios”eassimpordiante.Taisdisposiçõeseraminjustas,pois“todosossóciosdevemteriguaisdireitos”.Alémdisso,haviacontradiçãoentretaisprivilégiosconferidosaossóciosfundadoreseoobjetivode“obternovasenumerosasentradas”desócios.

Asegundaseção,jánoperíodoemqueMachadodeAssisexerciaachefia,solicitouaoConselhodeEstadoparecersobreduassociedadescujoobjetivodeclaradoerapromoveracompradealforrias.OsconselheirosPaulinoJoséSoaresdeSouza,DiasdeCarvalhoeTeixeiraJúniorapreciaramoscasosemreuniãode26defevereirode1877.AAssociaçãoLibertadoradaEscravidãotinhacomoobjetivo“libertartantosbeneficiadosquantoscomportarofundosocial,pelonúmeroeordemqueasortedesignar”.185Paraangariarfundos,cobravamensalidadesapartirde5mil-réis,exigiaseismesesdeprestaçãodeserviçospelosescravoslibertadospelaentidade,esolicitavadogovernoimperialdiversosprivilégiosquantoàcaptaçãoderecursospormeiodeloterias,doaçõeselegadosfeitosporparticularescomvistasàemancipaçãodeescravos,multas,contratoscaídosemcomissoetc.Osconselheirosconsideraramincertasoumesmoilícitasamaiorpartedessasfontesderecursos.Ogovernoimperialjádeterminaraoaportederecursosdeloterias,doações,multasetc.paraengordaroseuprópriofundodeemancipação,nãohavendoentãomotivoalgumparadesviartaisquantiasparaempresasparticulares.Maisgrave,asociedadeadmitiaescravoscomomembroscontribuintes,nãosócomobeneficiados.Nocaso,oscativosentregariamoseupecúlioàassociação,elátaisrecursospassariamafazerpartedosfundosgeraisdaentidade.Essadisposiçãocontrariavafrancamenteaproteçãoaopecúliodoescravoprevistanaleide1871eseusregulamentos;porissodiziamassimosconselheiros:“NãopodeoGovernoconfiarestepecúlio,frutodaeconomiadeumaclasseignoranteecarecedoradetodooamparo,aumasociedadeparticularque,aindaquenãoespeculecomele,

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temdeabsorvê-lonoseufundoparabeneficiaraunsfavorecidospelosorteioàcustadeoutrosquetenhamainfelicidadedenuncaveremseusnomessaíremdedentrodaurna”.Quasetudonosestatutosdessasociedadeviolavaasleisemvigorsobreaemancipaçãodeescravos,eosconselheiroschegamacitar,comaprovação,umcomentárioorigináriodoMinistériodaAgricultura—provavelmentedasegundaseção,deondetinhamvindoospapéis—dequeo“planodestaassociaçãotemmuitodeincongruenteoudeenigmático”,modomaldisfarçadodesugerirqueseusfinseramespeculativos.

Naverdade,havianaleide28desetembroaomenosumartigoquepareciadespertarosinteresses“mercantis”,comosedizia,dosabutresdotempo.Tratava-sedodispostonoartigoquarto,parágrafoterceiro,emquesepermitiaaoescravo,“emfavordesualiberdade,contratarcomterceiroaprestaçãodefuturosserviçosportempoquenãoexcedadeseteanos,medianteoconsentimentodosenhoreaprovaçãodojuizdeórfãos”.Paraossenhores,oartigoabriaapossibilidadedeacordaraalforriadeseuescravocomalgumaempresa,porumasomavantajosapagaàvista,enquantoocativoficavaobrigadoaprestarserviços,avaliadosapreçodebanana,porumlongoperíodo,quepoderiachegaraatéseteanos.Afiscalizaçãodojuizdeórfãoseavigilânciadogovernosobre“sociedades”dessetipo—naverdade,empresasdeexploraçãodamão-de-obradoslibertos—tinhamdefuncionarparadeteresseprocesso.

Nãotenhocomoavaliarse,nogeral,houveproteçãoadequadaaoslibertandosnesseaspecto.Ocertoéquenooutrocasodepedidodeautorizaçãodefuncionamentodesociedadeencaminhadopelasegundaseção—comparecerdesfavorável—aoConselhodeEstado,em1877,osconselheirosincluíramemseuparecerlongaperoraçãocontrao“carátermercantil”emtaisiniciativas.ASociedadeManumissora,propostapelobacharelAntônioJoaquimdeSennaeporJoãoAlvesPinheirodeCarvalho,tinha“porfimemanciparescravosdeambosossexos,comprévioassentimentodossenhores”.Oprincipaltipodeoperaçãoquerealizariaparaobterasalforriasseriaoadiantamento,aoescravolibertando,dequantiasquepoderiamvariarde100mil-réisa1contoe500mil-réis.Aliberdadeseriaconcedidaaoescravocom“cláusuladeprestaçãodeserviçosenaformadasobrigaçõesconstantesdosEstatutosdaassociaçãoqueforemaprovadospeloGovernoImperial”.186Naperoraçãoantimercantilàqualmereferi,osconselheirosdiziamqueogoverno

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nãopodiaautorizaressasassociaçõesquandodestinadas“arealizarlucros”,poisquenãosedeviaexplorar“anaturaleirresistíveltendência,paraaliberdade,deumaclasseatéhojepacíficaesujeita”.Apieguicesenhorialcontinuaparecerabaixo,dizendo-seentãoqueeranecessárioevitar“asperniciosascontingênciasdeateiarem-se(sic)paixõestãovivasearrastadoras(sic),quaisasquesedespertamanteaperspectivadapassagemdocativeiroàliberdade”.Porfim,concluíamqueas“sociedadesemancipadoras”tinhamdeser“essencialmentebeneficentes”,desvirtuando-se“aidéiadeemancipação”semprequedeixassemoseucaráterhumanitárioesetornassem“mercantis”.Quantoàassociaçãoempauta,oMinistériodaAgriculturaencaminharaospapéismarcandoposiçãocontráriaàaprovaçãodequalquerentidadedessetipoatéqueogovernofizesseaprovarlegislaçãoespecífica“ondesejamexpressasasbases,sobreasquaisdevemfuncionarassociedadesdeemancipaçãoeassociaçõesincumbidasdotratamentoeeducaçãodosfilhoslivresdemulherescrava”.Maismoderados,osconselheiroslevantaramumapencaderestriçõesemandaramqueosproponentesdasociedadeapresentassemnovamenteopedido,comasrevisõesexigidas,paranovaavaliação.

Emsuma,ogovernoimperialpassouadécadade1870nacordabamba,assustadocomapossibilidadedetrabalhadoresnegrostomaremasrédeasdoprocessodeemancipação,preocupadoemevitarqueaânsiadeliberdadedosescravospropiciasseaespeculaçãodos“capitalistas”,esforçando-separafazervalerasnovasprerrogativasdopoderpúblicosobreasrelaçõesentresenhoreseescravossemaumentaratensãosocial.Alquimiadifícil,incerta,lembrandoaindeterminaçãohistóricaàqualsereferiuJoaquimNabucoaotratardaleide1871.Detodoomaterialapresentadonestaparte,fiqueiensimesmadocomofatodeogovernoimperialopor-seàorganizaçãodesociedadesdetrabalhadoresnegrosalegando,entreoutrascoisas,quemembrosdesuasdiretoriasnãosabiamlernemescrever.Seéassim,oquesediscutiu,duranteosanos1870,arespeitodainstruçãoprimáriadosfilhoslivresdamulherescrava?Eoquesedecidiu,afinal,arespeitodosdireitospolíticosdessaspessoas?Foramconsideradaslibertasouingênuas?Retomemosessaquestão,quiçáamaisreveladoradosdescaminhosquenoslevaramàsociedadebrasileiracontemporânea,talcomoé.

desfecho:cidadaniaeliteraturanasintaxe

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daexclusão

Comovimos(algumasdezenasdepáginasatrás),oapelidodosfilhoslivresdamulherescravaprovocoucontrovérsiaacirradaduranteoprocessodediscussãodaleide1871.Àparteoproblemadaindenizaçãoaossenhoresdasescravas,assuntodesomenosimportânciaparaoutrosquenãoosprópriossenhores,oqueestavaemjogoeraoalcancedosdireitospolíticosaseremusufruídosporessaspessoas.Selibertos,ficavampodadospeloconteúdodocapítulovi,emespecialoartigo94,daConstituiçãode1824.Naseleiçõesindiretasemdoisturnosláestatuídas,teriamdireitoavotarnaseleiçõesprimáriasouparoquiais,masestavamexcluídosdeparticipaçãonaescolhadosrepresentantesprovinciaisenacionais.Emoutraspalavras,eramvotantes,porémnãoeleitoresouelegíveis.Váriasfunçõespúblicasàsquaisseascendiaporeleiçãoficavam-lhesassiminterditas.Seingênuos,era-lhespossívelexercerplenamenteacidadania,umavezsatisfeitasasoutrasexigênciasestabelecidasnaConstituiçãoparatodaapopulaçãolivre—principalmentequantoàsváriasfaixasde“rendalíquidaanual”necessáriasàelegibilidadeparafunçõeslegislativasejudiciáriasemdiversosníveis(desnecessáriomencionaraexclusãototaldasmulheres,poisosvarõesestudadossequeraventavamtalhipótesenoperíodo,salvoumououtroexcêntrico187).

Oepíteto“liberto”,portanto,tinhaoseupreço.Emagostode1876,aseçãoImpériodoConselhodeEstado—compostaàépocaporTeixeiraJúnior,PaulinoJoséSoaresdeSouzaeDiasdeCarvalho—apreciaraumcasodelicadoarespeitodasrestriçõesconstitucionaisaosdireitospolíticosdoslibertos.188OcidadãoCaetanoLuizMachado,residentenafreguesiadeJurujuba,Niterói,apresentararecursoaopresidentedaprovínciadoRiodeJaneirocontraaeleiçãodeJoãoJosédaCostaparajuizdepazdareferidafreguesia.Joãohaviaganhoaeleição,prestadojuramentoeexerciaocargohaviaaproximadamentedoisanosquandoCaetanoimpetrouotalrecursoalegandoqueeleeraliberto,logoinelegívelparaafunção.Oreclamanteevocavaalegislaçãoeleitoralvigenteeoartigo94daConstituiçãoimperial,alémdeapresentarváriosdocumentosparacomprovarqueojuizdepazhavianascidodeventreescravo.

Osdocumentosanexadoscontamumahistórianãoincomumnaquelestempos.JoãoJosédaCostaseria,naverdade,João,filhodeAlbana,escravadeFranciscoDominguesdaCosta.Osenhorcompareceuaoatodebatismoda

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criançae“dissequedesualegítimavontadedavaliberdadeaoditoinocenteJoão”.ParaprovarqueojuizdepazeleitoeofilhodaescravaAlbanaeramamesmapessoa,CaetanoajuntavacertidãodaverbatestamentáriadeFranciscoDominguesdaCosta,“emquedeclaratertidoentreoutrosfilhosnaturais,umdenomeJoãofilhodeAlbanacrioula”(grifodooriginal).Alémdisso,haviaumatestadodovigáriodafreguesiadeNossaSenhoradaConceiçãodaJurujuba,“declarandoqueoseuparoquianoJoãoJosédaCostaproprietáriodafazendaPendutiba,éumdosherdeirosdofinadoFranciscoJoséDomingues,equelheconstaporouvirdizerqueelenasceradeventreescravo”(grifodooriginal).

Ahistóriailustrabemadiferença,quantoaoexercíciodedireitospolíticoseaocupaçãodecargospúblicoseletivos,entrenascerescravo,paratornar-selibertoemseguida,ejánasceringênuo,assuntotãodebatidoem1871.Nesseepisódio,oassuntoeramelindrosoporqueJoãoJosédaCostatornara-sefazendeiroimportantedalocalidade;ademais,aconseqüênciadeseaceitaraqueixadeCaetanoseria“aprivaçãodeumajurisdiçãoconferidaaumcidadãopelosseuscomparoquianos”.Aspartesgrifadaspelosconselheirosemseuparecerderam-lhesumasaída.Averbatestamentáriareferia-seaAlbana,mãedeJoão,apenascomo“crioula”,logonãodiziaterminantementequeessemeninoeraomesmoJoão,filhodaescravaAlbana,libertadoporFranciscoDominguesnapiabatismal.Afinal,osenhorconfessavatertido“outrosfilhosnaturais”,logosabe-seláquantos“Joões”haviaespalhadopelomundo,nemqualeraprecisamenteacondiçãodenascimentodaquelequeestavaaocentrodesseqüiproquó.Ovigárioatestavaapenasquelheconstava“porouvirdizer”queojuizdepaznasceradeventreescravo.Osconselheirossaírampelatangenteedeixaramocasoindefinido,masobservaramquehavia“indíciosveementessobreofato”eque,“provadaacondiçãodeliberto,queseatribuiaocidadãoJoãoJosédaCosta,pareceàSeção,quedevesernulaaeleiçãodoreferidocidadãoparaocargodeJuizdePaz”.Nãoimportaquãoabastado,Joãotinhadeconvivercomodisse-que-dissesobreassuasorigensecomousoqueeventuaisadversáriospolíticospoderiamfazerdesuasupostacondiçãodeliberto.

ÉóbvioqueJoãoalcançaraumaposiçãosocialraríssimaparaumfilhodeescrava—serealmenteoera—,logoosconselheirosentendiammaisfacilmenteosincômodospolíticoscausadosaalguémque,comoelespróprios,fizera-segrandesenhordeterrasepessoas.Pareciapossívelabordaroepisódio

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deJurujubacomocasoisolado,lamentável,porémincapazdeproduzirconseqüênciaspolíticasduradouras.Defato,todaahistóriasugerequeaformasocialmentedesejáveldelidarcomsituaçõescomoessaconsistiaemsilenciarsobreoassunto.Feitofazendeiro,oJoãodaPendutibaadquiriadireitoaumoutropassado,distantedaescravidãoedadependênciapessoal,compatívelcomasuanovasituação.ComoopaideBrásCubas,tinhaaprerrogativadeinventarumaoutragenealogiaparasipróprioesuafamília;àsuaroda,todosacreditariamnasorigenssociaisalegadasportãogalhardocavalheiro,oufingiriamacreditar,oquequasesempredavanomesmoepareciaessencialparaapazsocial.ComodiziaJacóTavares,amigodeBrás,“averacidadeabsolutaeraincompatívelcomumestadosocialadiantado,equeapazsocialsósepodiaobteràcustadeembaçadelasrecíprocas”.189

Aquestãodacidadaniadosmilharesdefilhosdeescravasnascidoslivresapartirde28desetembrode1871erabemoutrahistória,sobreaqualserianecessárioagirresolutamente,aindaque,aofimeaocabo,oobjetivofosseproduzirsilêncio.Pararetomarofiodameada,bastarelembrarPimentaBueno,entãoviscondedeSãoVicente,eaexplicaçãoquedeuparaasuaopçãoemsilenciarsobreacondiçãodosfilhoslivresdasmulheresescravasemseusprojetossobreemancipaçãodebatidosnoConselhodeEstadoem1867.Escolheradescrevê-loscomo“decondiçãolivre”,deixando“umadúvidasemsolução,eeraadeseremingênuosoulibertos”.Diziaqueumadefiniçãosobreoassuntopodiaesperaroutrosvinteanos,havendotempo,portanto,para“vercomoascousassepassam,ederesolverconvenientemente”.190Jásabemosqueoslegisladoresde1871adotaramafórmuladeSãoVicente.

Restaver,então,“comoascousas”sepassaram.OprimeirorelatóriodoMinistériodaAgriculturaapósoiníciodavigênciadalei,deabrilde1872,abordadúvidassurgidasquantoàaplicaçãodoparágrafoqueobrigavaospárocos“aterlivrosespeciaisparaoregistrodosnascimentoseóbitosdosfilhosdeescravas”.Algunspadresqueriamsabercomoverificaradataprecisadenascimentodosindivíduoslevadosàpiabatismal.Ouseja,nãotinhamcomodetectarpossíveisfraudesdesenhoresque,paraescaparaosefeitosdalei,declarassemonascimentodefilhosdesuasescravasemdatasanterioresa28desetembrode1871.Aorientaçãodoministro,obarãodeItaúna,aospárocosfoiparaquesimplesmenteacreditassemnapalavradossenhores.Deixassemoassunto“àprópriaconsciência”deles,poisque“ocaráterbrasileiroéavessoa

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fraudesrepugnantesaossentimentosreligiosos”.Oministroinformavatambémquejáremeteraàsparóquiasoslivrosnecessáriosà“escrituraçãodoassentamentodosnascimentoseóbitosdoslibertos”(grifomeu).Maisadiante,aindatratandodematrícula,refere-seaessascriançascomoos“filhosdemulherescrava,livresemvirtudedamesmalei”.Emsuma,obarãooscilaentreafórmulalacunardaleieoepítetode“libertos”,opreferidopeloslegisladoresquehaviamopostoresistênciaaoprojeto.191

Talvezfosseummaucomeço,aomenosparaosqueapostavamsinceramentenaexecuçãodaleide1871.Ofato,todavia,équeorelatóriodobarãodeItaúnaconsistenoúnicoexemploqueencontrei,emtodoomaterialcompulsado,dedocumentooficialqueapelida“libertos”aosfilhosdamulherescrava.Nosdemais,atendênciafoioscilarentre“filhoslivresdemulherescrava”—ou“filhosdamulherescrava,livrespelalei”—e“ingênuos”.Aprimeiraalternativaprevaleceemdocumentos,digamos,demaiorsolenidadelegal,comoosregulamentosde1odedezembrode1871ede13denovembrode1872.TambémépredominantenosrelatóriosdoMinistériodaAgricultura,nosavisoseportariasdogoverno.

Jáháaqui,porém,distinçõesimportantesafazer.ÉverdadequeosrelatóriosimediatamenteposterioresaodobarãodeItaúnajamaischamam“libertos”aosfilhosdasescravas.Tambéméveroquejamaisosapelidam“ingênuos”.OsministrosFranciscodoRegoBarrosBarretoeJoséFernandesdaCostaPereiraJúniorutilizamapenas“filhoslivresdemulherescrava”.192Issonoslevaameadosdosanos1870,eadenominaçãode“ingênuos”pareceausentedessesdocumentosoficiais,salvoalgumlapsodeminhaparte.Éfácilconstatar,todavia,adiferençaentreosrelatóriosdeThomazJoséCoelhodeAlmeida,oministroseguinte,eosanteriores.Jáemseuprimeirorelatório,datadode15dejaneirode1877,aparece“filhoslivresdemulherescrava”nocorpodotexto,masoquadroestatísticosobreoassuntoapresentaacolunaintitulada“Ingênuosmatriculados”.193Osanexosriquíssimosdorelatóriotrazemumapencadeavisosecircularessobreosfilhosdasescravas,expedidospelanossaconhecidasegundaseçãodaDiretoriadaAgricultura.Forammotivados,entreoutrascoisas,pornotíciasdequehavialocalidadesnasquaisoprimeiroregistrodenascimentodessesmenoresocorreramaisdetrêsanosapósapromulgaçãodaleide28desetembro,oquenãoera“verossímil”,segundoumdessesdocumentos.Aexpressão“filhoslivresdemulherescrava”é

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anormaemtodoseles,nãoocorrendo,emnenhummomento,apalavra“ingênuos”,presentenotalquadroestatístico.194

AmarémudaradetodoquandodosegundorelatóriodeThomazCoelho,de1odejunhode1877.Jánoíndice,maisdetalhadodessavez,temosoitemii,intitulado“Educaçãodosingênuos”,eoitemiv,“Matrículadeingênuoseregistrodenascimentoseóbitos”.Aexpressão“filhoslivresdemulherescrava”sequeraparecenoíndice.Noitemii,deumapáginaemeia,“ingênuos”estánotítuloeumaveznocorpodotexto,“filhoslivresdemulherescrava”constaumavez,e“menores”ocorretrêsvezes.Noitemiv,noutrapáginaemeia,“ingênuos”estánotítuloeserepetetrêsvezesnotexto,e“filhoslivresdemulherescrava”constaumasóvez.195Nosrelatóriosdosministrosseguintes,taloscilaçãoentre“ingênuos”e“filhoslivresdemulherescrava”torna-secomum.Aoqueparece,ostermossãoutilizadoscomosinônimos,paravariaroestilonostextosdosbarnabés.Permanece,contudo,apráticadeutilizar“filhoslivresdemulherescrava”emdocumentosmaisnormativos,comoavisosdoPoderExecutivo,masmesmonessesocorreàsvezesoapelidode“ingênuos”.196

Inevitávelconstatar,enfim,queaexpressão“ingênuos”ganhoutrânsitonosdocumentosoficiaisduranteoperíododeThomazCoelhonoMinistériodaAgricultura.Porconseguinte,tal“viradalingüística”(linguisticturn?)coincidetambémcomoiníciodoexercíciodachefiadasegundaseçãoporMachadodeAssis.Meracoincidência?TeveMachadoalgumapartenisso?Afinal,temumchefedeseçãoalgoavercomaformaderedigirofíciosemsuarepartição?Arespostapodevariar;logo,devemostalvezbisbilhotaralgoescritoeassinadoporelenoperíodo,paraverquaisosseususoslingüísticosnamatéria.

Emjunhode1877,aseçãoImpériodoConselhodeEstadoapreciouconsultaencaminhadapelasegundaseçãodaDiretoriadaAgriculturaarespeitoda“conveniênciadacriaçãodeumlivroespecialparaaverbaçãodeingênuosmudadosdeummunicípioparaoutro”.197Oministériohaviarecebidocorrespondênciadeautoridadesmunicipaisacusandofaltadeespaço,nolivrodematrículadosfilhosdasescravas,parataisanotações.Emseuparecer,osconselheirostranscrevemtrechosdodebateinternoocorridonopróprioMinistériodaAgricultura.AopiniãodeMachadodeAssisforadequea“faltadeumlivroespecialparaaverbaçãodeingênuos,ésemdúvidaimportante.Amudançadoingênuodomunicípioemquefoimatriculadoparaoutroficaconstandodolivrodamatrícula;maséesseoúnicovestígio;amudançado

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segundoparaoterceiro,doterceiroparaoquartomunicípionãoéaverbadaemnenhumlugar”.Maisadiante,diziaqueaúnicaanotaçãoexigidapeloregulamentodedezembrode1871era“adofalecimentodoingênuo”.Eassimvai,comapalavra“ingênuo”aparecendoseisvezesnumtrechodepoucomaisdeumapágina;aexpressão“filhoslivresdemulherescrava”ocorreumavez,sintomaticamentequandoochefedeseçãoresumeostermosdadúvidaquelhehaviachegadosobreoassunto,emofíciodeumcoletormunicipal.

Quantoaoméritodaquestão,Machadofoicontestadopeloseusuperiorimediato,CastroSilva,odiretordaAgricultura,paraquemacriaçãodesemelhantelivronãoparecianecessária.Achavaquenãohaviainconvenienteemanotarnomesmolivro“osingênuosnascidosnomunicípio”eaquelesparalámudados,poisqueaaverbaçãoequivaliaaumanovamatrículanessescasos.Odiretoresclareciaque,quantoaos“filhoslivresdemulherescrava”,aleideterminavaqueoslivrosdematrículaficassemabertosatéquefossedetodoextintaaescravidãonoImpério.Emsuma,apropostadasegundaseçãoseriatalvezexcessodezelo,eaumentariasobremaneiraaburocracia.OprocuradordaCoroatambémargumentouqueaadoçãodotal“livroespecialparaasaverbaçõesdosingênuosmudadosdeoutrosmunicípios”era“desnecessária”e“trariamaiorconfusão”.OsconselheirosdeEstadolimitaram-seaconcordarcomodiretordaAgriculturaecomoprocuradordaCoroa,opondo-seassimàmedidadefendidaporMachadodeAssis.Emtodosessesdocumentosapalavra“ingênuos”apareceumaoumaisvezes,destacando-seochefedasegundaseçãoapenasporutilizá-ladeformabastanterepetitiva.Restanotarqueogovernoimperialresolveuapendengaemavisode6desetembrode1877,deautoriaexpressadasegundaseçãodaDiretoriadaAgricultura,noqualsedizque“asaverbaçõesrelativasaosfilhoslivresdemulherescrava,mudadosdeumparaoutromunicípio,devemserlançadasnoprópriolivrodamatrícula”;logoadiante,explicavaquenãohaviainconvenienteem“inscreverdomesmomodoosingênuos[grifomeu]quevêmresidiremummunicípioeosquenelejáresidem”.198Oapelido“ingênuos”ematoformaldoPoderExecutivoajudavaaconsolidar,quemsabe,olinguisticturn.

Enfim,eaindaqueaquestãopermanecessesemsoluçãodopontodevistalegal,haviafortetendênciaaconsideraringênuososfilhoslivresdamulherescrava—aomenoslápelofinaldosanos1870.Vingoutalvezaversãodacomissãoparlamentarde1871,jácitadamuitoatrás,segundoaqualasupressão

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dapalavra“ingênuos”noprojetodeleiforaapenasparaevitar“redundância”,poisdoutromodonãopodiamservistosessesmenores.199Quantoaospróprioscostumesparlamentares,aimpressãoseconfirmanodebate,ocorridoem1879,sobreprojetodeleiqueestabeleciacolôniasagrícolaspararecepçãodos“ingênuoslibertadossegundoaleide1871”.Comosabemos,aleide28desetembrodeterminavaqueosfilhoslivresdasescravasficassemempoderdossenhoresdesuasmães,“osquaistinhamaobrigaçãodecriá-losetratá-los”,atéaidadedeoitoanoscompletos.Nessaocasião,osproprietáriosdeveriamescolherentreutilizarosserviçosdosmenoresatéqueelescompletassem21anosouencaminhá-losaogovernoimperial,recebendonestecasoaindenizaçãode600mil-réis.Ocontextodadiscussãosobrecolôniasagrícolasnoprimeirosemestrede1879eraaiminênciadeasprimeirascriançastornadaslivresemvirtudedaleide1871chegaremaosoitoanosdeidade.Poisbem,osparlamentaresutilizamapalavra“ingênuos”demodocorrenteduranteaapreciaçãodoreferidoprojeto.200

Ingênuosquefossem,hámuitomaisaobservarsobreodestinodessaspessoas.Nãohádúvida,porexemplo,queossenhoresoptarammaciçamentepelosserviçosdosmenoresatéos21anos,emvezdeentregá-losaogovernoaocompletaremoitoanos.OsdadosapresentadosnosrelatóriosministeriaisdaAgriculturasãoimpressionantes.Emrelatóriodofinalde1878,portantoàsvésperasdooitavoaniversáriodasprimeirascrianças,oministroCansansãodeSinimbufaziacontasealarmava-secomodespreparodogovernoparaenfrentaroquepoderiavir.Estimavaem192milosingênuosmatriculadosaté28desetembrode1879,oquedavaumamédiade24milmenoresporanosoprandovelinhasdeoitoprimaverasapartirdeentão.Seapenasumasextapartedessascriançaschegasseaogovernoemtrocadeindenização,aindaassimopoderpúblicoteriadeacolheredardestinoacercade4milfilhosdeescravasporano,anosafio.Seriaocaos,eoministropiegasdepositavaassuasesperançasnaboaíndoledossenhoresbrasileiros,queteriam“naturalescrúpulo”em,“atrocodeumaindenização”,“condenarasmãesescravasasepararem-sedosfilhosquecompletematenraidadede8anos”.201NãoseisealógicadeCansansãodeSinimbufoiaquefuncionou,masofatoéqueossenhoresnãoentregaramascriançasaogoverno:numrelatórioministerialdoiníciodadécadade1880,escolhidoaesmo,vemosquehaviamsidomatriculados,comoingênuos,181115meninose182192meninas,numtotal

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de363307crianças.Apenas113dessesmenorestinhamsidoencaminhadosaogovernoimperial!202

EmvezdepensarcomoSinimbu,fiadonosentimentomaternaldosproprietários(sic),achoqueessesnúmerostestemunhamoapegocontinuadodossenhoresàescravidão,ouaoqueaindarestavadela(enãoerapouco),nofinaldadécadade1870eanos1880adentro.Afinal,seriatoliceconsideraressascriançasdeoutromodoquenãocativasdefatoatéquechegassemàidadede21anos,quandoadquiririamodireitolegaldeirparaondequisessem.Talveznão—possoestarjulgandomuitoseveramentesenhoresdetãoboaíndole.Resta-meentãopedirdenovoaindulgênciadoleitor,quiçápelaúltimaveznestetexto,paraacompanharmaisaspectosburocráticosconcernentesàaplicaçãodaleide1871,naexpectativadequepossamesclarecermelhorosmotivospelosquaisosingênuospermaneceramtãomaciçamentesobaautoridadedossenhoresdesuasmães.

Todossabemosqueacrisenasfinançaspúblicasbrasileirasésempiterna—enlaçapassado,presenteefuturonumacorrenteinquebrantável.Nadécadade1870,atribuíam-naàrecenteGuerradoParaguai.QuebradopoisestavaoTesouroquandooEstadoimperialtinhadeaplicaraleide28desetembro.Logo,nãohaviarecursosparaqueopoderpúblicoassumisseoônusdereceberecuidardetodosaquelesmilharesdefilhoslivresdemulherescrava.Umaalternativaseriarecorreraos“particulares”,incentivá-losafundarestabelecimentosparaaeducaçãodeingênuos.

Emjunhode1880,aseçãoImpériodoConselhodeEstadoexaminourequerimentodeFranciscoCasemiroAlbertodaCosta,interessadoem“organizarumacompanhiadestinadaàeducaçãoeestabelecimentodosfilhoslivresdemulherescrava”.203AconsultaforaencaminhadapelasegundaseçãodaDiretoriadaAgriculturae,emseuparecer,osconselheirosviscondedeBomRetiro,PaulinodeSouzaeDiasdeCarvalhotranscreveramnaíntegraamanifestaçãodeMachadodeAssissobreoassunto,poisqueesteofizera“comtodaaclareza”eem“bemdeduzidoparecer”.FranciscoCostapropunha-sea“tomarconta”tantodeingênuoscedidosaoEstadoquantodaquelesquelhefossem“diretamenteentreguespelossenhores”.Ochefedeseçãoconsideravaoprojeto“assazcomplexo”.Acompanhiapropostatinhaaomesmotempocaráter“agrícolaeindustrial”e“beneficente”.Daria“educaçãoprofissional”aosmenores,quedividiriaemduasturmassegundofaixasdeidade—“de2a7

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anosede8a20”.Emtrocadocapitalempregado,de15milcontosderéis,pediaumapencadefavores:“isençãodedireitos”nacompradetodoomaterialnecessárioaoestabelecimento,“isençãodetodososimpostosgeraiseprovinciais,nosprimeiros20anos”,preferêncianaexecuçãodeobrascontratadaspeloEstado,eassimpordiante.Aoqueparece,tratava-sedeumagrandeempreiteiradeobras,dispostaagarantirassuascondiçõesdecompetitividadenomercadopormeiodoempregodamão-de-obrabaratadosingênuosedaobtençãodevantagensgovernamentais.Machadoobservouqueaidéiadereceberdiretamentedossenhoresdasmãesosingênuosmenoresdeoitoanoscontrariava“disposiçõeslegais”.Defato,aleideterminavaquetaissenhorestinhamaobrigaçãodeficarcomascriançasatéquecompletassemoitoanosdeidade,evitando-seassimaseparaçãodemãesefilhos.Eleconcluique“sendoestapartedefavoresessencialaoplanodaCompanhia,peçolicençaparanãomeocuparcomasoutrascláusulas”daproposta.O“pedidodosfavores”era“bastanteparaindeferirorequerimento”,poisquealgunscontrariavamdispositivoslegaisvigentes,outrosdependiamde“autorizaçãolegislativa”,poisexcediamaalçadadoPoderExecutivo.

OparecerdeMachadofazmençãoaduasoutras“consultas”aoConselhodeEstado,ambasde1877.Numadelas,háumlongoarrazoadoarespeitodoproblemadosingênuosquepoderiamsertransferidosparaocontroledogovernoimperial.204PensoqueodocumentoexpõeasdiretrizesdoPoderExecutivoquantoaotemanosanosseguintes.Oobjetoespecíficodaconsultaeraumpedidodelicençae“auxílios”paraestabelecer,naprovínciadoRiodeJaneiro,umafazenda-escola.DessaveznãotemosachancedelertranscriçõesdepareceresdaDiretoriadaAgricultura;resta-nos,semapoiooucontradita,otextodosconselheiros.Apropostaéconsiderada“inadmissível”,jádeinício,“pelosexageradosônusquetrariaaoEstado”.Osconselheirosenfatizamdoisoutrospontos.Primeiro,dizemqueomelhoralvitreseriaqueos“patronosdosIngênuos”ficassemcomelesatéquecompletassem21anos.Essacondutafariamaissentidodianteda“escassezdebraços”que“entorpeceodesenvolvimento”dopaís.Entregarosmenoresaogovernoimperial,paraseremeducadosemestabelecimentospúblicos,ouautorizadospelopoderpúblico,significavaprivar“asindústriasdosmelhorestrabalhadoreseoperáriosquepodemter”.Alémdisso,rompiam-se“oslaçosdafamíliaescrava”.Arrematamesseaspectocomocomentáriodequeseria,“semdúvida,preferívelpromoverapermanênciados

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ingênuosempoderdeseuspatronos”,porquecomisso“poupariaoEstadoosônusaqueestáobrigadopelaLeide28desetembrode1871”.Ooutropontodizrespeitoàintençãodosproponentesemutilizarescravoseingênuosladoaladoemsuafazenda-escola.OsconselheirosexplicamqueogovernoimperialvinhaadotandoacondutadeincentivardetodasasformasoempregodetrabalhadoreslivresnosestabelecimentospúblicosenasobrascontratadaspeloEstado.Assim,nãofaziasentidoque“umaempresafundadaaexpensasdoscofrespúblicos”e“destinadaàeducaçãodemenoreslivres”fossebaseadanotrabalhoescravo.Segundoeles,“oespetáculodosvícioseinconvenientesdotrabalhoservilnãosãoexemplosedificantesparaaaprendizagemindustrialdainfância”.

Confesso-meintrigadocomtãoenfáticaspalavrasdosconselheiros.Afinal,elescriticamosautoresdapropostaemnomedeumasupostaorientaçãogeralcontráriaàcoexistênciadeescravosetrabalhadoreslivres—nocasoespecífico,filhoslivresdeescravas—nummesmoestabelecimentoagrícolaouindustrial;aomesmotempo,incentivamosproprietáriosdeescravosautilizarosserviçosdosingênuosatéqueatingissemaidadede21anos.Poisentão,nessecaso,nãorecomendavamelesprópriosqueescravoseingênuostrabalhassemjuntosnasmesmasfazendas?Quefazerparaarredardavistadessesmenoresotal“espetáculodosvícios”inerenteàescravidão?Achoqueacontradiçãodoprincípiogeraljustificar-se-iapormeiodoramerrãosenhorialcostumeirosobre“laçosdefamília”.Nãoconvinhaqueasmãesescravaseseusfilhoslivresfossemseparadosem“tenraidade”.Desnecessáriodizer,todavia,queeventuais“concessões”àfamíliaescravaeramantesconquistasdoscativosdoquebondadesenhorial.Otráficointerprovincialdeescravoshaviaaumentadoastensõessociaisinerentesàinstituiçãoservil,eoscativosnordestinosviolentamenteseparadosdesuasfamíliasecomunidadesparatrabalharnasfazendasdecafédoSudestealimentaramalegendasenhorialdo“negromauvindodoNorte”.205Seuscrimeserevoltascoletivasprovocaramnosproprietáriostaissentimentosgenerosospelafamíliaescrava.

Opontoqueaquicumprediscutiréoutro.Tudooquejávimossugerequenofinaldosanos1870osfilhoslivresdasescravaseram“tidosporingênuos”epermaneciamsobodomíniodossenhoresdesuasmães.Seassimera,oquediferençavaasituaçãodessesingênuosdaqueladosescravoscomquemconviviamnasfazendas?Oquepoderiatersidodiferentese,porhipótese,os

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senhoreshouvessemporbemabrirmãodascriançaseentregá-lasaoEstadoquandocompletassemoitoanos?

Emnovembrode1877,aseçãoImpériodoConselhodeEstadotevedeexaminaraseguintequestão,quelheforaencaminhadapelasegundaseçãodaDiretoriadaAgricultura:

Estatuindooart.67doRegulamentoaprovadopeloDecretono5135de13denovembrode1872queoJuízodeÓrfãosfiscalizeainstruçãoprimáriadosmenoresfilhoslivresdemulherescrava,querexigindodasassociações,dascasasdeexpostosedosparticularesocumprimentodessaobrigação,querimpondo-aaoslocatáriosdeserviçosnosrespectivoscontratos,enãoestandoincluídaentreasobrigaçõesimpostasaossenhoresdasmãesdosditosmenoresadelhesdartalinstrução,podeentender-se,emvistadoscitadosartigos,quetambémaossenhoresdasmãescorreaobrigaçãodequesetrata?206

Paratraduzirojargãoburocrático,bastapensarquealeide1871dividiraos

filhoslivresdasescravasemduascategorias.Porumlado,haviaaquelesquepermaneceriamsobaautoridadedosproprietáriosdasmães;poroutro,haviaosqueseriamencaminhadosaogovernoimperial—porabandonodossenhoresouporqueestesoptassempelaindenizaçãoquandoosmenoreschegassemaosoitoanos.Quantoaosingênuosdosegundogrupo,ogovernoimperialreservava-seodireitodeconduzi-losataisassociaçõesfundadasparaessefim;nafaltadestas,poderiamsertransferidosaparticularesoua“casasdeexpostos”.Osjuízesdeórfãosficavamencarregadosdefiscalizartudooquediziarespeitoaosingênuossobaproteçãodogoverno,especialmentequantoàsobrigaçõesestabelecidasemleiparaasassociações,particularesecasasdeexpostosqueosrecebessem.Entretaisobrigaçõesestavaadeprover“instruçãoprimária”e“educaçãoreligiosa”aospequenos.Assim,asegundaseçãoqueriasaberseosingênuosdaprimeiracategoriadeveriamreceberomesmotipodeinstrução,aserprovidenciada,nocaso,pelossenhoresdesuasmães.

ÉdifíciladivinharosmotivosdasegundaseçãoaoenviarsemelhanteconsultaaoConselhodeEstado.Poderianãofazê-lo,comoacontecianamaioriaesmagadoradosassuntossubmetidosaoministério.A“dúvida”estavaresolvidanosprópriostermosdaconsulta,poisquejádizianãoestar“incluídaentreasobrigaçõesimpostasaossenhoresdasmãesdosditosmenoresadelhesdartalinstrução”.Nãotemos,denovo,atranscriçãodepareceresinternosdoministériosobreoassunto,masosconselheirosapressam-seemnotarqueopróprio“dignochefedasegundaseçãodaSecretariadeEstadodosNegóciosd’Agricultura”reconheciaser“evidente”queos“particulares”obrigadosa

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providenciarainstruçãoprimáriadeingênuoseramapenasaquelesqueosrecebiamdasmãosdogoverno,nãoossenhoresdasmãesescravas.Aintençãodolegisladorestavaclara,eosconselheirosenfatizamquenãocabiaagoraexigirdossenhoresaquiloaqueporleinãoestavamobrigados.Desculpem-me,pois,comosediz,perguntarnãoofende,massetudoestavatãoclaro,porqueasegundaseçãoencaminhoutalconsultaaoConselhodeEstado?

Umfatocuriosoéque,apesardaconclusãoperemptóriadosconselheirosdequeosjuízesdeórfãosnãotinhamaatribuiçãodecobrardossenhoresdasmãesescravasainstruçãoprimáriadosingênuossoboseudomínio,umavisodoPoderExecutivocomaresoluçãodoproblemasóaparecequasetrêsanosdepoisdaconsulta—em13deabrilde1880.207Ocompassodeesperadeveu-se,provavelmente,aosdebatesemcurso,noparlamento,sobreinstruçãoprimáriaedefiniçãodedireitosdecidadania(reformaconstitucional).Vejamosissomaisdeperto,acomeçarpeladivulgação,emagostode1876,dosresultadosfinaisdorecenseamentode1872.

Osdadossobrealfabetizaçãoconstantesdocensode1872tiveramenormerepercussãonaimprensaenoparlamento.208Aoqueparece,ninguémsabiaquehabitavaumpaísdeanalfabetos,ounãohaviaatéentãoumaidéiaprecisadamagnitudedacoisa.MachadodeAssiscomentouasituaçãoemcrônicade15deagostode1876,eofezdemodoaenfatizararelaçãoentrealfabetizaçãoecidadania.209Numtrechodacrônica,Manassés,onarrador,imaginaumaconversaentre“umhomem,oleitoroueu”e“oalgarismo”.Observaantesqueadmiraalgarismosporqueelessão“sinceros,francos,ingênuos”.Enquantoletrasexistemparaconstruirfrases,algarismosnãotêmfrasesnemretórica.Enfim,chamamascoisas“peloseunome,àsvezesumnomefeio”.DisseoSr.Algarismo:

Anaçãonãosabeler.Hásó30%dosindivíduosresidentesnestepaísquepodemler;dessesuns9%nãolêemletrademão.70%jazememprofundaignorância.NãosaberleréignoraroSr.MeirelesQueles;énãosaberoqueelevale,oqueelepensa,oqueelequer;nemserealmentepodequereroupensar.70%doscidadãosvotamdomesmomodoquerespiram:semsaberporquenemoquê.VotamcomovãoàfestadaPenha,—pordivertimento.AConstituiçãoéparaelesumacoisainteiramentedesconhecida.Estãoprontosparatudo:umarevoluçãoouumgolpedeEstado.Oprimeiroproblemanapassageméinterpretararetóricadonarradorao

apresentartaisalgarismos.Issoporqueosdadosdocensonãoforamdivulgadosexatamentecomoaparecemnacrônica.Oquevieraapúblicoforaaindapior:

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entreapopulaçãolivre,apenas23,43%doshomense13,43%dasmulheressabiamlereescrever,numamédiade18,56%dealfabetizados;incluídososescravos,essamédiafinaldesciapara15,75%.210Nãoseicomoocronistachegouaos30%dequefala.Comootextodeslizarapidamentedaalfabetizaçãoparaacidadania,épossívelqueos30%digamrespeitoapenasaosindivíduoscompossibilidadedeexercíciodedireitospolíticossegundoaConstituiçãode1824—homenslivreseadultos.Dequalquermodo,aoutilizar-sedosnúmeroscomessetipodeviéspolítico,oSr.Algarismoexprimiavisão,bastantecomumàépoca,dequesaberlereescrevererarequisitoparaasvirtudescívicas.Talopiniãoconstituíra-se“verdadeaxiomática”,adotadaportodososespíritosindependentementedefiliaçãopartidária,segundoSérgioBuarquedeHolanda.211Talsituaçãocontrastavacomavigenteentreosconstituintesde1823,quenãocogitaramincluirrestriçõesaosdireitospolíticosdeanalfabetos,numpaísemquetalcondiçãoabundava.Nadécadade1870,generalizara-seoconceitodequeaalfabetizaçãodoscidadãoseraessencialparamoralizaravidapolíticadopaís.MachadodeAssisdecertocompartilhavaessacrençadeManassésetodososoutros.Otrechodacrônicasobreasconseqüênciaspolíticasdosdadosdocensode1872éprecedidodegracejonoqualosanalfabetossãotidospor“burros”.Piadinhamuitosemgraça,masreveladora,talvez,depreconceitogeral.

Éprovável,enfim,queaconsultadasegundaseçãosobreinstruçãoprimáriadeingênuosfossemododerepercutir,nointeriordaadministraçãopública,osdadosdesapontadoresdocensode1872.Numcontextoemquealfabetizaçãoeboacidadaniacaminhavamjuntas,eemqueosfilhosdasescravasestavamingênuoselogocompossibilidadedeplenogozodedireitospolíticosnofuturo,segundoaConstituiçãode1824,tornava-seproblemaofatodeessesmenoresnãoteremacessoàinstruçãoprimária.Poucosmesesdepois,emjaneirode1878,sobeaopoderogabinetechefiadoporCansansãodeSinimbu,quemarcavaoretornodoPartidoLiberalaopoderapósdezanosdegeladeira.Eravozcorrentequeoprogramadoministérioreduzia-seaumitem:areformaeleitoral,dita“aidéiafixa”deSinimbu.Achava-sequetalreforma,aoestabelecereleiçõesdiretas,seriapanacéiaparatodososmalesdopaís.212O“povo”seriachamadoàresponsabilidadepolíticadireta,eliminando-seassimasfraudessupostamentecaracterísticasdaseleiçõesemdoisníveis.

Sinimbupassoulogoagovernarcomumacâmarainteiramenteconstituída

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porparlamentaresligadosaoPartidoLiberal.213Naseleiçõesqueseseguiramàsuaascensão,vigoraraavelhamáximapolíticaimperialdequeopartidonogovernosempreesmagavaaoposiçãonasurnas,fossecomofosse.Afraude,aintimidaçãoeocacete,portanto,foramosmeiosdegarantiraogovernocondiçõesparaaprovarreformadestinadaaexcluirafraude,aintimidaçãoeocacetedoshábitoseleitorais.Começavamal,nãofosseapenasocomeçocostumeiro.OutroproblemaéqueparasanearosistemaeleitoralSinimbupropunhaeleiçõesdiretascomexclusãodoeleitorado.Emoutraspalavras,“anação”escolheriaseusrepresentantesdeformadireta,masparavotaroeleitorteriadeatenderacritériosderendamaisrigorosos—elevaçãodocenso—eprecisariasaberlereescrever.

Professaracrençageraldequeaalfabetizaçãomelhoravaaqualidadedacidadaniaeraumacoisa.Pareciaoutramuitodiferentebanirosanalfabetosdavidapolíticanumpaísemqueainstruçãoprimáriapermaneciaprivilégiodetãopoucos.Nacâmaradominadapelosliberaisformou-selogoumblocodeoposição—pequeno,masativoebarulhento,equecontavaaindaporcimacomoapoiodasgalerias,lotadasmuitavezquandoareformaeleitoralvinhaàbaila.Essesparlamentaresachavamqueurgiainverteraequação:primeiroogovernodeviageneralizarainstruçãoprimária,parasódepoisexigiraalfabetizaçãodoeleitorado.EntreosvogaisoposicionistashaviagentecomoSaldanhaMarinho,JoaquimNabucoeJoséBonifácio,oMoço.214

SaldanhaMarinhopautouodebate,numdeseusdiscursos,aomostrararetóricadosalgarismos.CompulsoudadosexistentesnoarquivodaprópriaCâmarasobrepopulaçãonacional,alfabetizaçãoerenda,fezascontas,econcluiuqueoresultadodareformaeleitoralpropostaseriaeleiçõesdiretasnasquaismenosde1/20dapopulaçãototaldecondiçãolivreteriaodireitodevotar—ouseja,400milhomensnumtotalestimadode8,4milhõesdehomensemulheres.LeônciodeCarvalho,ministrodoImpério,estavapresenteàsessãoeaparteouooradorparaminimizarosefeitosdaexclusãodosanalfabetosdodireitoaovoto.Argumentouqueogovernojáprovidenciavamelhoramentosnainstruçãopúblicaequeatéaexecuçãodareformahavia“muitotempoparaosanalfabetosprocuraremescola”.215Aalegaçãoeraquasecínica,poissugeriaqueogovernotornariaainstruçãoprimáriaacessívelatodosnumpiscardeolhos.216

JoaquimNabucofoium,entrevários,arebaterenfaticamenteessetipode

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ilusionismopolítico.Emdiscursode27demaiode1879,disseassim:Outromeio,senhores,queseempregoupararesponderatudoquedissemosquantoaosanalfabetos,consisteemrepresentar-noscomoamigosdaignorância.Nóssomosapresentadoscomoautoresdapropagandasinistradoobscurantismo,comoinimigosdasescolas,comoadversáriosdainiciativadohonradoSr.ministrodoimpério,aquemdevodizerqueprefiroqueS.Ex.multipliqueasescolasnopaísaqueasmultipliquenopapel[grifomeu];comoinimigosdanecessidadequetemtodoohomemdesaberlereescrever.

[...]Masoquenãodeveisfazerécriarcategoriasdeanalfabetos,classessociaisdeanalfabetos,mesmo

porquequandofazeisistoalémdeexcluirdesdasurnascidadãosquenãotêmculpadenãosaberemescrever,daisàsmesasqualificadorasumpretextomais,umnovoarbítrioparaafastardasurnasquemnãofordoseupartido.217

Emsuma,JoaquimNabucoachavaqueanovaleieleitoralaumentariaos

víciosdosistema,aoinvésdedebelá-los.Noutraocasião,maisácido,interrogouaCâmarasobrequemseriamosverdadeirospromotoresdetaisfraudes.Afinal,ninguémacreditariaquemembrosdassupostas“massasinconscientes”dosquenãosabiamescreverseriamosautoresdequalificaçõesfraudulentasdeeleitores,atasfalsas,apuraçõesforjadas.Comopoderiam,sendoanalfabetos?Sobpretextodeeliminarastaismassasdapolítica,ogovernopareciaesqueceros“manipuladoresdevoto,osemboladoresdechapa,todosessescabalistas,todosessescalígrafosdeatasfalsas”.218Ogovernocontinuariaavenceraseleiçõesporquepermaneceriamaoseudisporasarmashabituaisparafazê-lo:distribuiçãodeempregospúblicos,regaliasemcontratos,comissõesrendosas,honrariasdiversas.JoséBonifácio,ooposicionistamaisinflamado,ídolodomomentonasgaleriasdaCâmara,diziaqueogovernodeixavaopovoseminstruçãoesempolítica,pareciaachar“queomelhormeiodelibertarasmassaséembrutecê-lasesujeitá-las,aocativeiropolítico!(Muitosapoiados,muitobem,muitobem,ooradorémuitofelicitado.)”.219

EsseeraoclimapolíticoreinantequandoMachadodeAssis,doentedosolhoselicenciadodoserviçopúblicoporalgunsmeses,começouaconceber,quiçáaredigir,asMemóriaspóstumasdeBrásCubas.220Nãohácomosaberoquepensavadaquilotudo.Éverdadeque,emdiferentesmomentosdesuavida,MachadoteveafinidadespolíticasclarascompersonagenscomoSaldanhaMarinhoeJoaquimNabuco.221Issopodeserumforteindício,masnãoumagarantiadequeelepensavacomoessesparlamentaresnodebatesobreaexclusãopolíticadosanalfabetos,essaastúciavildenegarodireitoàinstrução

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primáriaedepoiscobraralfabetizaçãoàsmassas.Sim,porquenãohádúvidadequeaoposiçãoparlamentarinterpretavacorretamenteorumodosacontecimentos.NocasodaCorte,porexemplo,onúmerodeescolasprimáriasnãoaumentouatéofinaldoregimemonárquico.222Elasforammesmofundadas“nopapel”,comotemiaNabuco.Nopaíscomoumtodo,entre1872e1890,aporcentagemdepopulaçãoalfabetizadachegouacairde15,75%para14,80%.223Aparticipaçãoeleitoraldespencoudecercade10%dapopulaçãototal,em1872,paramenosde1%,em1886,easituaçãopoucomelhorounasprimeirasdécadasderegimerepublicano.224Ofuturoprovaria,portanto,quenemparlamentaresmaiscríticos,comoSaldanhaMarinhoeJoséBonifácio,conseguiramimaginarotamanhodaexclusãopolíticaqueseanunciava.Obanimentopolíticodosanalfabetos—e,porconseguinte,damassadosdescendentesdeescravos—foiconsumadoemdecretode9dejaneirode1881,apósoutratrocadegabineteemuitasescaramuçaspolíticasquemedispensoderelatar.225Emvezdisso,interessa-mecontinuaraespecularsobre“oestadodeespírito”políticodeMachadoaoconceberasMemóriaspóstumasdeBrásCubas,em1879.

HáoutraspistasnasprópriasMemórias,romancenoqualaminúciaedensidadedasalusõeshistóricasnãocessamdesurpreender.MencioneihápoucoquesediziaàépocaqueSinimbutinha“aidéiafixa”dareformaeleitoral.Chefedegabinete,achavaqueesseseriaoprimeiropassoparaquaisquermelhoramentosfuturosdopaís,areceitaparaacuradetodososseusmales.Chegaadeclarar,noSenado,parajustificarasuaobsessão,que:“Ordinariamente,quandoumhomemavançanaidadeechegaàalturadestaquejátenho,ésempreacompanhadodeumaidéiafixa[,]aquelaaquetodasasoutrasficamsubordinadasecomoquedeladependentes;podeaissochamar-semania”.226BrásCubas,defuntoautor,atribuiuaprópriamorteà“idéiafixa”doemplastoanti-hipocondríaco,“destinadoaaliviaranossamelancólicahumanidade”(cap.ii).Napassagem,BrástomavaumacertainterpretaçãodoBrasilcomoahumanidadeinteira,poiseracomumnoperíodoqueseconsiderasseamelancoliaumdosprincipaiselementosdefinidoresdo“caráternacionalbrasileiro”,decorrênciadascondiçõesgeográficasdopaís.CapistranodeAbreudescreviao“povobrasileiro”,emmeadosdadécadade1870,como“indolenteenervoso,melancólicoeexaltado”;fizera-seassimgraçasàs“forçaseaparênciasdaNatureza”,tantoquea“característicadaconstituiçãomental

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dosTupiseraahipertrofiadasensibilidade”.227SinimbueBrásCubashaviamdiagnosticadoascausasdosmalesdanaçãoeadquiridoaidéiafixadecurá-la.Morto,Brásconfessatudoedizquenãoforamotivadoporfilantropia,maspor“sededenomeada”,“amordaglória”.Vivíssimo,Sinimbunãoconfessanada,masplanejavadepurarocorpodanaçãoexcluindoopovodapolítica.

Barradososcidadãosdapolítica,restavaimaginarumaliteraturadaqualosleitoresestavamexcluídos.Nessesmundosparalelosdacidadaniaedaliteratura,agramáticaeasintaxereinavamsoberanas.NãoéàtoaqueBrásabreasMemóriasdirigindo-se“Aoleitor”:“QueStendhalconfessassehaverescritoumdeseuslivrosparacemleitores,cousaéqueadmiraeconsterna.Oquenãoadmira,nemprovavelmenteconsternaráéseesteoutrolivronãotiveroscemleitoresdeStendhal,nemcinqüenta,nemvinte,equandomuito,dez.Dez?Talvezcinco”.BrásCubasmantém-sesempresobranceiroemrelaçãoaosleitores,seoshavia,poisaopiniãodelesarespeitodeseurelatopoucopareceimportar.Senãogostassemdolivro,elelhesprometia“umpiparote”.228Enfim,confirma-sedenovoaidéiadequeapersonagemBrásCubasalegorizaosmodosdeverefazerdaclassesenhorial-escravista:aoprojetarumaliteraturasemleitoreseumapolíticasemcidadania,fechava-seaindaumaveznoonanismosocialementalqueacaracterizava.Aoconstruirascoisasdessaforma,MachadodeAssispareciasugerirqueasmudançasemcursovisavamàpreservação,quiçáaoaprofundamento,dasdesigualdadessociaisvigentes.Poucodepois,em1882,publicariacontoquerepresentava,deformaexplícita,ahistóriadasreformaseleitoraisdopaís.Aintençãodetalalegoriaeraconfessada,deformaatípicaparaMachado,emnotaderodapé.229Umcientistadecifraraalinguagemdasaranhas.Taisinsetosutilizavamumidioma,“umalíngua,senhores,nadamenosqueumalínguaricaevariada,comasuaestruturasintática,osseusverbos,conjugações,declinações,casoslatinoseformasonomatopaicas,umalínguaqueestougramaticandoparausodasacademias,comoofizsumariamenteparameuprópriouso”.Ocontogirasempreemtornodabusca,pelosaracnídeos,deumsistemaeleitoralperfeito,imuneafraudes.Semprehavia,porém,umjeitodelograralegislaçãoemanipularresultadoseleitorais.Aofinal,plusultra,comodiriaSimãoBacamarte,“umgrandefilólogo”desenvolveraciocíniotortuosopara“demonstrar”queoresultadodeumaeleiçãohaviasidoexatamenteoopostodoqueforanarealidade.Asoberaniadosgramáticoscontribuía,defato,paraa

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sintaxepolíticadaexclusãoedoarbítrio.230Noquetangeàleide1871,oobjetoprincipaldestemeucapítulo,éprovável

queMachadonãotenhaficadoimuneàcertaguinada,ocorridaprecisamenteem1879,quantoaoseusignificadopolítico.Comovimos,MachadodeAssis,funcionárioecidadão,acreditaraquealeide28desetembroforapassoimportanteparaaemancipaçãodosescravose,porconseguinte,paraatransformaçãodasociedadebrasileira.Oliteratoelogiavaosseusefeitosemcrônicas;obarnabélutavacomdenodoparaquefossecumprida.Emcertosentido,comovimosnoscapítulosanteriores,eleacreditousemprequealeide1871mudaramesmoascoisas,poisqueimpuseraderrotadecisivaàclassesenhorial,enissoexpusera-lheasentranhasideológicas,porassimdizer.Nofinaldadécadade1870,todavia,muitoscomeçavamaacreditarqueurgiairadiante.Aleide28desetembronãopareciacapaz,porsisó,dedobrararesistênciadosescravocratas.

TalvezomomentocrucialdesseprocessodereinterpretaçãopolíticatenhasidoodiscursoproferidonaCâmara,em5demarçode1879,porJerônimoSodré,deputadopelaprovínciadaBahia.231JoaquimNabucodiria,maistarde,queessediscursodetonaraaprimeirafasedomovimentoabolicionista.232Sodrémisturavareminiscênciaspessoaiseeventosdahistóriarecentedopaísparacontar,aseumodo,ahistóriadoprocessodeemancipação.Rememoravaasatisfaçãoquetiveraquando“umministérioliberalincluiunafaladotronoareformadoelementoservil”,paralembraremseguidado“golpedeestadode16dejulho”de1868,quelevaraaopoderumgabinetede“idéiasmaisretrógradas”,contrárioàliberdadedosescravos.Prosseguiaassim:

Poucodurou;sobogovernodeumpríncipejusto,sábioefilantropo,viqueosmaisencarniçadosadversáriosdesemelhantesidéiasnãopuderamdeixardecurvaracerviz,ealeide28deSetembroanunciouaestepaísquedaíemdiantenenhumindivíduomaisnasceriaescravo;leiqueeuaceitei,porquenãosoudaquelesdotudoounada;masleiquecondenei,profliguei,comtodasasforças,porqueémanca,nãofavorece,nemgaranteacondiçãodoprotegido,eaindamenosadopossuidor.

(Numerososapartes.)Leifunesta,digo,senhores,porquantonasgrandesquestõessociais,nãopodemasreformasser

mutiladas,nemtruncadas;éapedra,queroladamontanha,equeporforçahádechegaraoabismo...Épreciso,queaquicogitemosdofuturo;todossabem;asociedadebrasileiraestásobreumvulcão.

Nãonosiludamos.Todasascircunstâncias,osfatosdetodososdiasaclarambemoespírito;sereproduzematodooinstante.EaindahápoucoavozeloqüentedonobresenadorporS.Pauloacabadepediraesteparlamentomedidasrepressivascontraoelementoservil.Aoconcluirodiscurso,JerônimoSodréconclamavaosparesapensarna

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“condiçãodecercade1000000debrasileiros,quejazemaindanocativeiro!”;achavaquedeviam“libertá-los”,paraqueoBrasilpudessefinalmenteparticipardos“banquetesdacivilizaçãomoderna”.Oescribadasatasregistrouoforteimpactodopronunciamento:“Muitobem;muitobem.Bravodasgalerias.Ooradorécumprimentadoporquasetodososdeputadospresentes”.

Diasdepois,MartimFrancisco,deputadopelaprovínciadeSãoPaulo,cujarebeldiaescravahaviasidoexpressamentemencionadaporSodrécomoumadasmotivaçõesdeseudiscurso,subiaàtribunapara“protestarcontraasopiniões”dorepresentantedaBahia.233Aaboliçãodaescravaturadestruiriaapropriedadeconstituída,arruinariaoEstado,lançarianas“lutaspolíticasummilhãodehomensaquemfaltaabsolutamenteaeducaçãoequesãocompletamenteincapazesdereger-senavidaparticular,quantomaisdeconcorrerparaconstituirarepresentaçãonacional”.Ademais,referindo-seàantestãocombatidaleide28desetembrode1871,diziaqueela,aoextinguir“nobrementeafontedaescravidão”,fizera“tudoquepodíamossensatamentefazerparaque,semmaiorabalodapropriedade,possadesaparecerestecancrosocial”.

OdiálogoentreJerônimoSodréeMartimFranciscomostraqueahistóriadoprocessodelibertaçãodosescravospassariaacorreremoutrostrilhos.Seantesosescravocratascombatiamesolapavamaaplicaçãodaleide1871,agoraconsideravam-naamaisprevidenteedefinitivadasleis;osemancipacionistas,porseuturno,viravamabolicionistasàspencas,aindaquecomdiferentesmatizesegrausderadicalismo.Acizâniaaprofundava-seentreosprópriosliberais,divididosagorapormaisoutroassunto,alémdafamigeradareformadosistemaeleitoral.SaldanhaMarinho,JoséBonifácioeJoaquimNabuco,semapagarasdiferençasquetinhamentreelespróprios,diziamtodosqueogabineteSinimbunãoerafielaoprogramaliberalde1868,quetraíaportantoosideaisdopartido.Haviadesencanto,frustraçãomesmo,emváriosredutosdosluzias.Foraparaissoqueopartidovoltaraaopoder?Penso,masnãopossoprovardemododefinitivo(precisofazê-lo?),quenaquelemomentoooutrorajovemliberalMachadodeAssiscompartilhavaadesilusãodealgunsvelhoscompanheirosdelutaspolíticas.Ofuncionáriocontinuariaacumprir,anosafio,fossequalfosseogabinetedavez,aobrigação—exercidacomevidenteconvicçãoideológica—dedefenderasprerrogativasdopoderpúblicocontraasempiternasanhasenhorial.Oliteratotransformariaaexperiênciahistóricada

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décadade1870emforçacriadora,afecundarcadalinhadesselivroincrívelqueéasMemóriaspóstumasdeBrásCubas,edeoutrosqueviriamdepois.

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Notas

1.paternalismoeescravidãoemhelena1.JohnGledson,MachadodeAssis:ficçãoehistória,RiodeJaneiro,PazeTerra,1986;idem,

MachadodeAssis:imposturaerealismo.UmainterpretaçãodeDomCasmurro,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1991;RobertoSchwarz,Aovencedorasbatatas:formaliteráriaeprocessosocialnosiníciosdoromancebrasileiro,SãoPaulo,DuasCidades,1981;idem,Ummestrenaperiferiadocapitalismo:MachadodeAssis,SãoPaulo,DuasCidades,1990;idem,Duasmeninas,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1997.Aoconceberaliteraturacomomododelerahistória,Machadoapenascompartilhavavisãobastantecomumàépoca;verJeffersonCano,“Ofardodoshomensdeletras:o‘orbeliterário’eaconstruçãodoimpériobrasileiro”,tesededoutoradoemHistória,Unicamp,2001.Atradiçãodeinterpretarossentidoshistóricosdaobramachadianaéevidentementemaisantiga;bastalembrardeAstrojildoPereira,MachadodeAssis:ensaioseapontamentosavulsos,BeloHorizonte,OficinadeLivros,1991(1aed.1959),eRaymundoFaoro,MachadodeAssis:apirâmideeotrapézio,SãoPaulo,CompanhiaEditoraNacional,1974.VersãoanteriordotextodestecapítuloapareceuemSidneyChalhoub,“AhistórianashistóriasdeMachadodeAssis:umainterpretaçãodeHelena”,RevistadoDepartamentodeHistória,Fafich/UFMG,BeloHorizonte,julhode1992,pp.19-43.

2.Schwarz,Ummestre,p.11.3.IlmarRohloffdeMattos,Otemposaquarema,SãoPaulo,Hucitec/InstitutoNacionaldoLivro,1987.4.Helena,capítuloii,tornou-seH,cap.ii.Adoteiomesmoprocedimentoemtodasascitações

referentesaosromancesdeMachado.Utilizeiaseguinteedição:AfrânioCoutinho(org.),MachadodeAssis:obracompleta,RiodeJaneiro,NovaAguilar,1986,vol.i.

5.Schwarz,Aovencedorasbatatas,p.89.6.Ibidem,p.63.7.Ibidem,p.90.8.Ibidem,p.99.9.E.P.Thompsonrevisouereuniuváriosdessesartigosdosanos1970emCustomsincommon:studies

intraditionalpopularculture,NovaYork,TheNewPress,1993;deEugeneGenovese,verocapítulosobrepaternalismoemRoll,Jordan,Roll.Theworldtheslavesmade,NovaYork,RandonHouse,1974.

10.RebeccaScott,“Exploringthemeaningoffreedom:post-emancipationsocietiesincomparativeperspective”,HispanicAmericanHistoricReview,agostode1988.

11.Schwarz,Aovencedorasbatatas,p.16.12.Ibidem,p.16.13.“MachadodeAssis:umdebate.ConversacomRobertoSchwarz”,NovosEstudos,Cebrap,no29,

marçode1991,p.83.14.Gledson,Ficçãoehistória,pp.70-1.15.Ibidem,p.81.16.VerSidneyChalhoub,Visõesdaliberdade:umahistóriadasúltimasdécadasdaescravidãona

Corte,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1990,cap.2.17.PerdigãoMalheiro,AescravidãonoBrasil:ensaiohistórico,jurídico,social,Petrópolis,Vozes/inl,

1976,vol.ii,pp.95-6.ComenteiapassagemlongamenteemVisõesdaliberdade,pp.212ess.

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18.Sobreosperigosconcretosdeescravizaçãoilegal,especialmenteapartirdanoçãode“bensdoventooubensdoevento”,verosdocumentosapresentadosporRobertConrad,ChildrenofGod’sfire:adocumentaryhistoryofblackslaveryinBrazil,ThePennsylvaniaStateUniversityPress,1994,pp.322-31.Segundooconceitodebensdoevento,escravoseanimaisaoléu,semproprietárioconhecido,seriamlevadosaleilão.Conradapresentadocumentosquenarramcasosdenegroslibertosoulivresleiloadoscomoescravos.Comoexemplodaspesquisasnecessáriasnessadireção,verJudyBieberFreitas,“Slaveryandsociallife:attemptstoreducefreepeopletoslaveryintheSertãoMineiro,Brazil,1850-1871”,JournalofLatinAmericanStudies,Londres,vol.26,parte3,outubrode1994,pp.597-619.

2.apolíticacotidianadosdependentes1.RobertoSchwarz,Aovencedorasbatatas:formaliteráriaeprocessosocialnosiníciosdoromance

brasileiro,SãoPaulo,DuasCidades,1981.AprimeiraversãodotextodestecapítulofoiescritaeminglêsparavolumeorganizadoporRichardGraham,MachadodeAssis:reflectionsonaBrazilianmasterwriter,Austin,TheUniversityofTexasPress,1999.VersãoanterioremportuguêsapareceuemSidneyChalhoubeLeonardoAffonsodeMirandaPereira(orgs.),AHistóriacontada:capítulosdehistóriasocialdaliteraturanoBrasil,RiodeJaneiro,NovaFronteira,1998.

2.Sobreaquestãodadiferençaedoantagonismonointeriordadominaçãopaternalista,alémdeE.P.Thompson,Customsincommon:studiesintraditionalpopularculture,NovaYork,TheNewPress,1993,acheiútilotextodeJamesC.Scott,Dominationandtheartsofresistance:hiddentranscripts,NewHaveneLondres,YaleUniversityPress,1990.EnsaieialgumasdessasidéiasanteriormenteemVisõesdaliberdade:umahistóriadasúltimasdécadasdaescravidãonaCorte,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1990.

3.JoaquimNabucosereferiuaesseperíododapolíticaimperialcomode“degradação”,de“violaçãodaleimoral”;quantoàquestãodotráficoespecificamente,“bebemosasfezestodasdocálice”.JoaquimNabuco,Oabolicionismo,Petrópolis,Vozes,1977(1aed.1883),p.111.LuísCarlosMartinsPena,quefoicontemporâneodotráficoafricanoilegal,denunciouafaltadeescrúpulosdeautoridadesetraficantesnumadivertidacomédiadadécadade1840:Osdousouoinglêsmaquinista,emMartinsPena,Comédias,ediçãocríticaporDarcyDamasceno,RiodeJaneiro,Ediouro,s.d.,pp.65-84.

4.JohnGledson,MachadodeAssis:ficçãoehistória,RiodeJaneiro,PazeTerra,1986,eJohnGledson,MachadodeAssis:imposturaerealismo,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1991.

5.ElysiodeCarvalho,“Gíriadosgatunoscariocas(vocabulárioorganizadoparaosalumnosdaescoladepolícia)”,BoletimPolicial,no4,5e6,1912,pp.168-81.

6.Gledson,Ficçãoehistória,p.71;Schwarz,Ummestre,pp.71-4.7.VerSidneyChalhoub,Cidadefebril:cortiçoseepidemiasnaCorteimperial,SãoPaulo,Companhia

dasLetras,1996,cap.ii.8.AmatrizdesseraciocíniopareceestaremJustinianoJosédaRocha,“Ação,reação,transação”,em

RaymundoMagalhãesJúnior,TrêspanfletáriosdoSegundoReinado,SãoPaulo,CompanhiaEditoraNacional,1956.

9.Paraoutroexemplodeassociaçãoentrelágrimaseolharfixo:emDomCasmurro,capítulocxxiii,duranteoenterrodeEscobar,“Capituolhoualgunsinstantesparaocadávertãofixa,tãoapaixonadamentefixa,quenãoadmiralhesaltassemalgumaslágrimaspoucasecaladas...”.

10.OqueescrevosobreDomCasmurropressupõeosachadoseinterpretaçõespresentesnosseguintestextos:HelenCaldwell,TheBrazilianOthelloofMachadodeAssis,Berkeley,UniversityofCaliforniaPress,1960;SilvianoSantiago,“Retóricadaverossimilhança”,emUmaliteraturanostrópicos,SãoPaulo,Perspectiva,1978,pp.29-48;JohnGledson,MachadodeAssis:imposturaerealismo.UmareinterpretaçãodeDomCasmurro,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1991;RobertoSchwarz,“ApoesiaenvenenadadeDomCasmurro”,emNovosEstudos,Cebrap,no29,marçode1991,pp.85-97.

11.EmAfrânioCoutinho(org.),MachadodeAssis:obracompleta,RiodeJaneiro,NovaAguilar,1986,vol.iii,pp.904,913.

3.ciênciaeideologiaemmemóriaspóstumas

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debráscubas1.Areferênciaéàseguintepassagem:“Estáprovado[...]queascoisasnãopodemserdeoutramaneira,

porque,sendotudofeitoparaumfim,tudoexistenecessariamenteparaomelhordosfins.Observaiqueosnarizesforamfeitosparaapoiodosóculos;eporissotemosóculos”;emVoltaire,Cândidoouootimismo,RiodeJaneiroeSãoPaulo,EdiouroePublifolha,1998,cap.i,p.8.AversãooriginaldotextodestecapítulofoiescritaeminglêsepublicadaemSidneyChalhoub,“Whatarenosesfor?Paternalism,socialdarwinismandracescienceinMachadodeAssis”,JournalofLatinAmericanCulturalStudies,Londres,vol.10,no2,2001,pp.171-91.VersãoemportuguêsapareceuemSidneyChalhoub,VeraBeltrãoMarques,GabrieladosReisSampaioeCarlosGalvãoSobrinho(orgs.),ArteseofíciosdecurarnoBrasil:capítulosdehistóriasocial,Campinas,EditoradaUnicamp/Cecult,2003(ColeçãoVáriasHistórias).

2.Éclaroqueessaleitura“classista”dasMemóriasdevemuitoaRobertoSchwarz,Ummestrenaperiferiadocapitalismo:MachadodeAssis,SãoPaulo,DuasCidades,1990.

3.Paraumestudorecentesobreomododefuncionamentodotráficoafricanoilegalnopaísealutaparaextingui-lo,verJaimeRodrigues,Oinfamecomércio:propostaseexperiênciasnofinaldotráficoafricanoparaoBrasil(1800-1850),Campinas,EditoradaUnicamp,2000.

4.EssediscursodeEusébiodeQueirozerareferênciacomumemdebatessobreescravidãonasegundametadedoséculoxix;estátranscritonaíntegra,porexemplo,emPerdigãoMalheiro,AescravidãonoBrasil:ensaiohistórico,jurídico,social,Petrópolis,Vozes/inl,1976(1aed.1866-67),vol.ii,pp.201-22.OcomentáriodeJoaquimNabucoaodiscursoestáemOabolicionismo,Petrópolis,Vozes,1977(1aed.1883),p.111.

5.Ver,porexemplo,ElcieneAzevedo,Orfeudecarapinha:atrajetóriadeLuizGamanaimperialcidadedeSãoPaulo,Campinas,EditoradaUnicamp,1999;JoseliNunesMendonça,Entreamãoeosanéis:aleide1885eoscaminhosdaliberdade,Campinas,EditoradaUnicamp,1999;LenineNequete,Escravos&magistradosnoSegundoReinado,Brasília,FundaçãoPetrônioPortella,1988;EduardoSpillerPena,PajensdaCasaImperial:jurisconsultos,escravidãoealeide1871,Campinas,EditoradaUnicamp,2001.

6.SidneyChalhoub,Visõesdaliberdade:umahistóriadasúltimasdécadasdaescravidãonaCorte,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1990,cap.2.

7.NaediçãodaObracompletadaNovaAguilar,queusocomoreferência,estágrafado“desazar”.NaediçãocríticadasMemórias,publicadasobosauspíciosdoInstitutoNacionaldoLivro(EditoraCivilizaçãoBrasileira,1975),está“desasar”,nosentidodetirarasasasàambição,queéprecisamentedoquesetrata.

8.SidneyChalhoub,Cidadefebril:cortiçoseepidemiasnaCorteimperial,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1996;LiliaMoritzSchwarcz,Oespetáculodasraças:cientistas,instituiçõesequestãoracialnoBrasil,1870-1930,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1993;ThomasE.Skidmore,Pretonobranco:raçaenacionalidadenopensamentobrasileiro,RiodeJaneiro,PazeTerra,1976.

9.JohnGledson,ThedeceptiverealismofMachadodeAssis:adissentinginterpretationofDomCasmurro,Liverpool,FrancisCairns,1984,pp.163-8.

10.Jean-MichelMassa,“LabibliothèquedeMachadodeAssis”,RevistadoLivro,6(21-22),1961,pp.195-238.Paraumapublicaçãomaisrecentedesseartigo,acompanhadadeestudossobreabiblioteca,verJoséLuísJobim(org.),AbibliotecadeMachadodeAssis,RiodeJaneiro,AcademiaBrasileiradeLetras,Topbooks,2001.

11.Refiro-meàsseguintesedições:Darwin,Ladescendancedel’hommeetlaselectionsexuelle,Paris,C.Reinwald,1873,2vols.;Darwin,L’Originedesespècesaumoyendelaselectionnaturelle...,Paris,C.Reinwald,1876;Spencer,Introductionalasciencesociale,Paris,LibrairieGermer-Baillière,1878;Spencer,Principesdesociologie,Paris,Germer-Baillière,1878,2vols.;AlfredWallace,Laselectionnaturelle,Paris,C.Reinwald,1872.TambémconstaEdouardHartmann,Ledarwinisme.Cequ’ilyadevraietdefauxdanscettethéorie,Paris,Germer-Baillière,1880.Essessãoosvolumesmaisobviamenterelevantesparaoargumentodestecapítulo.Entretanto,umamiradanalistadelivrosdeMachadologorevelainteresseabrangenteemfilologiaeetnologiaoitocentistas;assim,éprovávelqueeleestivessebastantebeminformadosobreasrepercussõesdasteoriasdarwinistasnessasáreas.MachadotinhalivrosdeLouisBuchner,JohnLubbock,MaxMuller,A.Quatrefages,T.Ribot,E.Tyloretc.,quasetodosemediçõesdosanos1870.Ademais,comoeradepraxeentreintelectuaisbrasileirosdoperíodo,liaperiódicosliteráriosecientíficos

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franceses,especialmenteoRevuedesDeuxMondes.Meuentendimentodosignificadodessabiblioteca—importanteparaa“amarração”dorestantedestecapítulo—foipossívelgraçasàleituradeThomasTrautmann,AryansandBritishIndia,Berkeley,UniversityofCaliforniaPress,1997;emais:Jean-MarcBernardini,LedarwinismesocialenFrance(1859-1918),Paris,cnrs,1997;LindaClark,SocialdarwinisminFrance,University,Ala.,UniversityofAlabamaPress,1984;PaulCrook,Darwinism,warandhistory:thedebateoverthebiologyofwarfromthe“Originofspecies”totheFirstWorldWar,Cambridge,CambridgeUniversityPress,1994;RichardHofstadter,SocialdarwinisminAmericanthought,Boston,BeaconPress,1992(1aed.1944),emaisotrabalhocitadonanotaseguinte.

12.Háextensodebateacadêmicosobreoconceitodedarwinismosocial.Todavia,anoçãomaissuperficial,baseadanasexpressõesmaiscorrentesaeleassociadas,ésuficientenocontextodestecapítulo;verMikeHawkins,SocialdarwinisminEuropeanandAmericanthought:1860-1945,Cambridge,CambridgeUniversityPress,1997.

13.Hawkins,pp.52-4.14.Aoqueparece,odarwinismotornou-semaisbemconhecidonoBrasilapartirdemeadosdosanos

1870,quandoMirandaAzevedoproferiuumasériedeaulaspúblicassobreoassuntonaschamadas“conferênciaspopularesdaGlória”.Taisconferênciascostumavamatrairplatéianumerosaeseuobjetivoeradivulgarnovasidéiascientíficaseintelectuais;osjornaishabitualmentepublicavamaomenosumresumodoconteúdodaspalestras;verTerezinhaCollichio,MirandaAzevedoeodarwinismonoBrasil,BeloHorizonteeSãoPaulo,ItatiaiaeEdusp,1988,pp.32-3,38-46.Opositivismoeradoutrinainfluentehaviaalgumtempoquandodoiníciodasdiscussõessobredarwinismo;JoãoCruzCosta,ContribuiçãoàhistóriadasidéiasnoBrasil,RiodeJaneiro,LivrariaJoséOlympio,1956.SylvioRomero,pensadorecríticoliterárioquealimentavagrandeanimosidadecontraMachadodeAssis,professavacombinaropositivismocomtianoeodarwinismosocialemseusescritos;Collichio,p.53.SobreRomeroeseusataquesaMachado,verRobertoVentura,Estilotropical:históriaculturalepolêmicasliteráriasnoBrasil,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1991.

15.Naverdade,ahistóriaforapublicadaanteriormentenaGazetadeNotícias,comotítulo“UmcapítuloinéditodeFernãoMendesPinto”,em30deabrilde1882,segundoJoséGalantedeSousa,BibliografiadeMachadodeAssis,RiodeJaneiro,InstitutoNacionaldoLivro,1955,pp.531-2.ConsulteiocontoemAfrânioCoutinho(org.),MachadodeAssis.Obracompleta,RiodeJaneiro,NovaAguilar,1986,vol.2,pp.323-8.

16.JohnGledson,“AhistóriadoBrasilemPapéisavulsosdeMachadodeAssis”,emSidneyChalhoubeLeonardoAffonsodeMirandaPereira(orgs.),AHistóriacontada:capítulosdehistóriasocialdaliteraturanoBrasil,RiodeJaneiro,NovaFronteira,1998,pp.15-33.

17.SanderL.Gilman,Makingthebodybeautiful:aculturalhistoryofaestheticsurgery,Princeton,PrincetonUniversityPress,1999.

18.JeffersonCano,“MachadodeAssis,historiador”,emSidneyChalhoubeLeonardoPereira,op.cit.19.DainBorges,“‘Puffy,ugly,slothfulandinert’:degenerationinBraziliansocialthought,1880-

1940”,JournalofLatinAmericanStudies,vol.25,no2,1993,pp.235-56.20.Beneficiei-meaqui,denovo,dasdiscussõespresentesemThomasTrautmann,op.cit.,caps.5,6e

7.SegundoTrautmann,aexpressão“ciênciaracial”(racescience)apareceoriginalmenteemNancyStepan,TheideaofraceinGreatBritain,1800-1960,Londres,Macmillan,1982.

21.AlfredCrosby,TheColumbianexchange:biologicalandculturalconsequencesof1492,Westport,GreenwoodPublications,1972.

22.SanderGilman,op.cit.,p.49.23.Voltaire,op.cit.,cap.iii.24.Voltaire,op.cit.,cap.iv,quantoàcadeiadetransmissãodasífilis;cap.isobresexoatrásdamoita.25.SérgioCarrara,TributoaVênus:alutacontraasífilisnoBrasil,dapassagemdoséculoaosanos40,

RiodeJaneiro,Fiocruz,1996.26.SanderGilman,op.cit.,pp.85-7;otrechocitadoestánap.85.27.OesforçoconstantedeBráspara“demonstrar”queseuintelectoerasuperioraodosoutrosfazia

bastantesentidonocontextodosdebatesdarwinistassobreaaplicaçãodoconceitodeseleçãonaturalàespéciehumana.DeacordocomAlfredWallace,porexemplo,adaptaçõesnocorpohumano(àexceçãodeaperfeiçoamentosestéticos)tornavam-sepoucoimportantesumavezdesenvolvidososinstintossociais;

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dessepontoemdiante,aseleçãonaturalprosseguiasobretudonocampodascapacidadesintelectuais.Éóbvio,porém,queWallacediziaemseguidaque“Simesconclusionssontjustes,ilarriverainévitablemantquelesracessupérieuresmoralementetintellectuellement,remplacerontlesracesinférieuresetdégradées,etlasélectionnaturelle,continuantàagirsurl’organizationmentale,produirauneadaptationtoujoursplusparfaitedeshautesfacultesdel’hommeàlanaturequil’environneetauxexigencesdel’étatsocial”.CitodamesmaediçãofrancesaqueMachadotinhaemsuabiblioteca;AlfredWallace,Laseléctionnaturelle,Paris,C.ReinwaldetCie.,Libraires-Éditeurs,1872,pp.332-3,eparaotrechotranscrito,pp.346-7.

Machadosatirizouessaguinada“intelectual”doconceitode“lutapelasobrevivência”muitasoutrasvezes.NoutrocontoincluídoemPapéisavulsos,intitulado“Oespelho”,Jacobina,apersonagemprincipal,recusava-seterminantementeaparticipardedebatesintelectuaiscomseusamigos.Eleargumentava(paradoxalmente)que“adiscussãoéaformapolidadoinstintobatalhador,quejaznohomem,comoumaherançabestial”.Porconseguinte,Jacobinaofereceuasuaopiniãosobreoassuntoempauta(“anaturezadaalma”)edeixouasalaantesderecebercontradita.

Finalmente,aalegaçãodeWallacedequeasraças“superiores”continuavamaaperfeiçoar-sequantoàbeleza(beauty,literalmente)ajudaaexplicaraconfusãomentaldeBrásdiantedapresençaconjuntadebonitezae“degeneração”emEugênia(“Porquebonita,secoxa?porquecoxa,sebonita?”);MPBC,cap.xxxiii.

28.Hawkins,op.cit.,pp.217-8.29.ParaumahistóriadaeugenianaAméricaLatina,esuadiferençaemrelaçãoàeugenianaGrã-

Bretanha,EstadosUnidoseAlemanha,verNancyStepan,“Thehourofeugenics”:race,genderandnationinLatinAmérica,IthacaeLondres,CornellUniversityPress,1991;sobreBrasil,VeraReginaBeltrãoMarques,Amedicalizaçãodaraça:médicos,educadoresediscursohigiênico,Campinas,EditoradaUnicamp,1994.

4.escravidãoecidadania:aexperiênciahistóricade1871

1.JoséGalantedeSousa,BibliografiadeMachadodeAssis,RiodeJaneiro,inl,1955,p.455;utilizo

comoreferênciaaseguinteedição:AfrânioCoutinho(org.),MachadodeAssis:obracompleta,RiodeJaneiro,EditoraNovaAguilar,1986,vol.ii,pp.771-83.Nosparágrafosseguintes,indicoentreparêntesesosnúmerosdaspáginasdestaediçãonasquaisestãoostrechoscitados.

2.Verocapítulo1destevolume.3.Denovo,refiro-meaocapítulo1.4.JoaquimNabuco,UmestadistadoImpério,RiodeJaneiro,NovaAguilar,1975(1aed.:Paris/Riode

Janeiro,Garnier,1897-99),p.732.5.JoaquimNabuco,UmestadistadoImpério,pp.731-2.6.Sobrearesistênciadosfazendeirosaocumprimentodedeterminaçõesdaleideterrasde1850esuas

causas,verMárciaMariaMenendesMotta,Nasfronteirasdopoder:conflitoedireitoàterranoBrasildoséculoXIX,RiodeJaneiro,VíciodeLeituraeArquivoPúblicodoEstadodoRiodeJaneiro,1998.

7.RobertConrad,ThedestructionofBrazilianslavery:1850-1888,Berkeley,UniversityofCaliforniaPress,1972,cap.5.

8.Sobreaatuaçãodoimperadornaquestãodaemancipação,verJoséMurilodeCarvalho,Teatrodesombras:apolíticaimperial,SãoPaulo,EdiçõesVértice,1988,cap.2.

9.JoséAntônioPimentaBueno,TrabalhosobreaextinçãodaescravaturanoBrasil,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1868,pp.3-8.

10.JoséBonifáciodeAndradaeSilva,“RepresentaçãoàAssembléiaGeralConstituinteeLegislativadoImpériodoBrasilsobreaescravatura”,emGraçaSalgado(org.),Memóriassobreaescravidão,RiodeJaneiro,ArquivoNacional,1988,pp.61-77.

11.PimentaBueno,op.cit.,pp.3-4.Paraasmatrizesinternacionaisdessaretóricasobreescravidãoeemancipação,verDavidBrionDavis,Theproblemofslaveryintheageofrevolution:1770-1823,Ithaca,CornellUniversityPress,1975.

12.PimentaBueno,op.cit.,p.4.SobreaLeiMoret,verRebeccaJ.Scott,SlaveemancipationinCuba:

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thetransitiontofreelabor,1860-1899,Princeton,PrincetonUniversityPress,1985,cap.v;paraumestudosobreoprocessomundialdeemancipação,verRobinBlackburn,Theoverthrowofcolonialslavery:1776-1848,Londres,Verso,1988—ocapítulo5desseestudoanalisaascausasdapersistênciadaescravidãonoBrasileemCuba;paraoprocessonascolôniasinglesas,repetidamentecitadoeinterpretadopelospolíticosbrasileiros,verThomasC.Holt,Theproblemoffreedom:race,labor,andpoliticsinJamaicaandBritain,1832-1938,Baltimore,TheJohnsHopkinsUniversityPress,1992.

13.PimentaBueno,op.cit.,p.6.14.Ibidem,p.8.15.PimentaBuenoapresentouaotodocincoprojetos,op.cit.,pp.8-18.16.“ParecerdoConselhodeEstadopleno.Atade2deabrilde1867”,emPimentaBueno,op.cit.,pp.

37-8.17.Ibidem,p.38.18.Ibidem,pp.39-41.19.Ibidem,pp.41-7;citaçõesàspp.46e47.20.Ibidem,pp.48-9.21.Ibidem,p.49.22.SegundooDicionárioAurélio,bordejarsignifica“irdeumladoparaoutro”,“cambalear”;também

“navegaremziguezague,àvela,recebendooventooraporumbordo,oraporoutro”.Nojargãopolíticodoséculoxix,significavaoscilarentreduasposiçõesdistintas,parecendotenderoraparaumadelas,oraparaaoutra.Porexemplo,duranteosdebatesparlamentaresde1871,doisdeputadosdebateramseobarãodeBomRetiro“bordejara”numseupronunciamentosobreaquestãodaemancipação.“Elenãobordejou”,diziaodeputadoCruzMachado.“Bordejou,emuito,masfoidaraportoseguro”,respondiaPintodeCampos,paraahilaridadegeral.PintodeCamposencerrouadiscussãodizendoqueBomRetirobatera“oranoprego,oranaferradura”,oquedavanomesmo;AnnaesdoParlamentoBrazileiro.CamaradosSenhoresDeputados,anode1871,tomoiv,p.193,sessãode19deagosto.MachadodeAssisescreveuumacrônicanaqualcomparavaaartepolíticadodiplomataaoandardomarinheirobêbedo,poisambos“bordejavam”;verMachadodeAssis,“Aoacaso”,DiáriodoRiodeJaneiro,24dejaneirode1865,emObracompleta,RiodeJaneiro,Jackson,1951,vol.21,pp.296-7;paraumaanálisedessacrônica,verLúciaGranja,“Alínguaengenhosa:onarradordeMachadodeAssis,entreainvençãodehistóriaseacitaçãodahistória”,emSidneyChalhoubeLeonardoAffonsodeMirandaPereira,AHistóriacontada:capítulosdehistóriasocialdaliteraturanoBrasil,RiodeJaneiro,NovaFronteira,1998,pp.67-94.

23.PimentaBueno,op.cit.,p.50.24.Ibidem,pp.50-1.25.Ibidem,pp.51-2.26.Ibidem,pp.53-4.27.Ibidem,pp.55(SãoVicente),61(SouzaFranco),67(Nabuco).28.Ibidem,p.36.29.Ibidem,p.54.30.Ibidem,p.58.NabucodeAraújodisse:“Antesdetudonadaépossívelsenãodepoisdeacabadaa

guerra:écomasforçasquevoltaremqueogovernopoderádominarasituaçãocríticadaemancipação”,p.67.

31.“Atade9deabrilde1867”,ibidem,pp.106-7.32.Registro,porém,queacomissãodeconselheirosformadaapósosdebatesde1867(veradiante)

computouosvotosdeEusébiodeQueirózedeItaboraícomosendofavoráveisaqueoassuntofossetratado“depoisdaguerra”,emcontrastecomosvotosdeParanhoseAbaeté,quedesejavamesperartambémpelarecuperaçãodo“estadodasnossasfinanças”;ibidem,p.129.Confessoquenãoconsigovertalmanifestaçãonasfalasdaquelesilustresconselheiros.Tambéméfatoque,terminadaaguerra,sendoItaboraíchefedegabinete,continuavaaopor-seàemancipação,sendoprecisoremovê-loemsetembrode1870pararetomaroprocesso;verConrad,op.cit.,p.88.Maisainda,duranteosdebatesde1871,houvecontrovérsianaCâmaradosDeputadossobrequalhaviasidoaposiçãodeItaboraínoConselhodeEstado;ver,porexemplo,sessãode14dejulhode1871,AnnaesdoParlamentoBrazileiro.CamaradosSenhoresDeputados,anode1871,tomoiii,p.144.

33.PimentaBueno,op.cit.,pp.110-1.

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34.Conrad,op.cit.,p.79.35.Paraostrabalhosdacomissão,verPimentaBueno,op.cit.,pp.110-52.36.PareceresdoConselhodeEstadonoanode1868relativosaoelementoservil,RiodeJaneiro,

TypographiaNacional,1871.37.Idem,p.7.38.Ver,porexemplo,ospronunciamentosdosdeputadosCapanemaeJoséCalmon,nassessõesde17

e29dejulho,respectivamente;emAnnaesdoParlamentoBrazileiro.CamaradosSenhoresDeputados,anode1871,tomoiii,pp.171e236-7.Paranhos,entãoviscondedoRioBrancoechefedegabinete,viu-seobrigadoacontestartalinterpretaçãodoepisódioparadefenderacondutadoimperador;versessãode31dejulhode1871,nosAnnaes,tomoiii,p.306.

39.PareceresdoConselhodeEstadonoanode1868relativosaoelementoservil,p.11.40.Conrad,op.cit.,p.80.41.Naverdade,osliberaisabstiveram-senessaseleições,emprotestopeladissoluçãodaCâmara

anterior;JoséMurilodeCarvalho,Teatrodesombras,p.153.42.Conrad,op.cit.,p.80.43.Ibidem,pp.82-5.44.TâniaRabeloCosta,JoaquimManoeldeMacedoouosdoisMacedos:alunetamágicadoSegundo

Reinado,RiodeJaneiro,FundaçãoBibliotecaNacional,1994;GabrieladosReisSampaio,“AhistóriadofeiticeiroJucaRosa:culturaerelaçõessociaisnoRiodeJaneiroImperial”,tesededoutoradoemHistória,Unicamp,2000.

45.JoaquimManoeldeMacedo,Memóriasdosobrinhodemeutio,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1995,p.52.

46.Ibidem,pp.458-61.47.JoaquimManoeldeMacedo,Asvictimas-algozes.Quadrosdaescravidão,RiodeJaneiro,Typ.

Americana,1869,2vols.48.Ibidem,vol.1,pp.v-vi.49.Ibidem,vol.1,pp.vi-viii.50.Ibidem,vol.1,pp.xi-xii.51.Ibidem,vol.1,p.xii.52.Ibidem,pp.xivexv.53.“Lucinda—Amucama”,cap.i,emibidem,vol.2,pp.5-12.54.Ibidem,vol.2,p.17.55.Ibidem,vol.2,pp.18,21.56.Ibidem,vol.2,p.19.57.Ibidem,vol.2,pp.30-1.58.DavidTreece,Exiles,Allies,Rebels:Brazil’sIndianistMovement,IndigenistPolitics,andthe

ImperialNation-State,Westport,GreenwoodPress,2000,p.161;FloraSüssekind,“Asvítimas-algozeseoimagináriodomedo”,introduçãocríticaaJoaquimManoeldeMacedo,Asvítimas-algozes:quadrosdaescravidão,SãoPaulo,Scipione/FundaçãoCasadeRuiBarbosa,1991.

59.Exemplar,nessesentido,éotextodacomissãoparlamentarencarregadadeelaborarparecersobreapropostadogovernoem1871;sessãode30dejunhode1871,AnnaesdoParlamentoBrazileiro.CamaradosSenhoresDeputados,anode1871,tomoiii,p.221.Comentooparecerdacomissão—fortementefavorávelaoprojeto—logoadiante.

60.Decretono1695,de15desetembrode1869,emLuizFranciscodaVeiga,Livrodoestadoservilerespectivalibertaçãocontendoaleide28desetembrode1871eosdecretoseavisosexpedidospelosministériosdaAgricultura,Fazenda,Justiça,ImpérioeGuerradesdeaqueladataaté31dedezembrode1875precedidodosatoslegislativoseexecutivos,embenefíciodaliberdade,anterioresàreferidalei,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1876,pp.17-8.SobrearesistênciadogabineteItaboraíàemancipação,Conrad,op.cit.,pp.87-8.Tambémháreferênciasaofatonasdiscussõesparlamentaresde1871;ver,porexemplo,ospronunciamentosdosdeputadosPintoMoreiraeNebias,nassessõesde7e21deagosto,respectivamente,AnnaesdoParlamentoBrazileiro.CamaradosSenhoresDeputados,anode1871,tomoiv,pp.77e219.SobreointeressedeAlencaremmelhorarascondiçõesdaescravidão,aoinvésdeintervirparaaboli-la,esuacrençadequeopaísevoluirianaturalmenteparaaemancipação,verTreece,op.cit.,p.

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176.Voltareiaessepontoadiante.61.Elementoservil:parecereprojetodeleiapresentadosàCamaradosSrs.Deputadosnasessãode16

deagostode1870pelacomissãoespecialnomeadapelamesmaCamaraem24demaiode1870,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1870.

62.JoséMurilodeCarvalho,Teatrodesombras:apolíticaimperial,cap.2.63.Conrad,op.cit.,p.89.64.Sessãode14dejulho,AnnaesdoParlamentoBrazileiro.CamaradosSenhoresDeputados,anode

1871,tomoiii,p.146.65.Sessãode30dejunho,AnnaesdoParlamentoBrazileiro.CamaradosSenhoresDeputados,anode

1871,tomoiii,pp.220-1.Sobreotemadarelaçãoentreemancipaçãoescravaeredençãoreligiosaemoralnopensamentoocidental,verDavidBrionDavis,Slaveryandhumanprogress,NovaYork,OxfordUniversityPress,1984.

66.AnnaesdoParlamentoBrazileiro.CamaradosSenhoresDeputados,anode1871,tomoiii,pp.221-2.

67.Idem,pp.222-3.68.Idem,pp.226-7.Acomissãonãodeixoudeobservarquequaseatotalidadedosconselheirosde

Estadohaviaexpressadoconcordânciacomaliberdadedoventre(p.226).69.Idem,p.227.70.Macedo,Asvictimas-algozes,p.388.71.AnnaesdoParlamentoBrazileiro.CamaradosSenhoresDeputados,anode1871,tomoiii,pp.227-

8.72.Sessãode13dejulhode1871,idem,tomoiv,pp.134-5.73.Parecerdacomissão,idem,tomoiii,p.223.74.Sessãode30dejunhode1871,idem,tomoiii,p.231.75.PimentaBueno,op.cit.,pp.86(Paranhos)e109(NabucodeAraújo).76.Sessãode11dejulho,AnnaesdoParlamentoBrazileiro.CamaradosSenhoresDeputados,anode

1871,tomoiii,p.95.77.Idem,p.95.78.Idem,pp.95-6.79.Sessãode18deagostode1871,idem,tomoiv,pp.171-2.80.“ConstituiçãoPolíticadoImpériodoBrasil”,capítulovi,“Daseleições”,artigos91a95,em

AdrianoCampanholeeHiltonCampanhole(orgs.),ConstituiçõesdoBrasil,4aed.,SãoPaulo,Atlas,1979,pp.664-5.

81.JoséAntônioPimentaBueno,TrabalhosobreaextinçãodaescravaturanoBrasil,p.40(Olinda)epp.32,196-7(Jequitinhonha).

82.Comodemonstreiemoutrotrabalho,essasvisõesdeépocasobreasupostaincapacidadepolíticadosnegrossãoàsvezesincorporadasporsociólogosehistoriadoresrecentes,comoFernandoHenriqueCardosoeJacobGorender;verSidneyChalhoub,Visõesdaliberdade:umahistóriadasúltimasdécadasdaescravidãonaCorte,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1990.Paraumaanálisemaisdetalhadadessarelaçãoentretestemunhosdeépocaeconstruçãodemitosacadêmicoshodiernossobreescravidão,verRobertSlenes,Nasenzala,umaflor,RiodeJaneiro,NovaFronteira,1999.

83.PimentaBueno,op.cit.,pp.86-8.84.Idem,p.109.85.Idem,pp.90-1.86.Paraoconfrontoentreoprojetooriginaldogovernoeasemendassugeridaspelacomissão

parlamentar,versessãode30dejunhode1871,AnnaesdoParlamentoBrazileiro.CamaradosSenhoresDeputados,anode1871,tomoiii,pp.231-3;sobre“redundância”,p.230.

87.Sessãode14dejulhode1871,Annaes,tomoiii,p.150.88.Sessãode31dejulhode1871,idem,p.304.89.Sessãode31dejulhode1871,idem,p.311.90.Sessãode30dejunhode1871,idem,p.230.91.PimentaBueno,op.cit.,p.148.92.Idem,pp.127-8.

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93.Sessãode31dejulhode1871,AnnaesdoParlamentoBrazileiro.CamaradosSenhoresDeputados,anode1871,tomoiii,p.304.

94.Idem,pp.306,308.95.Sessãode26deagostode1871,Annaes,tomoiv,pp.304,311.96.Sessãode30dejunhode1871,Annaes,tomoiii,p.232.97.Idem,p.230.98.Evidentemente,osdeputadoscontráriosaoprojetodefendiamqueoconsentimentodosenhor

fossenecessárioatéparaqueosescravosrecebessemdoaçõesoulegados;sessãode31dejulhode1871,Annaes,tomoiii,p.304.

99.Idem,pp.304-5.100.Naverdade,acomissãodoConselhodeEstadofoiamaisenfáticaedissequeoescravoque

oferecesseoseupreçoaosenhortinha“direitoperfeitoàsuaalforria”;PimentaBueno,op.cit.,p.148.NoSenado,Zacariasargumentouqueasemendasnoartigosobrepecúlioealforriaforçadanãopassavamde“concessõesaparentes”dogoverno;AnnaesdoSenadodoImperiodoBrazil,1871,vol.v,p.38.

101.VerSidneyChalhoub,Visõesdaliberdade,especialmenteocapítulo2.102.TheodorodaSilva,ministrodaAgricultura,discursandonoparlamentoemdefesadoprojetodo

governo,dissequeodeputadoPerdigãoMalheiroerao“generaldaidéia”.Referia-seàidéiacapitaldalei,aliberdadedoventre,eironizavaosdeputadosdaoposição,quechamavamoimperadorde“generaldaidéia”edesancavamasupostasubserviênciadogovernoàvontadedaCoroa.MasointeressanteéqueodeputadoCruzMachadointerveionessemomentoparadizerquesePerdigãoMalheiro“eraogeneraldaidéiadeverafazerpartedoministério”;aoqueacudiuFerreiradeAguiar:“Estaéqueéaquestão”;sessãode13dejulhode1871,Annaes,p.127.CruzMachadovotoucontraogoverno;FerreiradeAguiar,afavor;sessãode28deagostode1871,Annaes,tomoiv,p.317.SobreovetodoimperadoraonomedePerdigãoMalheiroparaoministério,JoaquimNabuco,UmestadistadoImpério,p.734.SobrePerdigãoMalheiroeaimportânciadeseulivro,AescravidãonoBrasil,verSidneyChalhoub,Visõesdaliberdade,pp.36-7,131-43,eEduardoSpillerPena,PajensdaCasaImperial:jurisconsultoseescravidãonoBrasilimperial,Campinas,EditoradaUnicamp,2000.

103.Sessãode9deagostode1871,Annaes,tomoiv,p.103;vertambémasessãode26deagostode1871,nomesmovolume,p.298.

104.Sessãode9deagostode1871,idem,p.103.105.Sessãode14dejulhode1871,Annaes,tomoiii,p.143.106.Sessãode7deagostode1871,Annaes,tomoiv,p.82.107.IlmarRohloffdeMattos,Otemposaquarema:aformaçãodoEstadoimperial,3aed.,Riode

Janeiro,Access,1994.108.Sessãode23deagostode1871,Annaes,tomoiv,p.245.109.RaimundodeMenezes,JosédeAlencar:literatoepolítico,RiodeJaneiro,LivrosTécnicose

Científicos,1977,pp.241-61.110.Idem,p.371.111.JosédeAlencar,Otroncodoipê,SãoPaulo,Ática,1993,cap.i(ediçãooriginal:RiodeJaneiro,B.

L.Garnier,1871).112.Ver,porexemplo,MárciaMariaMenendesMotta,op.cit.113.VerSilviaCristinaMartinsdeSouzaeSilva,“Idéiasencenadas:umainterpretaçãodeOdemônio

familiar,deJosédeAlencar”,dissertaçãodemestradoemHistória,Unicamp,1996.114.Sessãode14dejulhode1871,AnnaesdaCamaradosDeputados,tomoiii,p.143.115.Sessãode13dejulhode1871,Annaes,tomoiii,p.139.116.Idem,pp.134-5.117.Idem,p.134.118.JosédeAlencar,Til,SãoPaulo,Ática,1980.119.Sobreofuncionamentodosistemapolíticoimperial,verRichardGraham,PatronageandPolitics

inNineteenth-CenturyBrazil,Stanford,StanfordUniversityPress,1990.120.Sessãode13dejulhode1871,Annaes,tomoiii,p.138.121.Sessãode10dejulhode1871,Annaes,tomoiii,p.87.122.Idem,p.87.

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123.Sessãode26deagostode1871,Annaes,tomoiv,p.305(grifosdooriginal).124.RaimundodeMenezes,op.cit.,p.295.125.MachadodeAssis,EsaúeJacó,cap.1(publicadooriginalmenteem1904).126.AnnaesdoSenadodoImperiodoBrazil,1871,vol.v,p.286.AocontráriodaCâmara,osAnnaes

doSenadonãoregistramosnomesdosparlamentaresquevotaramafavoroucontraalei;nemsequerregistramosnúmerosfinaisdavotação.

127.Sessãode7deagostode1871,AnnaesdaCamaradosDeputados,tomoiv,p.84.128.Sessãode23deagostode1871,idem,pp.248-9.129.Sessãode26deagostode1871,idem,p.292.130.Sessãode23deagostode1871,idem,p.248.131.Sessãode26deagostode1871,idem,pp.296-7.132.JoséAntônioPimentaBueno,TrabalhosobreaextinçãodaescravaturanoBrasil,p.151.133.“Leino2040—de28desetembrode1871”,emLuizFranciscodaVeiga,Livrodoestadoservile

respectivalibertação...,pp.25-30;oartigocitadoestánap.29.Doravante,todasasreferênciasaotextofinaldaleide28desetembrosãoextraídasdessafonte.

134.Sessãode4desetembrode1871,AnnaesdoSenado,vol.v,p.39.Tambéméinteressanteofatode,notextodoConselhodeEstado,presumir-se“livre”oescravonãolevadoàmatrícula;notextofinaldalei,taispessoassãoconsideradas“libertas”.Aquiseevitaotipodeambigüidadeabertamenteadmitida,comovimos,nocasodosfilhoslivresdemulherescrava.Defato,nosdebatesnoConselhodeEstado,Paranhoscitaradepassagemalegislaçãoportuguesa,queestendiaa“certasclasses”delibertos—“bacharéis,clérigosdeordenssacras,oficiaisdoexércitoedaarmadaetc.”—“ofavor”deseremtidoscomoingênuos.Ouseja,essalinhaderaciocíniolevariaàdiscussãosobreapossibilidadedeconcederdireitospolíticosplenosaomenosa“certasclasses”delibertos.MasParanhosapressou-seadizerquetalalvitreferiaaConstituiçãodoImpério,enãoencontreiqualqueroutramençãoaoassuntonasfontesqueconsultei.Dequalquerforma,érelevanteocuidadodogovernoemchamar“libertos”aosnão-matriculados,arrolhando-seassimdebatesposterioressobreesseponto.VerPimentaBueno,op.cit.,pp.86-7.

135.“Decretono4835—de1odedezembrode1871”e“RegulamentoaqueserefereoDecretono

4835destadata,paraexecuçãodoart.8odaLeino2040de28desetembrode1871”,ColleçãodasleisdoimperiodoBrasil.

136.ConselhodeEstado,pareceres,caixa599,pacote3,documento90,ArquivoNacional(an).137.Em29denovembrode1873,portantopoucosdiasantesdeencaminharaconsultaaoConselho

deEstado,oMinistériodaAgriculturaexpediraumacircularcomoseguintetítulo:“ExigedosPresidentesdeProvínciainformaçõesacercadaexecuçãoquetêmtidoasdisposiçõesrelativasàemancipaçãodoestadoservil”.Nosegundoitemdodocumento,perguntava“seforamexecutadasasdisposiçõesrelativasàmatrículaespecialdosescravosedosingênuos,declarandoqualonúmerodeunsedeoutrosmatriculadosatéofimdesetembroúltimo”;LuizFranciscodaVeiga,Livrodoestadoservilerespectivalibertação...,p.93.

138.ConselhodeEstado,pareceres,caixa599,pacote3,documento91,an.Oparecerfoisolicitadoemavisode6deagostoeemitidoem29desetembrode1874.

139.RelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaquartasessãodadecimaquintalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasJoséFernandesdaCostaPereiraJunior,RiodeJaneiro,TypographiaAmericana,1875,p.6.Paraosdadosgeraisdamatrículadecorrentedaleide1871,ver,porexemplo,RelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaterceirasessãodadecimaoitavalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegóciosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasHenriqued’Avila,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1882,p.10,eRelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaquartasessãodadecimaoitavalegislaturapeloMinistroeSecretariodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasAffonsoAugustoMoreiraPenna,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1884,p.187.Osdadosdessesdoisrelatóriosdiscrepamumpouco:neles,ostotaisdamatrículasãode1540796e1541819,respectivamente.

140.“Circularno4”,de10dedezembrode1875,naqualse“Pedeesclarecimentosarespeitodosmunicípiosnosquaisdeixoudeverificar-seamatrículadeescravos,atéodia30desetembrode1873,porfaltadeagentesoficiaisoudosrespectivoslivros”;emLuizFranciscodaVeiga,op.cit.,p.195.

141.RelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaprimeirasessãodadecimasexta

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legislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasThomazJoséCoelhodeAlmeida,RiodeJaneiro,TypographiaPerseverança,1877,p.9.

142.MachadoingressounoMinistériodaAgricultura,comoprimeirooficial,pordecretode31dedezembrode1873,nocontextodeumareorganizaçãoadministrativadarepartição(decretono5512,de30dedezembrode1873).Tornou-sechefedasegundaseçãodaDiretoriadaAgriculturapordecretode7dedezembrode1876;verRelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaquartasessãodavigésimalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadointerinodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasRodrigoAugustodaSilva,RiodeJaneiro,ImprensaNacional,1889,anexointitulado“PessoaldaSecretariadeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicas”.Forachefedeseçãointerinoaomenosemduasocasiõesanteriores.Duranteosanosde1874e1875,trabalhavanaprimeiraseçãodaDiretoriaCentral,tendocertamentechefiadoosetordesetembroadezembrode1875.ParacomprovarapresençadeMachadonestaseçãoem1874,consultarolivrodeminutasdeavisoseofícios,noqualacaligrafiadeleéclaramentereconhecível;verÍndicedebuscadadocumentaçãoidentificada(Gifi),MinistériodaAgricultura,5D-206,an.Para1875,verolivrodeminutascorrespondente,noqualédenovopossívelreconheceracaligrafiadofuncionário;paradirimirqualquerdúvida,hánestelivroumrecado,datadode8dejaneirode1875,assinadoporMachado;5D-204,an.Sobreoexercíciodachefiadessaseçãonosegundosemestrede1875,verGifi1B1-5,an;nessepacoteestãooslivrosdeminutasdasegundaseçãodaDiretoriaCentral,enelesconstamasfolhasdevencimentosdosfuncionáriosdoministério.Emmeadosde1876,MachadoestavachefeinterinodasegundaseçãodaDiretoriadaAgricultura,funçãonaqualfoiefetivadoemdezembrodomesmoano;háumdocumentodareferidaseção,sobrequestãodeterrasnoMunicípioNeutro,datadode3denovembrode1876,redigidoeassinadoporeleemGifi4B-174,an.OutrosdocumentosquecomprovamachefiainterinadeMachadonessaseçãoaparecerãoadiante.MachadodeAssispermaneceuchefedasegundaseçãonorestantedosanos1870edurantequasetodaadécadade1880,salvonoperíodoemqueserviucomooficialdegabinetedoministro;foipromovidoadiretornofinaldosanos1880.ÉpossívelreconheceracaligrafiadeMachadoemváriosdoslivrosdeminutasdeofícioseavisosreferentesàsessão—oraaredigirelemesmoosdocumentos,oraaemendarotextodeoutros.Ver,noArquivoNacional,assériesia-5eia-6,índiceBoulier.VertambémRaimundoMagalhãesJúnior,MachadodeAssis,funcionáriopúblico(NoImpérioenaRepública),RiodeJaneiro,MinistériodaViaçãoeObrasPúblicas,1958e,domesmoautor,MachadodeAssisdesconhecido,SãoPaulo,LivrosIrradiantes,1971,pp.150-64.

143.Avisosde22dedezembrode1876,“Mandaabriramatrículadeescravos,duranteoprazodeumano,naquelesmunicípiosdaprovínciadePernambuco,ondetalserviçosenãorealizouporfaltadeagentesoficiaisoudelivrospróprios”;de23dedezembrodomesmoano,“Estabeleceregrasparaaexecuçãodamatrículadeescravosquesemandouabrir”;eoutrodamesmadata,“Acusarecebidaaparticipaçãodehaversido,emtempo,efetuadaamatrículaespecialdeescravos”;tudonosAnnexosdoRelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaprimeirasessãodadecimasextalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasThomazJoséCoelhodeAlmeida,RiodeJaneiro,TypographiaPerseverança,1877,pp.101-6.

144.ConselhodeEstado,pareceres,caixa603,pacote3,documento80,an.Trata-sedecópiadedocumentodasegundaseçãodoMinistériodaAgricultura,incluídoemdossiêparainformarconsultaàseçãodeJustiçadoConselhodeEstado.Salvoindicaçãoemcontrário,oqueseseguesobreocasoébaseadonestedossiê.OmesmomaterialestápublicadonosAnnexosaoRelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaprimeirasessãodadecimasetimalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasJoãoLinsVieiraCansansãodeSinimbú,RiodeJaneiro,ImprensaIndustrialdeJoãoPauloFerreiraDias,1878,pp.12-5.

145.VerosAnnexoscitadosacima;apáginanãoestánumerada.146.Meurelatodocasobaseia-senosdocumentosreunidosnosAnnexosdoRelatorio...ThomazJosé

CoelhodeAlmeida,volumejácitado,pp.65-78.TaisdocumentosestãoreproduzidostambémemManoeldaSilvaMafra,Promptuariodasleisdemanumissãoouindicealphabeticodasdisposiçõesdalein.2040de28desetembrode1871,regulamentosn.4835de1odedezembrode1872,n.4960de8demarçode1872,no6341de20desetembrode1876eavisosdoMinistériodaAgricultura,CommercioeObrasPublicasedajurisprudenciadoConselhodeEstado,dosTribunaesdasRelaçõeseSupremoTribunaldeJustiça,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1877,pp.278-98.VeraindaoslivrosdeRaimundoMagalhãesJúnior

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citadosnanota142,acima;eLenineNequete,Escravos&MagistradosnoSegundoReinado,Brasília,FundaçãoPetrônioPortella,1988,pp.117-22.AbordeioepisódioanteriormenteemSidneyChalhoub,“MachadodeAssiseapolíticaemancipacionista”,AnnaesdaBibliotecaNacional,RiodeJaneiro,vol.16,1996(publicadoem1999),pp.123-32.

147.A“especialidade”deDinizVillas-BôaséatestadaporXavierPinheiro,outrofuncionáriodoministério:“AsobservaçõesoferecidaspelodignooficialoSr.DinizVillas-Bôasdemonstramozelocomqueseaplicaaoexame,quelheestáexclusivamenteacargo,dasquestõesrelativasàexecuçãodaLeino2040de28desetembrode1871eseusregulamentos”(grifomeu);AnnexosdoRelatorio...ThomazJoséCoelhodeAlmeida,p.70.OpróprioMachadodizterconsultadoDinizVillas-BôasnumdeseuspareceressobreocasodasmatrículasemPernambuco:“DevodizerquesobreafaltadematrículaemVilla-Bellainforma-meoSr.DinizVillas-BoasquehouveemtempocomunicaçõesaesteMinistério...”;emAnnexosaoRelatorio...JoãoLinsVieiraCansansãodeSinimbú,p.14.

148.ConselhodeEstado,pareceres,caixa601,pacote3,documento82,an.Recolhitudooqueseseguesobreocasonessedossiê—além,éclaro,dostextosdaleide28desetembrode1871edoregulamento(“paraamatrículaespecialdosescravosedosfilhoslivresdemulherescrava”)de1odedezembrode1871,jácitados.

149.Paraoutrocasorelacionadoàmatrícula,noqualosconselheirostranscrevemnaíntegraumparecerdeMachadodeAssis,verConselhodeEstado,pareceres,caixa604,pacote3,documento65,an.Aconsulta,enviadapelasegundaseçãoemdezembrode1879,eapreciadaemreuniãoconjuntadasseçõesdoImpérioedaJustiçaem26demarçode1880,erasobre“Seadisposiçãodoart.19doRegulamentoquebaixoucomoDecretono4835de1odedezembrode1871podeseraplicadaaocasoemqueosenhordoescravo,obtidaasentençadequetrataoreferidoartigodeixadematriculardentrodeumprazoigualaodamatrículaestabelecidonosartigos10e16domesmoRegulamento”.Machadoachouqueosenhorestavaobrigadoamatricularoescravoemseguidaàobtençãodasentençafavorável;oescravonãomatriculadoteriadireitoàliberdade.Osconselheirosforamdamesmaopinião,eantepuseramàtranscriçãodoparecerdeMachadoaseguinteobservação:“Referindo-seaocasoquemotivouaconsultadiznostermosdamaiorprecisãojurídicaainformaçãodaSecretaria:”(grifomeu).

150.“Decretono5135—de13denovembrode1872”e“RegulamentoaqueserefereoDecretono

5135de13denovembrode1872”,artigo27,emColleçãodasleisdoimperiodoBrasil.151.MachadodeAssis,“Históriade15dias”,emAfrânioCoutinho(org.),MachadodeAssis:obra

completa,RiodeJaneiro,EditoraNovaAguilar,1986,vol.iii,p.352.TextopublicadooriginalmentenaIlustraçãoBrasileira,em1odeoutubrode1876,segundoGalantedeSousa,BibliografiadeMachadodeAssis,p.492.

152.SidneyChalhoub,Visõesdaliberdade,passim.153.“Históriade15dias”,15desetembrode1876,emAfrânioCoutinho(org.),op.cit.,vol.iii,p.

348.154.VerosAnnexosdoRelatorio...ThomazJoséCoelhodeAlmeida,datadode15dejaneirode1877.

Seconteicorretamente,asegundaseçãoexpediu41avisos,circulareseoutrasorientaçõessobreemancipaçãodejulhoadezembrode1876;distribuíraapenas19dejaneiroajunho.Comovimos,Machadoestavacertamentechefeinterinodaseçãoapartirdejulhode1876.

155.RelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaprimeirasessãodadecimasextalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasThomazJoséCoelhodeAlmeida,1877,pp.12-4.

156.“Decretono6341de20desetembrode1876”,emAnnexosdoRelatorio...ThomazJoséCoelhodeAlmeida,semnúmerodepágina.

157.Relatorio...ThomazJoséCoelhodeAlmeida,1877,pp.13-4.158.“RegulamentoaqueserefereoDecretono5135de13denovembrode1872”,artigos34a37,

ColleçãodasleisdoimperiodoBrasil.159.ConselhodeEstado,pareceres,caixa602,pacote3,documento76,an.Recolhitudooque

apresentosobreocasonessedossiê.OparecercitadodeMachadoestálátranscrito.160.“Avisode14denovembrode1876”,emAnnexosdoRelatorio...ThomazJoséCoelhodeAlmeida,

p.93.161.Nesseepisódio,tambémorigináriodaprovínciadoMaranhão,aescravaMariadaGlóriafora

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preteridaembenefíciodeoutradenomeEsmeralda.MariadaGlóriatinhacincofilhoslivres,doisdosquaisnascidoscomotaisemvirtudedaleide28desetembrode1871,ejuntaraumpecúliode200mil-réisparacontribuirnaobtençãodesualiberdade.Eraexemplodealtaprioridadesegundooscritériosestabelecidosparaaaplicaçãodofundodeemancipação.JáEsmeraldanãotinhafilhos,livresouescravos.OgovernomanteveaalforriadeEsmeralda,ecompletouosquase100mil-réisquefaltavamparalibertarMariadaGlória.Paraapetiçãodosproprietáriosdaescravaaogovernoimperial,verGifi,MinistériodaAgricultura,maço5F-292,an;vertambémo“Avisode27desetembrode1876”,AnnexosdoRelatorio...ThomazJoséCoelhodeAlmeida,p.57.

162.“Históriade15dias”,15dejunhode1877,emAfrânioCoutinho(org.),op.cit.,vol.iii,pp.367-9.

163.Nãoseiseéprecisolembrar,aqui,aexposiçãoàsavessasda“teoriadobenefício”porQuincasBorba,emMemóriaspóstumasdeBrásCubas,cap.cxlix.

164.ConselhodeEstado,pareceres,caixa603,pacote3,documento79,an.Sobrearepetiçãodeestratagemasdessetipopelossenhores,ver,porexemplo,orelatóriodoministroAffonsoPenna,datadodemaiode1884,noqualresumem-seascausasdofracassodofundodeemancipação:“Outrossenhorespromoviamocasamentodeseusescravos,duranteoprocessodaclassificação,paraassimcolocá-losnosprimeirosgrausdaescaladapreferência,doqueresultava,alémdealteraçõesfreqüentesnaclassificaçãoeprolongadademoranostrabalhos,afacilidadedeserdeterminadaapreferênciaafavordeescravosidososouenfermosemdanodeoutrosaquemassistiadireito”;RelatorioapresentadoàAssembléaGeralnaquartasessãodadecimaoitavalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasAffonsoAugustoMoreiraPenna,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1884,pp.210-1.

165.Asoluçãofoidivulgadano“Avisode7demarçode1879”:“Declaraqueapesardeinválidoereconhecidodenenhumvalor,deveoescravoclassificadoserhavidocomolivre,nãocabendoaoex-senhoraobrigaçãodeosustentar”;AnnexosaorelatorioapresentadoàAssembléaGeralnaterceirasessãodadecimasetimalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasManoelBuarquedeMacedo,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1880,p.5.

166.Versobreisso,porexemplo,outraconsultaorigináriadasegundaseçãodaDiretoriadaAgriculturaaoConselhodeEstado,emabrilde1878;ConselhodeEstado,pareceres,caixa603,pacote3,documento78,an.

167.Machadorecebia200mil-réiscomo“gratificaçãodeexercício”nogabinetedoministro,alémdosaláriohabitualde450mil-réis(inalteradoatéofinaldosanos1880)quepercebiacomochefedeseção;verGifi,Agricultura,maço1B1-106,an.

168.RelatorioapresentadoàAssembléaGeralnaterceirasessãodadecimasetimalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasManoelBuarquedeMacedo,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1880,partevi,semnúmeronapágina.

169.“Estatísticadapopulaçãoescrava”,Relatorio...AffonsoAugustoMoreiraPenna,1884,p.187.VertambémJoaquimNabuco,Oabolicionismo,Petrópolis,Vozes/inl,1977,pp.107,125-6(1aed.:1883).

170.MachadodeAssis,BONSDIAS!Crônicas(1888-1889),edição,organizaçãoenotasdeJohnGledson,SãoPauloeCampinas,HuciteceEditoradaUnicamp,1990,pp.47-8.

171.ConselhodeEstado,pareceres,caixa552,pacote2,documento45,aneConselhodeEstado,pareceres,caixa611,pacote1,documento60,an.

172.ParalistagemdehabitaçõescoletivasdafreguesiadeSantana,nodistritoqueabrangiaaruadoConded’Eu,ver,porexemplo,is4-32,MinistériodoImpério/JuntaCentraldeHigienePública,ofíciosedocumentosdiversos,1879,an(“Mapademonstrativodonúmerodasestalagenseseusquartos,dimensõesdestes,lotaçãodeseushabitantes,tempodeedificaçãoeestadodeconservaçãoeasseio,pelo2odistritodacomissãodafreguesiadeSantana”);paraummapadaárea,“PlantadaCidadedoRiodeJaneiro,ReduzidaedesenhadaporJoséRibeirodaFonsecaSilvares,1882”,ArquivoGeraldaCidadedoRiodeJaneiro(agcr).

173.E.P.Thompson,Aformaçãodaclasseoperáriainglesa,RiodeJaneiro,PazeTerra,1987,vol.1,cap.1,“Númeroilimitadodemembros”;sobreassociaçõesdetrabalhadoresnoBrasilimperial,verCláudioH.deM.Batalha,“SociedadesdetrabalhadoresnoRiodeJaneirodoséculoxix:algumasreflexõesemtornodaformaçãodaclasseoperária”,CadernosAEL,vol.6,no10/11,1999,pp.43-68;vertambémRonaldoPereiradeJesus,“Opovoeamonarquia:aapropriaçãodaimagemdoimperadoredoregimemonárquico

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entreagentecomumdaCorte(1870-1889)”,tesededoutoradoemHistória,usp,2001,cap.iii.174.ConselhodeEstado,pareceres,caixa552,pacote2,documento43,an;ConselhodeEstado,

pareceres,caixa611,pacote1,documento60,an.175.SobreSantana,alémdasfontesindicadasnanota172,vercódice43-1-29,Estatísticasdas

Estalagens,AgênciadeSantana,1894,agcrj.176.CláudioBatalha,cit.Oartigo,todavia,nãoincluiasorganizaçõesdetrabalhadoresnegrosaqui

comentadasnoroldas“sociedadesdetrabalhadoresnoRiodeJaneirodoséculoxix”.177.Leino1083de22deagostode1860,“ContendoprovidênciassobreosBancosdeemissão,meio

circulanteediversasCompanhiaseSociedades”;areferênciaànecessidadedeaprovaçãodoPoderExecutivo,comparecerdoConselhodeEstado,estánoartigo2odessalei.Decretono2686,de10denovembrode1860,“MarcaoprazodentrodoqualosBancoseoutrasCompanhiaseSociedadesanônimas,suasCaixasFiliaiseagências,queatualmentefuncionamsemautorizaçãoeaprovaçãodeseusEstatutos,devemimpetrá-las”.Decretono2711,de19dedezembrode1860,“ContémdiversasdisposiçõessobreacriaçãoeorganizaçãodosBancos,Companhias,Sociedadesanônimaseoutras,eprorrogapormaisquatromesesoprazomarcadopeloartigo1odoDecretono2686de10denovembrodocorrenteano”;osartigos9oe27dessedecretolistamositensaseremavaliadospeloConselhodeEstadoemseuspareceressobreassociedadeseseusestatutos.TudonaColleçãodasleisdoImperiodoBrasil.

178.ConselhodeEstado,pareceres,caixa531,pacote3,documento46,an.179.AbordeioproblemadaideologiaracialedaintolerânciaemrelaçãoàculturanegraemCidade

febril:cortiçoseepidemiasnaCorteimperial,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1996.Essesilênciosobreacordeitavaraízesprofundasnasociedade,comosevênoestudocrucialdeHebeMariaMattosdeCastro,Dascoresdosilêncio:ossignificadosdaliberdadenosudesteescravista—Brasil,séculoXIX,RiodeJaneiro,ArquivoNacional,1995.

180.Certamente,houveoutrassociedadesdetrabalhadoresnegros,naCorteeemoutroslugares,comobjetivosecaracterísticassemelhantesaessasquepudelocalizar.Paraumexemplointeressantíssimo,foradaCorte,verPauloRobertoStaudtMoreira,“Oscativoseoshomensdebem.PráticaserepresentaçõessobrecativeiroeliberdadeemPortoAlegrenasegundametadedoséculoxix(1858-1888)”,doutoradoemHistória,ufrgs,2001.Nomaterialconsultado,provenientedoConselhodeEstado,encontrei,paraoperíodoanterioràleide28desetembrode1871,osestatutosdaSociedadeUniãoLotéricaCadeiradeOuro.Oobjetivodaassociaçãoera“quecompequenasentradasdecadaumdeseusmembrospudessecomprarbilhetesdeloteria,cujosprêmiosserãoempregadosnacompradeliberdadedealgumdosassociados”.Osestatutosdiziamtambémqueasociedade“teráobrigaçãodevisitarosSóciosqueestiveremdoentesesocorrê-losconformeassuasposses”.Essaparte“beneficente”pareciacontudobempoucodesenvolvidanocasodessasociedade.Outracaracterísticaqueadistinguiadasoutrascomentadaseraafixaçãodonúmeromáximodesóciosemtrinta.Dequalquermodo,temosaquioutrasociedadecomparticipaçãodeescravos,organizadaparacompraralforrias,aindaqueparaisso,nocaso,contassecomasortenaloteriaeaajudade“DeusNossoSenhorJesusCristo”,comosedizianoartigooitavodeseusestatutos.VerConselhodeEstado,pareceres,caixa550,pacote3,documento37,an(consultade21demarçode1871).

181.UmdossiêdequasecinqüentapáginassobreocasoestáemGifi,5F-292,an.182.OmesmomaçoGifi,5F-292etambémoGifi,5F-291,trazemoutrosdossiêssobrecasosque

tramitaramnasegundaseçãodaDiretoriadaAgriculturadoministérioduranteoanode1876,algunsdosquaiscompareceresouencaminhamentosdeMachadodeAssis.Váriosdessesdossiêstratamdepolíticadeterras.Háoutrossobrealeide1871,masnenhumdelestãodensoquantoolamentodoproprietáriodeBarbacena.Resumoosdemaiscasossobreescravidãoemseguida(todosprovenientesdomaço5F-292):

1)RequerimentodeMariaTerezaSaraiva,alegandoquehaviaocorridoenganonoregistrodonomedeumadasescravasdeseufalecidofilho,AntônioFerreiradeCarvalho.OnomedaescravaeraElisa,ficousendoLuísa.Pedeautorizaçãopararetificaroerro,poisojuizencarregadodelevarosescravosdoespólioàarremataçãohaviaexcluídoessaescravaatéquesuaidentidadefosseestabelecida.AinformaçãodocoletordeBarraMansa,ondeamatrículahaviasidofeita,confirmouahistóriadeMariaTereza,eseupedidoderetificaçãofoideferido,comaconcordânciadeMachadodeAssis,mascomasugestãodeDinizVillas-Bôasdequeseexigissecertidãodebatismoououtro“título”quecertificasseapossedaescravapelasenhora.

2)RequerimentodeJoséChristovamdaFonseca,pedindoautorizaçãoparamatricularOlívia,filhadaescravaMaria,comoingênua.AcontecequeMariahaviadadoàluzOlívia,edepoismorrido,quandoestava

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emdepósitopúblicoporhaverentradocomaçãodeliberdadecontraoseusenhor.AsegundaseçãoeodiretordaDiretoriadaAgriculturaconsideramincertaacondiçãodeOlívia—livreouingênua—eencaminhamospapéisaojuizaparentementeencarregadodejulgaraaçãodeliberdade.

3)JerônimoJosédeMellopedecertidãodedespachodoMinistériodaAgriculturaarespeitodepedidodeAnnaIsabelRibeiroBelfortparaqueelarecebesseindenizaçãopelossalários(aluguéis)deumasuaescravaqueficaraemdepósitopúblicoduranteoperíodoemquesualiberdadeestiveraemlitígio.ThomazCoelhomandoupassaracertidão,masosoriginaisdodespachoestãoquaseilegíveisenãoseiseinformaqualoteordodocumentosobreoqualsesolicitaacertidão.Enfim,nãodescobriseoprotestofoiacolhidoeasenhoraconsideradacomdireitoàindenizaçãopelossaláriosdaescrava.

4)ObacharelJoséBernardesdaSilvaBelfortreclamadopresidentedaprovínciadoMaranhão,emassuntorelacionadoàliberdadedeescravapelofundodeemancipação.Aescrava,quetinhafilhoslivres,haviaficadodeforadasliberdadesconcedidaspelofundonoano;osenhorrecorreuefoireconhecidooseudireitoàliberdade.Masnãohaviamaisrecursosdofundoparapagarintegralmenteovalordaindenização,eopresidentedaprovínciadecidiraqueosenhorteriadeaceitarosaldoremanescentedofundodaqueleano,ouesperaroanoseguinte.AsegundaseçãoencaminhaocasoaoprocuradordaCoroa.Paraostrâmitesseguinteseasoluçãodessecaso,veracima,nota161.

183.RelatorioapresentadoàAssembléaGeralnaprimeirasessãodadecimaquintalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasFranciscodoRegoBarrosBarreto,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1872,p.5.

184.ConselhodeEstado,pareceres,caixa599,pacote3,documento73,an.185.ConselhodeEstado,pareceres,caixa602,pacote3,documento42,an.186.ConselhodeEstado,pareceres,caixa602,pacote3,documento44,an.187.OdeputadoMartimFrancisco,porexemplo,durantedebatesobrereformaeleitoralnofinaldos

anos1870,declarou-sefavorávelaovotofeminino,aparentementeapenasdemulheresviúvasouseparadasdosmaridos;citadoemSérgioBuarquedeHolanda,OBrasilmonárquico.Doimpérioàrepública,2aed.,coleçãoHistóriaGeraldaCivilizaçãoBrasileira,RiodeJaneiroeSãoPaulo,Difel,1977,tomoii,vol.5,p.212.

188.ConselhodeEstado,pareceres,seçãoImpério,códice783,volume2(1876-77),documento2,an.189.MemóriaspóstumasdeBrásCubas,cap.lxxxvii.190.JoséAntônioPimentaBueno,TrabalhosobreaextinçãodaescravaturanoBrasil,pp.90-1.191.RelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaquartasessãodadecimaquartalegislatura

peloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasBarãodeItaúna,RiodeJaneiro,TypographiaAmericana,1872,p.6.Oparágrafodaleide1871queoriginaraadúvidadospárocosforaoquinto,doartigooitavo.

192.RelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaprimeirasessãodadecimaquintalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasFranciscodoRegoBarrosBarreto,RiodeJaneiro,TypographiaAmericana,1872,p.4;RelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaquartasessãodadecimaquintalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasJoséFernandesdaCostaPereiraJunior,RiodeJaneiro,TypographiaAmericana,1875,p.9.

193.RelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaprimeirasessãodadecimasextalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasThomazJoséCoelhodeAlmeida,RiodeJaneiro,TypographiaPerseverança,1877,p.11.

194.AnnexosdorelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaprimeirasessãodadecimasextalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasThomazJoséCoelhodeAlmeida,RiodeJaneiro,TypographiaPerseverança,1877.Umofíciode23dejaneirode1877,doministroaopresidentedaprovínciadoEspíritoSanto,redigidonasegundaseção,comentaassimainformaçãodequenumafreguesiadaquelaprovínciaoprimeirolançamentodefilholivredemulherescravaocorreraem2denovembrode1874:“Nãosendoverossímilquesónaqueladataocorresseoprimeirocasodebatismodefilholivredemulherescrava,hajaV.Ex.deexigirdomesmovigárioinformaçãodomodopeloqualerafeitoanteriormenteoserviço”;nãoháindicaçãodenúmerodepágina.Háoutrosdocumentossobreosfilhosdasescravasexpedidosem23dedezembrode1876,24e29dejaneirode1877.

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195.RelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanasegundasessãodadecimasextalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasThomazJoséCoelhodeAlmeida,RiodeJaneiro,1877,pp.9-10(“Educaçãodeingênuos”)e11-3(“Matrículadeingênuos...”).

196.Ver,porexemplo,RelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaprimeirasessãodadecimasetimalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasJoãoLinsVieiraCansansãodeSinimbu,RiodeJaneiro,ImprensaIndustrial,1878.Nesserelatório,noíndice,vemos“Matrículadosfilhosdeescravas...”;maisabaixo,porém,está“Educaçãodeingênuos”.Damesmaforma,emavisode20demarçode1878,emseislinhas,“filhoslivresdemulherescrava”e“ingênuos”aparecemumavezcada.Numgolpedevista,porém,vê-sequeapráticapredominanteerausaraprimeiraexpressão.

197.ConselhodeEstado,pareceres,caixa602,pacote3,documento75,an.198.RelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaprimeirasessãodadecimasetima

legislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasJoãoLinsVieiraCansansãodeSinimbu,semindicaçãodepágina.

199.Sessãode30dejunho,AnnaesdoParlamentoBrasileiro.CamaradosSenhoresDeputados,anode1871,tomoiii,p.230.

200.Ver,porexemplo,assessõesde8e13demaio,AnnaesdoParlamentoBrazileiro.CamaradosSenhoresDeputados,anode1879,tomoi,pp.56-65e122-3.

201.RelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaprimeirasessãodadecimasetimalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasJoãoLinsVieiraCansansãodeSinimbu,p.22.

202.RelatorioapresentadoàAssembléaGeralLegislativanaquartasessãodadecimaoitavalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasAffonsoAugustoMoreiraPenna,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1884,pp.184-5.

203.ConselhodeEstado,pareceres,caixa604,pacote3,documento72,an.204.ConselhodeEstado,pareceres,seçãodeAgricultura,códice783,volume1(1876-83),documento

2,an.AoutraconsultamencionadaestáemConselhodeEstado,pareceres,caixa602,pacote3,documento43,an;estaerasobre“orequerimentoemqueobacharelJoséPereiradoNascimentodaMattapedeautorizaçãoparaorganizarumasociedadedestinadaaamparareeducarosfilhoslivresdemulherescrava”.

205.CéliaMariaMarinhodeAzevedo,Ondanegra,medobranco.Onegronoimagináriodaselites—séculoXIX,RiodeJaneiro,PazeTerra,1987.

206.ConselhodeEstado,pareceres,caixa602,pacote3,documento77,an;sobreomesmoassunto,ConselhodeEstado,pareceres,seçãodeAgricultura,códice783,volume1(1876-83),documento27,an.

207.AnnexosaorelatorioapresentadoàAssembléaGeralnaterceirasessãodadecimasetimalegislaturapeloMinistroeSecretariodeEstadodosNegociosdaAgricultura,CommercioeObrasPublicasManoelBuarquedeMacedo,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1880,p.20.

208.Sobrearepercussãonaimprensa,verHéliodeSeixasGuimarães,“OsleitoresdeMachadodeAssis.Oromancemachadianoeopúblicodeliteraturanoséculo19”,tesededoutoradoemTeoriaeHistóriaLiterária,Unicamp,2001,pp.53-5.

209.MachadodeAssis,“Históriade15dias”,emAfrânioCoutinho(org.),MachadodeAssis:obracompleta,vol.iii,pp.343-6.TextopublicadooriginalmentenaIlustraçãoBrasileira,segundoGalantedeSousa,BibliografiadeMachadodeAssis,p.491.

210.JoséMurilodeCarvalho,Aconstruçãodaordem.Aelitepolíticaimperial,RiodeJaneiro,Campus,1980,p.65.

211.SérgioBuarquedeHolanda,OBrasilmonárquico.Doimpérioàrepública,p.184.212.Ibidem,pp.189-91.213.SegundoJoséMurilodeCarvalho,100%dosparlamentaresrepresentavamopartidoliberalna

legislaturade1878-81;Teatrodesombras,p.153.214.Paraosdebatessobrereformaconstitucional,consulteiAnnaesdoParlamentoBrazileiro.Camara

dosSenhoresDeputados,primeiroanodadécimasétimalegislatura,sessãode1878,tomoiii,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1879;idem,segundoanodadécimasétimalegislatura,sessãode1879,tomoi,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1879;alémdisso,háoexcelentecapítulodeSérgioBuarquedeHolanda

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sobreoassunto,intitulado“Liberaiscontraliberais”,op.cit.,pp.195-238.215.SérgioBuarquedeHolanda,op.cit.,pp.202-3.216.Durantediscursonasessãode28demaiode1879,JoséBonifáciopergunta:“Emumpaíscomoo

nossopodeisesperarqueempoucotemposeaprendaalereportodaparte?Istoésério?”;AnnaesdaCamaradosDeputados,sessãode1879,tomoi,pp.437-8.

217.AnnaesdoParlamentoBrazileiro.CamaradosSenhoresDeputados,segundoanodadécimasétimalegislatura,tomoi,pp.408-9.

218.SérgioBuarquedeHolanda,op.cit.,pp.209e223.219.Sessãode28demaiode1879,emAnnaesdoParlamentoBrazileiro.CamaradosSenhores

Deputados,segundoanodadécimasétimalegislatura,tomoi,pp.437-8.220.Sobreacoincidênciaentredoençadosolhos,afastamentoeiníciodasMemórias,ver,por

exemplo,LúciaMiguelPereira,MachadodeAssis(estudocríticoebiográfico),5aed.,RiodeJaneiro,JoséOlympio,1955,cap.xii.

221.MachadodeAssistrabalhousobocomandodeSaldanhaMarinhonoDiáriodoRiodeJaneiro,órgãoliberal“exaltado”nadécadade1860;ver,porexemplo,Jean-MichelMassa,AjuventudedeMachadodeAssis,1839-1870.Ensaiodebiografiaintelectual,RiodeJaneiro,CivilizaçãoBrasileira,1971,passim;eMarcoCíceroCavallini,“ODiáriodeMachado:apolíticadoSegundoReinadosobapenadeumjovemcronistaliberal”,dissertaçãodemestradoemHistória,Unicamp,1999.QuantoaJoaquimNabuco,noepistolárioconhecidodeMachadoháregistrodecartasapenasapartirdejaneirode1882.Ascartas,escritasdepoisdaprimeiravagaabolicionistaeduranteosdissaboresqueseseguiramparaopróprioNabuco,revelamclarasimpatiapolíticaesugeremqueMachadoacompanhavaatentamenteaatuaçãopolíticadooutro.Nabuconãoconseguirareeleger-sedeputadoem1881,aoqueparecedevidoasuasidéiasabolicionistas;estavaexiladoemLondresquandoMachadolheescreveuoseguinte,emmaiode1882:“Compreendoasuanostalgia,enãomenoscompreendoaconsolaçãoquetrazaausência.Paranós,seusamigos,sealgumaconsolaçãohá,éatêmperaqueesteexíliolhehádedar,eavantagemdenãoserobrigadoaumalutavãouaumatréguavoluntária.Asuahorahádevir.Tenholidoeaplaudidoassuascorrespondências.Aindahojevemuma,evoulê-ladepoisqueacabarestacarta,porquesãonovehorasdamanhã,eamalafecha-seàsdez.Eaminhaopiniãocreioqueéadetodos.[...]AimpressãoqueV.mefazéaquefaria(suponhamos)umgregodosbonstemposdaHéladenoespíritodesencantadodeumbudista.Comestasimplesindicação,V.mecompreenderá.Adeus,meucaroNabuco.Vocêtemamocidade,aféeofuturo;asuaestrelahádeluzir,paraalegriadosseusamigos,econfusãodosseusinvejosos.UmabraçodoAmigodocoraçãoM.deAssis”.AfrânioCoutinho(org.),MachadodeAssis.Obracompleta,vol.iii,p.1037.As“correspondências”queMachadodizlersãoprovavelmenteosartigosqueNabucoenviavadeLondresparaoJornaldoCommercio;verCélioRicardoTasinafo,“Aobradopresenteedofuturo:algunsdossignificadosdapropostaabolicionista/reformistadeJoaquimNabuco(1882-1884)”,dissertaçãodemestradoemHistória,Unicamp,2001.AopublicaracoletâneaPapéisavulsos,emnovembrode1882,Machadoincluiuaseguintenotasobreoconto“Achinelaturca”:“Estecontofoipublicado,pelaprimeiravez,naÉpocano1,de14denovembrode1875.TraziaopseudônimodeManassés,comqueassineioutrosartigosdaquelafolhaefêmera.Oredatorprincipaleraumespíritoeminente,queapolíticaveiotomaràsletras:JoaquimNabuco.Possodizê-losemindiscrição.Éramospoucoseamigos.Oprogramaeranãoterprograma,comodeclarouoartigoinicial,ficandoacadaredatorplenaliberdadedeopinião,pelaqualrespondiaexclusivamente.Otom(feitaanaturalreservadapartedeumcolaborador)eraelegante,literário,ático.Afolhadurouquatronúmeros”;emMachadodeAssis.Obracompleta,vol.ii,p.364.

222.AlessandraFrotaMartinez,“Educareinstruir:ainstruçãopopularnaCorteimperial—1870a1889”,dissertaçãodemestradoemHistória,UniversidadeFederalFluminense,1997,p.62.

223.JoséMurilodeCarvalho,Aconstruçãodaordem,p.65.224.JoséMurilodeCarvalho,Teatrodesombras,p.141.225.Decretono3029,de9dejaneirode1881,que“Reformaalegislaçãoeleitoral”,naColleçãodas

leisdoimperiodoBrazil;asescaramuçasestãotodasemSérgioBuarquedeHolanda,op.cit.Éverdadequeleiseleitoraisanterioresjáexigiamqueoeleitorassinasseoseunome;odecretode1881,todavia,requeriaquesoubessem“lereescrever”.Ocidadãoprovavaessacondição“pelaletraeassinatura”ao“requererasuainclusãonoalistamento,umavezquealetraefirmaestejamreconhecidasportabeliãonorequerimentoqueparaestefimdirigir”;artigooitavo.

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226.CitadoemSérgioBuarquedeHolanda,op.cit.,p.190.227.Paramelancoliae“caráternacionalbrasileiro”,verJeffersonCano,“MachadodeAssis,

historiador”,emSidneyChalhoubeLeonardoAffonsodeMirandaPereira(orgs.),AHistóriacontada:capítulosdehistóriasocialdaliteraturanoBrasil,RiodeJaneiro,NovaFronteira,1998,pp.35-65.AcitaçãodapassagemdeCapistranodeAbreuestánaspp.45-6.

228.Sobrea“figuraçãodoleitor”noromancemachadiano,verHéliodeSeixasGuimarães,“OsleitoresdeMachadodeAssis.Oromancemachadianoeopúblicodeliteraturanoséculo19”,tesededoutoradojácitada.

229.Ocontointitula-se“ASereníssimaRepública(conferênciadocônegoVargas)”;foipublicadopelaprimeiraveznaGazetadeNotícias,em20deagostode1882,elogoincluídoemPapéisavulsos.Anotamencionadaéaseguinte:“Esteescrito,publicadoprimeironaGazetadeNotícias,comooutrosdolivro,éoúnicoemqueháumsentidorestrito:—asnossasalternativaseleitorais.Creioqueterãoentendidoissomesmo,atravésdaformaalegórica”;emMachadodeAssis.Obracompleta,vol.ii,p.366.

230.Numdosdiscursosmaisimportantesdetodoodebatesobreareformaeleitoral,JoséBonifáciodisseraque“Estasoberaniadegramáticoséumerrodesintaxepolítica”;SérgioBuarquedeHolanda,op.cit.,p.206.

231AnnaesdaCamaradosDeputados,sessãode1878,tomoiii,pp.191-6.232.RobertConrad,op.cit.,p.135.233.Sessãode8demarçode1879;Annaes,sessãode1878,tomoiii,p.312.

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Fontes

1.principaisfontesmanuscritasconsultadas(arquivonacional,riodejaneiro,salvoindicaçãoemcontrário)

MinistériodaAgricultura(ÍndiceBoulier)ia2-1SecretariadeAgricultura,3aseção,registrodeportariaseavisossobrepessoal,1876-89.ia5-4MinistériodaAgricultura,2aseção,permissõesdiversasparaexploraçãodeouroeoutrosminerais,

emváriasregiões;requerimentos,1845-91.ia5-5MinistériodaAgricultura,solicitaçõesdiversasparaexplorarouroeoutrosminerais;exploraçãoe

solicitaçãodeterrasemváriaslocalidades,1864-90.ia5-6MinistériodaAgricultura,diversosrequerimentos,pedidosdepermissãoparaexploraçõesdiversas:

ouroeoutrosmetais,cristais,mineraisetc.,1866-89.ia6-18MinistériodaAgricultura,DiretoriadaAgricultura,2aseção,terraspúblicas,minutasdeavisose

ofícios,1888.ia6-19MinistériodaAgricultura,DiretoriaCentral,1aseção,terraspúblicas,minutas,1875.ia6-20MinistériodaAgricultura,DiretoriadaAgricultura,2aseção,terraspúblicas,2osemestre,

minutas,1875.ia6-22MinistériodaAgricultura,DiretoriadaAgricultura,2aseção,terraspúblicas,avisoseofícios,

1882.ia6-23MinistériodaAgricultura,DiretoriadaAgricultura,2aseção,terraspúblicas,portarias,circulares,

ofícios(minutas),1876.ia6-24MinistériodaAgricultura,DiretoriadaAgricultura,2aseção,terraspúblicas,1885.ia6-25MinistériodaAgricultura,DiretoriadaAgricultura,2aseção,terraspúblicas,1887.ia6-26MinistériodaAgricultura,DiretoriadaAgricultura,2aseção,terraspúblicas,minutasdeavisos,

ofícios,portariasecirculares,1886.ia6-27MinistériodaAgricultura,DiretoriadaAgricultura,2aseção,terraspúblicas,minutasdeavisose

ofícios,1884.ia6-28MinistériodaAgricultura,DiretoriadaAgricultura,2aseção,terraspúblicas,minutasdeofíciose

avisos,1879.ia6-29MinistériodaAgricultura,2aseção,terraspúblicas,minutasdeavisos,ofícioseportarias,1883.ia6-30MinistériodaAgricultura,DiretoriadaAgricultura,2aseção,terraspúblicas,minutasdeavisose

ofícios,1880.ia6-31MinistériodaAgricultura,DiretoriadaAgricultura,2aseção,terraspúblicas,minutasdeavisose

ofícios,1878.ia6-163MinistériodaAgricultura,requerimentosdiversos,solicitandopermissãoparaexplorações

várias:chumbo,ouroeoutrosminerais;compradeterrasparacolonizaçãoetc.,1888-90.ia6-164MinistériodaAgricultura,requerimentosdiversos,solicitandopermissãoparaexplorações

várias:chumbo,ouroeoutrosminerais,compradeterrasparacolonização,relaçõesdeimigrantes,informaçãodaexistênciadejazidasdefosfatoseoutrassubstâncias...,1876-80.

ia6-173MinistériodaAgricultura,requerimentosdiversos,solicitandopermissãoparaexploraçõesvárias:chumbo,ouroeoutrosminerais;compradeterrasparacolonização,1876-80.

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MinistériodaAgricultura,“ÍndicedeBuscadaDocumentaçãoIdentificada”(Gifi)

DiretoriadaAgricultura(1873-90)eDiretoriadoComércio(1890-92)Maços:1B-551B1-364B-13,14,16,174,176,1774I-595B-2565E-3735F-229,262,291,292,361,464,602,6056D-60DiretoriaCentral(1873-90)1B-34,35,37,651B1-5,35,1062C-214B-134I-215D-150,204,2065F-291,602

PareceresdoConselhodeEstadoCódice783,pareceresdoConselhodeEstado,seçãoAgricultura,1876-84.Caixa531,pacote3,documento46:SociedadeBeneficentedaNaçãoConga;parecersobreestatutos(7

demaiode1862).Caixa550,pacote3,documento37:SociedadeUniãoLotéricaCadeiradeOuro;parecersobreestatutos

(21demarçode1871).Caixa552,pacote2,documento43:AssociaçãoBeneficenteSocorroMútuodosHomensdeCor—

Corte;parecereconsulta;estatutos(24/9/1874).Caixa552,pacote2,documento45:SociedadedeBeneficênciadaNaçãoConga“Amigada

Consciência”—Corte;parecereconsulta;estatutos(24/9/1874).Caixa560,pacote1,documento11:CâmarasMunicipais;parecereconsulta—projetoparaacriação

deumacaixadeemancipaçãodeescravos(23/4/1883).Caixa599,pacote3,documento73:SociedadeEmancipadora28deSetembro—Libertaçãode

escravosnaCorteeRiodeJaneiro;parecer,aprovaçãodeestatutos(1874).Caixa599,pacote3,documento83:terraspúblicas;parecersobrequestõesdepossesesesmarias,prazos

parainterposiçãoderecursos(1874).Caixa599,pacote3,documento90:generalidades,matrículadeescravos;parecersobreosescravosque

nãoforammatriculadosaté30/9/1873pordeficiênciadoserviçoesobreamarcaçãodenovoprazo(9/12/1873).

Caixa599,pacote3,documento91:idem(29/9/1874).Caixa600,pacote3,documento92:escravos;sobrepedidodecorreçãodenomedeescravo

matriculado(22/6/1875).Caixa601,pacote2,documento31:terraspúblicas(4/3/1876).Caixa601,pacote2,documento32:terraspúblicas(7/6/1876).Caixa601,pacote2,documento33:terraspúblicas(18/3/1876).Caixa601,pacote3,documento82:escravos(7/8/1876).Caixa601,pacote3,documento83:escravos(14/8/1876).Caixa602,pacote3,documento42:escravos(26/2/1877).Caixa602,pacote3,documento43:escravos(26/2/1877).

Page 229: CHALHOUB, S. Machado de Assis, Historiador

Caixa602,pacote3,documento44:escravos(26/2/1877).Caixa602,pacote3,documento75:escravos(11/6/1877).Caixa602,pacote3,documento76:escravos(25/10/1877).Caixa602,pacote3,documento77:escravos(novembrode1877).Caixa603,pacote3,documento78:escravos(15/1/1878).Caixa603,pacote3,documento79:escravos(2/11/1878).Caixa603,pacote3,documento80:escravos(6/4/1878).Caixa604,pacote3,documento41:colonização,trabalhadoresasiáticos(8/7/1880).Caixa604,pacote3,documento42:colonização(30/8/1880).Caixa604,pacote3,documento43:terraspúblicas(27/7/1880).Caixa604,pacote3,documento65:escravos(26/3/1880).Caixa604,pacote3,documento67:escravos(7/4/1880).Caixa604,pacote3,documento72:escravos(9/6/1880).Caixa605,pacote3,documento35:terraspúblicas(30/4/1881).Caixa605,pacote3,documento36:escravos(18/1/1881).Caixa605,pacote3,documento37:escravos(12/2/1881).Caixa610,pacote1,documento18:escravos(30/5/1887).Caixa611,pacote1,documento58:SociedadedeBeneficênciadanaçãoConga“Amigada

Consciência”(24/9/1874).Caixa611,pacote1,documento60:AssociaçãoBeneficenteSocorroMútuodosHomensdeCor,

estatutos(24/9/1874).

OutrosCódice43-1-29,EstatísticasdasEstalagens,AgênciadeSantana,1894,ArquivoGeraldaCidadedoRio

deJaneiro.is4-32,MinistériodoImpério/JuntaCentraldeHigienePública,ofíciosedocumentosdiversos,1879,

ArquivoNacional.“PlantadaCidadedoRiodeJaneiro,reduzidaedesenhadaporJoséRibeirodaFonsecaSilvares,1882”,

ArquivoGeraldaCidadedoRiodeJaneiro.

2.principaisfontesimpressasconsultadas

RelatóriosMinisteriaisRelatóriosdoMinistériodaAgricultura(consultadosemmicrofilmenoArquivoNacional,Riode

Janeiro;identificaçãoprecisadecadavolumecitadoencontra-senasnotasreferentesaocapítulo4):Anode1871,rolo028.10-80Anosde1871-72,rolo028.11-80Anode1873,rolos028.12-80,028.13-80Anode1874,rolo028.14-80Anode1876,rolos028.16-80,028.17-80,028.18-80Anode1877,rolo028.19-80Anode1878,rolo028.20-80Anode1879,rolo028.21-80Anode1881,rolos028.22-80,028.23-80,028.24-80Anosde1882-83,rolo028.25-80Anode1884,rolo028.26-80Anode1885,rolos028.27-80,028.28-80Anode1886,rolo028.29-80Anode1887,rolos028.30-80,028.31-80

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Anosde1888-89,rolos028.32-80,028.33-80

AnaisParlamentares,LegislaçãoAnnaesdoParlamentoBrazileiro.CamaradosSenhoresDeputados,anosde1871,1878,1879.AnnaesdoSenadodoImperiodoBrazil,anode1871.ColleçãodasleisdoImperiodoBrazil(identificaçãoprecisadasleisedecretosconsultadosencontra-se

nasnotasreferentesaocapítulo4).“ConstituiçãopolíticadoImpériodoBrasil”,emCampanhole,AdrianoeCampanhole,Hilton(orgs.),

ConstituiçõesdoBrasil,4aed.,SãoPaulo,Atlas,1979.Elementoservil:parecereprojetodeleiapresentadosàCamaradosSrs.Deputadosnasessãode16de

agostode1870pelacomissãoespecialnomeadapelamesmaCamaraem24demaiode1870,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1870.

Mafra,ManueldaSilva,Promptuariodasleisdemanumissão;ou,IndicealphabeticodasdisposiçõesdaLeino2040de28desetembrode1871,regulamentosno4835de1odedezembrode1872,no4960de8demarçode1872,no6341de20desetembrode1876,eavisosdoministériodaAgricultura,CommercioeObrasPublicas,TribunaldeJustiça...,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1877.

PareceresdoConselhodeEstadonoanode1868relativosaoelementoservil,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1871.

Terras,MinistériodaAgricultura,compilaçãoparaestudo,RiodeJaneiro,ImprensaNacional,1886,43pp.“FeitaporordemdeAntôniodaSilvaPrado,ministrodaAgricultura,Com.eOb.Públ.porMachadodeAssis,chefedeseção”.

Veiga,LuizFranciscoda,Livrodoestadoservilerespectivalibertaçãocontendoaleide28desetembrode1871eosdecretoseavisosexpedidospelosministériosdaAgricultura,Fazenda,Justiça,ImpérioeGuerradesdeaqueladataaté31dedezembrode1875precedidodosatoslegislativoseexecutivos,embenefíciodaliberdade,anterioresàreferidalei,RiodeJaneiro,TypographiaNacional,1876.

TextosPolíticos

Bueno,JoséAntônioPimenta,TrabalhosobreaextinçãodaescravaturanoBrasil,RiodeJaneiro,

TypographiaNacional,1868.Malheiro,Perdigão,AescravidãonoBrasil:ensaiohistórico,jurídico,social,Petrópolis,Vozes/inl,

1976,2vols.Nabuco,Joaquim,UmestadistadoImpério,RiodeJaneiro,NovaAguilar,1975.Nabuco,Joaquim,Oabolicionismo,Petrópolis,Vozes,1977.Rocha,JustinianoJoséda,“Ação,reação,transação”,emRaymundoMagalhãesJúnior,Três

panfletáriosdoSegundoReinado,SãoPaulo,CompanhiaEditoraNacional,1956.Silva,JoséBonifáciodeAndradae,“RepresentaçãoàAssembléiaGeralConstituinteeLegislativado

ImpériodoBrasilsobreaescravatura”,Salgado,Graça(org.),Memóriassobreaescravidão,RiodeJaneiro,ArquivoNacional,1988.

RomanceseOutros

Alencar,Joséde,Otroncodoipê,SãoPaulo,Ática,1993.Alencar,Joséde,Til,SãoPaulo,Ática,1980.Carvalho,Elysiode,“Gíriadosgatunoscariocas(vocabulárioorganizadoparaosalumnosdaescolade

polícia)”,BoletimPolicial,nos4,5e6,1912,pp.168-81.MachadodeAssis:obracompleta,organizaçãodeAfrânioCoutinho,RiodeJaneiro,NovaAguilar,

1986,3vols.MachadodeAssis,BONSDIAS!Crônicas(1888-1889),organizaçãoenotasdeJohnGledson,São

PauloeCampinas,HuciteceEditoradaUnicamp,1990.MachadodeAssis,ASemana,organizaçãoenotasdeJohnGledson,SãoPaulo,EditoraHucitec,1996.Macedo,JoaquimManoelde,Asvictimas-algozes.Quadrosdaescravidão,RiodeJaneiro,Typ.

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Americana,1869,2vols.Macedo,JoaquimManoelde,Memóriasdosobrinhodemeutio,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,

1995.MartinsPena,Comédias,RiodeJaneiro,Ediouro,s.d.Voltaire,Cândidoouootimismo,RiodeJaneiroeSãoPaulo,EdiouroePublifolha,1998.Wallace,Alfred,Laseléctionnaturelle,Paris,C.ReinwaldetCie.,Libraires-Éditeurs,1872.