BOUDON a Ideologia 1989

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RAYMOND BOUOON

A IDEOLOGIAOU

a origem das idias recebidas

Traduo de Emir Sader

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Nota explicativaPrlogo 1. Uma questo (entre outras) sobre a ideolo-

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giaPrimeira Parte 2. O que a ideologia? 3. O Homo sociologicus

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2547 71

(sempre) irracional? 4. Passeio em torno de um quadroSegunda Parte

5. Esboo de Uma teoria restrita da ideologia _ 93 6. Ideologia, posio social e disposies _ 122 7. Ideologia e comunicao 8. Cincia e ideologia Terceira Parte 9. Dois estudos de caso Eplogo 10. Contra o ceticismo251267

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Notas aos captulos ndice analtico e onomstico

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Nota explicativa

Segundo o padre Malebranche, na explicao de um fenrneno se deve jamais esquecer as causas ocasionais. A causa ocasional deste livro foi uma questo que Raymond Aron me colocou, aps uma leitura sobre "os recentes progressos da teoria sociolgica". Uma vez mais, defendi a idia de que os mtodos individualistas se revalorizavam junto aos socilogos. E, julgando o que li, me pareceu que melhor contribuam para a compreenso dos fenmenos sociais. A ltima questo de Aron era a que eu mais temia:podern tambm as crenas coletivas ser explicadas segundo os princpios do individualismo metodolgico? 1+ Eu me lembro que me senti perturbado pela pergunta, ainda que a tenha esperado. Em todo caso, decidi no responder, pois percebi claramente que no se poderia trat-Ia em poucas frases. Mas no sabia, ento, que minha resposta tomaria a dimenso de um livro. 2110

Prlogo

Tourgeville, agosto de 1985.

As notas das diferentes partes foram reagrupadas no fim do volume.

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1Uma questo (entre outras) sobre a ideologia

o grande socilogo alemo Max Weber escreveu que, quando se pretende explicar um fenmeno social, qualquer que seja, deve-se tentar reduzi-lo aos comportamentos individuais que esto na sua origem, considerando, por outro lado, estes comportamentos como sendo "racionais". Somente fracassando este tipo de explicao, aconselhava Weber, pode-se introduzir componentes irracionais na descrio dos comportamentos dos atores sociais. Estes princpios metodolgicos aplicam-se tambm aos fenmenos ideolgicos? Ao menos primeira vista, parece arriscado afirmar. O pensamento social espontneo teria, em todo caso, muita dificuldade em admiti-Io, pois segue um princpio inverso ao sugerido por Weber. Confrontado a um fenmeno social, manifesta por vezes uma tendncia irresistvel a interpret-Io como produto de comportamentos irracionais. E, com freqncia, somente aps uma discusso mais ou menos longa que a interpretao irracionalista abandonada - quando isto realmente feito, e quando pode s-lo. Muitos exemplos podem ser propostos apoiando esta ltima afirmao. Eu me contentarei evocando rapidamente um, quase por acaso.! Nos anos sessenta, o governo indiano encarrega uma prestigiosa universidade americana de conduzir um estudo sobre os meios

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necessanos para atingir seu objetivo de limitao da natalidade. Na fase preliminar do estudo, os pesquisadores estabelecem um plano bem cuidadoso. Distribuem plulas contraceptivas em certas aldeias do Punjab, enquanto outras aldeias so promovidas ao estatuto de grupo de controle: trata-se de assegurar que a baixa eventual de natalidade que se observar nas aldeias onde se distriburam as plulas devida a estas e no a outros fatores. A experincia revelou-se inteiramente negativa. A taxa de natalidade baixou na mesma proporo, nas aldeias com e sem plulas. Portanto, esta baixa de natalidade no pode ser imputada plula: como ela semelhante nos dois tipos de aldeia, deduz-se facilmente que sua distribuio no causou nenhum efeito. Imediatamente, os pesquisadores interpretam este resultado, evocando o apego do campons indiano s suas tradies seculares, sua recusa inovao, sua desconfiana em relao a produtos estrangeiros e sua resistncia idia de modificar artificialmente processos naturais. Em suma, interpretou-se o comportamento dos nativos como determinado por foras sociais que escapam ao controle dos indivduos. Feito este diagnstico, o remdio proposto o seguinte: trata-se de convencer as camponesas indianas a usar a plula. Mas no se deve insistir com o argumento de seus efeitos benficos: um ser to irracional como o campons indiano no seria sensvel a argumentos racionais. mais conveniente atingi-lo de forma indireta, atravs de gentilezas. Os antroplogos sugerem indianizar o mais possvel as equipes de interveno: a indiana aceitar mais facilmente a plula, se ela lhe for proposta por um compatriota do que por um estrangeiro de pele branca. O que feito. Esta nova "estratgia de comunicao" se revela de uma extraordinria eficincia, ao menos aparentemente. A partir do momento de sua efetuao, a proporo de lares que aceitam receber as caixas de plulas oferecidas pelos pesquisadores nativos aumenta brutalmente. A porcentagem de aldeos declarando-se a favor da contracepo sobe a 90070. Na verdade, os aldeos foram apenas gentis com os pesquisadores. Afinal, eles vm de to longe! Eles parecem to devotados, to fervorosos em prestar servios, que contrari-l os seria uma descortesia! Mas, assim que os pesquisadores viram as costas, jogam as plulas fora. Por qu? Bastaria aos pesquisadores escutar os camponeses para sab-lo. queles pesquisadores que tiveram a curiosidade de per-

guntar, os camponeses responderam sem rodeios: quanto mais filhos tm, maior seu rendimento. Num contexto econmico como o da aldeia do Punjab, um filho no caro para criar, tratar ou educar. Em contrapartida, ele permite ao campons aumentar a produtividade da terra familiar, evitando recorrer a uma mo-de-obra sempre custosa. Se ele trabalha fora, como freqente, seu salrio aumenta a renda da famlia. Podendo assim ajudar nos custos de educao dos filhos mais novos. Se os pesquisadores no conseguem realizar seus objetivos junto aos camponeses, no porque estes sejam uma presa de supersties incurveis. Ao contrrio, seu comportamento em matria de natalidade parece perfeitamente compreensvel e neste sentido racional, a partir do momento que se leva em conta as caractersticas de seu meio ambiente. Este exemplo ilustra bem as duas proposies que avancei: freqentemente, explicar um fenmeno social mostr-l o como produto de comportamentos compreensveis, portanto racionais. Mas, por outro lado, a explicao espontnea do fenmeno evoca muitas vezes uma viso irracional deste comportamento. Deste ponto de vista os especialistas das cincias sociais no parecem estar mais bem protegidos que os profanos. Devemos ento colocar a superstio na conta dos pesquisadores? certamente tentador faz-lo. Uma anlise que pintasse o campons indiano como racional e o pesquisador ocidental como preconceituoso, condescendente em relao aos subdesenvolvidos a quem propem as ltimas novidades da tcnica ocidental, estaria assegurada, junto a certo pblico, de boa receptividade. Mas, assim como se pode evitar a hiptese de que os camponeses indianos rejeitaram a plula por superstio, pode-se tambm evitar a suposio de que os pesquisadores se aferraram a esta hiptese por serem supersticiosos. Primeiramente, estes pesquisadores eram originrios de um pas onde "irracional" ter muitos filhos. Na Frana, nos Estados Unidos, a educao longa e dispendiosa, ainda que em princpio seja gratuita. Os gastos com a sade so elevados. Alm disso, os adolescentes e jovens no podem, muito freqentemente, esperar morar de graa com seus pais, no somente porque isto choca-se com o seu desejo de. independncia, mas tambm porque um emprego pode lev-los a outras regies. intil prosseguir longamente esta anlise: em funo da diferena entre os dois contextos, um comportamento irracional no primeiro racional no segundo e

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vice-versa. Em todo caso no incompreensvel que os pesquisadores tenham abordado seu objeto com a idia de que "irracional numa sociedade moderna ter muitos filhos", e que teriham aceitado sem dificuldade o corolrio evidente desta proposio: "a modernizao e o desenvolvimento implicam uma restrio do nmero de nascimentos". Eles se tornaram ainda mais inclinados a aceitar a veracidade deste corolrio porque no s o governo indiano, mas tambm os pesquisadores nativos, contratados por ele, participavam desta mesma opinio. Porque foi seguramente pela iniciativa do governo indiano que eles empreenderam seu estudo. O objetivo do governo era provocar uma baixa da natalidade. Por que o governo e os pesquisadores autctones estavam de acordo com este objetivo poltico? Por uma razo evidente. A elevada taxa de natalidade que prevalecia na ndia, nesta poca, era efetivamente uma das maiores causas de sua pobreza e estagnao econmica. Por um efeito que Malthus identificou em seu tempo, o aumento de bocas a alimentar no s absorvia, como ultrapassava a quantidade de alimento disponvel. A elevada taxa de natalidade era ento, objetivamente, um mal. Tambm no h mal nenhum em conceber que os responsveis polticos e intelectuais tenham procurado remedi-lo. Evidentemente, existia a uma contradio entre a racionalidade individual e a racionalidade coletiva: os camponeses tinham boas razes para manter-se no padro tradicional da famlia numerosa; mesmo se assim contribussem, caso seja verdade, para a estagnao econmica e, conseqentemente, para suas prprias dificuldades. Mas cada campons em particular podia facilmente perceber que, abandonando o padro familiar tradicional, se colocava em uma situao difcil, sem entretanto contribuir, salvo de forma infinitesimal, para a reduo da pobreza geral. Para que uma tal anlise fosse de imediato acessvel aos pesquisadores, teria sido necessrio: 1) que esquecessem os dados de sua prpria situao que os incitava a conceber a relao entre famlia pequena e modernizao como uma evidncia; 2) que esquecessem as idias recebidas representando o campons em geral, e o campons indiano em particular, como aprisionado a tradies seculares; 3) que esquecessem seus hbitos profissionais, quero dizer, as orientaes tericas que os conduzem costumeiramente em seu tra-

balho: para um socilogo ou antroplogo natural enquadrar os grupos humanos como obedientes a tradies variveis de um contexto a outro; 4) que dominassem os instrumentos conceituais relativamente sutis que permitem discernir claramente os casos em que os dois tipos de racionaldade convergem; ora, estes instrumentos conceituais familiares a muitos economistas, assim como a um grande nmero de matemticos e filsofos, no o so para muitos antroplogos, socilogos ou demgrafos. 5) que escapassem da influncia de seus interlocutores indianos; quero falar dos administradores e pesquisadores nativos que tendiam, eles tambm, a interpretar o comportamento dos camponeses como "irracional", reforando assim sua prpria viso sobre a situao; 6) que fossem suficientemente informados dos dados caracterizando o meio ambiente social e econmico dos camponeses. Convenhamos, era pouco provvel que estas seis condies fossem rpida e simultaneamente reunidas, e de fato no o foram. Por isso era inevitvel ocorrer o "choque da realidade" - conseqentemente, o fracasso lamentvel do programa - para que a anlise pudesse ser retomada em novas bases. No fim das contas, nem o comportamento dos camponeses, nem a interpretao que os pesquisadores desenvolveram inicialmente, ainda que totalmente errada, advm da superstio ou da irracionalidade. Mas o primeiro movimento dos pesquisadores foi o de interpretar o comportamento dos camponeses como irracional. E o primeiro movimento de um observador, vendo de fora, e constatando o fracasso dos pesquisadores, de tom-Ios como cheio de supersties. Assim, o conselho de Weber, que evoquei nas primeiras linhas, merece ser seguido mesmo tratando-se de supersties e ideologias, pois o Homo ideologicus, como sugere o exemplo dado, pode no ser to irracional como freqentemente se tende a crer. Em todo caso, esta a hiptese principal que tentarei sustentar neste livro. Acrescentando, ao mesmo tempo, que darei noo de racionalidade um sentido amplo.

Tanto quanto possa ver com clareza em minhas prprias motivaes, direi que, em meu esprito, este livro o prolongamento

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de uma srie comeada com L 'ingalit des chances. Nesta obra procurei demonstrar que, para analisar o sistema de dados macroscpicos que representa um quadro de mobilidade social, era indispensvel encar-Io pelo que : o trao deixado a nvel estatstico pela justaposio de uma mirade de comportamentos individuais. Estes comportamentos individuais no so fruto de indivduos desencarnados ou de calculadores abstratos. Ao contrrio, trata-se de indivduos situados socialmente, pertencendo principalmente a uma famlia, mas tambm a outros grupos sociais, dispondo no somente de recursos econmicos, mas tambm culturais. Alm disso, estes indivduos no se defrontam com escolhas abstratas. Ao contrrio, so instituies concretas que determinam os termos de sua escolha; como no caso da escolha escolar, ou, por limitaes resultando da oferta e procura do mercado de trabalho, como no caso da escolha profissional. Certamente, estes indivduos no podem ser considerados um a um. Ao contrrio, torna-se necessrio agrup-Ios, criando tipologias comportamentais, ainda que inevitavelmente idealizadas. Em todo caso, como aconselha Weber, trata-se de reconstruir o comportamento individual, tornando-o compreensvel e, somente em ltimo caso, interpret-Io como efeito de foras irracionais. Uma vez terminado o momento microscpico da anlise, restaria agregar as lgicas individuais de comportamento, mostrando que se reencontram claramente no nvel macroscpico os fenmenos globais que se trata de explicar. A partir de L 'ingalit, me convenci de que a chamada metodologia individualista era fundamental para a anlise sociolgica: mesmo quando se trata de analisar fenmenos situados em um nvel de complexidade muito elevado, por exemplo, ao nvel de uma sociedade nacional, no se deve perder de vista que estes fenmenos so, na verdade, a marca impressa na esfera macroscpica por comportamentos microscpicos individuais. A metodologia individualista no naturalmente nenhuma novidade. O filsofo Karl Popper j falou bastante de sua importncia para as cincias sociais, h muito tempo. 4 Mas quando d exemplos de sua aplicao os toma sempre da economia, fingindo crer - talvez no creia realmente, e esta segunda hiptese mais provvel - que, tirante os economistas, ningum jamais prestou ateno no referido mtodo. Fosse verdade, os arrazoados de Weber a favor do mtodo individualista seriam letra morta fora da economia. 5

Deixando de lado a mobilidade social, me voltei, na La place du dsordref para os fenmenos de desenvolvimento e de mudana social, pois, como a mobilidade, o desenvolvimento um fenmeno essencialmente macroscpico: s se pode falar de desenvolvimento a respeito de uma sociedade ou de um conjunto de sociedades. Meu propsito no era apresentar uma nova teoria de desenvolvimento, mas estudar concretamente a importncia da metodologia individualista neste setor. Ora, eu creio poder concluir deste estudo que se poderia facilmente fazer referncia a numerosas pesquisas reclamando-se do mtodo individualista. Qualquer que seja a complexidade dos fenmenos de desenvolvimento ou de estagnao, de mudana social ou de no-mudana, e mesmo que estejam situados em um nvel macroscpico, pode-se tom-l os pelo que so: o efeito de aes individuais - e de aes compreensveis. Effets pervers et ordre social representou uma outra etapa da mesma srie." Neste livro, reunindo estudos originais e textos de reflexo, quis exprimir a importncia para a sociologia como para a ao poltica de uma idia clssica: a saber que a justaposio, ou com? prefiro dizer, a agregao de comportamentos, pode provo. car efeitos no buscados e por vezes indesejveis. Interessando-me pelo tema ideologia, quis primeiramente prolongar esta srie. Assim como a mudana social um tema que, em razo do carter macroscpico dos fenmenos de transformao, ope um srio desafio metodologia individualista, o tema ideologia tambm ope um desafio, s que de outra natureza: aceitando-se definir o conceito de ideologia a partir do critrio do verdadeiro e do falso, razovel ver uma ao compreensvel aderir a idias falsas? No mais plausvel, como propem muitos tericos, v-Ia como efeito de paixes, fanatismo ou de distores perceptivas produzidas pelo interesse, seja por conflito entre grupos, seja por tenses internas do indivduo, engendradas pela vida em sociedade? Certamente, no se pode desconhecer estas foras que escapam ao controle do sujeito. Mas eu creio - pelo menos tentarei mostr-lo neste livro - que tambm sobre o captulo da ideologia pode-se seguir o. conselho de Weber: tentar analisar a adeso s idias recebidas como qualquer outro tipo de comportamento, procurando v-Ia como um comportamento compreensvel, deixando ao fator irracional a parte que lhe cabe. Este conselho, o prprio

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Weber alis tentou segui-lo em seus trabalhos sobre a sociologia das religies. .. Mas, trabalhando neste livro, fui tambm estimulado por outros motivos. . No La place du dsordre, indiretamente e quase minha revelia, me deparei com o problema da ideologia. Os modelos dese~volvidos pelas cincias sociais constituem sempre, pela for~ das COIsas, simplificaes do real. Em uma situao na qual um fenomeno c.ol~ca em movimento uma multido de atores e resume uma multldao de aes, o economista ou o socilogo freqentemente se contenta em considerar apenas duas classes de agentes (por exemplo, produtores e consumidores), atribuindo-Ihes lgicas de comportam~nto simplificadas. claro que tal modelo s pode representar a re~hdade muito distantemente. E o que verdadeiro para a .econo~i,a ou a sociologia, o tambm para a histria. Desta maneira, o biO.grafo prefere mostrar, quase sempre, o seu modelo como .se.este tIVes~ se realmente, durante toda sua vida, perseguido u~ objetivo c~aro. No domnio das cincias sociais e humanas, toda mterpretaao ou explicao cria uma distncia, que pode s~r imensa, ent~e ela e a realidade. Porm o intrprete e analista, assim como seu.leitor , raramente tomam conscincia disto. Trata-se ento de explicar por que isto acontece, resguardando-se de hipteses vazias e.mostrando que esta ausncia de conscincia, a exemplo de outras atitudes, pode ser compreensvel. _ Retomarei abundantemente sobre esta questao. Mas o que desejaria sublinhar desde agora a relao d~reta en~re estas observaes e o problema da ideologia; porque as ~deolog~asrepousam freqentemente sobre uma interpretao realista de m~erpretaoe~ ou de explicaes, elas mesmas, distantes do real. S~gumdo. esta ~~sta, podemos compreender mais facilmente por que ~s id~~loglas apOla~se freqentemente sobre uma argumentao cientfica. E tamb~m por que so, em uma ampla medida, um produto normal daquilo que Kuhn denominou cincia normal. 9 No La place du dsordre, eu tomei um caminho, ~em sa~er, ao final do qual se apresentou o problema da gn~se ~as ideolo~i~S. Devo reconhecer que obedeci a causas mars circunstancl~l~. Se se percorre com um rpido olhar a paisag~m intelectual d~s ltimos trinta anos, tem-se uma espcie de vertigem ao me:non~a~-se todas as idias que danaram seu nmero e se foram. Seria s_uflcle~te evocar a moda para esclarecer estes passos de valsa? No creio

que esta analogia com a moda seja esclarecedora ou mesmo correta. A experincia ntima basta para saber que no se adere a uma idia, da mesma maneira que se tomado de paixo por um mvel, um quadro, uma roupa. A crena no se reduz ao gosto, nem o sentimento do verdadeiro reduz-se ao belo ou ao agradvel. Aflorei este problema em Effet pervers'" e sugeri ento que esta valsa de idias resultava mais dos ~feitos de comunicao do que de simples efeito de imitao, em contraste ao que se passa em relao moda de roupas. Esta categoria de efeitos me parece muito importante: jogam um papel determinante no processo de difuso das ideologias. Tambm permitem compreender por que falsas idias podem se instalar to facilmente, sem que seja necessrio supor qualquer tipo de insensatez da parte daqueles que aderem. Certamente, fui tambm sensvel ao que denominarei de interesse intrnseco deste tema que representa a ideologia, testemunhado pelo monte de papel que consumiu. Este interesse tem suas origens em razes metafsicas profundas. Porque, contrariamente ao que afirma o adgio, admite-se dificilmente que o erro seja humano. Todo o pensamento filosfico clssico testemunha, ao contrrio, um esforo para exorciz-lo, atribuindo-o a foras obscuras que importante dominar. E esta atitude em relao ao erro estendeu-se a esta forma moderna do erro que representa, para muitos, a ideologia. por isto que se anuncia periodicamente o fim das ideologias. Ali pela metade dos anos sessenta, seu final foi anunciado com gritos e fanfarras. E hoje volta-se a faz-lo. Na poca de Weimar, alguns anos antes da tomada do poder por Hitler, tambm Mannheim o anunciou, sua maneira: a circulao de idias, a concorrncia entre os intelectuais, sugeriu ento, so de natureza a fazer triunfar a idia verdadeira sobre a idia falsa. L, onde a tradio, essencialmente, se fazia acompanhar de uma monopolizao da verdade, a modernidade se caracterizava, segundo ele, pela concorrncia entre os intelectuais e, conseqentemente, por uma abertura discusso e ao debate. 11 Acrescente-se, para fazer justia sua memria, que Mannheim no tardou a abandonar esta viso otimista, no esperando o apogeu do nazismo para revisar sua posio. 12 Porm a-necessidade de exorcizar a ideologia to forte que nenhum desmentido histrico conseguiu rechaar a profecia que assinala o fim das ideologias. E sobre este tema ningum quer, de nenhuma maneira, renunciar a um evolucionismo que no deixa de

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lembrar o evolucionismo cientfico, o qual, em seu tempo, anunciou o fim das religies. Enfim, a prpria confuso envolvendo as discusses sobre ideologia constitui uma espcie de desafio intelectual e suscita o desejo de introduzir um pOUCO ordem. No sei se consegui isto, mas de ao menos tentei faz-lo.

Em todo caso, procurei me agarrar a este ponto fixo. Tratase, antes de mais nada, de evitar cair em uma teoria ideolgica da ideologia. intil precisar que esta tentao, essencialmente suicida, nem sempre foi evitada pelos tericos da ideologia, j que a prpria natureza do tema os coloca sempre em situaes ameaadoras. Mas, a partir do momento em que se define ideologia de maneira polmica (as idias do adversrio), a tentao inevitvel. Se se pretende que a ideologia - para parodiar uma frmula que teve sucesso em seu tempo na Frana - seja somente "as idias que nos fizeram to mal", encontramo-nos diante de uma dificuldade incontornvel: explicar por que milagre idias to visivelmente ruins puderam to facilmente se formar e se impor. Consciente desta armadilha tentei evit-Ia e me limitei estritamente questo j colocada (por que se aceitam to facilmente idias falsas ou duvidosas?), sem presumir em nenhum momento que as crenas falsas sejam monoplio de tal Igreja ou as crenas verdadeiras de tal outra.

biblioteca em francs, demonstrando a importncia e a vitalidade da tradio do pensamento liberal no que tange compreenso dos fenmenos sociais, assim como da ao social. 13 E por razes negativas tambm. Pois tenho s vezes a impresso de que aqueles que acreditam dispor do monoplio dos bons sentimentos tendem, em demasia, a concluir que detm ipso facto o monoplio da verdade. Mas este livro no , de nenhuma maneira, um livro engajado. Mais uma vez, meu nico propsito foi o de contribuir modestamente teoria sociolgica das ideologias, limitando-me a uma s questo: por que acredita-se to facilmente em idias falsas ou duvidosas?

Tudo isto no implica, de nenhuma maneira, que para mim todas as idias se equivalem. Como se ver, no me privei de insistir sobre a falsidade e mesmo sobre o carter irrisrio de algumas teorias que, no entanto, tiveram seu tempo de apogeu e contriburam para legitimar idias falsas. Mas necessrio reconhecer que, entre as construes intelectuais, algumas so mais facilmente sujeitas ao critrio do verdadeiro e do falso, enquanto outras o so mais dificilmente. Voltarei a este ponto na concluso deste livro. A neutralidade axiolgica pela qual tentei me pautar no implica, de nenhuma maneira, ausncia de convices pessoais. Desde muito tempo, me senti bem mais prximo do liberalismo do que de qualquer outra ideologia. Isto se deu por razes positivas sobre as quais no me estenderei aqui, j que, doravante, dispe-se de uma

Talvez causar surpresa, na introduo de um livro que se prope tratar de ideologia, o fato de que eu no tenha mencionado nenhum ismo e que no tenha falado (salvo muito incidentemente) tampouco de nazismo, fascismo, marxismo ou terceiro-mundismo, Isto resulta de uma posio que esclarecerei mais completamente a seguir. Mas direi desde agora que, ante um tema to difcil, convm classificar as questes. No se pode falar seriamente do nazismo, abstraindo-se a tomada do poder por Hitler. Esta questo depende sobretudo da competncia do historiador. No se poderia analisar a viso de mundo hitleriana sem estudar a biografia de Hitler. Esta questo depende da competncia do historiador e do psiclogo. Outrossim, a anlise do fanatismo depende tambm da competncia do psiclogo. J a tarefa do socilogo tentar compreender por que o ator social banalizado que representa o Homo sociologicus pode aderir facilmente a idias falsas ou duvidosas. Sem seu consentimento, nenhuma ideologia poderia se manter e nem sequer se estabelecer. Ainda que circunscrita, esta questo, no entanto, crucial para a compreenso dos fenmenos ideolgicos. Primeiramente, tentei demonstrar que s_Lcigojogiasso um ingJeciiente natllralda vida social; em seguida, que as ideologias surgem no apesar do homem ser racional, mas porque ele racional. por isso que os princpios da metodologia weberiana me parecem poder ser aplicados no s a este aspecto da vida social, mas a todos os outros. As idias recebidas que compem as ideologias podem, em outros termos, ser consideradas - e h sem dvida interesse em analisar - como idias compreensveis, prontas a reconhecer o resduo irracional em sua gnese e na sua difuso.

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Mas, para chegar a esta demonstrao, deve-se considerar que o ator social est situado em algum lugar, e que no se v o mundo da mesma maneira de todos os lugares. Alm do mais, aquilo que se v de algum lugar depende do que j se sabe e do que no se sabe. Por outro lado, tentei demonstrar que as ideologias so um subproduto natural e normal das cincias sociais: no, principalmente, porque no so cientficas, nem porque se distanciam dos procedimentos que habitualmente definem a dmarche cientfica, mas porque a ela se submetem. certo que s vezes as cincias sociais se afastam destas regras e que, deste modo, podem contribuir para reforar ideologias. Mas elas tambm podem engendrar e reforar as ideologias quando seguem seu curso normal. Este efeito no resulta do fato de que as cincias humanas sejam incapazes do rigor que caracteriza as cincias naturais. Esta idia recebida falsa: as cincias sociais podem ser to cientficas quanto as cincias naturais. Se as cincias sociais podem se deixar tomar pela ideologia, mesmo quando seguem firmemente seu curso normal, isto se deve a dois fatores. Primeiro, fato comum s cincias naturais e s cincias sociais, que propem, pela fora das coisas, imagens da realidade que se afastam da mesma. O outro fator prprio s cincias sociais: reside no que podemos chamar de seu esoterismo natural. De qualquer maneira, espero, modestamente, ter contribudo na soluo daquilo que me parece ser a questo essencial da teoria sociolgica das ideologias: .de onde vem a credibilidade das idias duvidosas e das idias falsas?

conseqncia, a crena nas ideologias no devia, em primeira instncia, ser atribuda a paixo, fanatismo ou insensatez. Com fins ilustrativos, o captulo 9 (terceira parte) aplica esta teoria a duas ideologias de nosso tempo: o desenvolvimentismo e o terceiro-mundismo. As discusses da primeira parte no podiam evitar tomar uma via mais abstrata que as da segunda e terceira partes. Por isso, o leitor apressado, que no tenha muito interesse na visita s grandes teorias clssicas, dever percorrer mais rapidamente a primeira parte. Certas questes importantes para toda e qualquer teoria das ideologias, remetidas em forma de notas ao p da pgina, no puderam ser tratadas exaustivamente no corpo do texto. Por exemplo, numerosas teorias da ideologia introduzem, implcita ou explicitamente, a noo de "inconsciente". Isto no surpreende, pois tentador fazer do homem ideolgico um ser irracional submetido a pulses mal controladas. Sendo a noo de "inconsciente", assim como suas variantes ("falsa conscincia" etc.), de delicado manejo, tentei esboar em algumas notas o limite entre seu uso legtimo e ilegtimo.

Este livro se compe de trs partes. Tratando-se de uma questo to confusa como a ideologia, seria indispensvel interrogar-se sobre sua definio. Por outro lado, tratando-se de uma noo que j gastou tanto papel, no se poderiam ignorar as discusses tericas provocadas, nem tampouco deixar de se interrogar sobre os vrios tipos de explicao do fenmeno ideolgico. Estas questes so tratadas nos captulos de 2 a 4 da primeira parte. Os quatro captulos seguintes (de 5 a 8) compem a segunda parte e tratam do problema principal ressaltado neste livro e que descreve seu subttulo. Estes captulos propem o que chamo de uma teoria restrita da ideologia. Tentei demonstrar a que os atores sociais tm freqentemente boas razes para aderir a idias duvidosas ou falsas e que, em

Antes de abordar meu tema, me parece indispensvel chamar a ateno para um ponto importante que tratei at agora de forma implcita, mas que terei oportunidade de desenvolver abundantemente: ao avanar a hiptese de que as crenas coletivas em falsas idias podem ser explicadas freqentemente a partir da noo de um Homo sociologicus racional, tomo a noo de racionalidade num sentido mais amplo, que no se reduz acepo estreita que se tem dela algumas vezes. Destaca-se nas cincias sociais uma primeira concepo de racionalidade que pode ser qualificada de utilitarista. Neste caso, presume-se que o ator racional persiga os fins que coincidem com seus interesses mais imediatos, empregando os meios apropriados. Esta forma de racionalidade , sem dvida, de uma grande importncia na vida social. Ela est ilustrada na primeira fase do exemplo evocado nas primeiras pginas: os camponeses indianos recusaram a plula porque, em seu contexto econmico, de seu interesse formar uma famlia numerosa. Quando os anglo-saxes fazem referncia a rational choice model, esto geralmente falando desta concepo utilitarista. Mas evidente que esta concepo demasiadamente estreita para pretender generalizar-se. Na verdade, em muitos casos ela no

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pertinente para explicar o comportamento (as atitudes, crenas etc.) de um ator e para interrogar-se sobre os objetivos que perseguiria ao adotar este comportamento ou crenas. Mais uma vez, para ilustrar este ponto, voltemos a nosso primeiro exemplo: os pesquisadores diagnosticaram que os camponeses indianos eram vtimas de suas supersties. Sem dvida, eles tentaram fazer o diagnstico correto para realizar um trabalho mais eficiente. No entanto, este objetivo no explica, de maneira nenhuma, o contedo do diagnstico. Em outras palavras, o diagnstico dos pesquisadores no se explica nem nos quadros da concepo utilitarista da racionalidade, nem mesmo nos limites do que se poderia denominar, como Weber, de concepo teleolgica (Zweckrationa/itiit) da racionalidade.!" Isto quer dizer que o diagnstico em questo inexplicvel? Seguramente no, pois, como j tentei mostrar, os pesquisadores tinham boas razes para chegar a tal concluso. Como j foi desenvolvido anteriormente, quando falo de racionalidade, em sentido bastante amplo, que como entendo esta concepo. Traduzirei ento o conselho de Weber do qual parti considerar o ator como racional - atravs do seguinte postulado: explicar o comportamento (atitudes, crenas etc.) do ator tornar evidente as boas razes que o levaram a adotar seu comportamento (atitudes, crenas etc.), reconhecendo que estas razes, segundo os casos, podem ser de tipo utilitarista ou teleolgico, mas tambm podem pertencer a outros tipos. Pode ser objetado que ao adotar uma definio to ampla, corra o risco de esvaziar o conceito de racionalidade de sua significao. Creio que no se trata disso. Pois, se refletirmos nisso, o postulado que formulei bastante restritivo: exclui efetivamente que se possa explicar o comportamento do ator por outras razes que no sejam as dadas por ele mesmo, caso tenha tempo de refletir e tenha gosto pelo exerccio desta introspeco. Assim, exclui numerosos procedimentos explicativos e hipteses correntemente utilizadas em cincias sociais e que supem, implcita ou explicitamente, que o ator possa, sem saber, ser manipulado por foras que escapam a seu controle.

Primeira Parte

2O que a ideologia?

Quando se examina a literatura relativa noo de ideologia e explicao do fenmeno ideolgico, difcil escapar ao sentimento de que ela seja dominada por uma grande confuso. I As definies do termo so muito variveis de um autor a outro, e as explicaes do fenmeno utilizam-se de princpios heterclitos. Temse, em resumo, a impresso de que a mesma palavra serve para a descrio de uma variedade de fenmenos, e no de um fenmeno nico; de que as teorias da ideologia se opem entre si sobre um objeto que definem de maneira diferente uma da outra e de que o importante corpus que constituem tem, com freqncia, a aparncia de um dilogo de surdos. Tratarei neste captulo da definio da noo de ideologia: seria possvel, na confuso de definies que foram propostas, encontrar alguns padres? Seria possvel fazer uma opo razovel por uma definio particular?

Consideremos, a ttulo de exemplo, algumas definies clssicas. Em primeiro lugar a clebre definio de Marx na Ideologia alem:A produo de idias, de representaes, da conscincia , antes de tudo, direta e intimamente imbricada na atividade material e

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comrcio material dos homens. Ela a lngua da vida real. As representaes, o pensamento e o comrcio intelectual dos homens aparecem, aqui tambm, como emanao direta de seu comportamento material (...). Se em toda ideologia os homens e suas relaes parecem estar de cabea para baixo, como dentro de uma cmera obscura, isto resulta de seu processo de vida histrica, exatamente como a inverso dos objetos na retina resulta de seu processo de vida diretamente fsica.2

As ideologias aparecem aqui como idias falsas - esto de cabea para baixo - que o "comrcio material" inspira aos homens, necessariamente. Por exemplo: o capitalista considera o lucro como remunerao natural do capital. O proletrio tem igualmente tendncia a perceber seu salrio como normal. 3, Nem um nem outro vem claramente a verdade que Marx pensa ter sublinhado no Capital, a saber, que o lucro exprime a mais-valia produzida pela explorao do operrio, e que o salrio corresponde ao valor do trabalho amputado desta mais-valia. Meu objetivo aqui no discutir detalhadamente a teoria marxiana" das ideologias. Deixarei provisoriamente de lado as discusses provocadas pelos textos de Marx.> para reter somente um ponto: na maior parte dos textos tericos que consagrou a esta questo, define as ideologias como idias falsas que o "comrcio material" inspira aos atores sociais.

dade dada. Sem entrar no problema da relao de uma cincia com seu passado (ideolgico), digamos que a ideologia como sistema de representao se distingue da cincia por ser, nela, mais importante sua funo prtico-social do que sua funo terica (ou funo de conhecimento). Em toda sociedade, constata-se (...) a existncia de uma atividade econmica de base, de uma organizao poltica e de formas ideolgicas (religio, moral, filosofia etc.). A ideologia, portanto, faz parte organicamente, como tal, de toda totalidade social (...). As sociedades humanas secretam a ideologia como o elemento e a atmosfera indispensveis sua respirao, sua vida histrica."

Como j foi muitas vezes realado, a teoria da ideologia um dos captulos sobre os quais a tradio' marxista se mostra me- . nos unificada. Assim, no exagero dizer que a definio de Lenin no tem nenhuma relao com a de Marx. Para Lenin," as ideologias so sistemas de idias, de teorias, que os protagonistas da luta de classe utilizam em seu combate. claro, elas podem ser mais ou menos verdadeiras ou mais ou menos falsas, mas so, sobretudo, mais ou menos teis. Sua utilidade no depende necessariamente de sua veracidade e, ainda, todas as classes podem ter suas ideologias. Completarei estes dois exemplos rpidos tomados da teoria marxista com um texto de Louis Althusser:Muito esquematicamente, suficiente saber que uma ideologia um sistema (possulndosua lgica e seu rigor prprios) de representaes (imagens, ritos, idias ou conceitos, segundo os casos) dotado de uma existncia e de um papel histrico no seio de uma socie-

Fiz questo de reproduzir esta longa citao de modo a permitir ao leitor um julgamento sobre originais da concepo althusseriana das ideologias: para este autor, essencialmente, a ideologia se confunde com o conjunto das idias, conceitos e representaes que no se classificam sob a etiqueta de cincia. Elas no so nem verdadeiras nem falsas e no respondem, ao menos em primeiro lugar, a uma necessidade de conhecimento. Mas elas so indispensveis. Acompanham a vida social como uma espcie de respirao. E, ainda, Althusser se satisfaz em afastar com um gesto a idia de que as cincias pudessem vir a ser inspiradas por pontos de vista no cientficos. Se to rapidamente evoquei a tradio marxista, isto seguramente se deve ao fato de que a palavra "ideologia" desenvolveuse, sobretudo, no interior desta tradio. interessante notar que os socilogos clssicos do final do sculo XIX, seja Max Weber, Pareto ou Durkheim, parecem todos evitar cuidadosamente a palavra "ideologia". 8 Provavelmente porque a percebiam como demasiadamente ntima da tradio marxista e porque nutriam todos muitas reservas em relao ao pensamento de Marx: para dizer a verdade, destes trs grandes socilogos somente Pareto prestoulhe uma real ateno. Mas, se renunciaram a utilizar o conceito de ideologia, isto pode igualmente dever-se ao fato de que, no interior da tradio marxista, podem-se facilmente discernir definies contraditrias deste conceito, umas referenciando-se no critrio de verdade e de erro, outras no. Apesar disto, o conceito de ideologia trilhou seu caminho desde a poca herica de Durkheim, Weber e Pareto. Ele hoje considerado como um conceito clssico e designa um captulo das cincias sociais cuja existncia e importncia ningum coloca em dvida.

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Vejamos, portanto, como alguns socilogos modernos - nomarxistas - definem a noo de ideologia. Contentar-me-ei, ainda aqui, com um pequeno nmero de exemplos. Meu nico objetivo fazer sentir a diversidade das definies expressas por autores que tm em comum o fato de terem consagrado longas reflexes ao fenmeno ideolgico, e no de terem tentado um recenseamento exaustivo das definies produzidas pela noo de ideologia. Primeiramente, escutemos Raymond Aron:As ideologias polticas misturam sempre, com maior ou menor felicidade, proposies de fato e julgamentos de valor. Exprimem uma perspectiva sobre o mundo e uma vontade voltada para o futuro. Elas no caem diretamente na alternativa do verdadeiro e do falso e no pertencem tampouco ordem dos gostos e das cores. A filosofia ltima e a hierarquia de preferncias chamam antes ao dilogo do que prova ou refutao: a anlise dos fatos atuais ou a antecipao dos fatos que viro se transformam com o desenrolar da histria, e do conhecimento que dela depreendemos. A experincia corrige progressivamente as construes doutrtnais. 9

cimento que dela depreendemos"). Pois, segundo Mannheim, como teremos oportunidade de sublinhar mais tarde, a percepo de um dado histrico sempre uma percepo histrica, dependente da posio histrica do observador.

Evidentemente trata-se a de uma das passagens mais meditadas e trabalhadas de L 'opium des intellectuels. Aron retoma a a clebre distino da tica a Nicmaco segundo a qual certos temas advm da discusso - da dialtica no sentido aristotlico - enquanto outros, da demonstrao. Seria to absurdo, diz aproximadamente Aristteles, 10 aplicar moral o mesmo tipo de raciocnio que se aplica matemtica, quanto raciocinar em matemtica como se argumenta em moral. A esta distino aristotlica, Aron sobrepe uma distino ulterior quela em que Hume deu uma formulao cortante: os julgamentos de fato so demonstrveis, mas no os de valor. As ideologias se compem de julgamentos de fato e de julgamentos de valor. sem dvida por isso que, ainda que "no caiam diretamente na alternativa do verdadeiro e do falso", caem, indiretamente, sob essa categoria: os julgamentos de valor no podem ser demonstrados como verdadeiros ou falsos, mas so susceptveis de justeza. Quanto aos julgamentos de fato, Aron admite, claro, que podem ser demonstrados se verdadeiros ou falsos. II A estas reminiscncias aristotlicas e humanas, o texto de Aron traz ainda uma discreta referncia ao historismo alemo. Talvez ele tenha pensado mais precisamente em Karl Mannheim na sua penltima frase ("a anlise dos fatos atuais ou a antecipao dos fatos que viro se transforma com o desenrolar da histria, e o conhe-

Voltar-me-ei agora para um texto importante, a parte mais notvel do artigo "Ideologia", da International Encyclopedia of lhe Social Sciences. Este artigo importante, no somente pelo carter quase oficial desta enciclopdia que representa um corpus de referncia no domnio das cincias sociais, mas tambm pela reputao de seu autor: Edward Shils.12 Para Shils, a ideologia uma variante dos sistemas de crenas positivas e normativas (encontramos aqui a distino entre julgamentos de fato e julgamentos de valor) que florescem em toda sociedade humana. Em relao s "vises do mundo" (o que os anglo-saxes batizam outlooks e os alemes de Weltanschauungen), as ideologias se diferenciam pelo carter explcito de sua formulao. Mas so tambm mais fechadas, mais rgidas e mais resistentes inovao. Elas so promulgadas e endossadas com acentos fortemente afetivos. Requerem uma adeso completa da parte dos que as subscrevem. Elas dividem com os "sistemas e movimentos de pensamento" (o existencialismo, o pragmatismo ou o idealismo hegeliano, por exemplo) a caracterstica sobre construes intelectuais explcitas ou sistemticas. Mas os sistemas e movimentos de pensamento se distinguem, ao mesmo tempo, por uma maior abertura inovao e pelo fato de que no requerem, da parte de quem neles acredita, uma adeso total. Shils prope igualmente a oposio entre ideologias e programas (por exemplo, o movimento dos direitos cvicos), estes ltimos visando objetivos mais circunscritos que as ideologias. Em resumo, as ideologias se distinguem de outros tipos de sistemas de crenas pela posio que ocupam em relao a oito critrios. Caracterizam-se por: o carter explcito de sua formulao, sua vontade de reunir em torno de uma crena positiva e normativa particular, sua vontade de distino em relao a outros sistemas de crenas passados ou contemporneos, seu fechamento inovao, o carter intolerante de suas prescries, o carter passional de sua promulgao, sua exigncia de adeso e, finalmente, sua associao com instituies encarregadas de reforar e de realizar as crenas em questo.

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Sutton, ele prprio, o reconhece de uma certa maneira quando evoca a funo de unio ideolgica. Em resumo, a ideologia no deve ser concebida, segundo Geertz como uma percepo ou um conhecimento deformados. Por outro lado, se nos obstinamos em definir a ideologia relativamente ao conhecimento, nos condenamos a produzir uma noo polmica: o que conhecimento para um sendo ideologia para o outro e reciprocamente. Assim, Marx se via como sbio, mas via Adam Smith como idelogo, enquanto os liberais vem em Marx um idelogo e em Adam Smith um sbio. Se quisermos que a noo de ideologia conserve um sentido no discurso cientfico, necessrio, segundo Geertz, depur-Ia do carter polmico de q~e ela ~e reveste assim que opomos ideologia e conhecimento. Ora, Isto nao somente possvel, mas a anlise que faz da reao sindical lei Taft-Hartley representa uma evocadora ilustrao desta maneira de ver a ideologia. Desde o momento em que se define a ideologia a partir da noo de ato simblico, quer dizer, deste con}unto ~e atos cuja retrica aristotlica umexemplo, a noo de Ideologia estar depurada de seu carter polmico. Somente ento, segundo Geertz, poder pretender descrever um objeto pertinente da anlise cientfica. Desta pertinncia a abundante literatura que trata das funes e usos sociais da metfora e outros procedimentos da retrica nos traz a prova. Em uma palavra, se queremos que a noo de ideologia conserve uma significao no interior do discurso cientfico, necessrio, segundo Geertz, parar de definir a ideologia em relao cincia. necessrio, em outros termos, para falar como Althusser, admitir que a "funo de conhecimento" da ideologia subordinada a sua "funo prtico-social".Tipos de definio da ideologia No referidos ao critrio de verdadeiro e de falso Lenin: A ideologia como arma na luta de classes. Althusser: Os tericos cia-reflexo. da conscinA ldeoloqlaatrnosfera indispensvel respirao social.

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Aron: A ideologia no advinmas indo diretamente,

Geertz: A ideologia simblica. como ao

diretamente do verdadeiro e do falso. Tradio no-marxista Parsons: A ideologia, desvio em recienlao objetividade tfica. Shils: A ideologia, tipo particular de sistema de crenas.

interessante, neste ponto, resumir as diferentes definies que acabo de apresentar no quadro. Classifiquei ali as definies em relao a dois critrios: tradio marxista/tradio no-marxista e definio dependente/independente do critrio de verdadeiro e de falso. O interesse deste modo de representao que faz aparecer uma ausncia de relao entre os dois critrios: nas duas tradies se prope uma definio de ideologia, seja por referncia ao critrio de verdadeiro e de falso, seja sem referncia a este critrio. Hesitei sobre a localizao a ser atribuda a Aron no quadro. Se no h dvida sobre a linha onde coloc-Ia, pode-se hesitar sobre a coluna. Finalmente atribu-lhe a coluna da esquerda por duas razes: por um lado, sua definio indica que as ideologias caem imediatamente sob a alternativa do verdadeiro e do falso; por outro lado, porque a polmica do L 'opium demonstra que ele considerava as ideologias que atacava como falsas e assim se reconhecia o direito de julg-Ias em relao ao critrio do verdadeiro e do falso. Coloquei de maneira annima os tericos da conscincia-reflexo na interseo da primeira linha com a primeira coluna: com efeito, todos estes tericos supem que, por um lado, as representaes dos atores sociais so o reflexo de suas posies e, por outro, que o socorogo pode elevar-se acima da confuso ou, se preferimos uma Imagem platnica, arrancar-se do fundo da Caverna e descodificar assim as iluses dos atores sociais. '

Tipos de tradio

Referidos ao critrio de verdadeiro e de falso Marx: como cincia

A ideologia falsa. Tradio marxista

Confusa como parece, esta discusso sobre a definio da noo de ideologia gira, como se v, em torno de uma nica questo:

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O QUE A IDEOLOGIA?

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ou -no necessrio definir a ideologia em relao ao critrio da verdade e do erro. Sobre a resposta a dar a esta pergunta, todos os autores que citei - e, creio, todos que poderamos citar - se alinham em dois campos, uns dando uma resposta positiva e outros negativa. Somente Aron d uma resposta que no nem francamente positiva nem francamente negativa. Portanto, atrs da confuso da discusso, os termos do debate so claros. Resta saber qual das duas respostas a melhor. Claro, uma definio no pode ser demonstrada. Podemos somente argumentar a seu favor, ou desfavor. necessrio, entretanto, sobre este ponto, assim como outros, desconfiar das idias recebidas, pois uma definio pode muito bem, em certos casos, ser demonstrada falsa. Assim, ningum aceitaria definir o homem como um animal de trs ps (salvo dando a entender como a Esfinge de Delfos que se est jogando sobre o sentido da palavra p). Infelizmente, diferena da noo de "homem", a ideologia no corresponde a uma classe de objetos que pudesse ser facilmente indentificvel antes que tivssemos tentado defini-Ia. por isso, neste caso, que no podemos nos apoiar sobre uma comparao com a realidade (o homem tem dois ps e no trs) para aceitar ou desqualificar tal ou qual definio de ideologia. Mas necessrio perceber que as discusses relativas palavra "ideologia" tm em muito contribudo para embaralhar a noo. Para aqueles que criaram, aceitaram, utilizaram e vulgarizaram este vocbulo, ele correspondia de fato a uma realidade que percebiam como nova. Sem dvida, mais do que corresponder a uma classe de objetos, esta realidade uma realidade histrica singular que no saberia dar lugar a uma definio pelo gnero prximo e pela diferena especfica. No entanto, por outro lado, preciso reconhecer que ela no muito difcil de se discernir. De fato, a palavra ideologia aparece, toma o sentido que conhecemos hoje e se difunde, a partir do momento em que, no final do sculo XVIII e no sculo XIX, se multiplicam os esforos para fundar sobre a razo e sobre a cincia uma ordem social que, at ento, se fundava sobre a tradio. Meu primeiro argumento em favor da definio de tipo MarxAron-Parsons portanto um argumento ao mesmo tempo histrico e lgico. Na origem, a palavra ideologia designa uma realidade: a do crescente papel social que joga a argumentao cientfica na reflexo sobre o poltico e o social. Suponhamos ento que mantivs-

""IIIOS esta definio e que designssemos por noo de ideologia conjunto de teorias que pretendem nos informar sobre o poltico " li social, apoiando-se num procedimento de tipo cientfico. Segue"c evidentemente que a ideologia cai sob a jurisdio da alternati1';1 verdade/erro. necessrio introduzir aqui um curto parntesis sobre a histI i;1 da palavra "ideologia". Como sabemos, esta palavra foi criada por Destutt de Tracy, no final do sculo XVIII. Ela designava para este autor a cincia da gnese das idias, que se propunha a luudar , Forjando o conceito de ideologia, Destutt de Tracy pretendia portanto designar uma disciplina que teria como objeto as idias, .issim como a mineralogia tem como objeto os minerais ou a geolop,i;\ da terra. Quanto ao contedo e orientao desta disciplina, parecia-lhe poder inspirar-se diretamente das idias sensualistas, tal ,'OlHO se resumiam no famoso modelo da esttua de Condillac: Condillac muito se esforou para mostrar que, se emprestasse sua estIlIa um dos mais rudimentares sentidos, o olfato, ela se tornaria caP;\I, de se elevar at as idias mais abstratas. Destutt de Tracy prerendia aprofundar as indicaes de Condillac e analisar as origens sl'lIsoriais das idias. E, se fala de ideologia antes do que de psicologia, porque a raiz desta palavra parecia-lhe carregada de uma conotao religiosa. Nos seus primrdios, a palavra ideologia revestia-se, portan11), de um sentido que hoje quase totalmente superado, se, ao meIIOS,fizermos abstrao da teoria das ideologias de Marx que enconI ra-se, em parte, no projeto de Destutt de Tracy, j que Marx tamhrn pretendeu demonstrar que as idias so produto das sensaes produzidas pelas condies materiais de existncia. Mas, se deixarIII()Sde lado esta familiaridade intelectual (alis, to remota) entre ( 'ondillac, Destutt de Tracy por um lado e Marx por outro, verdade que este .sentido primeiro da palavra ideologia est hoje perdido, Sua obsolescncia sem dvida correlativa quela do sensualis1110, em primeiro lugar, e, em seguida, do materialismo. Foi sem dvida Napoleo quem, por acaso, conferiu palavra ideologia seu sentido moderno. Destutt de Tracy e Volney, tendo procurado contrariar suas ambies imperiais, foram por ele chamados, num tom de desprezo, de idelogos, deixando entender por a que, aqueles que se designavam desta maneira, visavam a substituir, corno ser dito a seguir, consideraes abstratas poltica real. A partir deste momento, a noo de ideologia passou a designar teoIl

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rias to abstratas quanto duvidosas que se pretendiam fundadas sobre a razo ou sobre a cincia e que visavam desenhar a ordem social e orientar a ao poltica. o sentido que Marx reteve, inspirando-se, talvez, em Hegel que empregou o termo uma s vez, no final da sua vida, dando-lhe o mesmo sentido que Napoleo. 21 Se a palavra difundiu-se neste sentido, ao ponto de tornarse um vocbulo consagrado, , ainda uma vez, porque correspondia a uma realidade: verdade que, de Locke a Adam Smith, passando por Rousseau, uma idia se havia progressivamente imposto, ou seja, que era possvel e legtimo procurar as leis do mundo social, tal como Newton havia procurado as leis da natureza. "Se outros, escreve Locke, pudessem nos dar uma relao to boa e to clara de outras partes da natureza alm daquelas que ele (Newton) nos deu de nosso mundo planetrio e dos fenmenos mais importantes que se podem observar ( ... ) ns poderamos esperar, chegada a hora, dispor de um conhecimento mais verdadeiro e mais certo do que o que poderamos esperar at aqui sobre as vrias partes desta estarrecedora mquina." 22 A este texto, far eco mais tarde a famosa definio de Montesquieu: "As leis, no seu significado mais extenso, so as relaes necessrias que derivam da natureza das coisas: neste sentido, todos os seres tm suas leis: a Divindade tem suas leis; o mundo material tem suas leis; as inteligncias superiores ao homem tm suas leis; os animais tm suas leis; o homem tem suas leis". 23 A referncia repetida de Adam Smith "ordem natural das coisas" traduz uma ambio anloga. Assim, arhistria da palavra ideologia mostra que ela serviu para designar uma ambio: a ambio de pensar e fundar cientificamente a ordem social. Ao mesmo tempo, o carter pejorativo da palavra, que se conservou de Napoleo a Marx, depois de Marx a Aron e a muitos outros, indicava tudo que esta ambio podia ter de ilusrio. A acepo tradicional da palavra ideologia corresponde, portanto, a uma realidade, mesmo que esta realidade no possa ser nem to facilmente identificada, nem to facilmente distinta de outras realidades como os bpedes que somos podem se distinguir de outros animais. Este tipo de conceito tem um nome e se designa classicamente pela noo de tipo-ideal. Assim, os conceitos de "monarquia absoluta" ou de "capitalismo" so tipos-ideais: exatamente co.mo o conceito de ideologia na sua acepo tradicional, eles se referem a singularidades histricas. Por outro lado, estes tipos-ideais

.ip.ucciarn antes, em geral, nos discursos dos atores sociais, s sen,111 integrados ao discurso dos historiadores, dos socilogos ou d(\~ economistas num segundo momento. o que se passou no ca',I I do conceito de ideologia, assim como no caso dos dois outros "lIllTitos.

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Meu segundo argumento em favor do que chamarei doravandl' definio clssica ou tradicional de ideologia retoma uma obI'\';I() que j esbocei contra a concepo de Shils. Shils nos diz que o marxismo a nica grande ideologia dotada dl' um certo contedo cientfico. Ora, importante repetir, a nurior parte das ideologias dos sculos XIX e XX, tanto as mais iml"lllalltes como as menos importantes, comportam todas uma ari'llllIclltao cientfica. Isso verdade para o marxismo como con. I'de Shils. , por exemplo, difcil no considerar corno um exerci 11\muito srio da histria econmica a anlise marxiana da crise .I,\ feudalismo, tal como ela se apresenta na Misria da filosofia. hla anlise to pouco contestvel que Keynes a retoma em suas 1'.1 .uidcs linhas.>' E claro que O capital ilustra um procedimento ,It- I ipo cientfico (o que no quer dizer, evidentemente, que todas ,,"~\\as teses sejam verdadeiras). Mas, evidentemente, podemos fazer as mesmas observaes a I'lIlJlsito do liberalismo. Consideremos o clebre argumento de LocI\!, sobre a propriedade: na ausncia de direitos de propriedade o in.Iivkluo, ameaado de se ver despossudo do produto de seu trabalho, 1I:t1lser incitado a trabalhar. Trata-se de um teorema cuja demons11 a,';\O no poderia ser mais rigorosa. Poderamos dizer a mesma coi'o" das passagens da Riqueza das naes, em que Adam Smith demons11 () carter nefasto das colnias do ponto de vista da metrpole, 25 a liI da "lei das vantagens comparativas" de Ricardo, segundo a qual 'I comrcio internacional um jogo de somas positivas que beneficia ll\ duas partes da troca. O que verdade para o liberalismo econ1I11l'O, tambm para o liberalismo poltico, doutrina que tambm ',I' apia sobre um corpus de teoremas clssicos. Para evitar qualquer discusso, no pretendo aqui dispensar, l.ulo a lado, o marxismo e o liberalismo (se bem que a discusso .I,' contedo no seja de modo algum meu objeto neste livro, voltaIci ocasionalmente sobre este ponto no captulo 10). Pretendo so1IIt'IIte colocar que, contrariamente opinio de Shils, o marxismoI"

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no a nica ideologia que se apia sobre um "importante contedo cientfico" . Esta opinio torna-se ainda mais curiosa quando vemos que Shils exatamente o contrrio de um marxista: ela resulta, na verdade, da vontade de se convencer e de convencer o leitor que as ideologias devem ser concebidas sob o modelo das doutrinas religiosas e no sob o das doutrinas cientficas. Por isso trata o marxismo como uma exceo que confirma a regra. Esta concesso ainda mais difcil de admitir quando se tem em conta, por um lado, que o liberalismo tambm fundado sobre doutrinas cientficas e, por outro lado, que estas doutrinas so sem dvida menos frgeis do que aquelas sobre as quais repousa o marxismo. Pois, se difcil refutar, por exemplo, o teorema de Locke sobre os direitos de propriedade, ou a "lei das vantagens comparativas" de Ricardo , no nada difcil refutar esta que a pea central da teoria marxiana, a teoria da mais-valia. 26 Como j tive a ocasio de indicar sucintamente, o conservatismo moderno, por tomar uma ideologia mais difusa do que aquelas a que venho de me referir, foi tambm confortado, ao menos em algumas de suas variantes, por doutrinas de tipo cientfico provenientes, no caso, da sociologia. De fato, insistindo sobre a importncia social da sociologia dos fenmenos de autoridade, carisma, hierarquia, status, solidariedade, os socilogos da poca clssica - Max Weber, Durkheim e Pareto, notadamente - contriburam para quebrar a viso atomstica e igualitarista que havia sido veiculada pela filosofia poltica do tempo das Luzes. Sublinhando a importncia das tradies, eles contriburam para dar um sentido positivo a uma noo percebid~ como negativa no perodo que precedeu a Revoluo Francesa. E verdade que encontramos nos socilogos clssicos, como muito bem demonstra Nsbet.? temas que foram desenvolvidos sob um modelo mais prescritivo e normativo pelos pensadores conservadores do comeo do sculo XIX, Bonald ou Joseph de Maistre por exemplo. Mas no certo que os socilogos tenham sido influenciados por estes pensadores. Inversamente, certo que Weber, como Durkheim e Pareto, analisando de maneira positiva fenmenos como os que acabo de evocar, contriburam para suas revalorizaes: com eles a tradio, a autoridade, a hierarquia perdiam o valor negativo que Ihes era atribudo na poca das Luzes e se recarregavam de um valor positivo. Ora, nem necessrio precisar que estas noes so percebidas de maneira positiva pela ideologia conservadora.

Neste ponto necessrio resguardar-se de uma iluso ptica histrica: percebe-se freqentemente a sociologia como uma disciplill;\ voltada ao igualitarismo e "transformao social". Mas, ,'111realidade, a sociologia igualitarista ou a forma que quer aparen1;11,lima busca de efervescncia social sempre portadora de progres\tI, so fenmenos recentes. Se foram por vezes representadas no p;\ssado, se desenvolveram, sobretudo, nos anos sessenta e parecem h" je estar em vias de desaparecer. Ainda uma vez, o conservantismo uma ideologia difusa e lI:i'l pretendo que esteja inteiramente apoiado na sociologia clssi, u. ( 'orno veremos no captulo 7 com o exemplo de Voegelin, o con.1v.uuismo, por outro de seus aspectos, antes se apia sobre a tratll,,';\O, Pretendo somente sugerir, na esteira de Nisbet, que certos as\1l'\lllS da ideologia conservadora foram, sem dvida, reforados pe111'. .urlises cientficas da sociologia clssica. Certamente o darwinismo social, como seu nome basta para uu hv.u, apoiou-se sobre teorias a que ningum sonharia negar o ca11111'1 cientfico, o que no quer dizer - seria til precis-Io - que u-, ,. iuccpes do darwinismo social possam ser consideradas como .IIII)lks produtos do darwinismo simplesmente. 28 ( ) que verdade para os grandes idelogos, tambm o para 1lll'1l0S importantes. Estas ideologias menores merecem, tanto '1111111111 as grandes, ocupar nossa ateno, pois podem ter - e tm, 11"'1I1l'lllemente - uma influncia poltica considervel. Mencionei .1.1111:1 caso do desenvolvimentismo: o ele repousa sobre um conjunli' k teorias que vem, na ajuda externa e na injeo de capitais, 11'.,tlllllies necessrias para o desenvolvimento econmico. Estas I "III:IS (falsas ou verdadeiras, pouco importa para o que aqui nos '" 11\1:\) piam-se incontestavelmente a em procedimentos de tipo cien111 m, Sem dvida elas foram contestadas e foram, alis, seus opo1 '.11111"\ que as reuniram sob a etiqueta de desenvolvimentismo, a terIIIIII;I,';!Oismo indicando a inteno crtica e visando produzir um ,/"1111 pejorativo. Mas os argumentos dos opositores se apoiaram, ,I.". t.unbm, sobre uma argumentao cientfica. I' i~\ que evoquei aqui o caso do desenvolvimentismo, poderia 11""lhIlL'lIle, por simetria, evocar o do terceiro-mundismo.? No se 1111101 .Illllente, como s vezes sugerido, de uma ideologia funda0111 IIH bons sentimentos. Aqui, como em outros casos, os senti. 1110'111,1\ apiam sobre teorias que, inteira ou parcialmente verda\t' .1'11'1\ 1111 falsas, tm ao menos a forma de teorias cientficas. Semli'.

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o enorme corpus de pesquisas e de teorias que reagrupamos sob o vocbulo de "teoria da dependncia", sobre o qual voltarei a falar no captulo 9, o terceiro-mundismo no seria o que .

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Meus dois primeiros argumentos em favor da definio de ideologia de tipo Marx-Aron-Parsons so, em resumo, os seguintes: Q} A palavra ideologia se impe no decorrer do sculo XIX porque descreve uma realidade social nova, ou seja, a tentao cada vez mais difundida de fundar a ordem social sobre anlises de tipo cientfico. Ao mesmo tempo, o carter pejorativo da palavra marca os limites deste esforo e os riscos e desvios aos quais est exposto; 2) A maior parte dos idelogos sobre os quais podemos pensar, quer se tratem de ideologias maiores ou de ideologias menores, ou de ideologias "de esquerda" ou "de direita", se caracterizam pelo fato de que se apiam efetivamente sobre doutrinas obedientes a procedimentos de tipo cientfico. Estes dois argumentos convidam definio das ideologias como doutrinas que repousam sobre teorias cientficas, mas que so teorias falsas ou duvidosas ou indevidamente interpretadas, s quais se d uma credibilidade que no merecem. O problema sociolgico fundamental que se coloca ento saber por que tais "mal-entendidos" so possveis e to difundidos. este o problema fundamental que me coloquei neste livro. Mas, antes de abordar este ponto, gostaria de continuar fazendo a defesa da definio tradicional (de tipo Marx-Aron-Parsons) da ideologia. No somente esta definio me parece corresponder a uma realidade e levantar uma questo importante (por que teorias falsas, duvidosas ou frgeis tm to fcil e correntemente autoridade?), mas tambm, e ainda mais, a definio moderna (de tipo ShilsGeertz-Althusser) tem todo tipo de lacuna, a ponto de no percebermos claramente o que ela pretende designar. Livremo-nos primeiramente de um argumento aparentemente forte, mas, em realidade, muito frgil de Geertz: na sua acepo tradicional a noo de ideologia portadora de julgamentos de valor, pois designa crenas cujo fundamento duvidoso e os conceitos cientficos devem ser axiologicamente neutros, quer dizer, no comportar julgamentos de valor.

Tal argumento utiliza a noo de neutralidade axiolgica bem fora de propsito. Esta noo indica que o observador no deve projetar suas prprias preferncias e seus prprios valores sobre o objeto que analisa - ele no deve declarar que um objeto branco negro, sob pretexto de amar o negro. Mas ela no requer que se considere um erro como um erro, nem uma verdade como uma verdade. No se contrape neutralidade axiolgica o fato de se declarar que um indivduo que pretenda que 2 mais 2 sejam 4 est enganado, ou a um mentiroso que ele mente. Na verdade certos objetos cientficos s podem ser definidos a partir de julgamentos de valor deste tipo. No se pode esperar fazer uma psicologia da mentira se nos recusarmos a "julgar" o mentiroso. Consideremos ainda o fenmeno da magia que motivou inmeros trabalhos cientficos: no somente estas pesquisas ignoram o carter ilusrio das crenas mgicas, mas supem que o observador possa tratar estas crenas como contraditrias com os conhecimentos cientficos. Em outras palavras, a magia s pode ser definida a partir da noo de crena falsa. Por que o que pareceu no criar dificuldades no caso da magia deveria cri-Ias para o caso da ideologia? Mais, a definio moderna da ideologia parece-me no corresponder ao que se espera de uma definio. Supondo-se que de fato rejeite meu argumento precedente segundo o qual a palavra ideologia, na sua acepo tradicional, traduziria uma realidade histrica, ainda necessrio que a definio permita identificar claramente o objeto aos quais se refere e que os designe por critrios que no sejam heterclitos. Que pensaramos, por exemplo, da definio que faria do homem um ser vivo 1) com dois ps, 2) capaz de enganar, 3) inventor da negao, 4) sem plos, 5) apaixonado, 6) razovel? Ora, parece ser uma definio deste tipo que nos prope a concepo "moderna" da ideologia. Com efeito, se definirmos a ideologia pela noo de ao simblica, ela incluir tanto todos os teoremas matemticos, quanto o conjunto de insultos dirigidos aos parlamentares de todos os tempos, os contos para crianas, as teorias filosficas e at o conjunto de todas as opinies polticas. E mesmo para uma confuso deste gnero que tende uma definio como a de Althusser que subxume sob o vocbulo ideologia as idias, conceitos, imagens, teorias, representaes morais, filosficas, religiosas ete. (sic). E, se compreendermos por ideologia o conjunto das aes simblicas liga-

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das ao jogo poltico, esta definio seria apenas um pouco menos heterclita. Enfim, arbitrrio supor, como sugere Geertz, que os atos simblicos sejam necessariamente desprovidos de referncia ao critrio da verdade e do erro. Para que nos possamos dar conta, basta retomarmos o exemplo da metfora sobre a qual ele mesmo se apia e que constitui um exemplo paradigmtico das aes simblicas. Suponhamos que faa um sol radiante e que eu proclame: "Que tempo horroroso". No haver nenhuma dificuldade para se imaginar a reao de meus interlocutores. Minha metfora - ao simblica que seja - cair no vazio: era falsa. Sem dvida ela era falsa, mas no no sentido lgico do termo, e sim no sentido que se diz de um retrato que ele falso. Mas, o fato de que a mesma palavra seja empregada nos dois casos, no , talvez, um acaso. isso, alis, o que aconteceu com a metfora sindical evocada por Geertz. Ela era falsa: a lei Taft-Hartley no era de fato percebida pelo pblico como uma lei escravagista. Sua metfora tambm caiu no vazio e no exerceu nenhum efeito mobilizador. Enfim, um ltimo argumento convida a no considerar as aes simblicas, no sentido de Geertz, como estranhas aos critrios de verdade e de erro. Os procedimentos retricos s tm valor e efeito quando se apiam em ideologias (no sentido tradicional do termo). Isto pode ser visto claramente, por exemplo, nos debates polticos: um parlamentar na Assemblia Nacional declarou, num momento de grande envolvimento oratrio, que a "independncia do povo camaque est inscrita na histria' '. Seu poder de convico resultou menos de seus braos erguidos e do flego que atravessava seu discurso do que do corpus de teorias evolucionistas que ele evocava, deste modo, no esprito de seus auditores.

Mas, se objetar ainda, e os julgamentos de valor? Toda ideologia comporta julgamentos de valor? E os julgamentos de valor so realmente no demonstrveis, como se sabe desde Hume?30 No resultaria da que as ideologias, j que contm julgamentos de valor, escapem, ao menos nesta medida, ao critrio do verdadeiro e do falso? Aron sublinha claramente este ponto: "As ideologias polticas sempre misturam com maior ou menor felicidade , proposies de fato e julgamentos de valor". Por isso, "no caem direta-

mente (sou eu quem sublinha) sob a alternativa do verdadeiro e do falso" . A questo dos julgamentos de valor , evidentemente, muito complexa e no pretendo esgot-Ia aqui. Contentar-me-ei em sublinhar, sem insistir, que os julgamentos de valor podem ser, condicionalmente, demonstrados. At a fsica comporta, neste sentido, julgamentos de valor. Por exemplo: "A quem teme a dor fsica desaconselhado deixar o dedo na dobradia das portas (local de temveis efeitos de alavanca)". E, igualmente para as cincias humanas. Por exemplo: "A menos que desejemos incitar o cio, necessrio garantir s pessoas a disposio do produto do seu trabalho". De maneira geral, suponhamos que B seja unanimemente considerado desejvel e que A seja, com certeza, a condio necessria e suficiente para B. Ligando as duas proposies teremos demonstrado o julgamento de valor: A bom. Claro, existem tambm julgamentos de valor que no so demonstrveis. Deste modo, parece bom no cortar as mos dos ladres, mas impossvel demonstr-Io. Retenhamos somente que a questo da demonstrao dos julgamentos de valor uma questo complexa, mas no verdade que eles sempre escapem alternativa do verdadeiro e do falso. Simetricamente, tambm necessrio sublinhar que, exceto os julgamentos singulares (que sempre o so, em princpio, se a informao disponvel for suficiente), os julgamentos de fato podem no ser demonstrveis. Pode-se facilmente determinar a verdade de uma proposio como: "Existe uma galinha de cor violcea" (basta exibir uma), mas no se pode estar seguro de sua falsidade. Pode-se facilmente demonstrar que "todas as galinhas no so violceas", mas no que "nenhuma galinha tem dentes". Enfim, sabemos muito bem que uma teoria cientfica, por mais slida que seja, se apia sempre sobre proposies no demonstrveis. Sem me aprofundar nesta discusso, concluirei que a oposio entre julgamentos de valor que no seriam demonstrveis e julgamentos de fato que sempre seriam demonstrveis deve ser considerada com prudncia. Admitamos portanto (no que precede no procurei ir mais longe do que esta proposio) que seja interessante, a despeito dos tra-

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dicionalistas, definir as ideologias

como crenas que repousam sobre teorias cientficas duvidosas, falsas ou, em todo caso, dispondo de mais credibilidade do que merecem. Agindo desta maneira, define-se ipso facto a noo de ideologia a partir de uma noo de argumentao cientfica. Isso no quer dizer que no existam outros tipos de argumentao. Podemos, no fundo, nos perguntar se os modernistas no estariam jogando fora a criana junto com a gua suja do banho quando propem definir a ideologia afastando o critrio da verdade e do erro. No mais fcil reconhecer que existe um tipo de argumenta que no concebvel independentemente do critrio da verdade e do erro (a argumentao cientfica e tambm outros tipos de argumentao que no tm uma dependncia to ntida e to estreita com este critrio)? A argumentaorezzjcc outra forma clssica de argumentao. Ela, claro, se distingue da argumentao cientfica: Geertz tem perfeitamente razo sobre este ponto e, quando diz isso, no faz mais do que reencontrar uma antiga distino aristotlica. Vimos que em muitas circunstncias a argumentao retrica tambm pode estar submetida ao critrio da verdade e do erro. o caso da metfora que cai no vazio ou do efeito oratrio que mobiliza tacitamente um corpus doutrinal. Nossa argumentao retrica pode igualmente funcionar de maneira autnoma em relao a este critrio. O mesmo serve para a argumentao exegtica. Ela consiste em fazer falar uma autoridade, seja amplamente reconhecida, seja reconhecida em tais ou quais grupos importantes, e estabelecer o que a autoridade em questo "quis realmente dizer". Um exemplo clssico da argumentao exegtica o Elogio da loucura, de Erasmo. Fingindo fazer falar a loucura (o que o permite, caso necessrio, recusar as proposies), Erasmo faz falar o Evangelho. O Evangelho quis verdadeiramente dizer que era prefervel, para servir glria de Deus, tocar honesta e eficazmente seus negcios no mundo do que manifestar em "obras" a sua piedade. Sabemos a importncia e a influncia considerveis que a argumentao exegtica de Erasmo foi chamada a desempenhar, pois que constituiu um momento importante do desenvolvimento do protestantismo.

cos da ideologia, renunciou a empregar esta palavra e asubstituiu pelo neologismo' 'derivao". As derivaes, segundo.Pareto, so todas as construes intelectuais que os homens produzem. para mostrar as boas razes de seus sentimentos. Mas, segundo as circunstncias e as pocas, a argumentao sobre a qual as derivaes se apiam pode ser de tipo varivel. De tipo preferivelmente exegtico quando reina a tradio, ela mais freqentemente de tipo cientfico na poca moderna. No se trata aqui da linguagem de Pareto, m~s segu~amente este seu pensamento: se preferiu evitar a palavra ideologia, , sem dvida, porque esta o parecia muito incrustada na tradio marxista, e, tambm porque desejava designar por um vocbulo nico os diferentes tipos de argumentao que os homens utilizam, segundo ele, para encobrir seus sentimentos. Ao mesmo tempo - ele o percebeu e o disse claramente -, entre estas construes intelectuais que batiza com o termo genrico de derivaes, era importante distinguir aquelas que se apoiariam sobre uma argumentao cientfica. ~areto tinha ainda uma outra razo para renunciar a designar est~ t~po de construo que chamamos ideologia por uma noo propna. Ele de fato percebeu que as construes intelectuais que repousam sobre uma argumentao cientfica so caractersticas da modernidade, mas, nem por isso, expulsaram outras formas de argumentao. Como Geertz, ele acreditava na importncia da argumentao retrica e no subestimava a importncia no mundo moderno da argumentao exegtica (e esta a minha linguagem e no a de Pareto). Esta ltima continua a ter uma funo importante junto aos grupos que se caucionam em autoridades tradicionais, quaisquer que sejam. Continuamos a nos perguntar o que o Evangelho quis realmente dizer; interrogamo-nos igualmente sobre o que os founding fathers americanos, o fundador da quinta repblica ou o pai do marxismo quiseram realmente dizer. Mais genericamente, toda jurisprudncia uma interminvel resposta questo de procurar saber o que o legislador quis dizer. E, num nvel mais modesto no ~altam socilogos que preferem consagrar laboriosos esforo~ a se mterrogar sobre o que Weber ou Durkheim quiseram realmente dizer, ao invs de se perguntarem se o que disseram era esclarecedor ou verdadeiro. Em resumo, os trs tipos de argurnentao tm um papel imp.ortante nas nossas sociedades modernas. esta, sem dvida, a principal razo de Pareto para preferir falar de derivao e no de ideologia.

Foi provavelmente em razo da existncia destes diferentes tipos de argumentao que Pareto, um dos mais interessantes teri-

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Se fosse necessrio classificar Pareto no quadro da pagma 32/3, eu o colocaria no mesmo espao que Aron e Parsons, pois, se ele reconhece a existncia de diferentes tipos de argumentao e se, como Geertz, sublinha a importncia da retrica nestas construes que batiza de derivaes, no tira a concluso de que estas no possam ser julgadas no tribunal da verdade e do erro. Ao contrrio e talvez com algum excesso, no Tratado de sociologia geral, sugere que todas as derivaes, qualquer que seja o tipo de argumentao que utilizem, so de algum modo marcadas pelo erro e pela insensatez. Terei ocasio de retornar sobre a teoria das derivaes de Pareto. Eu acredito que ela seja importante. 31 Mas excessivo em muitos pontos: no verdade, como tentarei mostrar, que, salvo em casos especiais, as ideologias possam ser consideradas como racionalizaes destinadas a justificar e a legitimar sentimentos, pois explica-se mal, neste caso, como as iluses da ideologia podem ser to perfeitas. Em segundo lugar, creio que, se necessrio reconhecer a existncia de vrios tipos de argumentao, a argumentao cientfica tem certamente uma importncia particular: ela que explica o surgimento da palavra ideologia no seu sentido corrente at hoje. Enfim, Pareto exagera, sem dvida nenhuma, o carter demonstrvel dos julgamentos de valor. Por esta razo, tira, um pouco alegremente demais, a concluso de que os julgamentos de valor s podem estar fundados em sentimentos.

3O Homo sociologicus (sempre) irracional?

Mas deixarei aqui a questo da teoria da ideologia, para onde me trouxe Pareto, para voltar ao problema da definio do conceito. De minha parte, tomarei a noo de ideologia no sentido de doutrina que repousa sobre uma argumentao cientfica que dotada deuma credibilidade excessiva ou no fundamentada.A principal questo socilogica advinda desta formulao a seguinte: como explicar este excesso de credibilidade? Delimitando assim meu campo de reflexo, abordarei somente uma parte do domnio percorrido por Pareto em sua teoria das derivaes. Esta parte me parece, no entanto, essencial.

Conforme indiquei no captulo anterior, a confuso reinante nas discusses sobre ideologia se deve principalmente a que os autores utilizam vrias definies deste conceito. Em conseqncia, nem todos falam da mesma coisa. Alguns definem ideologia tendo como referncia os critrios do verdadeiro e do falso, outros no. Assim, devemos esperar que a explicao do fenmeno ideolgico varie em funo da definio utilizada. Segundo a concepo que tenhamos do que a ideologia tenderemos sem dvida a ter representaes variveis de suas causas e de sua razo de ser. Esta hiptese conduz seguinte questo: observvel uma correlao entre os modos de definio e os modos de explicao do fenmeno ideolgico? . Antes de responder a esta questo, devemos primeiramente nos interrogar sobre os tipos de explicao que j foram desenvolvidos sobre o fenmeno ideolgico e os que podemos desenvolver. Seguindo o mesmo mtodo do captulo anterior, resguardarme-ei, ainda aqui, da ambio de esgotar o tema. A tentativa de apresentar detalhadamente todas as teorias que tratam do fenmeno ideolgico estaria antecipadamente condenada ao fracasso. Desta maneira, me limitarei a classificar as principais opes no conjunto destas teorias.

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Em seu Novum organum, Bacon desenvolve sua famosa teoria dos dolos. E como afirma muito corretamente Mannheim, I esta concepo prefigura a teoria das ideologias. Ou, precisando: uma variante da teoria das ideologias. Estes dolos so todos os "fantasmas" e "prenoes" que se originam seja da prpria natureza humana, seja da economia psquica de certos indivduos. Eles so as causas principais de nossos erros:Os dolos e as noes falsas se instalaram no esprito numano e esto profundamente enraizados nele. No somente to incrustados (not on/y so beset) que se revelam de difcil acesso, mas, mesmo quando conseguimos aceder a eles, isto no os impede de ressurgir e perturbar nosso esforo pela instaurao das cincias. 2

Assim, estes "dolos" no somente perturbam nosso acesso ao verdadeiro, como esto to incrustados que difcil tomar conscincia deles. No somente usamos lentes deformadoras como no sabemos que as usamos. Em linguagem moderna, isso seria chamado de "inconsciente". A partir do momento em que se aceite uma interpretao literal da metfora acima, parece muito difcil dispensar a noo de inconsciente. Mas a ltima nuana no texto de Bacon tem tambm sua importncia: no suficiente tomar conscincia desta deformao da viso e do carter fantasmtico dos dolos, necessrio fora de vontade para se manter em viglia, porque seno arrisca-se recair no delrio. Bacon inaugura com este admirvel texto o que se pode denominar de teoria clssica do erro. Esta teoria pode ser classificada de irracionalista, pois atribui o erro a foras que escapam ao controle do sujeito. Este pode sem dvida domin-Ias, mas por um esforo de conteno, que sempre corre o risco de se relaxar. De outra forma, Descartes diz quase a mesma coisa. A distino spinozista entre entendimento e vontade conduz a um diagnstico anlogo: a tenso em direo verdade que define o entendimento se v constantemente ameaada pelas interferncias da vontade. Pascal, por exemplo, v na imaginao uma "amante do erro e da falsidade", sugerindo tambm que o esprito humano pode ser dominado e habitado por foras estranhas. Quando Mannheim declara que a teoria baconiana dos dolos prefigura a teoria moderna da ideologia (Mannheim escreve em 1929), creio que tem toda razo. Mas devemos admitir que, quando propunha esta aproximao, entendia por "teoria moderna da ideologia" aquela que Marx e Engels haviam esboado.

Esta teoria complexa, inacabada e espalhada em inmeros textos. Alm disso, no em absoluto seguro que ela possa ser considerada como unificada ou unitria. Pelo contrrio, creio que, ao lIlenos em Marx, podem-se constatarduas orientaes tericas muito distintas no conjunto de seus textos - quase sempre curtos e alusivos - sobre ideologia. Voltarei, posteriormente, de maneira rpida, sobre este ponto." Meu propsito neste captulo estabelecer uma classificao de teorias da ideologia, e no fazer a exegese completa de qualquer teoria particular. Pondo de lado, provisoriamente, a questo da unidade e coerncia da teoria marxiana da ideologia, parece-me essencial sublinhar que numerosos textos de Marx e Engels retomam, em uma larga medida, os princpios que denominei de teoria clssica (irracionalista) do erro. A originalidade de Marx e Engels consiste - ia dizer "consiste somente", mas este advrbio limitaria injustamente sua originalidade - em atribuir causas sociais aos "dolos", enquanto Bacon e os filsofos clssicos lhes atribuam causas naturais, isto , prprias da natureza humana, tal como a concebiam. Para apoiar a idia de uma filiao direta da teoria clssica do erro concepo "marxiana" de ideologia, contentar-me-ei em citar uma clebre carta de Engels a Mehring. Este texto que data de 14 de julho de 1893, portanto posterior morte de Marx, foi mil vezes recopiado e comentado por duas razes: primeiramente porque se apresenta como o primeiro esforo feito pelo "casal Marx-Engels", se se pode falar assim, para propor uma definio completa de um fenmeno sobre o qual um e outro escreveram muito; em seguida porque este texto o primeiro onde "eles" utilizam uma noo que aumentar em muito o consumo de tinta e papel, isto , a de "falsa conscincia":A ideologia um processo que a pretenso pensador cumpre, certamente, com conscincia, mas uma conscincia falsa. As foras rnotoras (Triebkrafte) que realmente o movem so desconhecidas por ele; seno, seguramente (eben), no se trataria de um processo ideolgico.4

No difcil parafrasear este texto, utilizando a linguagem de Bacon: aquele que raciocina apoiando-se sobre "prenoes" ou dolos, cumpre, ao menos, "um processo (... ) com conscincia"; est de fato atento e capaz de produzir raciocnios coerentes. Mas suas especulaes sobre o real tm pouca relao com a realidade, porque ele a percebe com lentes deformadoras (os "dolos" ou "pre-

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noes"). E, como est convencido de que v a realidade tal como ela , torna-se necessrio supor que no sabe nem que usa estas lentes, nem, a fortiori, por que as usa. Na linguagem de Engels: "As foras motoras que realmente o movem lhe restam desconhecidas, seno (sou eu que sublinho) no se trataria, certamente, de um processo ideolgico". Ideologia implica deformao da viso; esta implica por sua vez a existncia de um inconsciente, o qual, por definio, capaz de invadir a conscincia do sujeito sua revelia. Resta ento a questo de saber quais so as "foras motoras" que alimentam este inconsciente de tal ou qual contedo particular. Aqui os caminhos de Bacon e de (Marx-)Engels se separam: a natureza humana dos filsofos clssicos cede lugar s causas sociais:Ele (o idelogo) trabalha com um material puramente intelectual, tratando-o simplesmente como um produto do pensamento, sem explor-to mais, colocando-o em relao com um processo mais distante, independente do pensamento. E isto lhe parece ser isto mesmo (selbstverstandlich) (...).5

dutivas e pelo comrcio (Verkehr) que estas foras determinam, lnclusive nas suas formas mais longnquas. (...) Se em toda ideologia os homens e suas relaes parecem estar de cabea para baixo, como dentro de uma cmera obscura, isto resulta de seu processo de vida histrica, exatamente como a inverso dos objetos na retina resulta de seu processo de vida diretamente fsica.

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Desta maneira, o idelogo desfila seus raciocnios sem ver que estes contm conceito, representaes, "dolos", que no se originam do prprio pensamento, mas que lhe so inspirados por "um processo mais remoto", isto , seguramente, pelas relaes sociais, pelas relaes econmicas, ou, retomando uma expresso mais vaga, que sempre retoma sobre a pena de Marx e Engels, "pela vida material" ou "pela atividade material". A fim de sugerir que a famosa carta de Engels a Mehring pode, corretamente, ser considerada como traduzindo no somente o pensamento de Engels, mas tambm o de Marx - ou, mais precisamente, a concepo que Marx tinha de ideologia, no que se refere a um grande nmero de textos (mas no a todos) -, reproduzirei uma clebre passagem da Ideologia alem, da qual j me servi no captulo anterior.A produo de idias, de representaes, da conscincia , antes de tudo, direta e intimamente imbricada na atividade material e comrcio material dos homens. Ela a lngua da vida real. As representaes, o pensamento e o comrcio intelectual dos homens aparecem, aqui tambm, como emanao direta de seu comportamento material. Isto vale para a produo intelectual, tal como aparece no discurso poltico, moral, religioso, a metafsica etc., de tal povo. Os homens so os produtores de suas representaes, de suas idias, mas trata-se de homens atuais, ativos (wirklichen, wirkenden), da forma que so condicionados pelo desenvolvimento de suas foras pro-

Este texto pode ser inteiramente sobreposto ao texto de Engcls: as lentes deformadoras esto novamente presentes e no telHOS mais conscincia delas do que da imagem que se projeta sobre nossa retina. Quantos s causas desta deformao, residem no falo de que as idias e representaes dos homens lhe so inspiradas por sua "atividade material" e seu "comrcio material". Claro, eles no podem ter conscincia desta causalidade real e, tampouco, tm conscincia da imagem que se projeta sobre sua retina nem, a [ortiori, do fato de que esta imagem invertida em relao imagem efetivamente percebida. E, embora Marx no o faa aqui, pode-se prolongar a analogia em seu verdadeiro sentido: assim como o bilogo pode estudar o fenmeno da viso e observar este fenmeno de inverso, tambm o sbio pode desvendar a inverso que a ideologia impe realidade. Ainda uma vez, pode-se, sem exagero, sobrepor estes textos ao de Bacon. A nica discordncia - que, certamente, no pequena - refere-se ao que denominarei espao da causalidade: a natureza humana para Bacon e para Marx-Engels (pois, quando Marx e Engels falam de "vida material" e de "atividade material", querem falar da "vida social")." Um ltimo ponto merece enfim ser mencionado. Ele precisa a interpretao que se deve dar da cmera obscura, assim como a importncia que a ela se deve atribuir: a saber que Marx e Engels utilizam a palavra ideologia mais freqentemente no singular. (Sem dvida, em razo da influncia da tradio marxista sobre este captulo