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    Ruanda, capital Kigali. Entre os meses de abril e

    julho de 1994, esse pequeno pas da frica Central foi to-mado por uma insanidade coletiva. Engolido por uma vio-lentssima perseguio tnica, o pas inteiro submergiu emalgo que pode ser caracterizado como uma pandemia deinsanidade coletiva.

    Este ano de 2005 marca a passagem dos 11 anos da-quela que talvez seja uma das mais aterradoras e vergonho-sas passagens da Histria recente da Humanidade: o ge-nocdio de 800 mil tutsis por grupos de extermnio hutus

    em cerca de 100 dias, sob os olhos entorpecidos da comu-nidade internacional!

    Ruanda perdeu poca pouco mais de 10% dos seus7,5 milhes de habitantes, a esmagadora maioria morta agolpes de machetes e faces. Levando-se em consideraoque o territrio do pas equivale a cerca de 60% do tama-nho do Estado do Rio de Janeiro, seria como se a popula-o de um grande centro urbano como Nova Iguau fosseinteiramente exterminada sem que as autoridades compe-tentes esboassem qualquer reao1.

    O jornalista Phillip Gourevitch se deu ao trabalho defazer uma conta aterradora: dividiu o total de mortos pelosdias em que durou o genocdio (de 6 de abril a 19 de julhode 1994), descobrindo a mdia de cerca de 333,3 mortespor hora ou 5,5 assassinatos por minuto!2

    Perdidos assim, esses nmeros parecem impessoais eat certo ponto inacreditveis e sem sentido. Mas o quepodemos entender primeiro dessa histria? Aquilo que fezcom que tutsis e hutus se tornassem grupos antagnicos?;o que alimentou e tornou mortal esse dio?; o estopim que

    levou dizimao da populao tutsi e de hutus modera-dos; ou qual a relao entre todas essas questes?

    Para no entrar na armadilha citada por Stalin (umanica morte uma tragdia, um milho de mortes uma

    Alexandre dos Santos

    Ruanda:as chagas abertasde uma nao

    JORNALISTA

    1. O site oficial do governo de Ruanda confirma que o pas possui reatotal de 26.338 km. Informaes do IBGE certificam que o Estadodo Rio se estende por 43.696 km e apontam a populao de NovaIguau em 817.117 habitantes, de acordo com o ltimo censo.

    2. GOUREVITCH, Phillip. Gostaramos de Inform-lo de que Ama-nh Seremos Mortos com Nossas Famlias. So Paulo, Companhia dasLetras, 2000, p.158.

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    estatstica), faamos um exerccio de compreenso hist-rica das relaes sociais e polticas entre hutus (90% dapopulao) e tutsis (9%)3. Proponho que este artigo ajudeo leitor a compreender a barbrie genocida que ocorreuem Ruanda, no como um acontecimento trgico e es-drxulo tpico de um pas escondido no meio de um conti-

    nente estranho e selvagem. A tragdia humanitria ruan-desa daquelas atrocidades anunciadas cujas pistas vinhamsendo apresentadas e acumuladas durante dcadas, sem quealgo objetivamente concreto fosse feito para mudar o cur-so inelutvel dessa histria. Minha proposta no analisarponto por ponto cada momento de turbulncia, mas per-passar os fatos mais elucidativos do passado ruands. Meuobjetivo nos tornar cmplices do mesmo esforo parti-lhado por Gourevitch e pelos cientistas polticos MichaelBarnett, Grard Prunier e Mahmood Mandani, entre tan-

    tos outros, consideradospice de rsistanceda histria re-cente de Ruanda. A esse grupo juntou-se recentemente o

    cineasta irlands Terry George, cujo filme Hotel Ruan-da entrou em cartaz recentemente nas principais capitaisdo Brasil. Todos tiveram e tm o papel de manter viva namemria da sociedade internacional os acontecimentosdaquele fatdico 1994 para que a prpria histria, e noapenas a ruandesa, no venha a se repetir futuramente comofarsa.

    Portanto, vamos ver, juntos, o que aconteceu, por queaconteceu e de que forma aconteceu.

    Tutsis e hutus vivem um complicado xadrez de relaci-onamentos desde antes da chegada dos colonizadores ale-mes, porm o rastilho que explodiria em 1994 passou ase acumular de maneira mais intensa com a chegada dosbelgas, herdeiros das colnias africanas da Alemanha4.

    Quando os primeiros colonizadores alemes alcana-ram, em fins do sculo XIX, a regio onde hoje esto Ru-anda e Brurundi, encontram hutus e tutsis vivendo em re-lativa harmonia e dispersos em vrios grupos populacio-nais. Originrios de fluxos migratrios diferentes, ao coa-

    bitarem os mesmos espaos ambos desenvolveram uma ln-gua comum, dividiram e disseminaram uma mesma reli-gio e construram uma vida social que os levou natural-mente miscigenao. Enfim, criaram uma cultura co-mum em pequenos grupos populacionais que poderiampossuir chefes tanto de uma quanto de outra etnia.

    Hoje os etngrafos chegaram concluso de que no possvel diferenciar hutus e tutsis como grupos tnicosdiferentes, mas quando os alemes iniciaram a coloniza-o efetiva da regio comearam a utilizar instrumental-mente uma distino que s foi mantida entre os prpriosruandeses para identificar as famlias de origem pastoril(os tutsis) das de origem agrcola (os hutus).

    Para facilitar o controle e a administrao das reasocupadas, os alemes fizeram o que era comum aos colo-nizadores de qualquer poca: elegeram um grupo social

    como parceiro, o transformaram em casta, o colocaramem posies-chave da administrao colonial e, paulatina-

    mente, dividiram os ressentimentos e raivas em relao aocolonizador com essa nova classe social. O que os alemesfizeram foi simplesmente juntar os conceitos da cinciadas raas, em voga na Europa da segunda metade do s-culo XIX, com aquilo que eles entenderam da realidadesocial que encontraram. Os comandantes alemes tinhama percepo inoculada particularmente com a hiptese ha-

    mticado antroplogo ingls John Hanning Speke, defen-sor da idia de que a base da civilizao e cultura das tri-

    bos africanas da regio central do continente foi dissemi-nada ali por tribos mais evoludas que migraram do chi-fre da frica (onde hoje esto Somlia, Etipia e Eri-

    3. Dados populacionais referentes ao ano de 1996 retirados do siteoficial do governo de Ruanda. H uma terceira etnia compondo asociedade ruandesa. Os pigmeus tvs representam apenas 1% da po-pulao, fora os primeiros habitantes da regio onde hoje existemRuanda e Burundi. Hoje formam um grupo marginalizado e semdireitos civis.

    4. Com a derrota na I Guerra, as colnias alems na frica forampassadas administrao belga.

    Atragdiahumanitria ruandesadaquelasatrocidadesanunciadas cujas pistas vinham sendo apresentadas e acumuladas

    durantedcadas, semquealgoobjetivamenteconcreto

    fossefeitoparamudarocursoinelutveldessahistria

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    tria). Essa raa superior teria deixado marcas indelveisem suas descendncias e, na percepo do colonizador, amiscigenao ocorrida entre tutsis e hutus no teria apa-gado essa herana gentica. Portanto, depois de um longoe impreciso perodo em que as diferenas entre as duasetnias vinham sendo diludas, os alemes estabeleceram

    arqutipos fsicos para novamente separar os descendentesda tribo evoluda da populao negride nativa. As-sim aos hutus se imputou a marca dos rostos slidos eredondos, a pele escura, o nariz achatado, os lbios gros-sos e a mandbula quadrada. Aos tutsis, as caractersticasdo que se imaginava as mesmas dos ancestrais nmadesdo norte: pele mais clara, rosto delgado e comprido, narize lbios mais finos e o queixo estreito.

    A estratificao tnico-social comeava ali, com a se-parao da populao entre os dois grupos. Os alemes

    deram aos tutsis o status de elite privilegiada com acesso educao, ao treinamento nas Foras Armadas e aos pos-tos na administrao local que mais geravam atrito com apopulao: a explorao do trabalho e a cobrana de im-postos. A agudeza dessa clivagem foi mantida e fomentadadurante a administrao belga. bom lembrar que ao ga-nharem da Liga das Naes o direito administrao deRuanda em 1919, como parte dos esplios pagos pela Ale-manha aps a derrota na I Guerra, os belgas j encontra-ram l essas divises tnicas, porm se utilizaram de ma-

    neira ainda mais perversa dessa polarizao social paraexercer o controle local, disseminando mito da superiori-dade tutsi.

    Entre os anos de 1933 e 1934, os belgas organizaramum censo populacional com o intuito de emitir carteirasde identidade tnicas nas quais era carimbada em gran-des letras vermelhas a procedncia do indivduo. Comoanalisou Gourevitch, qualquer que tenha sido o significa-do das denominaes hutu e tutsi antes do perodocolonial, elas no tinham a menor importncia j que os

    belgas terminaram de transformar Ruanda num pas de for-te rivalidade tnica. E o canto do cisne da administraobelga conseguiu ser ainda mais cruel, sedimentando o cami-nho que levaria Ruanda aos acontecimentos de 1994.

    Depois de ajudar a manter os tutsis na cadeia adminis-trativa do pas por quase 70 anos, de 1897 at 1962, oscolonizadores simplesmente entregaram o poder do novoEstado ruands independente s mos hutus, sedentas por

    vingana, deixando institudo o ambiente de revanchismotnico que eles mesmos haviam erigido. Dessa forma, em

    1962, Ruanda ganhou a independncia formal e seu pri-meiro presidente, o hutu Grgoire Kayibanda, que imedi-atamente instituiu perseguies sistemticas mortais con-tra tutsis, obrigando vrios deles ao refgio em Estados

    vizinhos. Essa situao propiciou o surgimento de gruposarmados. Em dezembro de 1963, um desses grupos guer-

    rilheiros conseguiu, em poucos dias, chegar a 20km deKigali antes de ser liquidado pelas foras hutus. O gover-no anunciou um estado de emergncia, senha para maisum massacre de tutsis entre dezembro de 1963 e janeirode 64. A populao que no foi morta juntou-se em maisum fluxo de refugiados. As dcadas de 1970 e 1980 leva-ram mobilizao dos tutsis exilados e criao da FrentePatritica Ruandesa (FPR), responsvel por perpetrarembates ainda mais virulentos.

    Em 1973, um personagem importante se juntou tragdia ruandesa. Juvnal Habyarimana, eleito Presiden-te do pas e obrigado pelas circunstncias a dar o primeiropasso para a instituio de um acordo interno de paz entretutsis e hutus. Habyarimana ficou duas dcadas no poderem Ruanda, e sob sua administrao espocaram diversosescndalos de corrupo. A falta de investimentos na mo-dernizao dos setores agrcola e industrial fez com que o

    pas perdesse cada vez mais espao no mercado internaci-onal, levando o presidente a desviar verbas de projetos es-trangeiros de ajuda internacional. Em 1989 o Fundo Mo-netrio Internacional e o Banco Mundial exigiram que ogoverno ruands implementasse um amplo e srio ajusteestrutural para que voltasse a ter crdito. Tambm os go-

    vernos da Europa Ocidental e dos EUA pressionavam Ru-anda (e vrios outros pases africanos que dependiam deseus auxlios financeiros) a apresentar esforos pela demo-cratizao de fato. Assim, em junho de 1990 Habyari-

    mana anunciou o estabelecimento de um sistema multi-partidrio em Ruanda, j que o pas vinha sendo governa-do com mo-de-ferro por presidentes hutus. Agora a po-pulao tutsi vivia a antiga realidade hutu de no possuirqualquer direito poltico, sendo preterida nas reas da edu-cao e sade, vendo os cargos pblicos mais representati-

    vos e as mais altas patentes das Foras Armadas como ex-clusivos dos hutus.

    A perspectiva de uma disputa aberta pelo poder aoinvs de marcar o incio de uma nova realidade poltica

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    resultou em nova disseminao do terror em todo o pas.Para o consumo externo Habyarimana interpretava o pa-pel de defensor da democratizao e modernizao. Inter-namente, demonstrava que suas intenes eram meramen-te de fachada e que o grupo ligado ao poder no pretendiaabrir mo dele. Na mesma proporo em que defendia a

    abertura poltica, o governo iniciava uma ampla repressocontra tutsis e hutus opositores.Em 1 de outubro de 1990 a FPR invadiu o territrio

    ruands pela fronteira nordeste com Uganda, declarandoguerra aberta contra Habyarimana. Cerca de 650 soldadosdos exrcitos belga e francs foram enviados em auxlio aoPresidente, que mantinha estreitas relaes com seus gover-nos. A desculpa dada foi a de garantir a segurana dos cida-dos franceses e belgas em territrio ruands, mas os solda-dos no s ajudaram na linha de frente como deram apoio

    logstico s tropas ruandesas, pilotaram os helicpteros dogoverno, organizaram o posicionamento da artilharia, de-senvolveram as comunicaes de rdio e supervisionaramas operaes militares (incluindo a tortura de prisioneiros).

    Habyarimana novamente se aproveitou da situaode perigo para lanar uma extensa ofensiva contra os opo-sitores. A lista negra incluiu tutsis que viajavam com fre-

    qncia para o exterior, acusados de manter contato diretocom refugiados e imigrantes e cujo objetivo era desestabi-lizar o governo.

    Os meios de comunicao tambm foram habilmenteutilizados pelo governo hutu como veculos de propagan-da antitutsi. Os mais influentes eram o jornal Kangura(que significa, ironicamente, faa despertar) e a rdioRTLM (Radio et Tlevisin Libres des Milles Collines).O Kangura era responsvel pela divulgao da lista dossuspeitos e por incitar o dio tnico. Em dezembro de

    1990 publicou os Os Dez Mandamentos Hutu, que pre-gavam a pureza racial, acusavam todos os homens e mu-lheres tutsis de serem desonestos e traidores e chamavatambm de traidores todos os hutus que casassem, tives-sem amizade ou empregassem tutsis. O oitavo e mais cita-do dos mandamentos dizia que os hutus deveriam parar desentir pena dos baratas (como eram chamados pejorativa-mente os tutsis). A RTLM, por sua vez, se tornaria a peamais importante para a organizao e a divulgao de infor-maes para as milciasinterahamwedurante o genocdio.

    No incio dos anos 90 entra em cena outro importan-te protagonista da tragdia ruandesa: o intelectual PaulKagame, que interrompeu os estudos nos EUA para re-tornar a seu pas e reorganizar a combalida FPR, quehavia perdido quase todo os comandantes em lutas con-tra o exrcito hutu. Kagame foi o responsvel pela total

    reformulao nos mtodos de ao da Fora Patritica deRuanda. Essa nova Frente de Kagame comeou a atacarcidades fronteirias, libertando presos polticos e os inte-grando coordenao do grupo. interessante salientarque quase todos os soldados da Frente possuam o ensinoprimrio, metade deles cursou o segundo grau e cerca de20% haviam chegado universidade, o que caracterizavaa FPR como a mais instruda guerrilha que o mundo ha-

    via visto at ento.Do outro lado do pas, Habyarimana estava s voltas

    com outros problemas. Alm das acusaes de corrupoe das infrutferas tentativas de barrar as aes da Frente, opresidente era acusado pelos hutus exaltados de ser com-placente demais com os opositores do governo. Na verda-de ele ganhava tempo na implementao do multipartida-rismo, dando espao para que pequenos partidos de oposi-o surgissem possibilitando a identificao dos elemen-tos mais poderosos e perigosos. Esses eram presos e man-tidos nas cadeias de Kigali como cmplices das atividadesda FPR.

    A longa crise econmica, pela qual passou o pas nasdcadas de 70 e 80, alijou uma gerao inteira de jovenshutus do mercado de trabalho fez com que outros perdes-sem seus empregos. Essa massa desocupada passou a serprontamente aproveitada em milcias civis financiadas pelogoverno e treinada em tticas militares de ataques-surpre-sa, incndio de casas, lanamento de granadas e confecode porretes. A mais organizada e violenta delas era ainte-

    rahamwe(ou aqueles que atacam em grupo), originadanas torcidas organizadas de futebol. Na mesma proporo

    em que a FPR atacava povoados ao norte de Ruanda, ainterahamwese espalhava pelas cidades em volta da capi-tal, se dividindo em pequenos grupos para defender e vi-giar os bairros.

    A comunidade internacional pressionava o governoruands a dar um passo significativo de entendimento coma FPR. Um acordo, assinado em maro de 1992, previu oincio das conversaes entre representantes de Habyari-mana e Kagame. Enquanto as conversaes de paz se ar-rastavam durante todo o ano, Habyarimana enfrentava pro-

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    blemas polticos cada vez mais srios, acusado pelos de-mais lderes do Poder Hutu, o mais extremista grupo pol-tico ruands, como traidor e cmplice dos baratas. Apresso poltica comeava a ficar insuportvel. A RdioRuanda, ligada aos partidos de oposio ao governo co-meou a atuar de maneira cada vez mais independente e

    desafiadora. Durante as ltimas semanas de 1992 e as pri-meiras de 1993, vrios casos de assassinatos de grupostutsis eram noticiados pela Rdio Ruanda. Os crimes eramimputados interahamwe, tendo os polticos e represen-tantes do Poder Hutu como mentores intelectuais.

    Para no se isolar internamente, Habyarimana deixoudefinitivamente de lado a mscara democrtica e mostrou

    a verdadeira face da poltica multipartidarista. Todos ospartidos tiveram que se expressar publicamente contra oua favor do governo, sem meio termo. Assim os oposicio-nistas passaram a tomar mais cuidado com as manifesta-es pblicas de apoio ao plano de paz e FPR. A RTLM,por sua vez, passou a intimidar os opositores do regimecom mensagens indiretas segurana de suas famlias eamigos. No fim de janeiro de 1993, a tenso era tanta queum simples olhar de esguelha poderia motivar novas per-seguies e mortes. E foi mais ou menos o que aconteceu

    no Norte do pas. A violncia se espalhou rapidamentequando ainterahamwese associou populao local e aossoldados das Foras Armadas Ruandesas para lanar umaofensiva de cinco dias, matando 300 pessoas e incendian-do casas na regio de Byumba.

    Em resposta a FPR suspendeu o cessar-fogo, vlidoenquanto durassem as negociaes de paz, atacando osmilicianos do governo e os soldados das Foras Armadas,forando a retirada deles da regio. A vitria tutsi tambmforou a sada da populao hutu, cerca de 600 mil pes-

    soas. Essa massa populacional se deslocou para as regiescentral e Sul de Ruanda, concentrando ainda mais a popu-lao hutu e o dio e o ressentimento contra os tutsis.

    Numa demonstrao de fora, Paul Kagame avanoucom a FPR pas adentro, at estacionar seus soldados a30km do Norte da capital em 20 de fevereiro, anunciandoum cessar-fogo unilateral. Dez dias depois representantesdas duas partes firmaram um novo cessar-fogo, renovandoa disposio de retomar as discusses de paz. Durante cin-co meses as negociaes se arrastaram com avanos muito

    lentos at que em agosto de 1993 chegou-se a um acordoque parecia pr fim guerra civil.5

    A doce iluso se desfez rapidamente quando se inicia-ram discusses cada vez mais rspidas sobre a composiodo chamado Governo Transitrio de Base Ampla(GTBA), que manteria Habyarimana presidente, com po-

    deres diludos at que as eleies fossem realizadas. A FPRno abria mo de que a ONU enviasse uma fora militarinternacional para monitorar a implementao do acordode paz, do qual tinha sido moderadora. Em 5 de outubro oConselho de Segurana aprovou a Resoluo 872 criandoa Unamir (Misso de Assistncia da ONU para Ruanda)para observar o cumprimento do calendrio de implanta-o da paz. Habyarimana, porm, no desistiria to fcilde seus poderes, mesmo porque continuava pressionado eameaado pelo Poder Hutu de ser pr-baratas. Numa

    tentativa de testar o comprometimento dos governos vizi-nhos com o tratado de paz ruands tendo em vista oapoio para um possvel golpe que o mantivesse no poder Habyarimana fez uma viagem infrutfera Tanznia e aoBurundi.

    Enquanto o presidente ruands viajava, a situao do-mstica azedava cada vez mais. Os refugiados tutsis, ofici-almente autorizados a retornar ao pas, eram ameaados eintimidados pelos soldados das Foras Armadas assim queatravessavam as fronteiras e antes de alcanarem as reas

    controladas pela FPR. Um sentimento de que as vingan-as poderiam ocorrer sem que houvesse represlias come-ou a tomar a populao hutu. Realmente muitos dos res-ponsveis pelos assassinatos de 1990 comearam a sermortos por grupos tutsi, encorajados pela situao de apa-rente paz, principalmente nas regies Sul e Noroeste. Asnotcias das mortes de integrantes da interahamweforam

    5. O Acordo de Arusha, assinado nas presenas dos presidentes daTanznia, Ali Hassan Mwinyi; de Uganda, Yoweri Museveni; do Bu-rundi, Melchior Ndadaye; e do Primeiro-Ministro do Zaire, FaustinBirindwa, depois de um ano de discusses no qual importantes passosforam dados:

    - Assinatura do cessar-fogo em 12 de julho de 1992;- Ratificao de acordos para a diviso de poder, definindo a compo-sio do Governo Transitrio de Base Ampla (BBTG), apresentadosem 30 de outubro de 1992 e 9 de janeiro de 1993;- Aceitao do Protocolo de Repatriao de Refugiados, assinado em9 de junho de 1993;- Fixao do Acordo de Integrao s Foras Armadas de Ruanda,assinado em 3 de agosto de 1993.

    A integrao militar foi o ltimo ponto a chegar a um denominadorcomum a ponto de se assinar um acordo. A chegada a esse acordocolocou o ltimo pingo no i para a redao de Arusha.

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    exploradas pela extrema direita hutu, que atribua os assas-sinatos FPR, com a permissividade do presidente Ha-byarimana.

    Como se no bastasse a explosiva situao interna, emoutubro de 1993 o assassinato do presidente hutu do Bu-rundi, Melchior Ndadaye, aumentou ainda mais a neurose

    hutu, levando a mais ataques de atores no identificadoscontra tutsis e oposicionistas hutus.6As transmisses daRTLM eram cada dia mais exageradas e iracundas. A pl-

    vora tnica ia sendo estocada em quantidades cada vezmaiores a espera de um estopim que a explodisse de vez. Oshutus moderados, temendo uma nova onda de violncia,

    viram-se obrigados a expressar apoio pblico e explcito FPR. Habyarimana aproveitou o momento de desestabili-zao regional para atrasar ainda mais a instalao do GTBA.

    Em meio a esse ambiente, os primeiros mil soldados

    da Unamir chegaram a Kigali, em novembro de 1993.Assim que chegou capital, o comandante da misso, ogeneral canadense Romo Dallaire, concluiu que, apesarde ter sido designada como zona livre de armas pelotratado de paz, Kigali era um depsito de armas do Po-der Hutu.

    A insistncia de Habyarimana em atrasar a implanta-o do governo provisrio levou Paul Kagame a se retirarde Kigali e reunir suas tropas no norte. Depois de mais umatentativa infrutfera, o Conselho de Segurana anunciou que

    as atividades da Unamir s poderiam ser postas em prticaquando as partes chegassem a um mnimo de entendimen-to. A data de 22 de fevereiro foi marcada para a nova tran-sio. Um dia antes, uma manifestao pr-GTBA foi ata-cada nas ruas de Kigali, deixando oito mortos. O episdioserviu como nova desculpa para Habyarimana.

    Nesse momento, alm das presses internas o presi-dente sentia o peso da comunidade internacional, que per-dia a pacincia e exigia a imediata implementao do go-

    verno provisrio. O embaixador da Alemanha, falando em

    nome da Unio Europia, ameaou Habyarimana com oboicote dos pases europeus responsveis pela ajuda finan-ceira ao pas. Acuado, o presidente viajou a Dar-es-Sala-am, capital da Tanznia, para uma reunio com o presi-dente local e mais os do Burundi e de Uganda, na qualdeveria assumir de uma vez o compromisso de implemen-

    tar o GTBA.Na volta o impensvel aconteceu. Pouco depois das20h30min do dia 6 de abril de 1994 os ruandeses eraminformados da morte de Habyarimana. O avio em que

    viajavam o presidente de Ruanda e do Burundi fora atingi-do por dois msseis lanados de fora do permetro do aero-porto de Kigali quando se preparava para pousar. Fato athoje no esclarecido e com verses to numerosas quantocontroversas.

    A RTLM imediatamente comeou a responsabilizar a

    FPR e a Unamir pelo assassinato dos dois presidentes. Ahisteria se propagou velozmente. A tenso tnica acumula-da por todos esses anos havia finalmente explodido.

    Durante a madrugada as ruas da capital foram to-madas pelos soldados da interahamwee da guarda presi-dencial de elite, que, com listas nas mos, invadiam ascasas dos que deveriam ser mortos antes do amanhecer.

    Entre os alvos estava a primeira-ministra hutu, Agathe Uwi-lingiyimana, assassinada no jardim da prpria casa ao ten-tar fugir. Dez soldados belgas enviados para proteg-la fo-ram feitos prisioneiros, levados para uma base militar nocentro de Kigali, torturados, mortos e mutilados. Alm deUwilingiyimana, os alvos preferenciais daquela madruga-da de 6 para 7 de abril foram o presidente da Corte Cons-titucional de Ruanda, Joseph Kavaruganda (que, alm depoltico liberal, era o primeiro na lista sucessria de Ha-byarimana), os padres do Centro Cristo de Kigali (que

    apoiavam abertamente a transio democrtica), empres-rios e ativistas ligados defesa dos direitos humanos. Osataques aos tutsis e hutus moderados se espalhavam rapi-damente a partir da capital, incitados pelainterahamweepelos locutores da RTLM.

    A morte de Habyarimana e a loucura que se propagouem seguida tomaram Kagame de surpresa. A situao erato irreal que somente na madrugada de 9 de abril as tro-pas da FPR, que estavam ao Norte do pas, foram organi-zadas e seguiram em direo ao Centro-Sul. Um novo go-

    6. O Burundi sempre foi uma espcie de espelho invertido de Ruanda.Tambm dividido entre tutsis e hutus porm diferente de Ruanda, osburundis tutsis so maioria no pas. Depois de quase 30 anos deditadura tutsi, um presidente hutu havia sido eleito democraticamen-te (recebendo mais de 60% em 1 de julho de 1993). A transfernciade poder foi feita tranqilamente e o exemplo burundi foi festejadointernacionalmente como uma esperana para a paz africana. Quandoo novo presidente foi seqestrado e assassinado por militares tutsi,uma violenta revolta hutu foi desencadeada, resultando, por sua vez,em durssimas represses levadas a cabo pelo Exrcito nacional, quematou um nmero estimado em 50 mil pessoas (60% hutus), obri-gando cerca de 150 mil tutsis a fugir para reas controladas pelogoverno e 300 mil hutus para o Sul de Ruanda.

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    verno hutu foi montado s pressas, mas em seguida foiobrigado a se refugiar em Gitarama, a sudoeste da capital.

    No meio do caos o general Romo Dellaire tentavacosturar, sem sucesso, um cessar-fogo emergencial entreas duas partes. Kagame havia deixado claro a Dellaire quea FPR no negociaria com criminosos. No fim do ms,

    Kigali estava dividida pelo vale central: a leste a FPR e aoeste o governo. A Unamir e os poucos voluntrios queainda permaneciam em territrio ruands negociavam,durante horas, a troca de prisioneiros, refugiados e feridosatravs dessa linha. Dellaire estava de mos atadas j que omandato da Unamir no previa qualquer tipo de interven-o armada. Os massacres eram impedidos apenas onde aFPR estava presente. O engessamento da tropa de capa-cetes azuis era to evidente e a necessidade de deter amatana, pelo menos em Kigali, to urgente que no dia 10

    de abril de 1994 o ministro das Relaes Exteriores daBlgica, Willy Claes, fez um pedido ao Conselho de Segu-rana para que o mandato da Unamir fosse modificado,permitindo que os soldados interviessem. Inexplicavelmenteo pedido foi negado pelo representante francs. Assim,outras duas frentes foram abertas dentro do prprio Con-selho de Segurana. Uma, liderada pela Nigria, NovaZelndia e Repblica Tcheca, discutia a extenso e ampli-ao do mandato da Unamir. A outra, organizada pelosEUA, Reino Unido e com a anuncia velada da Rssia,

    Frana e China, propunha a retirada imediata da tropa.Ruanda era um pesadelo humanitrio, mas para os diplo-matas norte-americanos, em especial para a embaixadorado governo Clinton na ONU Madeleine Albright (que de-pois se tornaria secretria de Estado), era como se nadaestivesse acontecendo.

    Assim, em 14 de abril de 1994, uma semana depois doesquartejamento de seus dez capacetes azuis, a Blgica re-tirou o restante de seus soldados da Unamir como formade protesto contra a passividade e morosidade do Conse-

    lho de Segurana. O ministro das Relaes Exteriores, WillyClaes, esperava pressionar o secretrio geral Boutros-Gha-li a intervir diretamente na questo e pedir que mais solda-dos fossem enviados Kigali.

    Enquanto os diplomatas se digladiavam no ar condi-cionado, Dellaire insistia na idia de que seus soldadospoderiam intervir para evitar que o conflito ruands seagravasse ainda mais. O comandante da Unamir enviouuma mensagem urgente ao secretrio-geral e ao Conselho,no dia 20 de abril, garantindo poder deter rapidamente as

    matanas se fosse dada carta branca para que agisse compelo menos cinco mil homens em Kigali. No dia seguinte,para surpresa de Dellaire, o Conselho de Segurana apro-

    vou a Resoluo 912 que reduzia o contingente da Una-mir em 90%! E mais: ordenava a total retirada das tropas,deixando apenas 270 observadores em Ruanda!

    As milcias hutus j desconfiavam e rapidamenteentenderam que a presena da Unamir no representavaqualquer ameaa s aes de extermnio. A retirada fsicados soldados da capital teve pouco impacto prtico, masum tremendo impacto simblico. Para os que consegui-ram se refugiar e, principalmente, para um grupo de maisde mil e duzentas pessoas que encontraram refgio dentro

    do Hotel des Milles Collines, no centro de Kigali e no olhodo furaco, a retirada dos capacetes azuis era a prova cabalde que a comunidade internacional no se comovia com aluta deles pela sobrevivncia, no se importava com a exor-bitante quantidade de cadveres que se acumulava diaria-mente nas ruas, enfim, que pouco ligava para o destino deRuanda. Munidos de telefones e uma linha de fax, essegrupo passou horas contatando autoridades estrangeiras,mobilizando parentes em outros pases e dando entrevistaspara rdios europias.

    A presso surtiu efeito. Tchecoslovquia, Nova Zeln-dia e Espanha exigiram uma ao imediata, j que o Con-selho de Segurana evitava inclusive o uso da palavra ge-nocdio ao citar a situao ruandesa. Washington resistiuo quanto pde idia de utilizar o termo, mas todos sabi-am exatamente o que acontecia por l. Alm dos relatosdirios de Dellaire, a primeira estimativa sobre o nmerode mortos em Ruanda foi levantada pela Human RightsWatchem 24 de abril de 1994, quando foi mencionadoque mais de 100 mil pessoas haviam sido assassinadas em

    menos de um ms. Quatro dias depois aMdicos Sem Fron-teirasdivulgava que o nmero de vtimas era de, no mni-mo, o dobro do que havia sido divulgado pelaHRW. Em 5de maio a Rdio Muhambura, montada pela FPR, divul-gava uma estimativa de mais de 500 mil mortos, nmeroratificado pelo diretor da Oxfam poca, David Bryer. Emmeados de maio a contagem de corpos foi feita em Kigalipelos funcionrios da limpeza pblica, que retiraram 60mil corpos das ruas da capital. Em 3 de junho a FPR de-clarou Muhabura que um milho de pessoas haviam mor-

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    rido. Esse nmero seria confirmado por Charles Petrie,vice-coordenador da unidade de emergncia da ONU emRuanda, no dia 24 de agosto de 1994. Oficialmente a ONUdivulgaria um relatrio em 2 de outubro no qual estimavaentre 500 mil e um milho de mortos.

    A presso sobre o Conselho de Segurana ganhou a

    adeso do prprio secretrio-geral, abismado com o cres-cimento exponencial do nmero de assassinatos cometi-dos assim que se tornou evidente que os capacetes azuisestavam indo embora. Dellaire tambm mudou o tom dosrelatos dirios, deixando de se referir aos massacres comolimpeza tnica e passando a utilizar a palavra que poucoqueriam usar: genocdio. Em 29 de abril de 1994, Bou-tros-Ghali enviou carta presidncia do Conselho de Se-gurana informando que a situao em Ruanda havia setornado ainda mais grave e exortando o Conselho a votar

    pela interveno.

    Enquanto esse jogo de bastidores se desenrolava, aFPR tomava o controle das cidades no Sul e recrutava maissoldados. Em 15 de junho j dominava boa parte do terri-trio e obrigou o governo interino hutu a fugir em direo fronteiras com o Zaire no lado oeste. Quando a vitriaparecia questo de tempo, Kagame e os oficiais da FPR

    foram informados que a Frana iria enviar uma fora deinterveno humanitria assim que Conselho de Seguran-a consentisse. A presena da Frana em territrio ruan-ds era tudo o que a FPR no queria. Para Kagame e seuscomandados sempre existiu o perigo de os franceses volta-rem, escondidos sob o manto da ONU, para evitar queseus aliados do Poder Hutu fossem capturados e julgadospelas mortes das quais foram responsveis. A exaspera-o e irritao da cpula da FPR com a notcia foram tograndes que uma rdio local divulgou, em 16 de junho,

    um comunicado de Kagame afirmando que depois damorte de centenas de milhares de inocentes, o governofrancs, responsvel pela perda dessas vidas, anuncia oenvio de tropas para parar a matana. A inteno clara:as tropas francesas vm para proteger os assassinos. Ainiciativa francesa, embora aprovada pelo Conselho deSegurana em 22 de junho, foi duramente criticada peloslderes da frica anglfona e tambm por Dallaire, quealertou para os interesses da poltica externa do governo

    Mitterand na regio.

    Era preciso agir rpido e o apoio sugesto francesafoi o meio que Boutros-Ghali encontrou para ganhar otempo necessrio at costurar a aprovao de uma Una-mir II. A Resoluo 929 concedeu Frana o mandatopara uma interveno humanitria sob o comando do ge-neral Jean-Claude Lafourcade. Os soldados franceses da

    Operatin Turquoise, baseados na Repblica Centro Afri-cana, se deslocaram rapidamente para o noroeste ruands.Mais especificamente para a cidade de Gisenyi, onde osrepresentantes do governo provisrio hutu haviam serefugiado. Assim que atravessaram a fronteira, as tropasfrancesas foram saudadas pelainterahamwee pelos demaisgrupos hutus.

    Enquanto isso a FPR avanava ainda mais, obrigando ainterahamwee outros integrantes de esquadres da morte afugirem para a Tanznia, onde, ironicamente, eram recebi-

    dos de braos abertos pelos efetivos da ONU e pelas agnci-as de ajuda humanitria. L haviam montado seus acampa-mentos para a recepo de refugiados em vrias partes dasfronteiras de Ruanda com a Tanznia, Uganda e Zaire.

    Com uma semana de atividades em territrio ruands,a Frana, que havia apresentado ao Conselho de Seguran-a uma misso que exclua qualquer interferncia na cor-relao de foras militares entre as partes envolvidas, de-clarou que transformaria o territrio ocupado em zonaprotegida. A Turquoise, que j se estendia por grande

    parte do sudoeste, recebeu nova bateria de crticas de queestava protegendo os responsveis pelo massacre em suazona de proteo humanitria. A criao da rea france-sa fez com que Kagame acelerasse a movimentao da FPRem direo ao oeste onde estava a Torquoise e emforma de concha. A pressa tambm se devia ao fato de quemuitos dos responsveis pelo genocdio que no fugiampara Uganda ou Tanznia, corriam para os braos france-ses saqueando e pilhando o que restava das cidades e al-deias no caminho. Durante os primeiros 15 dias de julho

    de 1994, enquanto a FPR avanava, o governo interinose desintegrou e os generais Kagame e Lafourcade chega-ram a um acordo de no-agresso. No dia 16 de julhoKagame declarou a formao de um novo governo nacio-nal, em Kigali. Dois dias depois o novo Governo de Uni-dade Nacional declarou um cessar-fogo unilateral. Escol-tados pelos franceses, cerca de 1,5 milho de hutus se refu-giaram em seis gigantescos campos em Goma, no Zaire.Cada um deles mais populoso do que quaisquer cidadesprximas na regio, reunindo mais de 100 mil pessoas.

    HUMANISMO

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    Em pouqussimo tempo uma epidemia de clera comeoua matar rapidamente os refugiados. Mais de 30 mil morre-ram nas primeiras quatro semanas e antes que a epidemiafosse controlada.

    Com o controle do pas nas mos do novo governo,iniciaram-se as discusses para a retirada das foras lidera-

    das pela Frana e para o envio da Unamir II. Por insistn-cia de Dellaire, as primeiras tropas enviadas, no dia 10 deagosto de 1994, no foram para Kigali, mas sim para aszonas de proteo humanitrias, substituindo rapidamenteos soldados franceses nos campos que reuniam em grandeparte refugiados hutus responsveis pelo genocdio.

    Passados 11 anos, ainda hoje Ruanda exorciza seus fan-tasmas. O trabalho de reconciliao nacional comeou nodia seguinte instituio do Governo de Unidade Nacio-nal e perdura at hoje. Em agosto de 2003, pela primeira

    vez desde o genocdio, os ruandeses foram s urnas paraeleger o presidente de seu pas. Paul Kagame, que j exer-

    cia a presidncia desde 2000 escolhido indiretamente porum Parlamento de Unidade Nacional, recebeu 94% dos

    votos. O Governo manteve como suas prioridades as pol-ticas de reconciliao entre hutus e tutsis e a priso e julga-mento dos responsveis pelo genocdio. O processo desoerguimento do pas lento, mas h avanos consider-

    veis na segurana, reduo da pobreza e desenvolvimentoeconmico. Os crticos de Kagame, porm, o acusam degovernar Ruanda com mo-de-ferro.

    A partir de 1997 os tribunais ruandeses comearam ajulgar os acusados de participao no genocdio sentenci-ando mais de trs mil pessoas (500 delas morte). Ogoverno incentivou o resgate dos Gacacas, antigos ins-trumentos tradicionais de julgamento das aldeias. Essestribunais locais comearam a funcionar em 2001 e j jul-

    garam mais de cem mil pessoas com bases apenas emtestemunhos e sem advogados. A ONU, por sua vez, ins-talou um tribunal ad hocna Tanznia, com o intuito de

    julgar os responsveis pelo massacre. O Tribunal Crimi-nal Internacional para Ruanda condenou, j em 1994,onze pessoas priso perptua, entre elas o ex-primeiro-ministro hutu Jean Kambanda. Nove acusados foram sen-tenciados a penas de 10 a 35 anos de priso e trs delesforam inocentados. Ainda h 43 presos espera de julga-mento, a maioria deles ex-membros do governo, ex-che-

    fes do Exrcito e lderes regionais. Alm dos tribunais daONU e de Ruanda, Blgica, Sua e Canad tambm

    condenaram refugiados com participao comprovada nomassacre.

    A difcil reconciliao em Ruanda ainda fruto de umlongo e tortuoso processo em andamento, mas um pasque no preserva sua histria por mais vergonhosa queseja apaga seu prprio carter. Ns, que a conhecemos,temos o dever de no deix-la ser esquecida.

    email: nonon onononono@nonononon

    INDICAES DE SITES:

    Pgina oficial do governo de Ruanda: Tribunal Criminal Internacional para Ruanda: Mdicos Sem Fronteiras: Oxfam: Human Rights Watch: Site da BBC dedicada ao genocdio:

    Passados11anos,aindahojeRuandaexorcizaseusfantasmas.

    O trabalho de reconciliao nacional comeou no dia seguinte

    INDICAES DE LEITURAS:

    DALLAIRE, Romo. Shake Hands With the Devil. New York:Avalon Publishing Group, 2004.DAVIDSON, Basil. The Black Mans Burden. New York: TimesBooks, 1992.GOUREVITCH, Phillip. Gostaramos de Inform-lo de que Ama-

    nh Seremos Mortos com Nossas Famlias. So Paulo, Companhia dasLetras, 2000.

    JONES, Bruce D. Intervention Without Borders: HumanitarianIntervention in Rwanda, 1990-94. In:Milennium, v.24, n.2, 1995,pp.225-249.

    instituiodoGovernodeUnidadeNacional eperduraathoje