47
ADRIANO MOREIRA REFLEXÕES

ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

ADRIANO MOREIRA

REFLEXÕES

Page 2: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

FICHA TÉCNICA

TITULO:

Reflexões

AUTOR : Adriano Moreira

NOTAS INTRODUTÓRIAS:

Maria Salomé Pais, Viriato Soromenho Marques,

Alberto Araújo

EDITOR : Academia das Ciências de Lisboa

GRÁFICA

Pimenta Indústria Gráfica, Lda.

CONCEPÇÃO GRÁFICA:

João Fernandes Susana Marques

ISBN: 978-972-623-123-3

ORGANIZAÇÃO

Academia das Ciências de Lisboa

R. Academia das Ciências, 19 1249-122 LISBOA

Telefone: 213219730 Correio Eletrónico: [email protected]

Internet: www.acad-ciencias.pt

Coyright © Academia das Ciências de Lisboa (ACL), 2012. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, por qualquer meio, sem autorização do Editor

Page 3: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

- 3 -

ADRIANO MOREIRA E O INSTITUTO DE ESTUDOS

ACADÉMICOS PARA SENIORES (IEAS) DA ACADEMIA DAS

CIÊNCIAS DE LISBOA

O Instituto de Altos Estudos (IAE) da Academia das

Ciências de Lisboa (ACL), no qual se integra o Instituto de Estudos

Académicos para Seniores (IEAS), foi criado em 1931 por proposta do

Sócio Efetivo da Classe de Letras, Moses Bensabat Amzalak,

apresentada na sessão plenária de 4 de Junho, por se sentir a

necessidade de fazer progredir a investigação científica em Portugal,

iniciativa que mereceu imediato apoio do então Presidente Júlio

Dantas.

Na altura, “a ACL sentiu a necessidade de criar cursos

livres que, a par com as Universidades, permitisse a coexistência de

ensino pós-universitário e supra-universitário cujo único objetivo era

fazer progredir a ciência através de estudos e investigações pessoais”.

Estes cursos eram professados por académicos ou por

personalidades convidadas de reconhecido mérito, externas à ACL

(regulamento IAE, art. 2º).

Page 4: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

- 4 -

O programa de cursos livres foi iniciado no ano académico

de 1931-1932, com uma lição proferida a 5 de dezembro de 1931, no

Salão Nobre da ACL, por Joaquim de Carvalho sobre a obra de

Spinoza, a qual teve considerável impacto na vida intelectual do País.

Entre 1931 e 1978, no âmbito do Instituto de Altos Estudos,

foram organizadas com alguma regularidade, conferências versando

temáticas muito diversas, nomeadamente:- agricultura, ciências

jurídicas e administrativas, direito, economia, filosofia, história,

literatura, matemática e relações internacionais em que participaram

sócios efectivos e correspondentes, e cientistas não académicos de

destaque nacional e internacional, como era lema do IEA. Entre 1979 e

2008, o IEA, por razões desconhecidas, deixou de ter um programa

regular de conferências, tendo, ao que pudemos apurar, ocorrido 2 ou

3 colóquios nas áreas das ciências e das humanidades.

Em 2008, Adriano Moreira é eleito Presidente do Instituto de

Altos Estudos. Como Presidente, imprime ao Instituto de Altos

Estudos uma nova dinâmica na qual se integram, como no passado,

conferências e colóquios sobre temáticas das mais variadas áreas das

humanidades e das ciências exatas e naturais, proferidas e organizadas

por académicos e cientistas de renome internacional.

Adriano Moreira, sempre atento aos fenómenos políticos e

sociológicos no mundo globalizado do século XXI e, em particular no

seu País, conhecedor da necessidade de dar resposta às novas

exigências de articulação das gerações, num movimento dinamizador

do IAE criou, em 2010, o Instituto de Estudos Académicos para

Seniores (IEAS) com o objetivo de corresponder à necessidade de

Page 5: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

- 5 -

adaptação contínua dos idosos às mudanças aceleradas da época atual

em que os media e a internet aceleram a capacidade de interação e de

diálogo. Pouco depois, Adriano Moreira criava, também, o Seminário

de Jovens Cientistas.

Ao criar o Instituto de Estudos Académicos para Seniores,

Adriano Moreira assegura aos seniores (maiores de 50 anos) uma

ligação com o avanço da sociedade da informação e do saber,

permitindo que tal grupo se mantenha ativo e participante no

acompanhamento dos avanços científicos e tecnológicos, e das

mudanças culturais que exigem compreensão inter-geracional.

Assim, a Academia das Ciências de Lisboa, através do IEAS,

assume, tal como outras congéneres a nível mundial, um dever cívico

ao intervir nesta área tão desafiante da evolução do saber e das

exigências de articulação geracional, o que implica uma definição de

trabalho, sujeito a experiência, que esteja de acordo com a sua

especificidade institucional.

O primeiro curso do IEAS teve início em Outubro de 2010,

decorrendo atualmente o 3º ano letivo (2012-2013). É particularmente

importante salientar o extraordinário contributo de Adriano Moreira

na apresentação e discussão de temáticas de enorme atualidade e

interesse nacional e internacional. As cerca de 200 conferências e cinco

seminários em áreas que vão da cidadania à governança, passando

pela biologia, saúde, e ambiente, de entre outras, proferidas, nos 2

anos passados, por personalidades de grande mérito que, apesar das

carregadas agendas têm generosamente, dado ao IEAS a sua

colaboração, permitiu aos maiores de 50 anos e aos mais jovens, uma

Page 6: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

- 6 -

verdadeira oportunidade de valorização sem constrangimentos

económicos ou de qualquer ordem. Tal movimento tem igualmente

permitido que a ACL tenha vindo a contribuir, de maneira regular,

para a divulgação da cultura artística através de concertos ou outras

atividades culturais.

Chegou a altura de reconhecer a extraordinária visão

estratégica de Adriano Moreira e o seu empenho na vivência e na

consolidação desta iniciativa, pelo que o IEAS decidiu prestar-lhe

homenagem, materializada na nova designação deste Instituto como:

Instituto de Estudos Académicos para Seniores Adriano Moreira.

Maria Salomé S. Pais1

1 Diretora do Instituto de Estudos Académicos Para Seniores

Page 7: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

- 7 -

ANTECIPAR E CUIDAR DO FUTURO

A ORIGEM das Academias das Ciências nos mais diversos

países europeus terá tido na imaginação dos Modernos a sua força

propulsora. Francis Bacon começou a escrever a sua New Atlantis –

uma obra utópica sobre o papel da ciência e da técnica na

reorganização das sociedades humanas – por volta de 1623. De acordo

com algumas pistas biográficas, esse impulso para tornar visivelmente

dramáticas as expectativas de um novo mundo, onde a tecnociência

elevasse a uma escala nunca testemunhada o “império humano” sobre

a Natureza, teria nascido, como reação imediata, a partir do contacto

que o sábio britânico tomou com a edição da Civitas Solis, do infeliz

Tommaso Campanella, obra que havia sido dada à estampa, em

Frankfurt, também nesse ano de 1623.

Tanto Bacon como Campanella partilharam uma visão épica

acerca do valor da ciência como catalisador da história humana.

Ambos acreditavam que o seu uso libertaria a humanidade da

superstição, da doença, da pobreza, e de muitas outras modalidades

de indignidade a cuja sujeição a sempre frágil condição humana parece

Page 8: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

- 8 -

condenada. Como sempre ocorre, os grandes fundadores tendem a ser

imitados com exagero. A desmesura mimética do otimismo científico

tornou-se numa ideologia fáustica, numa estratégia de relacionamento

com o mundo que não hesitou em prescindir da verdade em prol do

incremento do poderio, mesmo que essa predominância sobre as

coisas não passasse de um efémero simulacro de sucesso, destinado a

terminar de modo catastrófico.

De onde vem a ameaça, vem também o que salva, como nos

recordam os imortais versos de Hölderlin. As Academias das Ciências

foram e são, também, o lugar onde a procura da verdade tem lugar

contra a lógica dos interesses e das conveniências. Contra o sanguíneo

entusiasmo das correntes mais fáusticas, as ciências europeias

acusaram sempre a resistência e o primado dos mais modestos

seguidores de Prometeu. A procura de uma vida humana plena e

realizada exige uma ampla compreensão dos limites materiais e das

condições naturais de possibilidade que a ontológica inserção da

humanidade na nossa casa planetária exige. Trata-se de uma exigência

teórica e prática. Um desafio para respeitar e construir dentro dos

nossos limites matriciais que é lançado aos nossos sistemas de

conhecimento, mas também às nossas tecnologias e aos nossos

modelos de governação. Não há vida sem esperança no futuro. Mas só

as esperanças alimentadas pela prudência e moderadas pela sabedoria

podem garantir à nossa habitação da Terra não só a dimensão espacial,

mas, sobretudo, a duração no tempo.

A Academia das Ciências de Lisboa pertence, desde a sua

fundação, à grande corrente do saber com prudência. Ela foi, desde a

Page 9: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

- 9 -

sua origem, o lugar onde se desenvolveu uma consciência

universalista das ciências, onde se praticou a cooperação

interdisciplinar, mesmo antes deste conceito circular nas revistas e nas

conferências das diversas escolas. Na linha de rumo de um Abade

Correia da Serra, a Academia das Ciências de Lisboa caracterizou-se

pela compreensão da responsabilidade social das ciências. Uma

responsabilidade que jamais se confundiu com troca de papéis em

relação aos atores políticos e económicos que, nas suas esferas

próprias, modelam o rumo das sociedades.

NÃO PODERÍAMOS encontrar exemplo mais vibrante desse

estilo próprio de vincular as ciências e a sociedade, posto em prática ao

longo dos séculos pela Academia das Ciências de Lisboa, do que o

longo magistério académico do Professor Adriano Moreira, como esta

obra bem o testemunha. Quem quiser perceber o princípio

fundamental que orienta o pensamento de Adriano Moreira sobre o

papel das Academias e das Universidades, bem como sobre a missão

do ensino superior, teria de recuar mais de meio século, até um texto

notável publicado em 19662. Não partilhando o otimismo

desmesurado, reinante nesse tempo, Adriano Moreira propunha uma

reorganização global do ensino, através da introdução de um

Ministério da Ciência e Educação, substituindo o Ministério da

Educação Nacional, mas evitando a pulverização da investigação

científica. Propunha também a necessidade da Universidade vencer o

2 Adriano Moreira, “Para um Ministério da Ciência”, Estudos Políticos e Sociais, Revista trimestral do Instituto superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, Lisboa, Volume IV, n.º 4, 1966, pp. 1241-1253.

Page 10: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

- 10 -

“complexo de Savanarola”, a recusa em vislumbrar o futuro. Pelo

contrário, numa sociedade percorrida por novas e velhas ameaças, o

saber deveria ser, cada vez mais, um esforço organizado visando a

antecipação do futuro. Essa era, aliás, uma das razões principais para a

aposta no desenvolvimento das ciências sociais, de que Adriano

Moreira seria um dos mais importantes pioneiros em Portugal.

Antecipar o futuro seria a missão académica por excelência,

encaminhando as ciências e as técnicas para uma relação de simbiose

com a natureza, em superação do modelo ainda prevalecente do

domínio e da conquista. Cuidar do futuro seria a tarefa dos

verdadeiros estadistas, articulando a linguagem e lançando as bases

institucionais da cooperação regulada, como inevitável ultrapassagem

do léxico da guerra e do conflito, apenas possível quando o mundo

parecia infinito e a marca telúrica da humanidade era praticamente

irreconhecível.

Mas o que transforma Adriano Moreira numa inconfundível

personalidade da história contemporânea de Portugal é a intrínseca

unidade de propósito entre obra e vida, a absoluta coerência entre o

pensar e o agir. Sobre ele ninguém poderá afirmar que a sua obra

transcende em muito a sua vida. E isso não porque a sua obra não

tenha sido, e continue a ser, valiosa. Mas, pelo contrário, porque as

iluminações e inspirações do seu pensamento encontram plena

correspondência nos atos e apostas da sua vida, em todos os seus

domínios públicos e privados, ela própria desenvolvida como uma

verdadeira obra de arte, sujeita a sucessivos processos de alteração e

aperfeiçoamento.

Page 11: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

- 11 -

Em Adriano Moreira o rigor metodológico do cientista social

harmoniza-se com a integridade do cidadão, calibrando a sua

liberdade como ator político no quadro de uma exigente ética pública.

Nele não cabem os estados de alma, aludidos por Max Weber, sobre

“as forças diabólicas” que se agitam na química interior das almas a

quem a história concede uma oportunidade na navegação do destino

coletivo dos povos. Chamado a dar o seu esclarecido contributo numa

das horas mais dramáticas e sangrentas do Portugal do século XX,

ofereceu-se de corpo e espírito ao projeto de um país capaz de vencer a

fatalidade e a decadência consideradas inevitáveis. Mas, senhor de um

raro domínio de si próprio, soube perceber os limites, identificar

aquela linha vermelha que separa o que podemos e devemos fazer, de

uma zona de caos e sombras onde podemos deitar tudo a perder

dentro de nós próprios.

Nesta nova época crítica da marcha coletiva de Portugal,

Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no

eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde àqueles,

e são a maioria, que o ciclo da luz regressará, se soubermos cultivar a

paciência indispensável a uma informada esperança. Bafejado por uma

vitalidade física tão generosa como a frescura crítica da sua

inteligência, o Professor Adriano Moreira continua a dar a Portugal o

maior dom que todos temos no mais profundo da nossa identidade, o

dom de nós próprios. Numa agenda povoada por conferências,

seminários, provas académicas, apresentações de livros, reuniões de

comissões e conselhos, este Académico ilustre, indiferente à

omnipresente expansão da “esfera das transações”, continua a oferecer

de si sempre o possível, que é sempre o melhor. Na verdade, Adriano

Page 12: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

- 12 -

Moreira recorda-nos que uma nação jamais perecerá enquanto seja

capaz de produzir uma aristocracia. Não uma nobreza ditada por

cartas genealógicas, mas sim uma aristocracia do conhecimento e da

ação. Homens e mulheres sempre prontos a rumar em direção ao

futuro, antecipando-o por palavras e por ações, não hesitando em

arriscar por mares nunca dantes navegados.

Viriato Soromenho Marques3

3 Sócio Correspondente da Classe de Letras da Academia das Ciências de Lisboa

Page 13: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

13

HOMENAGEM AO PROF. DOUTOR ADRIANO MOREIRA

A religião canoniza os seus santos. A sociedade homenageia os seus

heróis. Hoje, o Instituto de Estudos Académicos para Seniores (IEAS) presta

viva homenagem ao Professor Doutor Adriano Moreira.

Santos são aqueles crentes cuja vida atinge os níveis mais exemplares

ou inspiradores de ética e de moral, de todas as virtudes que possam

dignificar a existência humana. Heróis são os cidadãos que dedicam a vida a

notáveis empreendimentos ao serviço da sociedade. O Homem ou a Obra que

é o Prof. Doutor Adriano Moreira é de todos conhecido: amigos, alunos que

são agora professores, profissionais, políticos, admiradores desconhecidos da

CPLP, de Goa/Damão/Diu, de Macau, enfim, dos recantos lusófonos

espalhados pelo Mundo, onde raro Visitante português se encontrou

lusodescendentes e colocou uma coroa de flores na campa dos seus

antepassados; admirador pessoal desde as décadas de 50 e desde a juventude

dos colegas que constituem a atual liderança da última Província

descolonizada do espaço mundial lusófono. Fazemo-nos eco de Nuno Melo

no jantar de homenagem pelo 90º aniversário da figura a quem o IEAS, hoje,

tem o privilégio de prestar homenagem, jantar organizado pelo Diário de

Notícias, em 07 de Novembro do corrente ano 2012: “Adriano Moreira “é uma

referência incontornável do século XX e do início do século XXI; uma história

Page 14: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

14

viva e uma referência que tem motivado gerações; um exemplo seguido por

muitos, mesmo dos outros partidos.”

A Wikipedia permite-nos uma imagem do atual Presidente da

Academia das Ciências de Lisboa e do Conselho Geral da Universidade

Técnica de Lisboa: “aluno brilhante; estadista, político, deputado, advogado

jurisconsulto, internacionalista, politólogo, sociólogo e professor;

subsecretário de Estado da Administração Ultramarina, em 1959, ascendendo

depois a ministro do Ultramar, em 1961; opositor da portaria que reabriu o

Campo do Tarrafal, em Cabo Verde, desta vez destinado aos presos dos

movimentos de libertação das colónicas: Salazar manifestou-lhe

posteriormente que não podia concordar com várias das suas políticas,

afirmando-lhe que mudaria de ministro se não as alterasse; segundo conta o

próprio Adriano Moreira, este então comunicou-lhe que “Vossa Excelência

acaba de mudar de ministro”. O autor do artigo continua com uma amostra

do que que o PROFESSOR pensa, escreve, diz e faz pela sociedade: legado

teórico-metodológico, cargos políticos, méritos e condecorações, principais

obras, biografia. O autor da notícia sobre a homenagem organizada pelo

Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de

Lisboa, diz: “Aos 90 anos, Adriano Moreira (…) É considerado um dos

"senadores" da sociedade portuguesa. Apesar das suas incursões políticas, diz,

no entanto, preferir ser reconhecido como "académico" ((ISCSP-UTL,

27set2012, Fonte, Lusa/Google). “Portugal precisa de um «Governo de

gabinete», onde o primeiro-ministro não veja diferença de partidos nos

ministros à sua volta. (Por ocasião de uma conferência sobre ‘O Estado e a

Competitividade da Economia portuguesa’, organizada pela Antena 1 e Jornal

de Negócios, em 16out2012). Pretender citar aqui os inúmeros marcos que

fazem do “Académico” um herói e acrescentar a este panorama as citações

dos seus admiradores é fazer como a criança que pretendia meter num

buraquinho da praia toda a água do mar.

Page 15: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

15

A 18 de Outubro de 2012, cria o Instituo de Estudos Académicos para

Seniores (IEAS), tendo como cofundadora e Diretora a Profª. Doutora Maria

Salomé Pais. O testemunho vivo de todos aqueles que, desde esta data, têm

estado presentes nas conferências, todas as segundas, terças e quartas-feiras

não pode não ter um significado muito especial. Ouvir o PROFESSOR nas

suas conferências e tê-lo entre nós, sempre que lhe tem sido possível, nas

outras conferências, tem-nos permitido um autêntico privilégio. Por trás, ou

ao lado, do Homem tão conhecido por todo o público, sentimos um homem

chamado Adriano Moreira, onde os opostos se aproximam ou se unem:

professor e aluno, sabedoria e saber, grande e simples, cientista e humano,

formal e amigo, tão elevado e tão próximo: Adriano Moreira é mais do que

tudo o que está escrito e feito; tem o lado invisível, fonte do surpreendente

que em cada dia e em cada contexto se vai revelando. Uma destas revelações,

que nos prendeu a atenção, é o que afirmou numa das recentes conferências:

“Portugal necessita de VISIONÁRIOS”: e ele próprio é um dos incontornáveis

Visionários. Conhece o Povo Português do passado, conhece em

profundidade e em largura a crise portuguesa, europeia e mundial; e não só

faz apelos como procura inspirar a nova geração para o futuro.

Na conceção do IEAS estão presentes dois projetos, em resposta às

novas exigências de articulação inter-geracional: criação de Academias de

Jovens Cientistas; formação contínua dos adultos e idosos (maiores de 50

anos) em ordem à sua adaptação “às mudanças da época atual em que os

media e a internet aceleram a capacidade de interação e de diálogo”. Ao

colocar lado a lado os Seniores e os Jovens Cientistas, a Academia das

Ciências de Lisboa, aposta na memória do passado, no domínio do presente e

na atenção perante o futuro, no sentido de os atores estarem preparados e

atentos para realizar ou orientar as potencialidades e a construção do futuro.

Nas antigas culturas os Seniores constituem os Conselheiros da Comunidade,

com o seu saber e sabedoria herdados dos antepassados e trabalhados pelos

próprios. Nas novas culturas, nomeadamente ocidentais ou ocidentalizadas,

Page 16: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

16

ser Sénior tem significado estar ultrapassado, inadaptados aos novos tempos,

incapacitado para o ritmo das novas competitividades económicas e

financeiras, incapaz de empregabilidade; são consumidores não produtores

que pesam na estratégia e na política de desenvolvimento e de

competitividade nacional. Os Seniores da Academia das Ciências de Lisboa e

de tantas outras academias nacionais, desde o nonagenário fundador do IEAS

aos conferencistas, professores catedráticos no ativo e jubilados, estão a

demonstrar precisamente o contrário. O ACADÉMICO por excelência está a

demonstrar que o caminho do futuro é conhecer bem e objetivamente o

passado, pelo menos para evitar os erros cometidos, não repetir simplesmente

as verdades já formuladas ou não pensar que se é autor de novas descobertas,

que já foram descobertas no passado, ou levantar como novas questões que já

foram colocadas desde há séculos, desde os pré-socráticos e talvez seus

antecessores, há mais de 26 séculos. Noutros termos, o sistema

educativo/formativo deve ter como paradigma que: todo formando deve ser

um formado e todo o formado deve ser um formando.

O IEAS está no 3º ano de existência. As conferências dos dois

primeiros anos mostram bem a excelência do projeto IEAS e do sonho dos

seus fundadores. Seminários, teatro, concertos, canto, visitas de estudo a

museus e outros espaços, 140 conferências sobre temáticas sobre a estratégia

veiculadora de construir o futuro, compreendendo e resolvendo as questões

do presente e tendo presente o passado. Consultando a lista dos

conferencistas no Sítio http://www.acad-ciencias.pt, “Atividades IEAS, e os

respetivos currículos no Google, podemos constatar o elevado nível de

experiência científica e pedagógica dos conferencistas ou professores. Mas, há

vertentes que estão para além do “poder da palavra” escrita e/ou publicada

no Sítio ou através de outros meios, esse outro poder ou riqueza humana que

só se pode entrever através da comunicação ou do diálogo presencial,

repetindo, às segundas, terças e quartas-feiras, das 17h00 às 19h00 ou mais, na

Sala/Aula Maynense, fundada pelo Padre José Mayne em 1792 onde “estava a

Page 17: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

17

nascer o Ensino de qualidade, abrangendo nomeadamente as Ciências

Naturais, Física, Química e Astronomia, em Lisboa, apesar de obstáculos

ativos. Para mais, foi aí criado o ensino da Língua Árabe, este em relação com

outro vulto eminente, o depois Arcebispo de Évora Frei Manoel do Cenáculo.”

(Fonte: Notas sobre Academia das Ciências de Lisboa, Google).

Nesta Aula histórica e inspiradora, tivemos a excecional experiência e

privilégio de ouvir as profundas conferências do “ACADÉMICO” e de poder

esclarecer as nossas dúvidas e preocupações, sonhos e propostas face aos

inevitáveis desafios que se colocam à Nação na presente conjuntura de crise

nacional, europeia e mundial. Foi precisamente com este tema – “DESAFIOS

PARA PORTUGAL” - que, na cerimónia de apresentação pública do IEAS, em

18 de Outubro de 2010, o Prof. Doutor Adriano Moreira abriu a série de

conferências e de atividades. Seguiram-se “Nunca é Tarde para o Homem”

(Junho de 2011, ver Google e Docs. IEAS); “Dias Sem Ocaso” (10out2011,

Ibidem); “Direitos e Deveres Humanos e Paz Social” (ibidem); “Portugal e a

Geopolítica da Interculturalidade” (31out2011, ibidem); “Projeto Político dos

Lusíadas” ( 17jan2012, ibidem); “Conhecimento e Sabedoria na Europa do

Século XXI” (09out2012, ibidem); “Política e Ciência Política” (17out2012,

ibidem). Mas, repetindo, nada melhor que ouvir e estar com o

“incontornavelmente” e excelente “Académico”. Fica o pessoal convite e

certamente também dos colegas do IEAS.

As conferências são dirigidas a uma plateia de número variável em

cada sessão. Por outro lado, abrangem não apenas os presentes mas também o

universo ilimitado de interessados, desde os congéneres espaços de formação

espalhados por todo o país aos outros existentes na Europa e no Mundo. Os

textos e os vídeos, publicados através do Sítio da Academia atrás referido,

constituem objeto de partilha de conhecimentos e experiências entre o leque

universal de interlocutores. Neste leque, está incluída a nova geração, cuja

presença nos debates tem inestimável importância para a construção da

ciência e da nação. Representam recursos de formação contínua e de

Page 18: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

18

autoformação. Neste sentido, o IEAS foi concebido pelos fundadores para o

serviço da sociedade ou, no fundo, de cada pessoa, até ao limite máximo de

suas capacidades físicas e mentais. ESTA HOMENAGEM REPRESENTA UM

DEVER DE CIDADANIA.

Na intenção pessoal, estas últimas palavras são também as primeiras. Quero

agradecer à Cofundadora do IEAS, Profª. Doutora Maria Salomé, o elevado

privilégio que me foi dado para representar os sentimentos dos colegas nesta

HOMENAGEM.

Alberto Araújo4

4 Aluno do Instituto de Estudos Académicos Para Seniores

Page 19: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

19

DESAFIOS PARA PORTUGAL

Sessão Inaugural do IEAS 18 de Outubro de 2010

Portugal foi de regra um país dependente de fatores externos, decidido

a procurar fora do território matricial apoios políticos e recursos materiais que

habilitassem o Estado a desempenhar as funções e realizar os objetivos do seu

conceito estratégico variável em cada época.

Logo na fundação procurou o apoio da Santa Sé; desde a primeira

dinastia que as relações com os poderes europeus foram objeto de cuidado, e a

necessidade de a soberania ir adquirir os fundos estruturais indispensáveis

mudou mais de uma vez de sentido, mas sem afetar a permanência da

determinação.

Digamos que a definição jurídica, também variável no tempo, do sistema

político foi tendencialmente mais restrita do que o próprio sistema que inclui

elementos exteriores à soberania, especificamente as alianças, das quais a mais

duradoira é a inglesa, que no século vinte foi a NATO, para depois de 1974 ser

a Europa em formação.

É por outro lado certo que durante séculos o modelo político foi o da

cadeia de comando, com o regime monárquico a colocar o Rei no topo de um

povo em armas durante toda a longa dinastia da reconquista, depois o povo

deitado a longe na dinastia da expansão marítima, com D. João II a amarrar ao

leme a mão do marinheiro de Pessoa, para finalmente, com o desastre de

Page 20: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

20

Alcácer Quibir, se desagregar a cadeia de comando, e logo o Estado, e finalmente

a desamparada sociedade civil. O sebastianismo recorrente, ainda por vezes

presente na interpretação existencial do modelo constitucional em que

vivemos, guardou a memória dessa cadeia de comando. Em mais de uma

crise animou o carisma de interventores eventualmente vistos no modelo do

Presidente-Rei, que mais uma vez Pessoa julgou reconhecer em Sidónio, e que

talvez fosse a inspiração de Mouzinho quando proclamou que este Reino é obra

de soldados, no tempo em que Antero dirigia os olhares para a Europa. É do

livro do nosso desassossego que ambos se tenham suicidado.

Assim como a Índia foi uma deslumbrante origem de fundos

estruturais, o esgotamento do modelo encontrou substituto no Brasil das

ilusões, e mais tarde, perdida ali a soberania, no arranque para África depois

da Conferência de Berlim de 1885.

A permanência deste conceito estratégico, de conteúdo variável, e com

invariável dependência de fatores externos, teve numa diplomacia de

excelência um instrumento fundamental, e no apego da nossa diáspora às

raízes um suplemento do amor pátrio e de remessas das poupanças.

A Revolução de 1974 foi um ponto final no Império Euromundista de

que éramos parte por responsabilidade histórica fundadora, mais uma vez os

condicionamentos externos foram determinantes, mais uma vez foi necessário

reequilibrar o sistema político nacional com uma amarra externa, a qual foi a

nova Europa sem qualquer outra escolha. Por leitura apressada, um alto

responsável político anunciou por então as novas caravelas portadoras dos

fundos estruturais europeus, sem reparar em que nestas não estava qualquer

contribuição dos pinhais de D. Diniz, e amarrados os críticos ao Velho do

Restelo, com o equívoco de não reconhecer no personagem o primeiro dos

europeístas, contrário como foi à decisão de deitar o país a longe.

A severa crise com que entramos no terceiro milénio, esgotado o

conceito estratégico nacional secular, também parece finalmente despertar a

compreensão de que a conjuntura é radicalmente nova em relação à

Page 21: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

21

experiência secular, que as exigências dirigidas à capacidade do Estado

ameaçam colocá-lo na categoria de Estado exíguo, quer na definição em

progresso das hierarquias internas da Europa, quer na hierarquia da Europa

nas balanças de poderes mundiais, balança estratégica, balança científica e

técnica, balança económica. Assim como o Império Euromundista teve o seu

ponto final, assim como o conceito histórico português se esgotou com a

derrocada daquele, assim agora o desafio europeu é coletivo, a recuperação da

Europa dos desastres das suas guerras civis interiores depende

reconhecidamente de solidariedades funcionais das várias soberanias. E por

isso Portugal está estruturalmente envolvido no processo europeu, e inscrito

na Europa que ela, ainda com definição incerta, está envolvida no turbilhão

do globalismo que colocou todas as áreas culturais do mundo a intervir no

processo com independência política.

É uma novidade estar Portugal envolvido na primeira linha das

contradições do processo interno europeu, com a evidência de que, por

experiência passada, é a capacidade diplomática que exige reforço e

criatividade para estar nos centros de decisão, e não ser apenas destinatário

dos efeitos das decisões em que não participa. É pela participação respeitada

nessa gestão do interesse comum europeu que pode conseguir apoio à reserva

de um espaço de liberdade para agir em favor do vasto património de

presenças que espalhou pelo mundo.

Para responder à exigência de reinvenção de um conceito estratégico

nacional renovado, é prioritária a meditação sobre as capacidades reais do

Estado, e sobre a coerência da sua relação com a comunidade nacional.

Nesta rede de exigências, acontece que muitas referências históricas

estão ultrapassadas: a fronteira geográfica é hoje simples apontamento

administrativo vista a livre circulação europeia; a fronteira de segurança é a

da NATO; a fronteira económica é a da União; a livre circulação de pessoas e

o descontrolo das migrações reconstituem uma composição populacional que

recorda a época em que os Reis de Portugal eram os Reis das três Religiões,

Page 22: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

22

com todas as dificuldades inerentes; a cidadania desdobra-se em fidelidades

múltiplas, que se especificam na fidelidade ao Estado português, na fidelidade

à Europa em formação, e na fidelidade aos interesses comuns da

Humanidade, fidelidades nem sempre fáceis de relacionar coerentemente: é

uma exigência do novo conceito estratégico nacional a formular proceder à

racionalização do pluralismo cultural que regressou às nossas problemáticas

do futuro, e assegurar a coerência das fidelidades múltiplas desafiantes.

Não é possível assegurar o desenvolvimento destas traves mestras sem

que uma vontade cívica consistente assuma a responsabilidade da escolha e

crítica das decisões políticas envolvidas, e sem que esteja assegurado que o

Estado não sofre do fenómeno de redundância que mais de uma vez se

verificou ao longo da história.

Infelizmente, o pessimismo frequenta excessivas vezes as nossas

circunstâncias de desafio, e nesta data multiplicam-se os textos de desânimo

em relação ao povo que somos, por vezes em relação ao povo que fomos.

Reeditam-se as Conferências do Casino, volta a circular o alarme de João de

Andrade Corvo (Perigos: Portugal na Europa e no Mundo, 1870), onde escreveu

estas palavras: “é grave a situação de Portugal. Confusão e incoerência nos

princípios, grande desordem nas finanças; enfraquecimento deplorável da

autoridade; falta de confiança na vitalidade do país, e nas suas faculdades

políticas e económicas; um desalento injustificável atrás do qual se esconde

um perigoso indiferentismo…”. Leia-se o de novo publicado trabalho de

Augusto Fuschini, O Presente e o Futuro de Portugal (1899), onde se encontram

considerações semelhantes. Ou o desanimo de Eça de Queiroz (O Francesismo)

quando escreveu: “porque nós somos realmente o povo que se compraz em

estar quieto entre os choupais, a ver correr as águas meigas, pensando em

coisas saudosas. Fomos à Índia, é verdade, mas quase três séculos são

passados, e ainda estamos descansando, derreados, desse violento esforço a

que nos obrigaram alguns aventureiros que tinham pouco do fundo comum

da nossa raça…”. Tudo traduz o mesmo estado de espírito, que tarda em

Page 23: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

23

reconhecer que alguma frequente necessidade, não assumida, de avaliar em

cada conjuntura a relação entre o Estado, a época, a sociedade civil, e o tempo

perspectivável, caracteriza a história política portuguesa, e desperta esta

angústia. Uma angústia que parece por vezes imaginar que a definição do

Estado, e da sua relação com o povo e a conjuntura, diz respeito a elementos

invariáveis na sua história. Ora aquilo que não parece fundado é desfiar uma

teoria intimista de pontos fracos da memória de existir do povo, evitando o

doloroso realismo de confrontar o Estado com a situação exógena que o

globalismo acentuou, para o redefinir com lucidez em termos de eliminar a

recuperada atualidade das palavras de Andrade Corvo. Em resumo, como

doutrina um renovado Fukuyama (State-Building, 2005), reconstruir a relação

entre a população e o Estado, a partir de uma consciência cívica assumida das

reais capacidades e da direção a seguir na conjuntura nova, por vezes

imprevista, de regra apenas conhecida pelo conjunto de efeitos colaterais que

a definem, e não foram antecipados.

Sugerimos que a vinculação à nova forma de ser Europa é um projeto

para a nova época posterior ao colapso do Império Euromundista, mas não é

um envolvimento português sem precedentes nas passadas formas de a

Europa se entender a si própria. Este facto desafiante e imperativo exige agora

a presença de Portugal em todos os centros de decisão, para não ser apenas o

destinatário delas. Tendo porém sempre presente a experiência da sua

valiosíssima história nacional, porque o esquecimento dela, e do que ensina,

facilita que o passado mais sombrio subitamente bata com estrondo à porta do

futuro, destroçando projetos e ilusões.

Por exemplo, não pode continuar a verificar-se a prática da política

furtiva europeia, que caracteriza muitos dos passos dados, com total falta de

participação da opinião pública informada e dos Parlamentos nacionais. Não é

recomendável que o alargamento europeu se faça, como se tem feito, sem

estudos e discussão assumida sobre a questão da governabilidade; não é da

prudência governativa que o alargamento das fronteiras se faça sem estudos e

Page 24: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

24

discussão assumida sobre a garantia de obter uma fronteira de países amigos:

os pequenos países são os mais interessados em que o diálogo europeu seja

reestruturado, e essa é apenas uma das muitas razões que exigem a lembrada

revalorização da vertente diplomática.

A definição dos espaços em que tal intervenção necessariamente vai

decorrer tem uma exigência de opção que diz respeito ao conflito crescente

entre o americanismo e o europeísmo, com referências simplificadoras que

vinculam os EUA a Marte e os europeus a Vénus.

Passando por alto os erros do unilateralismo americano, e o

despropósito de alguma pontual arrogância de europeus, as novas ameaças

globais, sobretudo a partir do 11 de Março, aconselham todos, e sobretudo os

pequenos países, entre estes aqueles que pela história dos ocidentais e pela

geografia estão na frente atlântica, a intervir para impedir que se reproduza

agora nesse mar a desastrada experiência europeia de os Estados não terem

vizinhos, mas sim inimigos íntimos. Para Portugal, a solidariedade atlântica

coloca-o na centralidade dos interesses ocidentais, enquanto a rutura agrava o

risco do agravamento da condição periférica, que já nos inquieta.

Temos por suficientemente experimentado que aquela perspetiva da

articulação a Marte e a Vénus estimula irracionalismos unilateralistas, como se

passa com o anúncio francês de um novo conceito de utilização das armas

estratégicas, no passado tidas para não serem usadas mas sim para assegurar

contenção recíproca dos Blocos, agora anunciadas para serem

ameaçadoramente usadas na defesa de interesses próprios, designadamente

energéticos.

Nesta perspetiva de solidariedade atlântica se articula a manutenção

de uma janela de liberdade governativa e soberana, para desenvolver a

política que recebeu forma na CPLP. É uma vertente que envolve articulação

da segurança do Atlântico Norte com a segurança do Atlântico Sul, reconhece

Page 25: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

25

a importância dos Arquipélagos portugueses, e também de Cabo Verde, que

ajuda a renovar e modernizar a solidariedade do Brasil, que presta ao

globalismo o serviço da solidariedade horizontal dos povos de língua

portuguesa. E valoriza também a solidariedade das comunidades espalhadas

pelo mundo, as quais, ainda que não falando a língua, não esquecem as raízes

e os laços com um Portugal que por ali passou no exercício da soberania, ou

na função de pregar a todas as criaturas, ou simplesmente instalando a

diáspora que é uma dimensão estruturante da presença de Portugal no

mundo.

Esta estrutura multifacetada implica que, se a competição económica é

hoje uma frente europeia e por isso também especificamente portuguesa, a

dimensão cultural vai acentuadamente para além do espaço europeu e

ocidental, com uma dimensão de liberdade que se destaca dos deveres de

cooperação dentro dos Tratados da União, da NATO, e da ONU, com

destaque para a cooperação militar que se desenvolveu com êxito no antigo

ultramar.

Daqui resulta a evidência de que, quer na frente interna europeia e

ocidental, quer na referida frente de liberdade, o objetivo da qualificação, o

ensino e a investigação, exigem uma mobilização prioritária. Talvez não seja

difícil reconhecer que as chamadas Declaração de Lisboa e Declaração de

Bolonha se conjugam para exigir políticas que tendem para o modelo das

políticas dos Estados unitários, e que as redes, embora contratualizadas,

ganham uma autonomia sistémica que constrange a liberdade residual dos

Estados. É por isso que, ao mesmo tempo que o objetivo de obter uma

competitividade que exceda a dos EUA arrisca afetar a solidariedade atlântica,

também a hierarquização qualitativa das universidades do espaço europeu e

ocidental ameaça impor a situação periférica às instituições dos pequenos

países, abrindo novos Caminhos de Santiago para sedes pouco numerosas

num centro ativo.

Page 26: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

26

Trata-se de um desafio agudo, agravado pela longa falta de regulação

a que se entregou o Estado português, o qual despertou finalmente na data

em que uma crise financeira com pouco precedente alarga o risco de o fazer

evoluir para Estado exíguo. Trata-se de um risco que afeta quer o

desempenho no espaço europeu e ocidental, quer na citada área de liberdade

que outras antigas soberanias coloniais europeias ciosamente guardam, com

relevo para a França, a Inglaterra, a Bélgica, e a Holanda.

Pareceu-nos que as políticas de contenção não podem atingir esta

frente fundamental com critérios que ameaçam a mercadorização do ensino, o

enfraquecimento da investigação fundamental, a menorização das ciências

sociais em relação com o espaço definido principalmente pela língua. A língua

que, pela expansão, já não é nossa, é também nossa. Tão exigente identificação

e coordenação de interesses aponta para que as despesas com a investigação,

o ensino, e a promoção da área cultural, sejam consideradas despesas de

soberania, salvaguardadas da teologia de mercado que anda a contribuir para

relativizar os valores ocidentais, europeus e portugueses.

Portugal fez uma longa caminhada de séculos, certamente com pontos

fracos e pontos fortes na avaliação feita em cada nova conjuntura, mas o que

fica de permanente no património da Humanidade são as emergências em

que se inscreve a criação de novos países, entre os quais se destaca o Brasil, a

contribuição para que finalmente chegássemos a uma Declaração Universal

dos Direitos Humanos, a marca no direito internacional sobrevivente às

catástrofes militares, a doação da língua ao diálogo de milhões de seres

humanos, a inscrição de valores inovadores no património de áreas culturais

por onde passaram ou a soberania ou a evangelização, e a mundialização das

interdependências que desafiam agora as intervenções da globalização em

progresso. Na génese dos pontos fortes e dos pontos fracos dessa globalização

estão a intervenção e a responsabilidade portuguesas.

Não podemos ignorar o dever de continuarmos participantes nas

respostas, desenvolvendo o esforço indispensável para que essa participação

Page 27: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

27

seja mundialmente válida e reconhecida. Começando por dar notícia de que o

património humano ocidental, europeu, e mundial, que se trata de preservar e

dinamizar, não é nosso. Mas também é nosso.

Acontece que no espaço europeu, a que pertencemos, se desenvolve

um movimento, que é apoiado pelas suas Academias, no sentido de contribuir

para o reforço desse património impedindo que se enfraqueça ou quebre o elo

de relação e solidariedade entre as gerações, um risco agudizado pela

velocidade crescente de alteração da circunstância envolvente das

comunidades, quer pela velocidade dos riscos que a nova polemologia tem

dificuldades em identificar, quer pelos avanços da ciência e da técnica que

alteram a relação com a natureza, com o passado, e com as perspetivas de

futuro, quer pela incidência erosiva nas relações familiares, quer pelas

inquietações específicas de cada ser com o mundo em mudança ao longo de

uma vida que inevitavelmente avança para um ponto final.

Também as Universidades estão a responder a tal desafio, cada

interventora com especifico conceito estratégico, também instituições privadas

anunciam o desafio, igualmente a nossa Academia responde com a vocação e

meios de intervenção ao seu dispor. Temos felizmente na Academia a vontade

cívica, o saber científico, e a determinação humanista, que nos asseguram a

dignidade e riqueza da intervenção que vai empreender nesta área, com

esperança fundamentadamente apoiada na qualidade dos intervenientes que

imediatamente se decidiram a dar a sua contribuição pessoal, rica, e

generosa.5

5 Este texto atualiza a comunicação feita à SHIP, em 25-05-2006.

Page 28: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

28

NUNCA É TARDE PARA O HOMEM

Sessão de Encerramento do 1º Ano do IEAS 16 de Junho de 2011

Num livro altamente preocupante com o destino da nossa cultura

europeia e ocidental, e que o autor, William Ospina, intitulou (1994) Es tarde

para el Hombre, tem um capítulo intitulado El Canto de Las Sirenas, onde escreve

o seguinte: “Como o pai de Bude, a sociedade contemporânea parece

empenhada em impedir que os seus filhos se inteirem de que existem a

doença, a velhice e a morte. Ao menos no Ocidente corre uma espécie de

religião da saúde, da juventude, da beleza e da vida que contrastam com o

carácter cada vez mais danoso da indústria, mais mortífero da ciência e da

economia”. De facto, enquanto o século XIX, consumou até aos limites o

modelo da expressão imperial dos ocidentais, o século XX, que teve uma

duração curta entre duas guerras mundiais, terminou com o fenómeno não

programado do globalismo que submeteu todos os povos da terra à

submissão do credo do mercado, substitui o valor das coisas pelo preço das

coisas, deixou desabar esse edifício em escombros chamados crise mundial da

economia e das finanças, e, agonizante sob tais escombros, o sentido da

dignidade humana como valor paradigmático do encontro em paz e

cooperação de todas as áreas culturais. Ao contrário do que Ospina afirma ter

sido o sonho europeu do século passado, conclui que “hoje é uma necessidade

imperiosa adquirir ou recuperar a consciência de que o mundo é mais vasto e

mais rico do que nos quer fazer pensar a imagem uniformadora do capital”.

Page 29: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

29

Justamente uma das riquezas do mundo, que a globalização remete

progressivamente para o esquecimento, é a solidariedade entre as gerações,

quebrada por vários fatores. Em primeiro lugar o predomínio do credo de

mercado, que inclui a crença de que os deuses anunciam agora o futuro pela

estatística. Enquanto as sociedades que o nosso orgulho ocidental considerou

necessitadas de recolher os modelos de comportamento e de pensar europeus,

entendiam que a morte de um velho, que continua a ser a meiga palavra que

reservam para os anciães, equivale ao desaparecimento de uma biblioteca,

agora, acompanhando a técnica tributária, os vivos são escalonados por

grupos de idade, o que, em vista do aumento da duração da vida, já obrigou a

sistematizar a quarta idade. Eduardo Frieiro, em O Cabo das Tormentas, informa

o seguinte: “perguntei certa vez a um velho negro que idade tinha. O negro

ancião sorriu com indiferença: nunca tivera idade”. Todavia o facto de os

deuses falarem pelas estatísticas, implica que também o conceito de que a

idade entre no âmbito do valor das coisas, seja anulado pelo peso da despesa

que a longevidade de cada escalão representa, não apenas para o Estado,

quando tem serviços adequados, também para as solidariedades familiares ou

comunitárias, e para os corolários dos valores do seu património imaterial que

se vai degradando ou redefinindo em face da nova circunstância. É difícil de

racionalizar a coexistência dos saberes que se destinam a prolongar a vida,

suscitando problemas graves à bioética, com a liberdade de dispor legalmente

dos limites à proteção dos nascituros, com a inquietação sobre como

proporcionar descendência aos frustrados pela natureza, tudo rodeado de um

aparato científico e técnico também cuidadosamente distribuído em função

dos custos e das correspondentes capacidades financeiras dos beneficiados.

Assim se foi escrevendo uma narrativa de separação das gerações, na qual os

vivos tendem não para recordar os mortos mas sim para esquecer os velhos

que teimam em viver e consumir, e que, na qualidade de velhos consumistas e

afluentes já não apelam à Nossa Senhora da Boa Morte, mas tem medo de

morrer incubados e em sofrimento. Tudo significa que o corte entre gerações

Page 30: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

30

tem um traçado rigoroso, que do ponto de vista social, do tecido imaterial das

comunidades, tem cortes e soluções de continuidade, que atingem o

desenvolvimento sustentado, tributário do avanço das ciências e da técnica, e

das raízes sem as quais não existe paz e segurança na mudança inevitável da

circunstância de que cada geração é tributária. Foi a meditação sobre este facto

gritante, que fez dos avós um encargo em vez de uma referência, que nasceu o

movimento destinado a manter a anciania a acompanhar a corrente da

evolução do saber e do saber fazer, e as consequências diretas ou colaterais

sobre as escalas de valores, para que desse modo não cresça a mais severa dor

das idades que é a sobrevivência e a solidão. Sobrevivência aos que foram de

uma geração e maneira de viver, amar, e morrer; solidão em face de um

mundo novo que tende para ignorar as raízes, acreditando que o futuro é

anunciado pelas estatísticas. De facto, tentamos implantar o paradigma

segundo o qual cada pessoa é um fenómeno que não se repete na história da

humanidade, e que por isso o seu valor é inalterável na vida, e a sua memória

é um alicerce do futuro. É o que intenta a Academia das Ciências de Lisboa

com este curso.

Page 31: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

31

DIAS SEM OCASO

Sessão de Abertura do 2º Ano Letivo do IEAS 10 de Outubro de 2011

Talvez a narrativa do envelhecimento tenha necessariamente de ser

múltipla, porque são diferentes: as perspetivas evolutivas dos responsáveis

pela governação que gerem os recursos públicos destinados a responder às

exigências da debilitação dessa parte da população; as perspetivas evolutivas

da juventude cuja primeira experiência da velhice é de regra a sua

dependência geracional; as perspetivas dos velhos, variáveis em função das

múltiplas diferenças que dão especificidade à circunstância, no sentido de

Ortega, de cada um dos grupos em que a velhice se multiplica; e finalmente a

perspetiva singular do percurso de vida de cada homem.

Pela inevitável circunstância de a vida decorrer em sociedade, a

perspetiva da relação das governações com a velhice é crescentemente

exigente de avaliação e prospetiva éticas. Acontece, todavia, que a

predominância do globalismo económico, a teologia de mercado a que temos

estado submetidos, e que fala pelas estatísticas aos crentes, também submete

tendencialmente os velhos à definição que essa enigmática voz aconselha.

Para primeira crítica, note-se que tal resposta, a qual, neste plano

utilitário tende para ser de fidelidade estatística antes de ser juridicamente

imperativa, tem uma distante referência valorativa, enunciada pela ONU,

sintetizada na expressão “envelhecimento ativo”.

Page 32: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

32

Todavia, a definição legalmente imperativa, que determina o início da

velhice, por exemplo aos 65 anos de idade, é possível que acentue a tendência

para não ser determinada com base nas debilidades que acompanham o

envelhecimento, nem os cuidados programados terão uma dimensão

estabelecida a partir da mesma base. Isto porque um padrão legal de

envelhecimento ativo, que no caso significa utilidade social reconhecida, é

uma decisão de um poder político instalado, orientado por uma inevitável e

prévia adesão ideológica.

De algum modo, a teoria do envelhecimento ativo, ao articular

programas e políticas, não elimina o risco de uma dogmática decisão de perda

de capacidades, com limitada atenção, o que foi sublinhado pela própria

intervenção da ONU, aos casos em que os atingidos continuam capazes de

serem autónomos e independentes, sem graves deficiências físicas.

Tendo em vista a orientação que, olhando ao dogmatismo da

estatística, organiza instituições e programas que são para os idosos a réplica

dos que têm em vista os pobres e incapazes, tal intervenção parece chamada a

crescer de dimensão e custos à medida que as sociedades agrárias perdem a

estrutura secular, e com ela a segurança familiar que partilhava afetos e

recursos, amparada pelas organizações religiosas, também pela filantropia. O

abrandamento ou extinção dessas funções de raízes medievais, fez crescer

paralelamente o apelo ao programa público das sedes governativas, chamadas

a responder à vida habitual com base em filosofias sociais variadas, e

obrigadas a enfrentar as crises de disfunção da economia, ou as crises

causadas pela violência interna ou externa, pelos desastres naturais, pelas

doenças endémicas, pelas alterações revolucionárias ou lentas das ordens

económicas, religiosas, políticas.

Justamente as aceleradas mudanças da governança mundial, as

ameaças e os desastres da natureza agredida e da paz violada, tudo obriga a

pensar sobre a definição e estatuto dos idosos, frágeis perante esse turbilhão,

no futuro cujos sinais já vão requerendo leitura. Tal futuro, nas décadas

Page 33: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

33

próximas, será condicionado, para além daqueles desastres, pelos avanços da

ciência que vão alongar a duração da vida, seguramente oferecendo uma

melhor qualidade de vida, mas fazendo crescer o peso dos idosos na

programação financeira de todas as instâncias interventoras, e sobretudo do

Estado. A relação entre ativos e inativos torna-se preocupante, as capacidades

financeiras, em crise, do Estado social são desafiadas, as definições dos

direitos humanos são revistas.

A debilidade orçamental dos Estados, o desastre do sistema financeiro

global, a decadência induzida na economia real, não vaticinam que o

relativismo que mina as sociedades ocidentais, a crueldade que se abate sobre

o multiculturalismo caótico que está a ser dinamizado pelas carências

desafiantes do direito à vida e à sustentação da vida na geografia da fome, não

é seguro que não venham a orientar a relação sociedade-idosos por um

paradigma, embora mais benigno, do que aquele que já envolve os povos

mudos e os povos descartáveis, povos aos quais não é reconhecido o direito de

intervir no diálogo global, povos eliminados pelos genocídios que não param.

A crescente debilitação do Estado social deu avisos suficientes no

sentido de que a vigilância ativa do humanismo tem de ser mobilizada para

dar uma resposta positiva ao apelo da ONU.

Por isso, não é certamente à visão estatística e grupal que pode

consentir-se que esgote o quadro das inquietações com o envelhecimento, é

antes a mobilização dos compromissos éticos que cresce de urgência, e são as

histórias de vidas que mais devem inspirar as opções governativas, e as

resistências da sociedade civil aos desvios tecnocráticos.

Um dos contos de Eça de Queiroz, recordado recentemente por

Carreira das Neves, intitulado “A Perfeição”, imagina Ulisses fatigado pela

beatitude em que vivia na ilha Ogígia, nos braços acolhedores da deusa

Calipso e desfiando estas lamentações: “Ó deusa, há oito anos, oito anos

terríveis, estou privado de ver o trabalho, o esforço, a luta e o sofrimento… Ó

deusa, não te escandalizes! Ando esfaimado por encontrar um corpo

Page 34: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

34

arquejando sob um fardo; dois bois fumegantes puxando um arado; homens

que se injuriam na passagem de uma ponte; os braços suplicantes de uma mãe

que chora; um coxo, sobre a muleta, mendigando à porta das vilas… Deusa,

há oito anos que não olho para uma sepultura…”

A impossibilidade não assumida de regressar a esse encontro de

vitalidades em combate, é um passo definitivo para a angústia do Outono dos

dias, para a tristeza do amarelecer das folhas, para o desperdício das últimas

unidades de vida disponíveis. Porque é em unidades de vida que se mede o

tempo em relação ao qual apenas é possível ensaiar não o desperdiçar, porque

ele não para de nos esgotar os recursos.

Sobrevivência aos que foram de uma geração e maneira de viver, amar, e

morrer; solidão em face de um mundo novo que tende para ignorar as raízes,

acreditando que o futuro é anunciado pelas estatísticas. De facto, tentamos

implantar o paradigma segundo o qual cada pessoa é um fenómeno que não

se repete na história da humanidade, e que por isso o seu valor é inalterável

na vida, e a sua memória é um alicerce do futuro. É o que intenta a Academia

das Ciências de Lisboa com este curso, entregue à direção, competência, e

entusiasmo da Professora Maria Salomé Pais, com resultados já notáveis.

Page 35: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

35

DIREITOS E DEVERES HUMANOS

Conferência do 2º Ano Letivo do IEAS 25 de Outubro de 2011

A questão dos Direitos e Deveres Humanos e a paz mundial pede,

como aconselhou Amartya Sen, ser considerada sob dois pontos de vista: ou

sob o ponto de vista das instituições jurídicas, ou pela referência à justiça do

ponto de vista da sua expressão real na vida das pessoas e suas liberdades,

entendidas estas em sentidos múltiplos.

Naturalmente os juristas são orientados no sentido de avaliar as

instituições, muito frequentemente atendendo à racionalidade do seu

posicionamento, mas as circunstâncias do mundo em que estamos a viver

implicam que os dois pontos de vista se cruzam e que o debate sob o

predomínio ou precedência de cada um deles seja objeto da ativa

controvérsia, designadamente no campo especifico da política também

institucionalizada, ou no que decorre no plano da paz social, desafiada,

violada, e sempre, com severas nas raras exceções anárquicas, em nome de

uma conceção de direitos e deveres desafiantes das instituições.

O que significa que estas questões dos Direitos e Deveres e Paz Social,

não parecem fáceis de avaliar sem ter presente a pluralidade de conceções do

mundo e da vida, que dividem as áreas culturais, que confrontam os povos

politicamente diferenciados, que inimizam as etnias diferentes, que levam aos

confrontos armados, típicos e atípicos, tornando complexa uma polemologia

Page 36: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

36

que infelizmente se renova aceleradamente no milénio em que nos

encontramos.

Estas pequenas notas destinam-se a tornar clara aquela que julgamos

ser a mais inquietante das componentes da circunstância em que nos

encontramos, e que se tornou talvez a mais identificadora de uma

problemática que se foi definindo sobre os destroços das duas guerras

mundiais (1914-1918 e 1939-1945), de cinquenta anos de guerra fria, e

finalmente de uma crise financeira e económica mundial declarada na entrada

do III milénio, a qual tem expressão nesta perplexidade geral: existe qualquer

possibilidade de formular um paradigma mundial, como busca

infatigavelmente Kung, que reorganize institucionalmente os direitos e

deveres humanos, ou vamos assistir ao juízo de Deus, que é a guerra, neste

caso plural e multifacetada em busca do triunfo, ou, mais provavelmente, do

desastre global?

A última hipótese aparece já formulada expressamente por William

Ospina, num livro intitulado Es tarde para el hombre (2008), onde a ultima

oportunidade oferecida é o apelo à transcendência. Diz assim: “Perante esta

nuvem letal que avança sobre o mundo, cheio de saber, de poder, de

tecnologia, de produtos, de publicidade, de espetáculos que mobilizam o

homem, e de arsenais atómicos incompreensíveis, perante este faustoso e

admirável poder que nega o sagrado e saqueia a natureza e tudo profana, só

nos resta um poder a opor, o último asilo da esperança: o poder do divino que

guarda, em forma de sonhos e terrores, de amizade e de amor, de arte e de

memória, de perplexidade e de gratidão, no coração dos seres humanos, essa

força que nunca aparece na estatística, que por isso não parece existir nem

conta em face dos evidentes poderes do caos, mas é o que constrói as Nações,

inventou as línguas, organizou os ofícios e sonhou erguer ao redor, sob as

significativas estrelas, o único verdadeiramente dique que brotou alguma vez

dos nossos lábios e das nossas mãos, o canto respeitoso da gratidão e da

esperança”.

Page 37: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

37

Este texto, simultaneamente amargo e esperançoso, encaminha-nos

para a consideração com prioridade, da conceção do mundo e da vida que

precede toda a construção jurídica, e talvez nos ajude a compreender porque é

que a situação atual pode ser descrita pela voz escutada de Vandana Shiva

como tendo resposta naquilo que chama Democracia da Terra (Manifesto para

uma democracia da terra. Justiça, sustentabilidade e paz, 2005) baseada numa série

de princípios virados para a inclusão, e não na soberania, na reclamação dos

“campos comunais” de toda a espécie e no uso não partilhado dos recursos da

terra.

Sugerimos que o ponto de partida para esta situação caótica, que é o

reverso inspirador do referido Manifesto, para esta espécie The Logic of

Anarchy que chamou à meditação Barry Buzan, Charles Jones, e Richard Litte,

está pura simplesmente na queda do Império Euromundista. Trata-se de uma

tentativa de ultrapassar o neorrealismo que dominou o fim da guerra fria e

procurou construir uma teoria lógica da nova realidade internacional.

Independentemente da análise da tentativa, tentarei tornar claro que a visão

da nova realidade tem a dificuldade histórica de a conceção do mundo dos

poderes políticos e da sua função nesse mundo, dura mais tempo do que a

realidade. Para tornar claro o ponto, recordarei que, não obstante o fim do

Império Euromundista, a França e a Inglaterra continuam a ter o poder de veto

no Conselho de Segurança, e que, no regionalismo, movimento em que se

inscreve a União Europeia, a Alemanha e a França não deixaram de mostrar

supor que lhes pertencem um poder diretivo na União Europeia, pondo em

menoridade os órgãos institucionais mal equacionados no Tratado de Lisboa.

Ora, uma das razões para a anarquia mundial, é que a Ordem proposta

na Carta da ONU e na Declaração Universal dos Direitos do Homem foi

corolário de uma conceção do mundo e da vida, em grande parte liderada

pelo casal Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), que tinham a herança da

Virgínia Declaration of Rights (1776) e da Declaração da Revolução Francesa

(1789), a inspiração do pensamento de Hobbs, Lock, Kant, sobre os direitos

Page 38: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

38

naturais, a intervenção menos lembrada de teólogos-juristas que acompanhou

a expansão ocidental, como Francisco Suarez, Bartolomeu de Las Casas, Luís

de Molina: em suma, uma conceção do mundo e da vida tida por superior,

desde Vasco da Gama até à descolonização do fim da II Guerra mundial,

levou os europeus imperiais a tratar os outros povos como – o resto do mundo.

Pouco tempo, e alguns desastres como o esmagamento da França na

Indochina, a retirada dos EUA do Vietnam, o desastre da Argélia, ou o

sacrifício da guerra colonial portuguesa, não chegaram para fazer

compreender aos ocidentais que as outras áreas culturais do mundo falavam com

voz própria na vida internacional, e tinham leituras diferenciadas das

narrativas dos factos e do conteúdo das doutrinas elaboradas e proclamadas

pelos ocidentais.

Quando, em 2009, no seu famoso livro The Idea of Justice (Penguin

Books) o Prémio Novel da Economia Amartya Sen, escreveu que “um dos

traços pouco habituais – alguns provavelmente dirão excêntrico – deste livro,

quando comparado com outros escritos dedicados à justiça, é o amplo uso que

fez de ideias reunidas de sociedades não ocidentais, especialmente da história

intelectual indiana, mas também das outras”, fez um notável esforço para

equacionar a igual dignidade das culturas.

Quando escreveu estas palavras já Francis Fukuyama (The End of

History and the Last Man, 1992), um assimilado ao orgulho ocidental, avisava

que na luta entre a lógica da ciência e a lógica da história animava o que seria o

unilateralismo americano, a suspensão do conflito direita-esquerda pela

democracia capitalista liberal, enquanto o seu, julgo que mestre, Huntington

morreria inquieto sobre o conflito das civilizações, e o destino da própria

sociedade civil multicultural americana (Who are we, 2005).

É o último tema que torna improvável encontrar a resposta à temática

deste encontro. Temos uma Declaração Universal dos Direitos Humanos, em

Portugal recolhida pelo Diário da República, I Série, de 9 de Maio de 1978,

repensada pelo Tratado de Helsínquia de 1975, sem nunca ficar esclarecido,

Page 39: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

39

até à queda do Muro de Berlim, se na Constituição Soviética (1977) tais

direitos significavam liberdades no sentido original do texto da Carta, ou em

parte significavam deveres que exigem contribuição estranha,

designadamente do Estado, por exemplo o direito ao trabalho. Mas o tema do

conflito das civilizações rodeou a leitura de mais interrogações difíceis, como

se aceitando a sustentação e a própria doutrina dos direitos naturais, ainda

discutem que existem mas qual será a reta enumeração, como se distinguem

de direitos locais, ou como se decide o eventual conflito com direitos regionais

ou até convencionais dos novos povos chegados ao livre debate mundial.

Este conflito entre as áreas culturais, que é sobretudo posto em

evidência pela emergência do poder e presença muçulmana, enfrenta um

núcleo irrenunciável dos antigos dominadores ocidentais, que compreende

designadamente o direito de acesso ao devido processo judicial, e a

independência do julgador.

Mas na própria tradição ocidental temos severas lembranças da

limitação dos direitos humanos fundamentais, bastando lembrar que se a

Declaração americana afirmava que todos os seres humanos nascem iguais e

com igual direito à felicidade, todavia excluía as mulheres, os índios, os

escravos, os trabalhadores, uma teoria longa de exclusões que ilustrou muitos

combatentes e mártires dentro do próprio país.

Nesta data, o tema do cordão muçulmano, que vai de Gibraltar à

Indonésia, e explodiu no Mediterrâneo, torna problemática a questão de saber

se e como a leitura ocidental vai conseguir coincidir pacificamente com a

crença que desencadeou um turbilhão no Mediterrâneo, que ajudou a deslocar

a fronteira da pobreza do Sul do Saara para o Norte desse mar que parece

estar a transformar-se num cemitério.

O conjunto de revoltas populares que abalam o mundo muçulmano,

sem a cooperação do qual nem o projecto euro-africano, nem a paz geral,

serão possíveis, não tem impedido que a tese de Fukuyama, tão contrariada

desde o seu aparecimento numa data de explosão da crença americana de que

Page 40: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

40

lhe estava destinada a liderança mundial, tenha encontrado defensores de

que, afinal, o profeta tinha razão. Esta consagração encontrou por exemplo

expressão numa entrevista de Yadh Ben Achour (2011), um constitucionalista

tunisiano agora chamado a constitucionalizar o novo regime do seu país, que

entre outras firmes convicções, afirmou o seguinte: “a democracia não é nem

ocidental, nem oriental, nem asiática, nem africana, ela está na constituição

psíquica de todo o ser humano. A democracia é a humanidade”. De facto,

trata-se de retomar a proclamação da Carta da ONU e da Declaração

Universal de Direitos Humanos, mas não se trata da realidade mundial que os

Relatórios do PNUD procuram retratar anualmente, nem do vazio de recursos

dos Objetivos do Milénio, nem da privatização da guerra e do preço que é

pago pela mutilação ou pela morte anual de milhares de crianças, nem da

fome que fere ainda maior número, nem sequer dos múltiplos conceitos de

democracia e dos diferentes sentidos de maioria: maioria de interesses,

maioria de votos, interesses maiores.

São estas diversidades que se abrigam sob o mesmo texto da Carta da

ONU que reúne 194 Estados, divididos pelas leituras diferenciadas e pelas

práticas incompatíveis, com membros proeminentes a nem sequer ratificaram

nem as convenções sobre os direitos das crianças nem o estatuto do Tribunal

Penal Internacional.

Para fim da história, no sentido de Fukuyama, falta um longo trajeto, e

o conflito das civilizações, que inquietou o seu mestre Huntington mesmo no

que respeita à estrutura da sociedade civil americana (Who are we?), e levou a

organizar uma ativa intervenção da ONU, não anuncia um ponto final

próximo. Parece fora de propósito acrescentar em abono da visão esperançosa

do fim da história, propor (Luc Ferry, 2011) comparar a situação atual das

revoltas que avançam no cinturão árabe-muçulmano ao que se passou na

América Latina no fim do século XX, “uma queda de regimes autoritários e

uma vitória dos valores democráticos”, porque o enquadramento cultural é de

novo diferente: por isso, nem todas as camadas das populações acedem aos

Page 41: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

41

mesmos patamares de direitos e deveres, e o que mais avulta é a demora com

que nesse espaço ocidental se vai chegando ao que o fim da história anunciou

para o resto do mundo.

A razão de Fukuyama é a razão da longa teoria de projetistas da paz

ocidentais, que ocupam limitadamente a memória dos fracos líderes que

colocam em dúvida a capacidade de responder com êxito aos riscos que

ameaçam a unidade europeia, e a perceção de que é todo o Ocidente que se

encontra em decadência.

Ter, e divulgar e fortalecer, a convicção de que possuímos um

paradigma comum de convergência dos modelos políticos europeus, já seria

um passo importante para deter o relativismo dominante no espaço ocidental,

abandonando a frequente e histórica atitude de pretender ocidentalizar o resto

do mundo, substituindo a tolerância pelo respeito das diferenças que não

afetem os valores da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Lutar, nesse lugar, que é a ONU, onde todos falam com todos, para

que tal paradigma seja adotado e tornado efetivo como património comum da

humanidade, seria não o fim, mas o princípio da longa narrativa que ainda é

necessário escrever, evitando o recurso ao sangue, suor, e lágrimas que

permanece para além do fim da guerra fria, sobretudo fazendo cada vez mais

profunda a vala entre povos ricos e povos pobres, estes com um nível de

existência que não lhes consente o salto da luta pela alimentação para o

patamar da ideologia política. Primeiro, conseguir viver.

Se atendermos ao sentido mais rigoroso do espaço virtual, tem de ser

entendido, em qualquer circunstância, como um espaço aberto à expansão de

uma capacidade existente e orientada ou orientável estrategicamente para um

resultado. Por isso se diz que o “presente traz no seu bojo as virtualidades do

passado” (Houaiss).

De facto é um juízo de probabilidade, ao qual a expressão no futuro

pode traduzir-se apenas numa frustração. Daqui a sementeira de frustrações a

que em cada época dão forma as situações vividas, porque não

Page 42: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

42

corresponderam ao esperado dos candidatos virtuais a presidentes, a

governantes, a empresários de sucesso que não conseguiram. Por isso, no

sentido clássico, a palavra, derivada de virtus, virtutis, significava, e volto ao

mesmo autor, “força corporal, denodo, ferocidade, força de espirito, virtude,

amor e prática do bem, eloquência”, tudo expressões relacionadas com um

futuro, com uma relação ética com os efeitos da ação, com o que foi chamado

consequencialismo.

Esta relação com o consequencialismo tem implicações éticas,

designadamente com a política, porque a intervenção assumidamente

virtuosa pode originar um consequencialismo não previsto, ou previsto mas

de fatalidade eventual aceite, como é a regra quando o recurso à guerra é feito

por justa causa e se traduz nos efeitos colaterais das armas de destruição

maciça, independentes da ética das intenções que nortearam as capacidades

virtuais postas em ação. Por isso se tornou corrente a máxima segundo a qual

“if the means accuse, the end excuses”, apoiada pelo terrorismo moderno, e

também pelos regimes políticos totalitários, aos quais é sobretudo a posse,

exercício, e manutenção do poder que é o resultado justificador. É

apresentado como exemplo o aforismo de Lenine, segundo o qual “a nossa

moralidade (revolucionária) é completamente submissa ao interesse exclusivo

do proletariado”, ou que “tudo o que é feito a favor do interesse do

proletariado é honesto”: a teoria da vanguarda, a doutrina do centralismo

democrático, o ataque ao revisionismo, a teoria do imperialismo último

estágio do capitalismo, a estratégia da revolução cultural, tudo apoiado na

excecional capacidade de liderança de Lenine, são consequências lógicas.

É interessante notar que os fracassos sucessivos de governos que não

conseguem traduzir em factos os programas que os levaram ao poder pelo

voto, como acontece nas democracias de todas as espécies, ou nos regimes

totalitários na relação entre o que produzem e a ideologia que proclamam

justificadora dos métodos, deu ao conceito de virtualidade um sentido

Page 43: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

43

negativo, mesmo pejorativo no discurso político corrente de ataque ou

simples crítica.

Garantir a construção de um império africano duradoiro como pregou

Mussolini, ou dominar a Europa como anunciou Hitler, conseguir a revolução

mundial como professaram os soviéticos, foram tudo consequencialismos

frustrados – virtuais – tal como desse modo foram e são apelidados os

projetos de desenvolvimento sustentado propagandeados por governos que

conduziram os Estados à condição de Estados exíguos, à falência das finanças e

da economia real, quando, talvez menos prejudicialmente, ficam pelos

anúncios de maior abundância e dos menores encargos fiscais.

É neste plano, com consequências desastrosas, que se verifica

frequentemente a pura virtualidade de potências que foram detentoras de

supremacias estratégicas, perdidas em guerras infrutíferas, ou em

competitividades económicas perdidas, mas que conservam os títulos e as

atitudes de perdida grandeza em face de uma realidade que obedeceu a um

consequencialismo de formas imprevistas e muito diferentemente centradas.

Temos de exemplo contemporâneo duradoiro, o facto de a Carta da

ONU ter consagrada a referência à supremacia, usando o título de

superpotências, aos Estados que receberam o poder de veto no Conselho de

Segurança, os EUA, a URSS, a França, a Inglaterra, e a China, quando apenas

as duas primeiras correspondiam por então a tal conceito, e a queda do Muro

de Berlim deixou a primeira como sobrevivente a prazo, o período que André

Fontaine (Fayard, 1991) chamou L’Un sans L’autre, deixando à solta a

improvisada e unilateral governança republicana do Presidente George Bush,

que foi afundando nas aventuras do Iraque e do Afeganistão a capacidade de

os EUA manterem a convicção de serem a Nação indispensável, a casa no alto

da colina, levando o citado autor a sustentar que “num mundo cuja direção é

assegurada grosso modo pelos Estados-Unidos, tendo como parceiros o

Conselho de Segurança e o G7, é difícil de conceber um sistema europeu que

não se integre de alguma maneira no sistema mundial”. Não lhe ocorreu, na

Page 44: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

44

circunstância virtual da época em que se pronunciou, que o confronto, nem

sempre surdo, entre americanismo e europeísmo, os desastres do

unilateralismo republicano, a redescoberta de que o mar americano é o

Pacífico, e as incertezas do rumo a tomar pela União Europeia, teriam no seu

consequencialismo uma visão afastada da realidade supercomplexa em

marcha.

De facto, o que mais evidenciam os factos é que, aquilo que os ingleses

chamam agency ou faculdade de ação, é, na política, uma capacidade que os

moralistas colocam facilmente no pretório ao avaliar a relação entre a virtude

e o processo consequencialista desencadeado, porque os acidentes da

imprevisão fazem vacilar entre os valores e os desejados resultados, a obter

por outros métodos longe dos princípios éticos, o que transforma essa arte

numa atividade em que, segundo Maquiavel, é difícil não manchar o

percurso, que tem por objeto o poder de impor, e a defesa de tal poder. Estava

a escrever por 1513 e não perdeu atualidade nesta entrada do terceiro milénio.

Daqui que, em todos os tempos, uma teatralidade especificamente

relacionada como o poder tenha sido desenvolvido até ao ponto em que, no

século passado, Schwartzenberg tenha feito uma síntese do fenómeno que vou

tentar referir, chamando-lhe a época do Estado Espetáculo.

Como fenómeno relevante e dominante está certamente a revolução

das comunicações. No começo está o fenómeno da descolonização que

colocou em liberdade todas as áreas culturais do mundo, a falar em liberdade

à comunidade internacional alargada pelo próprio fenómeno da extinção do

colonialismo, pelo menos do caracterizado pelo domínio do poder político.

O antigo mundo, o dos sobreviventes que hoje são um embaraço para

a segurança social, sofreu um número incalculável de ruturas, e uma anarquia

dos conceitos tidos por mais experimentados, valorados e seguidos.

A diplomacia dos países emergentes perfilou-se contra o ocidente

antigo, dominador em recuo, e a agenda dos desafios ultrapassou largamente

o facto da descolonização colonial; o Ocidente e sobretudo, no que mais nos

Page 45: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

45

interessa, a Europa dominadora tornou-se dependente das fontes de matérias-

primas, de energias não renováveis, e até de reservas alimentares.

Os conflitos militares, com difícil distinção entre internos e

transfronteiriços, multiplicaram-se nas áreas libertadas, os complexos

militares-industriais, na confissão do discurso do adeus de Eisenhower,

ultrapassou o poder diretivo governamental, centros de poder não previstos

na lei internacional tomaram o poder, designadamente financeiro, sem centro

visível e responsável de decisão, os avanços sem precedente da ciência e da

técnica perderam o sentido do interesse nacional, e, no que toca à ética,

colocou-se o credo do mercado no lugar da ética fundamental, o preço das coisas

no que pertenceu ao valor das coisas, ao mesmo tempo que o poder de

comunicação foi objeto de distinção crescente entre poder geoestratégico, que

ainda caracterizou a hierarquia dos Estados vigente na II Guerra Mundial,

pelo poder da geoeconomia que definiu uma nova hierarquia em tempo de paz,

mesmo que se trate de guerra fria.

Uma das consequências evidentes, e alimentadora das queixas da

época que vivemos, foi que as lideranças políticas ocidentais deslizaram para

o recrutamento nas escalas da mediocridade (Alain Garrigou), enquanto que o

mercado sem fronteiras ultrapassou o poder político, recruta as melhores

elites que saem dos centros de investigação e ensino, eles próprios a tenderem

para a privatização, e a propaganda tomou o lugar que antes pertencia à nobre

arte do discurso.

Os governos autoritários iniciaram a decadência da arte, porque os

Parlamentos se transformaram em espaços de ressonância do poder efetivo;

na justiça, a perda do antigo espirito das ordens que os grandes oradores

cultivaram, acompanhou a mundialização dos mercados submetendo os

grandes centros de intervenção judicial à escrita erudita cujo valor é medido

por horas de trabalho, e tendeu a orientar as suas vertentes institucionais para

serem invadidas pelo espírito sindical, e até os oradores sacros, quando

Page 46: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

46

desceram do púlpito para o microfone, pareceram ter perdido o ardor

profético.

A mensagem passou a ser um produto submetido a regras

compreendidas e lidas em função das circunstâncias, realmente do mercado,

usando as técnicas que antes eram teatrais, procurando que a arte de reter a

atenção dominasse o sentido da crítica. A própria atividade democrática

adotou a aparelhagem dos palcos, e a atividade do ensino tendeu para

transformar os estudantes em clientes.

De facto, assistiu-se à vigência de três fenómenos frequentemente

considerados semanticamente equivalentes, mas de facto diferentes: a

mundialização, a interdependência e o globalismo.

Da primeira os portugueses são os pioneiros responsáveis, pelas

navegações que deram aos ocidentais o conhecimento do globo, das

diferenças das suas culturas e etnias, da multiplicidade de crenças e formas de

governo, da distribuição das fontes de riqueza, e das formas de

hierarquização das potências, usando a submissão política, mas também

frequentemente a diplomacia adaptada às circunstâncias. De caminho,

legitimaram a ação com critérios da sua cultura, incluindo a evangelização a

partir do princípio da universalidade da doutrina que deveria ser levada a

todos os povos.

A necessidade política de ter um apoio exterior, como foi a vassalagem

à Santa Sé, depois a Aliança Inglesa, e agora a adesão à Europa, esteve sempre

presente nesta busca de outras lonjuras por Portugal.

O avanço da ciência e da técnica, que no século XX teve progressos

sem precedente, produziu aquilo que o talento de Castells chamou as redes,

fazendo do mundo um entrançado de circunferências mas sem um centro em

nenhum lugar.

A luta pela hegemonia, deixou de ser, quer interna quer externamente,

necessariamente militar, e a comunicação apareceu como um instrumento

fundamental: para mundializar o consumo, em que a circunferência do

Page 47: ADRIANO MOREIRA - Academia das Ciências de Lisboa · Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde

47

mercado, com as suas técnicas, acompanhadas da circunferência financeira,

ambas sem centro assumido, dominou o processo económico e também, em

grande parte, incluindo os países que conservaram a designação de potências,

a circunferência do poder político, com os passados das influências reciprocas,

incluindo práticas de correção cada vez mais gritantes. O próprio poder de

comunicação, que cresceu apoiado no dever de informar um povo com o

direito de ser informado, não escapa aos constrangimentos da circunferência

do poder económico, e não evita construir um mundo irreal que apoia a

submissão dos cidadãos ao poder efetivo do globalismo anárquico em que se

vive. Porque o que caracteriza o globalismo, com a anarquia dos conceitos

antigos, como fronteira, pátria, nação, é o facto de termos o consumismo

universal, e os centros de poder não identificáveis.

Talvez seja já reconhecível que a reação vem dos particularismos que

não foram destruídos por esta revolução não anunciada, e que, no que tem de

mais evidente, não confunde o conceito e a realidade da Nação com a crise

dos Estados, que atinge a maioria destes embora ainda não os tenha tornado

dispensáveis. O credo do mercado, que seguramente afetou as relações de

pertença às religiões organizadas, não impediu que o apelo à transcendência

cresça, por vezes assumindo formas preocupantes. A anarquia mundial não

impede que homens raros, muitos deles não ocidentais, como Mandela,

saibam que o verbo organizou o caos e que uma nova demonstração dessa

força tem um papel a desempenhar. Lembrarei que Havel escreveu, durante o

domínio soviético, com um grupo de amigos, o Manifesto das 20.000 palavras:

todos foram presos, mas as 20.000 palavras não, e o Muro caiu. E

principalmente de novo lembrarei o caixão de João Paulo II, pousado no chão

da Praça de S. Pedro, com o evangelho em cima: uma leve brisa folheava o

livro a lembrar que no princípio era o Verbo.