A Invenção Da Teatralidade

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Sarrazac

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  • vol. 13, n. 1, jun 2013, p. 56-70Em pauta

    A inveno da teatralidade1

    Jean-Pierre Sarrazac2

    A arte s pode reconciliar-se com sua prpria existncia ao exteriorizar seu carter de aparncia, seu vazio interior.

    Adorno, Teoria esttica.3

    No incio de Da arte do teatro4, o Diretor, que acaba de conduzir o Amador de

    Teatro ao espao teatral para que perceba seu mecanismo (construo geral, cena,

    maquinaria dos cenrios, equipamentos de luz e todo o resto), pede a seu convidado

    para se sentar por um instante na plateia e se interrogar a respeito de o que a Arte do

    Teatro ... A lio merece ser compreendida: jamais se deveria abordar a mnima questo

    de esttica teatral sem se colocar, mesmo que mentalmente, diante da cena. Antes de

    refletir sobre o teatro importante constatar que esse palco estreito mas destinado a

    servir de pedestal a um universo quando em repouso parece um deserto. Em outros

    tempos a cortina vermelha permitia que se dissimulasse esse vazio ao olhar dos espec-

    tadores; ela estava ali para dar passagem s miragens construdas nos bastidores. Hoje,

    a cortina de ferro, puramente funcional, interpe-se entre o pblico e os artistas no

    incio da representao apenas para sublinhar melhor essa lacuna, esse vazio da cena

    moderna. Atrs da cortina de veludo, nossos antepassados puderam pressentir a abun-

    dncia e a plenitude de um teatro baseado na iluso. No presente, mal a cortina de ferro

    acaba de se elevar e j sabemos que esse cenrio, essa cenografia, jamais podero

    1 Texto publicado originalmente em: Jean-Pierre Sarrazac. Linvention de La thtralit. In Critique du theatre. De lutopie au dsenchantement. Paris: Circ, 2000, p. 53-71. A Presente traduo foi feita pela Profa. Dra. Slvia Fernandes

    2 Jean-Pierre Sarrazac dramaturgo, diretor e professor emrito de estudos teatrais na Universit Paris 3- Sorbonne Nouvelle.

    3 Theodor W. Adorno, Thorie esthtique, Klincksieck, Collection dEsthtique, 1989. [Theodor W. Adorno, Teoria esttica, trad.

    4 Edward Gordon Craig, LArt du theatre, ditions O. Lieuter, 1942. Nova edio, Circ, coll. Penser le theatre, apresentao de Georges Banu e Monique Borie, seguida de entrevista com Peter Brook, 1999. [Edward Gordon Craig, A arte do teatro, trad.

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    preencher o vazio da cena nem nos preencher a ns, o pblico com o benefcio de

    suas aparncias. A prpria cena, especialmente a mais preenchida, continua vazia; e

    justamente esse vazio o vazio de toda representao que ela parece destinada a

    exibir diante dos espectadores.

    Alis, suspeito que Gordon Craig e seu Diretor expuseram seu Amador de Teatro

    ao irremedivel vazio da cena apenas para apresent-lo concepo de que a Arte

    do Teatro no tem nada a ver com a plenitude e a exploso da vida mas, ao contrrio,

    liga-se aos movimentos subreptcios, errticos e desencarnados da morte Essa

    palavra morte, nota Craig, naturalmente vem cabea por aproximao com a palavra

    vida, que todos os realistas afirmam.

    Iluso ou simulacro?

    Supondo-se que a arte teatral do sculo XX continue baseada na imitao o

    que pode dar margem a discusses na concepo de Craig e de muitos outros, a

    includos diversos realistas, j no implica a submisso do espectador a uma iluso,

    mas a observao crtica de um simulacro... Sou tentado a dizer que a ribalta e a

    cortina vermelha foram de fato abolidas a partir do momento em que o espectador foi

    convidado pelos atores ou qualquer outro condutor do jogo diretor, encenador, autor,

    etc. a no se interessar pelo evento do espetculo, mas pelo advento, no centro da

    representao, do prprio teatro daquilo que se chama teatralidade...

    Mudana de regime do teatro, que se liberta do espetacular associando o espec-

    tador produo do simulacro cnico e a seu carter processual. Mudana implcita

    e difcil de circunscrever em vrios criadores. Mudana perfeitamente identificvel e

    explcita em Brecht, quando pretende que o teatro confesse que teatro, e j visvel

    em Pirandello: o Diretor de Esta noite se improvisa no anuncia ao pblico, a cada

    noite, que procura mostrar o funcionamento desse jogo em estado puro, essa simu-

    lao, esse simulacro geralmente conhecido como teatro.

    Na virada do sculo XX, a exemplo de outras artes da representao, o teatro

    toma conscincia de seu vazio interior e projeta esse vazio para o exterior. Evidente-

    mente, tal reverso no poderia ocorrer sem a reunio de alguns pressupostos essen-

    ciais, de Zola a Craig, passando por Antoine, Lugn-Poe e Stanislvski: o surgimento

    do encenador moderno, que tende a tornar-se autor da representao; a emancipao

    da cena em relao ao texto; a focalizao progressiva dos artistas na essncia de

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    sua arte, naquilo que especificamente teatral; a autonomia completa para alm do

    compromisso e da unio proposta pela sntese wagneriana das artes ou Gesamtkus-

    twerk do teatro e do teatral em relao s outras artes e tcnicas que participam da

    representao... A cada vez que se tenta definir a revoluo que se completa nesse

    momento da histria do teatro coloca-se a nfase na sagrao do encenador e no fim

    da tutela absoluta do dramtico sobre o teatral; mas seria lastimvel esquecer outro

    fator cuja importncia s mensurvel diante do buraco negro da cena: a revelao da

    teatralidade pela escavao, prospeco, investigao do teatro.

    Cita-se, com frequncia, a famosa definio de Roland Barthes de que a teatra-

    lidade o teatro menos o texto. Mas no deveria ser esquecida sua luminosa apre-

    sentao do Bunraku, essa forma teatral em que as fontes do teatro so expostas em

    seu vazio e o que se expulsa da cena a histeria, quer dizer, o prprio teatro, e o que

    se coloca no lugar a ao necessria produo do espetculo: o trabalho substitui

    a interioridade.5 Se a teatralidade o teatro enquanto forma autnoma, ento esse

    processo de formalizao no poderia completar-se sem o, esgotamento do contedo

    pela forma, como se l nas Mitologias (a respeito do catch, tomado como paradigma

    de um teatro da exterioridade).

    A ideia de um teatro crtico que vai germinar, nos anos cinquenta, sombra do

    TNP de Vilar, do Berliner Ensemble de Brecht e do Piccolo Teatro de Strehler, no se

    limita crtica social por meio do teatro, como s vezes se pretende. No esprito de

    Roland Barthes e Bernard Dort, os dois principais promotores dessa ideia, a dimenso

    crtica e poltica da atividade teatral s tem sentido se estiver fundada na crtica em

    ato do prprio teatro e na liberao do potencial de teatralidade. Por isso os editores

    da revista Thtre Populaire elegem como alvo um teatro psicolgico e burgus cujos

    valores apregoados so a interioridade, o natural e a proclamada continuidade entre

    a realidade e o teatro. Ao contrrio, os artistas e escritores mencionados, enfatica-

    mente, por Dort e Barthes Brecht, claro, mas tambm Pirandello ou Genet no

    deixam de insistir sobre a ruptura, a disjuno entre o real e a cena. Para responder ao

    mundo, para dar corpo crtica da sociedade, o teatro deve proclamar, antes de tudo,

    sua insularidade: o palco j no est ligado realidade por meio da peneira e do sifo

    5 Craig considera-se o primeiro a definir essa arte em sua autonomia, quer dizer, independente da literatura e liberada dessa situao indivisa que, em Wagner, ainda a colocava sob o controle da msica, da poesia, da pantomima e at mesmo da arquitetura e da pintura.

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    dos bastidores6; no mais o lugar de um transbordamento anrquico do real, mas um

    espao virgem, um espao vazio, uma pgina em branco em que vo se inscrever os

    hierglifos em movimento da representao teatral.

    O discurso dos defensores desse teatro crtico que constitui, ao mesmo tempo,

    uma crtica do teatro no estranho s posies de Gordon Craig, mas delas se

    distingue em um ponto essencial: para Barthes e Dort um teatro da teatralidade no

    incompatvel com um teatro realista ao menos com certo tipo de realismo... Ao defen-

    derem o realismo pico, os dois crticos brechtianos demarcam, integralmente, as

    fronteiras com o realismo socialista e, de forma global, com todo sistema artstico que

    se pretende reflexo ou reproduo direta do real. Em Thtre Populaire, o elogio dos

    efeitos crticos e polticos de espetculos como Me coragem ou A vida de Galileu

    liga-se ao reconhecimento do poder e da clareza de sua escritura cnica, em suma,

    de sua teatralidade. O teatro realista deixa de ser considerado uma esponja do real,

    para ser visto sobretudo como uma espcie de lugar in vitro: um espao vazio onde se

    fazem experincias sobre o real, usando a teatralidade como nico protocolo.

    Nos anos sessenta, quando Barthes se distancia do teatro (e transfere sua teoria da

    teatralidade para outro lugar para a questo do Texto) Dort segue sozinho ampliando a

    reflexo sobre o teatro e a teatralidade. Ele se interessa especialmente pelo processo de

    reteatralizao do teatro, que culmina em Meyerhold na Unio Sovitica dos anos vinte e

    trinta. Levar Meyerhold em considerao constatar, forosamente, com Josette Fral7, que

    a afirmao do teatral como distinto do real condio sine qua non da teatralidade em

    cena, e que a cena deve falar sua prpria linguagem e impor suas prprias leis. Mas a

    contribuio mais decisiva de Dort para as relaes entre realismo e teatralidade de iniciar

    uma verdadeira reavaliao de Stanislvski, de Antoine e do to mal falado naturalismo.

    Ao apresentar Antoine como o patrono8 do teatro moderno, Dort se distancia

    do idealismo de Gordon Craig. No v menos teatralidade ou uma teatralidade menos

    6 Ver o captulo Brecht em processo do livro de Sarrazac Critique du theatre. De lutopie au dsenchantement. (N.T.)

    7 Josette Fral, La Thtralit, Potique n. 75, ditions du Seuil, setembro 1988. O conceito de teatralidade, em seus mltiplos usos no teatro e fora do teatro, torna-se cada vez mais fluido e tende a se banalizar. Portanto, para uma melhor definio do conceito, eu proporia a comparao com o que chamo de teatralismo. Teatralismo designaria o contrrio da teatralidade como tratada aqui... O surgimento da teatralidade procede da pura emergncia do ato teatral no vazio da representao. O reino do teatralismo remete a essa doena esttica endmica que faz com que o teatro sofra de sua prpria nfase e, de certo modo, de um excesso de si mesmo. Assim, quando Stanislvski declara que O que faz dsesprer do teatro o teatro, no visa a teatralidade Meyherhold, mas esse teatralismo enquanto estado histrinico e narcsico, manifestao redundante do teatro no teatro.

    8 Bernard Dort, Antoine le patron, Thtre Public, op. cit.

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    sutil nas encenaes naturalistas de Antoine que nos espetculos simbolistas e esti-

    lizados de um Lugn-Poe. Sem dvida, o autor de Thtre rel acredita que a verda-

    deira modernidade est mais presente no gesto experimental de colocar um frag-

    mento de vida, um ambiente, sob a lente de aumento da quarta parede do que nas

    cerimnias fantasmticas do Thtre dArt ou do Thtre de lOeuvre, longinquamente

    inspiradas em Baudelaire e Wagner. Talvez ele consiga at mesmo discernir, sob a

    aparncia de continuidade e unidade da representao naturalista, esse pontilhismo

    ou, sobretudo, esse divisionismo que Antoine e Stanislvski praticam. Com base nesse

    pressuposto, pode-se reavaliar o naturalismo teatral, considerando-o uma arte deci-

    didamente moderna e uma arte da teatralidade, ou seja, fundada na descontinuidade

    e nos vazios. Lugn-Poe, Craig, Copeau j no so os pais obrigatrios do teatro

    contemporneo; outra genealogia est prestes a se desenhar. Segundo a frmula de

    Dort, se Barthes sonhou com um teatro em que a matria se tornaria signo9, a origem

    desse sonho no estaria exclusivamente em um teatro oriental hipercodificado como

    o Bunraku, mas tambm no realismo experimental de Brecht e seus predecessores

    Antoine e Stanislvski.

    O estar-a do teatro

    Do vazio da cena e no fundo pouco importa que seja ostensivo (palco nu) ou

    discreto (dispositivo realista ou mesmo naturalista) surge o corpo do ator e qualquer

    outra partcula de teatro figurino, elemento de cenrio, iluminao, msica etc. A

    partir do momento em que o palco no pretende mais ser contguo e comunicante

    com o real, o teatro no mais colonizado pela vida. O jogo esttico desloca-se: no

    se trata mais de colocar em cena o real, mas de colocar em presena, confrontar os

    elementos autnomos ou signos, ou hierglifos que constituem a realidade espe-

    cfica do teatro. Elementos discretos, separados, insolveis, que remetem apenas ao

    enigma de sua apario e seu agenciamento. H uma oscilao do primado do real,

    que ainda era lei no sculo XIX, para o Estar-a do teatro. Para essa literalidade que

    vai tornar-se, tanto para Brecht quanto para o Novo Teatro, a grande demanda dos

    anos cinquenta e sessenta. Artaud j a anunciava em 1926, sob a influncia determi-

    nante do ltimo Strindberg: No queremos criar, como se fez at aqui e como sempre

    se fez no caso do teatro, a iluso daquilo que no ; ao contrrio, pretendemos fazer

    9 Josette Fral, O naturalismo , ele prprio, reconhecido como uma forma de teatralidade.

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    surgir diante dos olhos um certo nmero de quadros, imagens indescritveis, inegveis,

    que falaro diretamente ao esprito. Os objetos, os acessrios, at mesmo os cenrios

    no palco devem ser entendidos em sentido imediato, sem transposio: devem ser

    tomados no pelo que representam, mas pelo que realmente so na realidade10?

    O intermedirio entre Artaud e os crticos brechtianos ser Adamov, em um

    perodo em que ainda classificado, com Ionesco e Beckett, como puro vanguar-

    dista strindbergo-kafkiano... Quanto definio desse Estar-a do teatro que dever

    adquirir, na sequncia, uma dimenso mais filosfica, mais heiddegeriana ela est

    contida por inteiro em algumas linhas de um texto de 1950, em que Adamov explica

    que tentou fazer com que a manifestao (do) contedo (de suas peas) coincidisse

    literalmente, concretamente, corporalmente com o prprio contedo. Quanto litera-

    lidade das peas de Adamov, no captulo anterior demos o exemplo esclarecedor do

    personagem mutilado psiquicamente e fisicamente11.

    De fato, mais que o exemplo do Mutilado (personagem de La Grande et la petite

    manoeuvres de Adamov), a ideia geral da literalidade que Barthes e Dort subs-

    crevem. Os transbordamentos corporais voluntariamente teratolgicos de Ionesco,

    Beckett, Adamov deixam bastante em dvida, ao menos nos primeiros tempos, os

    dois editores de Thtre populaire. Em compensao, o princpio da literalidade, cuja

    nica finalidade afirmar a presena e a materialidade do teatro, os seduz. A litera-

    lidade torna-se a via privilegiada para o surgimento da teatralidade. O que fascina

    Barthes no verdadeiro protagonista de Le Ping Pong quero dizer, o bilhar eltrico

    o que o autor de Mitologias chama de objeto literal, um objeto que no tem por funo

    dramatrgica e cnica simbolizar, mas simplesmente estar presente e, por meio dessa

    presena que teima, produzir ao e situaes (mesmo que sejam ao e situaes

    de linguagem). Isso se explica porque a gerao que defende essa dramaturgia do

    Estar-a sustenta, igualmente, o Nouveau Roman. Dort ser um dos primeiros a desen-

    volver uma temtica em seus artigos Tempo das coisas e Romances brancos dos

    Cahiers du Sud ou de Lettres nouvelles, que anuncia o Nouveau Roman; e sabe-se

    da relao forte e tempestuosa que Barthes mantm, durante anos, com Robbe-Grillet.

    Teatro ou romance, trata-se de exorcizar definitivamente o demnio da analogia.

    Terminar de uma vez por todas com uma arte fundada no primado da interioridade,

    10 Bernard Dort, Le Corps du theatre, Art Press, n. 184, outubro 1993.

    11 Antonin Artaud, Oeuvres completes, t. II, Gallimard, 1961 (Sou eu, JPS, que sublinho)

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    da psicologia, da profundidade. Para ns, a superfcie das coisas deixou de ser a

    mscara de seu corao, declara o autor de Gommes. O que se tornou insuportvel

    para os escritores e homens de teatro foi a manuteno da dicotomia neo-platnica

    ideia/aparncias, alma/corpo em que o segundo termo considerado apenas uma

    m traduo do primeiro. No incio dos anos cinquenta, parece ter chegado a hora de

    um teatro inteiramente dedicado ao presente da representao e ao evento cnico. No

    entanto, condio de liquidar, definitivamente, a parcela da herana hegeliana que

    afirma que na cena, sempre, definitivamente, os conceitos que so representados,

    vestidos, animados.

    uma mudana de perspectiva semelhante promovida pelo Nouveau Roman que

    os editores da revista Thtre populaire querem realizar no teatro. No entanto, para Barthes

    e Dort, o campeo dessa revoluo no um escritor prximo do Nouveau Roman como

    Beckett, por exemplo, ou os sustentculos mais radicais da literalidade Adamov ou o

    primeiro Ionesco; esse campeo Brecht, na via dos espetculos do Berliner Ensemble

    apresentados em Paris a partir de 1954. Em relao vanguarda dos anos cinquenta,

    cujas obras os editores da revista Thtre Populaire julgam atemporais e no-histricas,

    a dramaturgia brechtiana tem a imensa vantagem de integrar a dimenso da Histria, do

    social, do poltico ao partido da literalidade... distncia, e com todo respeito ao contexto,

    pode-se perguntar se o modo como Dort e Barthes rejeitam Beckett nesse momento, rele-

    gando-o s trevas de um teatro metafsico e de vanguarda burguesa (e o prprio Adamov

    faz com que suas peas iniciais tenham destino semelhante) no tem algo de excessivo e

    injusto... A reprovao retrospectiva que se pode fazer aos crticos de Thtre populaire

    a de ter confundido a obra dos dramaturgos dos anos cinquenta com a leitura idealista que

    deles foi feita (em Beckett, Anouilh privilegia o smbolo da ausncia de Godot, em lugar

    da hiperpresena literal de Vladimir e Estragon). No entanto, a questo fundamental est

    colocada: ser que o teatro pode continuar a fazer, como acontece em Sartre, a passagem

    incessante do sensvel para o inteligvel e a anulao permanente da forma cnica em

    proveito de ideias, teses e outras mensagens? No chegou a hora de o teatro destacar

    esse momento de pura teatralidade, em que o sensvel torna-se significante?

    No fundo, o princpio da literalidade nada mais que um gigantesco efeito

    de distanciamento (brechtiano) ou de inquietante estranheza (freudiana) em que a

    presena cnica dos objetos e dos seres, usada e banalizada por tantos sculos de

    representao, recupera repentinamente sua potncia arcaica e enigmtica. Essa

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    exigncia de literalidade que os textos de Adamov, Barthes e Dort expressam clara-

    mente vem selar o pacto de um teatro refundado na teatralidade... A srie de artigos

    de Barthes consagrados Me Coragem e arte do Berliner Ensemble, bem como

    a Leitura de Brecht de Dort, estabelecem que no teatro da literalidade e da teatrali-

    dade o sentido nunca global; sempre local e fragmentrio. O sentido sempre

    apreendido na materialidade da cena, ela prpria espaada, como os caracteres de

    impresso na pgina de um livro12, no vazio inaugural do teatro.

    Para Barthes, o exemplo brechtiano oferece a oportunidade de revisar a questo

    do sentido at mesmo para alm do teatro: da iseno ou da decepo com o

    sentido, ligada Kafka e ao surgimento do Nouveau Roman, ele passa suspenso

    do sentido, sob influncia direta do teatro pico. Ou seja, passa a levar em conta

    o destinatrio da obra pica, seu papel de leitor ou espectador ativo, ocupado em

    destrinchar o enigma do sentido depois que a leitura ou a representao terminaram.

    De fato, Barthes deve literalidade brechtiana essa teatralidade polifnica, fundada

    na espessura de signos, na superposio de sentidos sua concepo mais afinada

    da razo semiolgica. A pura presena teatral aquilo que d a ver um objeto, um

    corpo, um mundo em sua hipervisibilidade fragmentria, em sua opacidade mesma,

    que me permite v-la e decifr-la sem esperana de chegar ao final de sua decifrao.

    Assim, o contedo do espetculo no esvazia sua forma; a forma, ao contrrio,

    constitui o elemento resistente que absorve minha ateno e canaliza minha reflexo. A

    literalidade realiza o estado mximo de concentrao do objeto teatral e faz com que eu

    me concentre nesse objeto. Por meio da intensificao e densidade extremas da matria

    teatral que afeta tanto os atores e a linguagem quanto o cenrio e os objetos , o

    espectador fica sem escapatria e se v confrontado com o Estar-a mtuo dos homens

    e do mundo. Portanto, a literalidade tambm essa (falsa) opacidade, essa cegueira que

    permite ver no refletor do teatro: Vemos Me Coragem cega, escreve Barthes, vemos

    que ela no v; frmula que ecoa um Fragmento de 1964 sobre o dilogo platnico:

    Ver o no ver, ouvir o que no se ouve (...). Ouvimos o que Mnon no ouve, mas s

    ouvimos por causa da surdez de Mnon13.

    No entanto, a reivindicao de literalidade que Dort e Barthes priorizam, nos

    anos cinquenta e sessenta, hoje pode parecer insuficiente. Para certos detratores,

    12 Arthur Adamov, Avertissement La Parodie et LInvasion, em Ici ET Maitenant, Gallimard, Coll. Pratique du Thtre, 1964.

    13 Walter Benjamin, Essais sur Bertolt Brecht, Petite collection Maspero, n. 39, 1969. [Walter Benjamin,

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    sob a capa de literalidade e teatralidade Brecht s prope um teatro predicante e mili-

    tante disfarado. E, mesmo que se chegue a provar que a nica pedagogia proposta

    pelo teatro pico de ordem heurstica e socrtica, pode-se confrontar, ainda, com a

    objeo de que Brecht no coloca em xeque, suficientemente, o conceito de represen-

    tao no que implica em se furtar a esse presente absoluto, a esse mais-que-presente

    de pura situao em presena do teatro. Se nos anos oitenta e noventa apareceram

    novas exigncias de literalidade e teatralidade, elas se ligaram a um evento cnico que

    deveria ser pura presentao, pura presentificao do teatro, a ponto de apagar toda

    ideia de reproduo, de repetio do real.

    Se o Novo romance e o Novo teatro esto razoavelmente distantes de ns

    (restam as obras em sua singularidade, em particular a de Beckett), Brecht, por seu

    lado, tornou-se suspeito aos olhos de muitos; portanto, a tentao de reavaliar negati-

    vamente o princpio de literalidade dos anos cinquenta grande, seja ao propor uma

    verso mais potente da literalidade, seja ao desqualific-la... Hoje, certos homens de

    teatro pretendem dar mais espao e destaque ao Estar-a do teatro. Tambm procuram

    dilatar o instante teatral, ao distanciar o jogo de sua significao, ao liberar a teatrali-

    dade, definitivamente, de toda funo de comentrio em relao ao (a teatralidade

    brechtiana continua subordinada ao comentrio do gestus14).

    Mas, no centro dos questionamentos atuais, pode-se pensar tambm em ques-

    tionar o abuso da literalidade e essa espcie de medo do sentido que ela engendra.

    A profundidade no mais o que era. Pois enquanto o sculo XIX assistiu a um longo

    processo de destruio das aparncias em proveito do sentido, o sculo XX desen-

    volveu um processo gigantesco de destruio do sentido... em proveito de que? No

    desfrutamos mais das aparncias nem do sentido15. Aqueles que fazem teatro hoje e

    refletem sobre ele no deveriam ficar indiferentes constatao irnica de Baudrillard.

    Da cena ao texto

    Definir a teatralidade como se faz, frequentemente, a partir do distanciamento do

    teatro em relao ao texto no falso, mas pode levar ao uso unvoco e abusivo da noo.

    14 Roland Barthes, Mre courage aveugle, Thtre populaire, n. 8, julho-agosto 1954, republicado em Oeuvres completes, tomo 1, Seuil, 1993 [Roland Barthes, Me coragem cega, in; Fragment, Oeuvres compltes, 1, op. cit.

    15 Sobre o comentrio de gestus, ver os crits sur le thtre, t. 2, de Brecht, editado pela lArche, em particular o Petit Organon [Bertolt Brecht, Pequeno Organon para o Teatro, in. Sobre a necessria subordinao da teatralidade ao comentrio do Gestus: Roland Barthes, Les Maladies du costume de thtre, Thtre populaire n. 12, maro-abril 1955, republicado em Oeuvres completes, 1, op. cit. [Roland Barthes.

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    Em todo caso, Barthes preveniu-nos contra tal reduo: ao mesmo tempo em que define a

    teatralidade como o teatro menos o texto, introduz o paradoxo que faz da teatralidade um

    dado de criao, no de realizao (Em squilo, em Shakespeare, em Brecht, o texto

    escrito previamente tomado pela exterioridade dos corpos, dos objetos, das situaes,

    Barthes precisa). A partir da, pode-se concluir que a posio barthesiana ambgua?

    Sim, se considerarmos que no esclarece, de fato, as relaes que o texto mantm com

    os outros componentes da representao teatral. No, na medida em que preserva a

    possibilidade de uma relao dialtica, ou de uma tenso, entre esses componentes.

    Para Barthes, para Dort, a teatralidade aquilo que permite pensar o teatro no sem

    o texto mas, de modo recorrente, a partir de sua realizao ou seu devir cnico. Vontade de

    voltar ao hic et nunc da representao e de reinstalar o teatro em sua dimenso propria-

    mente cnica, depois de muitos sculos de subservincia literatura (Sua Majestade, diz

    amavelmente Baty, enquanto Artaud denuncia a atitude de gramticos e invertidos, em

    resumo, de ocidentais). Mas, sobretudo, vontade de libertar o teatro de sua identidade lite-

    rria, abstrata e atemporal, para recuperar sua abertura para o mundo, para o real. Nesse

    sentido, a teatralidade reinstitui a arte do teatro enquanto ato.

    Os animadores de revista Thtre populaire certamente no foram os nicos nem

    os primeiros a expressar essas preocupaes. Henri Gouhier, por exemplo, sempre

    defendeu a ideia de que o teatro deveria ser pensado a partir do ncleo da represen-

    tao. A representao, escreve, est inscrita na essncia da obra teatral; s existe

    realmente no momento e no lugar em que se realiza a metamorfose. Portanto, a repre-

    sentao no um suplemento de que se poderia, a rigor, prescindir; um fim nos

    dois sentidos da palavra: a obra feita para ser representada; essa sua finalidade; ao

    mesmo tempo, a representao define um acabamento, o momento em que, enfim, a

    obra plenamente ela mesma16... E cabe ao filsofo usar a expresso texto-partitura.

    No entanto, no que diz respeito representao, a posio de Gouhier (ou a de

    seu contemporneo Touchard, bastante prxima) continua a fazer parte desse texto-

    centrismo denunciado por Dort. Para o muito galilaico autor de Leitura de Brecht, o

    texto pode ser colocado no centro da representao teatral como nenhum outro compo-

    nente cnico. Em ensaio claro e sbio, O texto e a cena: uma nova aliana17, Dort

    mostra como nasceu e se desenvolveu a concepo moderna de uma obra dramtica

    16 Jean Baudrillard, Cool memories, ditions Galile, 1987.

    17 Bernard Dort, La Reprsentation mancipe, Actes-Sud, Coll. Le temps du theatre, Arles, 1988.

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    incompleta, aberta, espera da cena... Quase a despeito de si mesmo, Hegel confirma

    a existncia de uma parte criativa e no simplesmente interpretativa ou ilustrativa

    do ator que, por meio da mmica, do jogo mudo, vem preencher as lacunas de um texto

    em si mesmo inacabado. O texto e a cena... faz referncia a essas pginas da Est-

    tica, em que se nota, a respeito do drama como novo gnero, que o poeta abandona

    aos gestos aquilo que os antigos s exprimiam pelas palavras. Tanto quanto a Hegel,

    Dort poderia remeter funo criativa da pantomima em Diderot e Lessing que, com

    frequncia, est em contradio com as palavras.

    Mas se Dort denuncia o textocentrismo para afirmar a autonomia da represen-

    tao, recusa-se, categoricamente, a ceder ao mito moderno de uma teatralidade

    que seria incompatvel com a existncia do texto. Chega mesmo a acrescentar, ao

    paradoxo barthesiano da teatralidade, um segundo paradoxo: O teatro sem texto,

    afirma, referindo-se especialmente a Artaud, um sonho de escritor (que) s pode ser

    pensando e expresso no texto, por meio da escritura. Da o silncio teatral a que so

    condenados esses profetas. De fato, trata-se de distinguir a ruptura necessria com

    um teatro puramente literrio, um teatro sem corpos, do impasse de uma posio mais

    extrema que consiste no repdio ao texto de teatro. Em Dort, a preocupao de encon-

    trar o bom equilbrio ou o desequilbrio dinmico vai a tal ponto que ele se esfora

    por resolver as contradies do autor de O Teatro e seu duplo: Quando Antonin Artaud

    citava Woyzeck entre as primeiras obras a serem includas no repertrio de seu teatro

    da Crueldade, sem dvida entrava em contradio com seu desejo de acabar com

    as obras-primas do passado, mas tambm pressentia a nova aliana entre o texto e

    a cena que bem poderia caracterizar o teatro de hoje para alm da pseudoposio

    entre texto e encenao, entre um teatro do texto e um teatro teatral.

    Ainda que ligado epifania da representao a esse momento em que se mani-

    festa a teatralidade Dort continua atento problemtica do texto teatral, em particular

    do texto contemporneo, e leva em conta as resistncias desse ltimo mimesis. Para

    Dort no parece uma aberrao o texto recusar-se a jogar completamente o jogo da

    representao pois, como escreveu Duras, quando o texto representado que se

    est mais distante do autor. Para dizer a verdade, Dort, ao contrrio de Barthes, no

    um homem da aporia, mas das passagens. Em O texto e a cena: uma nova aliana ou,

    pouco mais tarde, em A representao emancipada, procura traar os contornos para

    ele bastante razoveis de uma nova utopia (ps-brechtiana) da representao. Mas,

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    ao propor uma nova aliana, Dort nos previne, sobretudo, contra os dois perigos que

    ameaam as relaes entre a cena e o texto:

    - Por um lado, essa atitude francamente reacionria, mas que ganha cada vez

    mais espao, que consiste em querer restaurar o teatro literrio, o teatro de texto.

    Pois no foi Jacques Julliard (e poderia ser Alain Finkielkraut) que afirmou, h alguns

    anos, em uma de suas crnicas do Nouvel Observateur, que enquanto o teatro no

    retornar ao lugar onde se faz ouvir a palavra sagrada do poeta; enquanto os ence-

    nadores atuais, esses tiranos mal educados, no deixarem de ser arrogantes com o

    autor, o contrato dramtico, essa aventura a trs que une autor, intrpretes e espec-

    tadores em torno de um texto, permanecer despedaado, desonrado, destrudo? ...

    Contentemo-nos de devolver Julliard e seus preconceitos (que, diga-se de passagem,

    so anteriores ao surgimento da encenao moderna) ao que Dort nos diz sobre os

    maiores textos de teatro: leitura (eles) parecem problemticos, complexos a ponto

    de parecerem incoerentes, excessivos no limite da desordem, porque tomam partido,

    deliberadamente, de seu prprio inacabamento e fazem apelo cena.

    - Por outro lado, uma proposta que no menos vaga, incerta e arriscada s

    porque toma partido da emancipao da representao (acredito que a expresso

    remonta a Evreinoff). assim que Alain Badiou, em suas Dez teses sobre o teatro (Dix

    thses sur le thtre) parece afastar a questo do texto ao reduzi-lo a uma essncia

    eterna que somente a representao pode levar instantaneidade, imediaticidade,

    em uma palavra, vida. Sem dvida Dort concordaria com a afirmao de Badiou de

    que a ideia-teatro no texto e no poema est incompleta, e que a encenao no

    interpretao, mas complementao. Mas imagino que acharia menos convincente

    apresentar o teatro como um agenciamento de componentes materiais e ideais

    extremamente disparatados, cuja nica existncia a representao. Em suas teses,

    Badiou simplesmente esquece que na representao o texto tem, forosamente, esta-

    tuto e funo diferentes dos outros componentes... Sobretudo por falta: o texto o

    nico elemento que existe de modo autnomo enquanto texto escrito no evento

    da representao; transforma-se, metamorfoseia-se, pode at mesmo ser abolido

    durante sua manifestao... Em seguida, por excesso: sua forma de invaso dife-

    rente de qualquer outro elemento presente em cena atravs dos corpos, das vozes,

    do espao, e at mesmo do esprito dos espectadores, que podem conhec-lo antes

    da representao.

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    De uma polifonia que vir

    Ser que preciso passar da proposio adamoviana, que Dort e Barthes subs-

    creveram em minha concepo, o teatro est completa e absolutamente ligado

    representao para a de Badiou, que pretende que a teatralidade s exista na

    e para a representao. O inconveniente da ideia-teatro segundo Badiou que ao

    remeter articulao ou como diria Dort, ao jogo entre os diferentes componentes

    cnicos, s agrava a ambiguidade j notada em Barthes. De certo modo, a ideia-

    -teatro vem preencher o espao vazio deixado pelo gestus brechtiano, pedra angular

    da concepo de teatro crtico elaborada por Dort e Barthes: Toda obra dramtica

    pode e deve reduzir-se ao que Brecht denomina gestus social, a expresso exterior,

    material, dos conflitos da sociedade de que testemunha. Evidentemente, cabe ao

    encenador descobrir e manifestar esse gestus, esse esquema histrico particular que

    fundamenta todo espetculo: para isso, tem sua disposio o conjunto das tcnicas

    teatrais: o jogo dos atores, a espacializao, o movimento, o cenrio, a iluminao

    (...), o figurino. A vantagem do gestus hoje considerado obsoleto, como todo teatro

    da fbula sobre a ideia-teatro ser, ao mesmo tempo, transcendente em relao

    ao conjunto dos componentes da representao e estar indexado no texto. O gestus

    existe como globalidade, como ponto de vista geral sobre o texto, mas tambm como

    unidade (no sentido semiolgico) a partir da qual o texto pode ser lido, decupado,

    comentado...

    Fazendo o luto do brechtianismo, e a fim de preservar um certo jogo ou um certo

    uso do teatro e do mundo real, Dort esforou-se por elaborar essa utopia de ligao,

    mais tcnica que poltica, que eu evocava acima. Foi assim que escolheu ir alm da

    metfora brechtiana da revoluo copernicana do teatro e anunciar uma revoluo

    propriamente einsteiniana... Para tornar palpvel essa esperana, evoca um modelo

    de representao ideal: A revoluo copernicana do princpio do sculo tornou-se

    uma revoluo einsteiniana. A inverso do primado de texto e cena transformou-se em

    relativizao generalizada dos elementos da representao teatral, uns em relao

    aos outros. Renuncia-se ideia de uma unidade orgnica, fixada a priori, e at mesmo

    de uma essncia do fato teatral (a misteriosa teatralidade) para conceber o teatro

    como uma espcie de polifonia significante, aberta sobre o espectador18.

    18 Alain Badiou, Dix thses sur le theatre, op. cit.

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    A representao emancipada, no sentido dortiano, certamente tem muito a ver

    com a polifonia barthesiana; entretanto, marcada pela recusa de uma teatralidade

    ecumnica. Dort preconiza um tipo de relao violentamente contraditria entre os

    diferentes componentes da representao que Brecht previa na origem de sua teoria

    das artes-irms (Schwesterknste), mas que teria esquecido parcialmente: Por

    conta de seu privilgio e de suas obrigaes de autor e encenador, e tambm de editor

    do Berliner Ensemble, sem dvida sacrificou a independncia dessas artes-irms a

    uma concepo dramatrgica unitria das obras que apresentava. Mas sua lio vai

    alm de sua prtica. Desenha a imagem de uma representao no unificada, cujos

    diversos elementos entrariam em colaborao, at mesmo em rivalidade, em lugar de

    apagar suas diferenas e contribuir para a edificao de um sentido comum19.

    Para Dort, jogo sempre sinnimo de luta e combate. Mas, ao mesmo tempo,

    esse voluntarismo do Dort-terico atenuado e corrigido pelo hedonismo que a

    marca do Dort-espectador. Ora, para esse espectador de dimenso romanesca o

    prazer do teatro sempre adquire uma cor nostlgica, quase melanclica. Ser que

    isso acontece porque sua atividade de crtico permanece fundada, para sempre, nos

    combates travados com Barthes no tempo de Thtre populaire? Ou porque nenhum

    espetculo, desde Me Coragem na encenao de Brecht ou A vida de Galileu diri-

    gida por Strehler, pode responder totalmente expectativa criada por esses? Ou

    ainda, ser que se trata de um sentimento mais geral e misterioso, diretamente ligado

    ao surgimento da teatralidade: o sentimento da perda do teatro para o prprio teatro?

    Para Bernard Dort, a representao teatral sempre aparece como o lugar da falta por

    excelncia, a experincia de privao de um espao e um tempo para sempre inalcan-

    veis. Como se hoje a paixo do espectador s pudesse expressar-se por um perma-

    nente desencanto. Desiluso que o artista (ele prprio um espectador desiludido do

    esforo de fazer teatro) partilharia com o pblico. Em eco contraditrio ao Eu no vou

    mais ao teatro de Barthes, Dort no cessa de nos advertir, mezzo vocce, que o teatro

    jamais para de nos abandonar, de desertar de si e de ns. Em todo caso, foi sob o

    signo da intensa nostalgia que Dort viu e viveu Sur la grande-route de Grber: Um

    momento de repouso no movimento infinito de Grber de abandono do palco (...) Sur

    la grande-route fala da ltima felicidade possvel.20.

    19 Roland Barthes, Les Maladies du costume de thtre, op. cit.

    20 Idem

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    Persistir na tarefa (beckettiana) de acabar (mais uma vez) com o teatro, e sempre

    sonhar com o retorno ao incio: talvez seja esse o ltimo paradoxo da teatralidade. Pois

    o teatro s se realiza verdadeiramente fora de si, quando consegue libertar-se de si...

    Ao produzir no teatro, a cada vez, o vazio do teatro.

    Referncias Bibliogrficas

    ADORNO, Theodor W.Teoria esttica. Lisboa: Ed. 70, 2011.

    BARTHES, Roland.O imprio dos signos. Trad. Leyla Perrone-Moiss. So Paulo: Martins Fontes, 2007.

    BAUDRILLARD, Jean.Cool memories. So Paulo: Estao Liberdade, 1996.

    BENJAMIN, Walter. O que o teatro pico, IN Flvio R. Kothe e Florestan Fernandes (org.). Walter Benjamin. Sociologia. So Paulo: tica, 1991, p. 202-218.

    DORT, Bernard. A Representao Emancipada. Revista Sala Preta, Vol. 13.1. So Paulo: USP/PPGAC, 2013.