A Invenção Da América Latina

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    A Mulher Escrava na Vassouras do Sculo XIX: Violencia e Liberdade

    1R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 5, p. 7-32, 2003

    ISSN 1415-9201

    Revista do Mestradode Histria

    Volume 5

    Universidade Severino Sombra

    R. Mestr. Hist. Vassouras v. 5 p. 7-193 2003

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    Ana Maria Leal Almeida

    2 R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 5, p. 7-32, 2003

    Presidente da FUSVEDr. Amrico da Silva Carvalho

    Reitor da USSDr. Amrico da Silva Carvalho

    Pr-Reitor de Pesquisa, Extenso e Ps-GraduaoProf. Paulo Csar Rodrigues Cassino

    Coordenadora do Pragrama de Mestrado em HistriaProf. Philomena Gebran

    Conselho EditorialAna Maria da Silva MouraJos Costa DAssuno BarrosLincoln de Abreu PennaPhilomena GebranMarli Gomes Viana

    Conselho ConsultivoCarlos Eugnio Lbano SoaresCristina Maria Teixeira MartinhoEullia L. LoboFrancisco Carlos Teixeira da SilvaJoo Jos ReisJos Flvio Sombra

    Manolo FlorentinoMaria Gabriela DvilaMaria Ligia Coelho PradoMaria Yedda Leite LinharesSilvia Petersen

    Editor ResponsvelProf. Philomena Gebran

    Criao e Arte Final da CapaArqt. Paulo Domingos DAntonio Silva

    Editorao EletrnicaMonica dos Santos Penedo

    Projeto GrficoArqt. Paulo Domingos DAntonio Silva

    Coordenador de Recursos Grficos da FUSVE

    ImpressoGrfica Palmeiras

    Fundao Educacional Severino Sombra - FUSVEUniversidade Severino Sombra - USS

    Praa Martinho Nbrega, 40 - Centro - VassourasRJ - CEP: 27.700-000 - Telefax: (24) 2471-1287/

    2471-8203 - e-mail: [email protected]

    Coordenadoria do Programa do MestradoRua Dr. Fernandes Junior, 89 - Centro - Vassouras

    Tel.: (24) 2471-8272Telefax: (24) 2471-1994

    e-mail: [email protected]: [email protected]

    Revista do Mestrado em HistriaRevista semestral da Universidade Severino Sombra

    Todos os direitos reservados. A reproduo no autorizada desta publicao, no todo ou em parte, constituiviolao do copyright. ( Lei 5.988)

    Revista do Mestrado de Histria. v. 1, (1998) - . Vassouras:Universidade Severino Sombra, 1998-

    anual (v.1, 1998), (v.2, 1999), (v.3, 2000), (v.4, n.1/2, 2001-2002),

    Semestral (v.5, 2003) ISSN 1415-9201

    1. Brasil - Histria - Peridicos. I. Universidade Severino Sombra.

    CDD981.005

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    A Mulher Escrava na Vassouras do Sculo XIX: Violencia e Liberdade

    3R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 5, p. 7-32, 2003

    Apresentao

    O Conceito de Amizade na Tradies Greco-romana e Judaico-crist e a Possibilidadeda Prtica do Amor, de Amizade entre Homens e Mulheres da Antiguidade

    Ana Paula Lopes Pereira

    O Baro de Paty do Alferes e a Escravido em VassourasClia Maria Loureiro Muniz

    Viajantes Franceses e Modelos de Colonizao para o Brasil - (1850 - 1890)Cludia Andrade dos Santos

    A Questo Filosfica do Princpio de Individuao e as Relaes Decorrente dasCondenaes de 1277

    Eduardo Vieira da Cruz

    A Inveno da Amrica LatinaHctor H. Bruit

    Relao Igreja-Estado no Brasil Imperial: Incio do Contencioso do Perodo

    Regencial Jos Augusto dos Santos

    No ltimo Degrau da Vida: um Estudo no Asilo Baro do Amparo em VassourasMaria Elisa Carvalho Bartholo

    Resenhas: Imagens em Desordens: A Iconografia da Guerra do Paraguai 1864-1870 Fernando da Silva Rodrigues

    Na Encruzilhada do Imprio: Hieraquias Sociais e Conjunturas

    Econmicas no Rio de Janeiro (c-1650 c-1750) Maria Yedda Leite Linhares

    Um Contraponto Baiano, Aucar, Fumo, Mandioca e Escravido no Recn-cavo 1780-1860

    Maria Yedda Leite Linhares

    Atualidades: Seminrio Interno do Programa de Mestrado em Histria da USS

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    Sumrio

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    5R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 5, p. 7-32, 2003

    Apresentao

    Temos a satisfao de apresentar aos profissionais da rea de Histria ereas afins, mais um nmero da Revista do Mestrado de Histria do Programade Mestrado da Universidade Severino Sombra - USS.

    Queremos comunicar aos nossos colaboradores e aos nossos leitores, que esseperidico sair agora semestralmente o que contribuir para atender as exigncias doQualis e da CAPES para a publicao de peridicos. Aproveito a oportunidadepara informar, tambm, que estou passando a editorao da Revista para o Prof.

    Jorge Prata de Sousa que a partir do prximo nmero j estar a frente das novasedies.

    Continuamos seguindo os mesmos critrios dos nmeros anteriores e os artigosda atual publicao seguem as mesmas caractersticas dos primeiros nmeros, ouseja, bastante diversificados, como tem sido a proposta da Revista. Os artigos tmuma abrangncia bastante ampla, atendendo a diversificao temtica proposta paraa publicao.

    Neste sentido, os artigos desta nova edio mantem a amplitude temtica,espacial e temporal, por exemplo: h artigos que tratam da problemtica histricadesde a antiguidade, como o artigo da professora Ana Paula, O Conceito de

    Amizade na Tradio Greco-romana e Judaico-crist e a possibilidade da Prticado Amor, da Amizade entre Homens e Mulheres da Antiguidade, onde a autora

    analisa os problemas histricos das relaes humanas na antiguidade.At problemas histricos mais regionais como o artigo: O Baro de Patydo Alferes e A Escravido em Vassouras de Clia Maria Loureiro Muniz, ondetrata de questes da terra e das relaes entre bares e escravos.

    E artigos que tratam mais da atualidade e de problemas contemporneos,como por exemplo, o artigo: No ltimo Degrau da Vida: O Lugar e o sentido dos

    Velhos, da Velhice e do Envelhecer, resultado da pesquisa da professora MariaElisa Carvalho Bartholo sobre o Asilo Baro do Amparo em Vassoras.

    Outros artigos tratam de problemticas diversificadas e no menos interessantese importantes para a historiografia como o artigo: Viajantes Franceses e Modelosde Colonizao para o Brasil (1850 1890) de Cludia Andrade dos Santos.

    Outro artigo: Relao Igreja-Estado no Brasil Imperial:Incio do Contencioso doPerodo Regencial de Jos Augusto dos Santos. E finalmente um artigo histricofilosfico: A Questo Filosfica do Princpio de Individualizao e as Relaesdecorrentes das Condenaes de 1277 de Eduardo Vieira da Cruz.

    Apresentamos neste nmero, tambm, trs resenhas sobre publicaesrecentes.

    Philomena GebranEditor responsvel

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    7R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 5, p. 7-32, 2003

    Art

    igos

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    O Conceito de Amizade nas Tradies Greco-romana e Judaico-

    crist e a Possibilidade da Prtica do Amor, de Amizade entreHomens e Mulheres na Antiguidade Tardia

    Ana Paula Lopes Pereira

    Professora do Departamento de Histriada UER J - FFP e do Centro Universi-trio Moacyr Sreder Bastos

    Resumo

    Pretendemos mostrar a transfor-mao do conceito de amor e de amiza-de, legado da tradio greco-romana e

    judaica, face ao preceito evanglico daCaridade e exegese dos Pais da Igrejagreco-latina. Pensamos que a mudanano sistema de valores, decorrentes dadifuso do cristianismo, levam a umanova concepo da pessoa na Antigui-

    dade tardia. Nesta nova antropologia,entrevemos a manifestao de relaesde amizade espiritual entre homens emulheres, possibilitadas sobretudo pelasprticas ascticas, pelo celibato e pelaescolha da virgindade.

    Palavras-chave

    antiguidade - exegese -

    formas - homens e mulheres

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    A amizade no um fenmeno esttico, no convm isol-lo dosoutros fenmenos sociais. Seu conceito e sua prtica correspondem a sistemasde valores: a idia que um grupo se faz da amizade se torna a expressode seu comportamento em uma determinada sociedade. Assim, em um pri-meiro momento, buscaremos mostrar a transformao do conceito de amore de amizade, legado da tradio greco-romana e judaica, face ao preceitoevanglico da caridade e exegese dos pais da Igreja greco-latina. Em um

    segundo momento veremos a possibilidade, decorrente desta transformao,de relaes afetivas entre homens e mulheres na Antiguidade Tardia.

    A idia do sentimento de amizade como natural do homemesteve sempre presente no pensamento grego e romano. As obras de Pla-to, de Aristteles, dos esticos do a dimenso filosfica do termo e sofundamentais para a elaborao do conceito de amizade, no seio de umgrupo determinado. Para os pr-socrticos aphilia1,palavra que significaamizade, que d a unidade ao mundo. Plato, noBanquete, no seu discurso

    sobre o amor (Eros), estabelece, atravs de Pausnias, a dicotomia entre oamor popular, ligado ao corpo, e o amor celeste que, unindo iguais,forma relaes sublimes e duradouras.2No discurso de Diotima (Plato),o amor o amor do belo e do bom, que faz o homem tender felicidade; um ato, um movimento, a gerao no belo, na sua busca pela imortalidade.3Em Aristteles, natica de Nicmaco, assim como em Ccero, noDe Ami-citia, o conceito de amizade ganha uma dimenso moral e poltica, virtudedos homens semelhantes em dignidade que conduzem a cidade. Aristtelescompreende a amizade, no livro VIII datica, de trs formas: a amizade

    que tem por objeto o interesse, a amizade que tem por objeto o prazer4

    e, emoposio s duas, a amizade perfeita, que tem por objeto o bem moral, tendoa virtude por motor, se dando justamente entre iguais em virtude.5Este tipode amizade raro, ela nasce das qualidades idnticas: a reciprocidade daboa-vontade, a vontade do bem e a manifestao exterior dos sentimentos.6Para Ccero a amizade entre os homens s pode ser um acordo total emtodas as coisas divinas e humanas com benevolncia e amor7, a essncia

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    da amizade sendo o acordo de preferncias, de gostos e de princpios.8Osesticos consideram todas as paixes como um desregramento pois contrrias razo, entretanto a amizade uma virtude, da recusarem o nome de ami-zade tudo o que no a relao entre os sbios, iguais em sabedoria.9

    Juntamente com a tradio greco-romana, as Escrituras fornecemas bases da noo de amizade crist e da vida em comunidade. O antigoTestamento tambm apresenta a amizade como natural, essencial ao homem,a referncia sendo a relao de David e Jonathan, cuja reciprocidade faz deum o instrumento da salvao de outro e os conduz a concluir um pacto.Est escrito que David amava (Jonathan) como a ele mesmo.10O Salmo55 (54) adverte o fiel sobre a possibilidade de traio entre os amigos, subli-nhando assim a importncia e o carter ambguo da amizade.11O livro dosProvrbios ensina aos fieis a construir, manter e gozar dos laos de amizade,a respeitar as leis de amizade e a no trair seu amigo.12O Senhor preservasua intimidade aos homens direitos, e necessrio imit-los; enfim, a amizade

    doce.13

    O Eclesiastes diz que o homem s infeliz se ele cai no temningum para o levantar14- mostrando as vantagens da companhia, deuma relao que traga segurana e proteo e que vista aqui em termosde formao de uma sociedade. Entre as lies do Siracida, a que concernea amizade nos ensina que o homem precisa de relaes afetivas, mas quepara as manter necessrio fazer prova de fidelidade em relao ao amigo,os amigos estando unidos em Deus. Aprende-se no somente a maneira defazer amigos, mas tambm a no confiar muito rapidamente neles, de medoque eles nos abandonem nos momentos de tristeza. O Siracida nos coloca

    igualmente em guarda contra a amizade interessada e precisa a verdadeiraamizade - aquela que fundamentada na fidelidade - rara, to preciosaquanto um tesouro; reservada queles que temem o Senhor, pois tal comose tal ser o companheiro.15

    Se compararmos as noes de amizade no antigo e no novoTestamento, percebemos que no primeiro o tema da amizade aparece deforma mais humana, sublinhando o perigo da falsa amizade e considerando

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    O Conceito de Amizade nas Tradies Greco-romana e Judaico-crist e a Possibilidade daPrtica do Amor, de Amizade entre Homens e Mulheres na Antiguidade Tardia

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    a verdadeira, aquela que fundada na fidelidade, como essencial enquantodom de Deus. No novo Testamento, o Cristo ordena aos homens se amaremmutuamente, como ele os amou.16Ele os chama de amigos - vos autem dixiamicos - porque vai partilhar com eles os seus mistrios.17Nos escritosde Paulo, vemos a insistncia em considerar o amor do prximo, de carteruniversal, mais do que as relaes individuais, como til e necessrio salvao da humanidade. Para ele o nico a quem ns podemos dar nosso

    amor o Cristo, o nico amigo possvel, a nica amizade perfeita. De fato, ocristianismo cria uma nova antropologia,18o que supe uma nova dimensoda idia de amizade: o homem cristo, oriental ou ocidental, se v divididoentre os laos preferenciais e o preceito da caridade, prolongamento do amorde Deus, segundo Joo.19

    Assim, este amor, que fruto da caridade, do amor de Deus,no preferencial: o amor,dilectioou caritas, no significa amicitia. Estapode ser vista como traio em relao a Deus, na medida em que estabelecer

    relaes seculares afasta o homem da pureza e da unio com o Cristo, porquem as relaes familiares devem ser abandonadas.20A agap/ caritas, oamor universal, do qual emana a dileo, aparece ento, em um primeiromomento, contrrio philia / amicitia, o amor preferencial, que guarda umaconotao secular.21A exegese patrstica afirma que pela caridade, dom dagraa divina, que o homem capaz de amar perfeitamente e de participarda glria divina. O conceito de um Deus-caridade implica trs formas deamor: o amor de Deus pelo gnero humano, o amor do homem por Deus eo amor do homem por seu prximo (proximus oufrater). Este triplo aspecto

    do amor impele aqueles que refletiam sobre a excelncia da caridade, aconceber o amor que nasce da caridade como fonte do conhecimento divinoe causa da unio da alma com Deus. Esses conceitos e imagens nutrem opensamento patrstico e determinam uma antropologia crist, que supe,por sua vez, a positividade ou negatividade do comportamento subjetivo emrelao ao outro. So estabelecidas as bases do ideal e da forma virtuosa demanifestao do amor cristo.

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    De fato, em relao s diversas tradies, os cristos dos pri-meiros sculos se colocaram um certo nmero de questes: sobre a vida emcomum, se ela permite ao indivduo achar um sentido e uma inspirao nooutro; sobre como, atravs de que gestos e palavras, manifestar as relaessubjetivas, a alegria das relaes; sobre a experincia de si e de Deus. Asprimeiras igrejas se inscrevem na tradio do amor de caridade e formamuma nova famlia, cujos membros eram irmos e no amigos, e onde

    as relaes espirituais estavam fundadas e cresciam em Cristo celebrando aalegria do Salmo 133 (132) Ecce quam bonum et quam iocundum habitarefrater in unum.22 Os Atos dos Apstolos sublinham esta concepo da uniofraterna atravs da passagem cor unum et anima una.23 Nos sculos IIIe IV vemos a instituio das prticas ascticas, do monaquismo no desertodo Egito. Aqui, o conceito estico de apatheia, impassibilidade, se torna,ento, um ideal. A apatheiacomo impassibilidade leva contemplao divina.Para seu devir espiritual o homem deve se libertar do mundo das coisas quedesviam a alma e a afastam da busca da salvao, aquele em direo a quem

    a alma tende. Nos escritos dos Pais do Deserto24os laos de amor natural (afamlia, os amigos, os bens) devem ser esquecidos no momento da entrada nacomunidade, visando uma total mudana de vida e de esprito. A excelnciada caridade, entendida como apatheia, leva a um fechamento ao gozo dosamores terrestres: s Deus amvel de um amor absoluto. O homem cristono auto-suficiente porque precisa do Cristo, mas pode viver isolado domundo, o monachos, o instrumento da sua prpria salvao. Deve-se sedar inteiro ao Cristo e no ter nada no mundo.

    Tendo considerado o conceito de amor e de amizade nas tradieslegadas aos pais da Igreja, constatamos que estas deixaram poucos modelosde relaes de amizade entre homens e mulheres. Nos questionamos agoraquanto possibilidade, na comunidade crist, deste tipo de relao. O queexplica a falta de referncias de relaes intersubjetivas entre homens e mu-lheres e entre mulheres a prpria idia de mulher no mundo antigo. Natradio mediterrnica, a mulher por natureza moralmente e fisicamente

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    fraca, por isso deve estar submetida ao homem, o que lhe impe um estatutojurdico inferior e, por extenso, a no cidadania. Nos trs estados para osquais a mulher educada e direcionada a se enquadrar - o casamento, a

    viuvez e a consagrao religiosa - a mulher se coloca sob a tutela do homem.Fora destes quadros a mulher se torna uma ameaa; sob seu prprio arbtrio,ela se dirige para o mal. A tradio judaica v a mulher como fonte do mal.

    As poucas heronas do antigo Testamento como as Miriam, Ruth, Noemi,

    Judith e ster intervieram pelo povo de Israel, mas a figura do homem dominante, a descendncia das tribos de Israel vem do homem. O relatofundador da Gnese explica que Eva, criada depois dos animais, de inciouma ajuda para o homem25, mas por vaidade seduzida e leva queda dognero humano. Como punio, a mulher, vida do homem, dominadapor este, pare na dor e causa do suor do homem, que agora trabalha parase alimentar.26No Levtico temos todos os interditos relativos ao sangue e possibilidade de contaminao pela mulher, esta se v por isso afastada deinmeras funes.27 Se no Cntico dos Cnticos, o bem-amado chamado

    amicus28e se a relao entre homem e mulher no posta como dvida destaem relao ao outro, como o caso nas Epstolas de Paulo, no vemos umarelao de amizade entre iguais, suscetveis da ajuda mtua na adversidade,como a amizade masculina cantada no antigo Testamento. A mulher objeto do amor carnal. Na exegese alegrica patrstica a amada a Igreja eo bem-amado o Cristo.

    Nos Evangelhos os gestos do Cristo em relao mulher no sonegativos. As mulheres que foram por ele libertadas dos demnios e maus

    espritos29

    o acompanham e o ajudam. Ele acolhe e ama Madalena mais doque as outras; pelo gesto da uno de Betnia a mulher digna de mem-ria,30e ela tem o privilgio de ser a primeira testemunha da ressurreio.31Contrariamente leis hebraicas, Cristo no condena a adltera.32 Seusdiscpulos se espantam ao v-lo falando com uma mulher.33Assim, apesardos gestos de Cristo, a instituio eclesistica organizada por Paulo colocaa mulher sob a tutela do homem: as Epstolas deixam para a posteridade a

    inferioridade jurdica da mulher. O homem sbio deve se abster de mulher,

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    entretanto, se quiser pode procurar uma mulher; o casamento aqui umaconcesso, um mal menor face incontinncia e impudcia. No estado docasamento, a mulher inteiramente submissa ao homem, ela no dispe doseu corpo34, ele deve temer e obedecer, pois o homem a cabea.35A mulher assim afastada das funes pblicas: ela no pode dizer a lei ou ensinar forado quadro domstico, deve ser reservada e guardar o silncio. A condio tal, Paulo explica, porque Ado foi o primeiro, mas sobretudo porque foi

    Eva a seduzida pelo demnio e culpada do sofrimento do gnero humano.36

    Assim, a mulher deve se velar, diferentemente do homem, porque ele aimagem de Deus, enquanto ela o reflexo do homem.37

    Os primeiros autores cristos, por serem de cultura grega e la-tina e por se fundamentarem na tradio vetero-testamentria, vo repetir ereforar a imagem negativa das filhas de Eva. Para Tertuliano a mulher deveportar o luto e sempre estar mergulhada na penitncia a fim de resgatar afalta de ter perdido o gnero humano38 e se, para Agostinho antes da queda

    a mulher era igual ao homem, sua amiga, depois do pecado a igualdade entrehomem e mulher s existe na f e na possibilidade da salvao.39Os pais daIgreja responsabilizam a mulher pela infelicidade humana; assim, a mulher sempre ameaadora relegada margem da sociedade. O nico estadoem que ela adquire a admirao e o respeito quando guarda intacto o selobranco da virgindade. A virgindade, contrariamente s normas romanas, encorajada e louvada, como em Orgeno, Ambrsio, Jernimo, JooCrisstomo, Agostinho.

    Com estes poucos exemplos vemos que a idia da superioridadeontolgica e conseqentemente social e jurdica do homem afirmada aolongo dos sculos, sob o peso da tradio escriturria e da autoridade dospais da Igreja. A mulher ento vtima dos preconceitos morais e sociais quea desqualificam, carrega a mancha do pecado, interiorizando-o ao longo desua existncia. Aos olhos dos homens uma ligao amical com uma mulherparece sempre perigosa, suscetvel de provocar em seu corao sentimentosnocivos alma e salvao: a tentao carnal, o cime, a conspirao, o

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    O Conceito de Amizade nas Tradies Greco-romana e Judaico-crist e a Possibilidade daPrtica do Amor, de Amizade entre Homens e Mulheres na Antiguidade Tardia

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    desvendamento dos segredos, o escndalo. Os homens sabem que o diabo sedisfara freqentemente de bela mulher. Alm do mais os limites intelectuaisimpedem o carter sublime da relao de amizade. Desta forma como oshomens podem criar laos de amizade com um ser inferior, como as mulherespodem no crer na sua prpria inferioridade e como podem desejar, estabe-lecer e aceitar relaes igualitrias ?40

    Se a imagem negativa da mulher, herdada da dupla tradio,greco-romana e judaica, se torna para os pais da Igreja um obstculo maiorpara a compreenso das relaes afetivas com as mulheres, se estas tradi-es consideram a verdadeira amizade, a igualitria, exclusiva s relaesmasculinas, os homens e as mulheres das comunidades crists primitivasestabeleceram e criaram modelos de relaes intersubjetivas e criaram formasalternativas de vida em comum. Nos perguntamos o que permitiu o estabe-lecimento de relaes que escapavam ao parentesco e ao casamento?

    Na origem desta nova forma de se comportar em relao ao outro

    est a transformao do mundo antigo.41Enquanto comunidade marginal,os cristos se diferenciam dos outros medida que se vem eles mesmos comoum grupo distinto, homens e mulheres partilhavam desejos e objetivos, sesentindo mutuamente responsveis pela salvao e pela felicidade de cada um.Os cristos dos primeiros sculos estabeleceram ento uma ruptura com asdiferentes categorias do mundo mediterrnico, a saber: as oposies homemlivre-escravo, rico-pobre, judeu-gentil, homem-mulher. Todos so doravanteiguais frente a Deus. Assim, se as relaes entre os homens conservam al-guns dos critrios da amizade que aproximava os cidados greco-romanos, arelao homem-mulher se transforma: a amizade espiritual se torna possvelno celibato e na virgindade42.

    Como lembra Peter Brown,43a comunidade crist se achava cadavez mais na possibilidade de investir os seres humanos de poderes sobrenatu-rais, justamente atravs da prtica do ascetismo e da virgindade. Esta novarelao com o divino se dirigia igualmente s mulheres, que agora podiamaspirar santidade. Neste contexto, as crists podem tambm estabelecer uma

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    relao de amizade com os homens. A escolha da virgindade, do celibato e davida em comunidade d mulher a possibilidade da dignidade fora do quadrodo casamento, desconhecida do mundo greco-romano. Sabemos das crticassofridas por Jernimo devido suas exortaes pela excelncia da virgindadee do celibato, recrutando para o Cristo os melhores partidos do seu tempo.Para Joo Crisstomo, so a virgindade e o celibato, vistos como prtica deascese, que permitem mulher ultrapassar sua condio de mulher. Vrias

    mulheres mrtires, como gata, Ins e Margarida, sadas da aristocraciaromana e provincial, foram perseguidas justamente por terem recusado ocasamento. Os relatos dos mrtires so, assim, uma fonte importante paraconhecer as relaes entre homens e mulheres na medida em que mostramlaos de solidariedade unindo aqueles que aboliram as barreiras sociais esexuais para receber a palma do martrio e a vida eterna. Os mrtires, nasua maioria sados da aristocracia, abandonaram suas famlias e seu mundoe criaram novas relaes que se manifestam na priso atravs dos beijos depaz, da exortao e do encorajamento.44Eles se reconhecem como sendo

    amigos de Deus.45Visto como um meio de ascese, em substituio ao martrio, o

    celibato permitia as relaes afetivas entre homem e mulher. Nas comuni-dades monsticas, recm institucionalizadas, as relaes afetivas puderam sedesenvolver.46De fato, eram mais facilmente controladas e vigiadas, a normaera que deveria haver uma relativa distncia entre a casa das mulheres e a doshomens47e os diversos interditos vinham para as regulamentar, como os dosConclios de Agde em 506,48e de Nicia em 787,49assim como nas decises

    papais tomadas ao longo dos sculos, e que traduzem o medo que o contatocom as mulheres suscitava. A prtica do ascetismo e a vida nas comunidadesdo Egito testemunha tambm a possibilidade de formar laos afetivos.50Porexemplo, Talida, que comanda um convento em Antinoe, recebe a visita dePalladius, que se espanta do seu estado de apatheia, sua liberdade no Cristo,que a permite beija-lo. Aqui, a apatheia, a impassibilidade, que permitea manifestao do afeto51: se abandonando para se preencher de Deus, amulher pode expressar seu amor pelo prximo.

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    O Conceito de Amizade nas Tradies Greco-romana e Judaico-crist e a Possibilidade daPrtica do Amor, de Amizade entre Homens e Mulheres na Antiguidade Tardia

    19R. Mest. Hist., Vassouras, v. 5, p. 9-24, 2003

    O casamento espiritual uma forma alternativa de vida emcomum e de manifestao de relao entre homem e mulher. A mulher quese liga a um homem atravs da relao fraterna designada por agapetaouvirginis subintroducta. O casamento espiritual repousa sobre a exortaomtua em busca da perfeio, e assegura a mulher uma proteo, ao mesmotempo que lhe confere uma liberdade que o casamento recusa. Juntar-se scomunidades crists significava para as mulheres, sem dvida uma libertao

    da tutela do pai e do marido.52

    Porm, este tipo de relao foi criticada ecombatida pelos homens da Igreja, tais como Jernimo53e Joo Crisstomo,54assim como pelos Snodos de Elvira (305)55e de Ancyra e pelo Conclio deNicia (325).56Considerada como perigosa, esta relao assimilada a umaheresia. Entretanto, como vimos, aqueles que condenam o casamento espi-ritual, vendo nele uma fonte de escndalo, no estavam entretanto fechadospara as relaes afetivas com as mulheres. Estas relaes deveriam, entretanto,ficar restringidas aos muros dos mosteiros, hierarquizadas, compreendendofreqentemente a direo espiritual.

    O celibato e o voto de virgindade que, negando a carne, eliminaas diferenas sexuais e o desejo, so fundamentais para a possvel formaode laos de amizade entre homens e mulheres. As mulheres que atraem aadmirao e o respeito destes temveis homens da Igreja so mulheres deexceo: aquelas que conseguiram se despojar da sua condio de mulher,do seu papel de esposa, de me e de amante; aquelas que interiorizaram aidia de sua inferioridade e expiaram duramente sua dupla falta, a de nascerno pecado e a de nascer mulher. Desta forma, consideramos que no se trata,

    aqui, de amizade baseada na igualdade e suscetvel de ser celebrada, se asrelaes afetivas entre homens e mulheres no mundo cristo mediterrnico soresultado de uma nova antropologia, de uma nova concepo de amor, o amorde caridade, por que esse o amor do prximo, inimigo ou mulher.

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    O Conceito de Amizade nas Tradies Greco-romana e Judaico-crist e a Possibilidade daPrtica do Amor, de Amizade entre Homens e Mulheres na Antiguidade Tardia

    21R. Mest. Hist., Vassouras, v. 5, p. 9-24, 2003

    ao de hospitalidade, virtude no mundo homrico. Pode significar, nos textos mais antigos bei-

    jar, como forma de engajamento e de reconhecimento mtuo. E. BENVENISTE Le vocabulaire

    des institutions indo-europennes. 2v. Les Editions de Minuit, 1969. t.I, p.337.2PLATO,Le Banquet, Phdre. Traduction, notices et notes par mile Chambry. Paris: GF-

    Flammarion, 1992. VIII-IX, 180a-181a.3O Banquete, XXII-XXVI, 201d-208b. Mas, noFedroque Scrates para provar que o Amor

    do Belo e do Bem divino define a natureza da alma como imortal e contemplativa (Fedro, XXV-

    XXXVIII, 245c-257a.). A teorias platnicas sobre a dualidade do amor, sobre a imortalidade da

    alma, a reminiscncia, a contemplao das Idias e o amor na alma como espcie de emanao doBelo, que como a imagem do amor que ressentido por ele, so o fundamento da idia do amor

    de Caridade e da busca da alma pela beatitude, sobretudo em Agostinho.4ARISTOTELES, Ethique de Nicomaque, trad. J.Voilquin. Paris: GF. Flammarion, 1965.

    Chap. VIII, III, 1.5ibidem. VIII; III, 6.6ibidem. VIII; III, 9.7CICERO, De Amicitia. 6,20. Les Belles Lettres, Paris, 1983.8ibidem. 6,22.9Em Epicteto o filsofo se torna sbio quando se livra das paixes, um apaths, impassvel.

    Veremos que os autores cristos da Antiguidade Tardia so herdeiros da concepo estica de

    apatheia, ela est presente por exemplo nos escritos dos Pais do Deserto e fundamenta a possibi-

    lidade do amor de Caridade.101 Sam. 18, 3.11Ps. 55 (54), 13-1512Prov. 3, 27-3213Prov. 27, 9.14Ecl. 4, 9-12.15Sir. 6, 5-17.16

    Jo. 15, 12-13.17Jo. 15, 14-17. Entretanto, mesmo se Mateus e Lucas negam a amizade preferencial (Cf. Mt.,

    5, 44., e Luc, 6, 35), pode-se fazer interpretaes neste sentido. Cristo amava Joo mais do que

    aos outros (Jo. 19, 26-27), e mostrou o exemplo da expresso da dor chorando a morte do amigo

    Lzaro (Jo. 11, 11).18BROWN, Peter. Antiguidade Tardia, em Aris, P e Duby, G. (orgs.)Histria da Vida

    Privada.vol. 1, So Paulo: Companhia das Letras, 1990. pp. 225-299.19Jo, 13, 35 ; 1, Jo.3, 16

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    Ana Paula Lopes Pereira

    22 R. Mest. Hist., Vassouras, v. 5, p. 9-24, 2003

    20Mt. 10, 34-37.21Os hebreus tinham um verbo (ahab)e seu substantivo derivado (ahabah) para expressar a idia

    de amar de um amor sagrado e de um amor profano. Os gregos dispunham de um verbo para

    manifestar o sentimento natural dos laos de parentesco ou das relaes amicais : (philen),

    e um outro que marca o amor preferencial, fundado na escolha voluntria: (agapn). O

    verbo Hebreu ahab seria o equivalente do grego , amar, escolhido nas Setenta entre

    as quatro palavras gregas que designam amor. A Vulgata traduz os verbos gregos 21

    (agapn) pordiligerepara expressar um sentimento que se pode experimentar por seus inimigos,

    e (philen) por amarepara traduzir o sentimento que inspiram os laos de parentesco e asrelaes de amizade. Quanto ao substantivo agaph (agap), que poderia ser traduzido pordilectio,

    traduzido por caritas(de acordo com o sentido do verbo grego). Entretanto as duas palavras

    latinas podem ter o mesmo valor. De fato,diligere empregado para designar o preceito do amor

    de Deus no Novo Testamento, amor que se sente pelo prximo (os inimigos) e pelos irmos (ami-

    gos). Assim, - amare -est ligado s relaes familiares e - diligere - ao amor

    voluntrio, baseado na escolha, como a etimologia latina da palavra mostra, da onde a traduo

    do substantivo agaph -dilectio - por caritas. Mas este ltimo que serve para expressar o amor de

    Deus pelo gnero humano e nosso amor por Deus. O texto grego da Primeira Epstola de Joo

    utiliza sempre o substantivo agap ou o verbo agapn para designar seja o amor de Deus pelo

    homem, seja o amor do homem por Deus e seus irmos. De fato, philen no adequado para

    expressar uma tal dileo divina, gratuita e universal, que na sua perfeio se estende aos inimi-

    gos.Cf. PRAT, Ferdinand art., Charit noDictionnaire de Spiritualit, t.II., Beauchesne, Paris,

    1953, coll., 508-510 e SPICQ, Ceslas. , Lexique Thologique du Nouveau Testament.

    Rdition en un volume des Notes de lexicographie no-testamentaire. Editions Universitaires de

    Fribourg - Ed. du Cerf., 1991. pp.18-33.22O Salmo 133 (132) foi objeto de um comentrio de santo Agostinho, no qual ele justifica a vida

    monstica, assim como os sentimentos de fraternidade e de caridade crists. Se trata, aqui, de uma

    comunidade ideal, que forma amigos ideais e onde esto ausentes os conflitos opondo as relaes

    individuais estruturas comunitrias.23Atos, 4, 32.24As Sentenas dos pais do Deserto (Apophtegmata Patrum, Patrologia Grega. 65, 71-440) e a

    Histria Lausiaca, relatando as experincias ascticas dos primeiros cenobitas e eremitas dos sculos

    III e IV, foram consignadas por escrito em meados do sculo V,25Gen. 2, 18-24.26Gen. 3,16-19.

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    O Conceito de Amizade nas Tradies Greco-romana e Judaico-crist e a Possibilidade daPrtica do Amor, de Amizade entre Homens e Mulheres na Antiguidade Tardia

    23R. Mest. Hist., Vassouras, v. 5, p. 9-24, 2003

    27Lev. 12 ; 15,19-32 e 18, 1-30.28Ct. 5, 16.29Luc. 8, 1-3.30Jo. 12, 1-8.31Jo. 20, 11-18.32Jo. 8, 10-11.33Jo. 4, 27.341 Cor. 7, 1-3.

    35Efes. 5, 21-33.361 Tim. 2, 11-14.371 Cor. 11, 6-9. Cf. AGOSTINHO.De Trinitate 12, 12 Patrologia Latina, t. 42, col. 1004-

    5.38TERTULIANO.De Cultu Feminarum.I,1. Tertulliani Opera, 1. Corpus Christianorum, Series

    Latina, t.I, Turhholt, 1954. p.343.39AGOSTINHO. Quaestiones in Heptateuchum, q.153. Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum

    Latinorum. t.28, 2. Vindobonae, 1895, p.80.40Os estudos recentes sobre as relaes de amizade na Antiguidade Tardia e na Idade Mdia con-

    cernem quase exclusivamente as relaes de amizade espiritual entre os homens (Cf. D. J. Leclercq

    e B.P. McGuire), entretanto, a recente historiografia feminista americana desenvolve importantes

    pesquisas sobre a espiritualidade feminina e sobre as relaes intersubjetivas nas comunidades

    crists e grupos monsticos, onde podemos ter mais informaes sobre as mulheres. (Cf. Adele

    Fiske, Maria Acquinas McNamara, Rosemary Rader).41BROWN, P The Making of Late Antiquity, Harvard University Press, Cambridge, Massa-

    chusetts and London, 1993.42BROWN, P.Le renoncement la chair. Virginit, clibat et continence dans le christianisme

    primitif.Paris: Editions Gallimard. 1995. E Antiguidade Tardia, em Aris, P e Duby, G. (orgs.)

    Histria da Vida Privada.vol. 1, So Paulo: Companhia das Letras, 1990. pp. 225-299.43

    BROWN, P,Eastern and Western Christendom in Late Antiquity: A Parting of the ways, in theorthodox Churches and the west, Ed. Derek Baker, Oxford: Basil Blackwell, 1976. p.9.44Tertuliano atesta a solidariedade dos mrtires noApologeticus .39, 7 e 50, 14.45In S.Barlaam Martyrem 4, Patrologia Grega. 50, 682.46As mulheres da aristocracia romana do crculo de Jernimo, como Melnia, Paula, Melnia, a

    jovem, Eustachium e as familiares dos Pais da Igreja, como Macrina e Olmpia, foram enquadradas

    nas diversas comunidades femininas criadas no mundo mediterrnico. A relao entre estas e seus

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    Clia Maria Loureiro Muniz

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    O Baro de Paty do Alferes e a Escravido em Vassouras

    R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 5, p. 25-44, 2003 27

    I- Introduo

    O povoamento do Vale do Paraba comea no sculo XVIII,quando a regio foi cortada por estradas que ligaram o Rio de Janeiro sMinas Gerais. s margens dessas estradas como: Caminho Novo das MinasGerais, Caminho do Rio Preto, Caminho de Terra Firme surgiram asprimeiras propriedades da regio as roas de mantimentos. As terras eramdoadas pelo rei em sesmarias, das quais poucas foram exploradas. Algunsengenhos se formaram como Pau Grande e Ub. Uma capela foi construdaem Paty do Alferes e em torno dela um pequeno povoado tem incio.

    O caf comeou a ser plantado no incio do sc. XIX. Enormesextenses de matas foram derrubadas para dar lugar aos cafezais. As terrasfrteis do Vale do Paraba eram propcias para o cultivo. Pequenas vilas semexpresso tornaram-se grandes centros cafeeiros como: Vassouras, Valena,Pira, S. Joo Marcos, Resende, Barra Mansa e Paraba do Sul.

    O valor da exportao de caf, comeou a sobrepujar a doaucar, passou a representar no exerccio de 1837/38, mais da metade dovalor total de nosso comrcio exterior, posio de que no se afastaria nosanos seguintes e que se firmaria logo depois (Muniz, 1979; p.66)

    O trabalho nas fazendas de caf era feito pelo negro africano,importado atravs do trfico. Durante a dcada de 20, muitas fazendas foramabertas e a quantidade de africanos importados aumentou muito. Os lucrosdos cafeeiros retornavam s fazendas em forma de mais escravos, para seencarregarem das plantaes cada vez maiores (Stein, 1985; p.50/51).

    Na dcada de 30, o nmero de cafeeiros em Vassouras emunicpios vizinhos era a medida da riqueza de um fazendeiro e era umaindicao clara do nmero de escravos. (Stein, 1985; p.51). Em 1822, coma Independncia e as negociaes para o seu reconhecimento, a Inglaterrainclui nessas negociaes, o fim do trfico negreiro como era de seu interesse.

    A lei do Reconhecimento da Independncia de 13/03/1827 estipulou o

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    Cludia Andrade dos Santos

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    fim do trfico para dali a trs anos. O fim do trfico ficou esquecido e aimportao de escravos africanos cresceu numa mdia anual de 3,5% entre1826 e 1830 (37.200 africanos/ano). (Florentino 1985; p.48).

    Em 1831, uma lei extingue o trfico continuando a importaode escravos africanos continuou sem grandes problemas at 1850. Percebendoo final do trfico os fazendeiros usando os recursos obtidos com os lucrosda lavoura cafeeira compram muitos escravos. Em 1850, a populao totalde Vassouras era constituda de 28.638 habitantes, sendo que 19210 eramescravos e 9428 livres, segundo o Relatrio do Vice-Presidente da Provnciade 5 de maio de 1851.

    II. O fazendeiro Francisco Peixoto de Lacerda Werneck,Baro de Paty do Alferes.

    Francisco Peixoto nasceu em Paty do Alferes em 1795. EstudouHumanidades no Rio de Janeiro e voltou a Paty para dedicar-se lavoura.

    Tornou-se grande fazendeiro dono das fazendas: Piedadeque foi de seupai. Conceio de Palmeiras, Santana das Palmeiras, Mato Grosso, MonteAlegre, Monte Lbano e Manga Larga(Braga, 1978; p.26/27). Recebeu ottulo de Baro de Paty do Alferes.

    Foi um representante de seu grupo. Em 1832 quando osfazendeiros do Municpio fundaram a Sociedade Promotora da Civilizaoe Indstria da Vila de Vassouras, entidade que procurava congregar osfazendeiros em torno de objetivos comuns, ele foi seu vice-presidente e depoispresidente at 1850 quando esta sociedade foi dissolvida.

    Foi deputado Assemblia Provincial de 1844 e 1845. (Silva,1984; p.75). Francisco Peixoto manteve sempre posio de grande lavrador,chefe local impondo-se papis como protetor de agricultores em desgraa, de

    vivas ou afilhados desvalidos e da pobreza. Essa atitude estava de acordocom a poca, o Antigo Regime, em que se exigia daqueles que aspiravam areceber ttulos de nobreza, participar do governo da cidade e da Provncia,

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    Viajantes Franceses e Modelos de Colonizao para o Brasil (1850-1890)

    29R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 5, p. 45-60, 2003

    receber o Imperador em suas visitas ao interior, ser respeitado como grandesenhor atitudes semelhantes a do Baro de Paty do Alferes.

    Acudir a uma famlia desgraada - diria ele - ser seu anjo daguarda e dar a mo ao infeliz que se precipita no desfiladeirodo infortnio das almas grandes, enfim prprio de homenscujas circunstncias independentes so... prprias de fazer obem. Palavras de Francisco Peixoto em Carta a Jos MariaPinto Guerra em, 11de setembro de 1858. (Silva,1984;p.76).

    Em 1847, escreveu um livreto dedicado ao seu filho Luiz Peixotode Lacerda Werneck, que chegando da Europa, bacharel em teologia,casado, vem se tornar fazendeiro sem nenhuma experincia deste trabalho.

    A ele o pai dedica o escrito, onde descreve minuciosamente, todas as aesnecessrias para que se torne um bom fazendeiro. Esse opsculo teve umaacolhida surpreendente... (Braga, 1978; p.28). A primeira edio tinhao ttulo: Memria sobre a Fundao de uma Fazenda na Provncia do Rio

    de Janeiro.

    O Autor descreve como deve ser construda uma sede de fazenda,os terrenos escolhidos para a lavoura, madeiras que se deve fazer uso,obrigaes do administrador, escravatura ferramentas e cultura. Este itemele subdivide em caf, ch, cana-de-acar, milho, feijo, arroz, mandioca,tapioca, guandos, car, mangaritos, inhame, batata doce de lastro, amendoim,mamona. Fala da boiada, tropa, porcos, ovelhas, cabras etc.

    No captulo sobre os escravos, o autor inicia dizendo: esteo germe roedor do Imprio do Brasil e que s o tempo poder curar. Aabundncia de braos cativos e o imenso territrio por cultivar esquivam otrabalhador livre do cultivo de nossos campos. (Braga, 1978; p.36).

    Essa referncia ao cancro roedor deve-se preocupao coma falta de braos para a lavoura, e o encarecimento do escravo pela pressoinglesa para acabar com o trfico. Mais adiante explica que o cancro roedor

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    tem de continuar porque no h outra forma de se conseguir mo de obra.(Braga, 1978; p.36). O preo atual do escravo no est em harmoniacom a renda que deles se pode tirar; inda acresce a imensa mortandade aque esto sujeitos e que devora fortunas e traz infalvel runa a honrados elaboriosos trabalhadores.

    O autor, segue indicando as melhores formas de se manter osescravos sadios e conformados com o cativeiro.

    O escravo deve ter domingo e dia santo, ouvir missa e confessar-se anualmente, pois, o confessor os exortar a cumprir o seudever, terem moralidade, bons costumes e obedincias cegas aseus senhores e a quem os governa. (Braga, 1978; p.37).

    No Domingo devem vestir roupa lavada e a suja, na Segunda-feira deve ir para a barrela. O fazendeiro deve o mais prximoque for possvel, reservar um bocado de terra onde os pretosfaam suas roas, plantem seu caf, milho, feijes, bananas,cars, aipim, cana, etc. No se deve porm consentir que a

    sua colheita seja vendida a outrem e sim a seu senhor, quedeve fielmente pagar-lhes um preo razovel... (Braga, 1978;p.37).

    Esse dinheiro serve-lhes para seu tabaco, para comprar suacomida de regalo, sua roupa fina, de sua mulher e de seus filhos. Deve-se porm proibir-lhes a embriaguez pondo-os no tronco at lhes passar abebedeira, castigando-os depois com 20 a 50 aoites.

    Essas suas roas e o produto que delas tiram fazem-lhes adquirir

    certo amor ao Pas, distra-los um pouco da escravido e entreter-se com seupequeno direito de propriedade.

    Certamente o fazendeiro v encher a sua alma de certa satisfaoquando v vir o seu escravo de sua roa trazendo o seu cacho de banana, ocar, a cana etc. O extremo aperreamento desseca-lhes o corao, endurece-os e inclina-os para o mal. O senhor deve ser severo, justiceiro e humano.

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    de outras regies onde houve escravido.

    Um exemplo da exaltao dessas qualidades do senhor deengenho perante os escravos, encontramos em Joaquim Nabuco, falandosobre o Engenho Massangana onde foi criado.

    Nessa escravido da infncia no posso pensar sem um pesarinvoluntrio... Tal qual pressentiu, ela conserva-se em minharecordao como um jugo suave, orgulho ntimo do escravo,alguma coisa parecida com a dedicao do animal que nuncase altera, porque o fermento da desigualdade no pode penetrarnela. (Nabuco, 1995; p.161).

    Em Julio Belo, Memrias de um Senhor de Engenhoencontramos referncias ao bom senhor.

    Os trabalhos se faziam porque o negro, naturalmente afetivo,no obstante todos os vcios, adorando o bom senhor, produziasempre alguma coisa com muito mais perfeio do que no

    inqualificvel servio livre de agora, desordenado, incerto,imperfeito... (Bello, 1985; p.46).

    Ainda Jlio Bello: este o padro do bom senhor, do senhorhumanitrio e generoso, era incontestavelmente o que dominava entre antigosproprietrios rurais de Pernambuco.

    Os maus senhores, incapazes de piedade e misericrdia,intransigentes e cruis na punio dos escravos eram apontados aqui e ali,quase que a execrao geral. (Bello, 1985; p.46).

    A idia do fazendeiro visto como o senhor sob cujas ordensdesenvolve-se um complexo de autoridade e subordinao, oferecendoproteo e amparo a seus subordinados em troca de obedincia e resignao, uma tnica em quase todos os escritos de poca. Os grandes fazendeirosseja dos engenhos de acar ou das fazendas de caf, em geral encarnavama figura do homem bom. Os autores atuais analisam esse conceito de outras

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    O Baro de Paty do Alferes e a Escravido em Vassouras

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    formas: Hebe Mattos, fala sobre a noo de cativeiro justo ou bom senhorcomo uma forma de reconhecer a legitimidade da instituio escravista.

    Trata-se de discutir as condies de seu funcionamento eno o direito de propriedade sobre seres humanos em si. Sehouvesse uma universalizao de um padro de comportamentosenhorial isto traria como consequncia o reconhecimentodo direito dos escravos, algo que em si incompatvel com adominao escravista. (Mattos, 1998. P. 155 .

    O que observamos em relao ao Vale do Paraba que, emboravrios crimes de escravos contra senhores e feitores, fugas, formao dequilombo. (o Quilombo de Santa Catarina, em 1838, formado nas matasde Paty do Alferes e que reuniu cerca de 300 escravos), que resultaram emprocessos judiciais e condenaes forca, no impediram que FranciscoPeixoto escrevesse sobre a escravido em termos to amenos: Nem se digaque o preto sempre inimigo do senhor.... A partir de 1850, as condiesda lavoura cafeeiras e da escravido vo sofrer transformaes e, ento, vemosque vai mudar tambm a atitude dos fazendeiros.

    III. A dcada de 1850/60 em Vassouras

    Em 1850, o caf chegou ao auge de sua produo. Os preosdo caf no mercado internacional eram bons e os fazendeiros aumentavama produo de suas fazendas.

    Em meio a toda a opulncia, os primeiros sinais de crise seanunciavam. O caf era plantado no solo aps a retirada da cobertura da

    floreta. Esse cafezal se aproveitava do adubo natural do solo e crescia fortee produtivo. A produo era extensiva e precisava de cada vez mais matas

    virgens para se desenvolver. Os cafeeiros mais velhos cada vez produziammenos. Assim comeam a aparecer os primeiros sinais de terras improdutivascom cafeeiros velhos e as matas virgens passam a rarear.

    Para evitar diminuir a produo, os fazendeiros diminuem as

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    crises de lavoura canavieira. Vindo para uma regio desconhecida, comfama de maltratar escravos, eles j chegavam ao Vale do Paraba acuados.Desembarcados no Porto do Rio de Janeiro, eram vendidos em Iguau emuitas vezes as famlias eram divididas, como j havia acontecido com osafricanos. Mas agora esses escravos falavam a mesma lngua e podiam fugircom mais facilidade.

    Muitas fugas, pequenas rebelies, desobedincia foram a causada intranqilidade dos fazendeiros do Vale. Hebe analisa essa vinda deescravos dizendo:

    o escravo que vinha de outras regies, trazia uma bagagemde prticas costumeiras, sancionadas na fazenda ou regio queantes habitara. Sabia o que era castigo justo ou injusto, ritmosde trabalho aceitveis e inaceitveis e como ter acesso ao peclioe alforria, que eram bastante distintas das que se encontravamnas fazendas de caf do sudeste. (Mattos, 1998, p.155)

    Hebe cita vrios exemplos de rebeles individuais de escravosque vindos de outras regies, no aceitavam o mau cativeiro, o que justificariaa desobedincia e at o crime. Porm ela identifica essas revoltas em reas defazendas novas, onde no havia uma comunidade preexistente para ofereceralternativas e ampliar os espaos de autonomia e sociabilidade dentro docativeiro que preservassem, ao mesmo tempo, o arbtrio senhorial.( Mattos,1998, p. 157). As regies de fazendas novas seriam as reas de expansoda fronteira do caf no Vale do Paraba Oriental e Norte Fluminense.Porm, em Vassouras, uma das reas mais antigas do caf fluminense, onde a

    escravido j estava sedimentada h anos, encontramos rebelies semelhantese fazendeiros apavorados com medo dos novos escravos, como podemos verna formao de uma comisso dos maiores fazendeiros de Vassouras paratomar providncias evitando futuras rebelies.

    Em 1854, os fazendeiros de Vassouras, assustados resolvem sereunir em Comisso e redigem as Instrues para a Comisso Permanente

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    nomeada pelos Fazendeiros do Municpio de Vassouras. lanam um livretode 12 pginas, que foi editado pela Typographia Episcopal de Guimares& Cia, Rua do Sabo n 155. (in Braga, 1978: p.63).

    Nessas Instrues os fazendeiros pedem que cada um dosmembros empregue todos os meios a seu alcance para convencer osfazendeiros do perigo das insurreies e tomem as providncias necessrias.Eles acham que a causa dessas insurreies a vinda de escravos do Norteque tem fama de mau comportamento.

    Urge tomar um complexo de medidas de cautela evigilncia:

    1- Terem em suas fazendas um nmero de pessoas livres queesteja para o de escravos na seguinte razo: 1 pessoa livre para cada 12escravos; 2 por 25; 5 por 50; 7 por 100; 10 por 200 e da para cima mais2 pessoas livres por cada 100 escravos que acrescerem. (Braga, 1978;

    p.66).Recomenda que esses livres podem ser colonos que o fazendeiro

    deve importar porque o custeio da vinda de colonos muito menor do queo preo do escravo. Embora eles fujam numa proporo grande, (de cada10 a metade apenas permanece) e o trabalho de 1 escravo valha o de 10colonos, porm eles sero mais amigos dos patres.

    Prosseguem as Instrues dizendo:

    at aqui temos considerado a questo pelo lado mercantil; em

    relao segurana, ponto essencial: que enorme diferena.O escravo inimigo irreconcilivel, a adio de mais algumaslibras de plvora ao paiol prestes a explodir, entretanto ocolono um brao amigo, um companheiro darmas com cujalealdade se pode contar na ocasio da luta: os interesses socomuns. Quantos, no momento do perigo, no dariam metadede sua fortuna para terem ao seu lado alguns colonos que os

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    defendessem da horda brbara e sequiosa de vingana. (Braga;1978. p.66).

    As Instrues continuam dizendo que o trfico acabou e novolta e exaltam o recurso colonizao. Financiar a colonizao seria umsacrifcio necessrio segurana e manuteno da lavoura. Segue enumerandoas vantagens da colonizao e tambm alguns problemas.

    O livro enumera outras formas do fazendeiro se defender doescravo:

    2- Ter armamento correspondente ao nmero de pessoas livres. Manteruma polcia vigilante, fazendo os escravos dormirem em lugar fechado, proibindocomunicaes com outras fazendas e no permitindo que tenham armas.

    3- Permitir e mesmo promover divertimentos entre os escravos: Quemse diverte no conspira. (Braga, 1978; p.68).

    4- Promover desenvolvimento de ideais religiosas. A religio um freio e ensina a resignao. (Braga, 1978; p.68). Mostra o perigo de nose ensinar religio aos africanos, pois eles tem tendncia mstica e procuramorganizar sociedades ocultas aparentemente religiosas, perigosas porque podemser aproveitadas por algum esperto com fins sinistros.

    5- Permitir que os escravos tenham roas. O escravo que possui nemfoge, nem faz desordem. (Braga, 1978; p.68).

    Terminam as Instrues, dizendo que a Comisso empregar todos

    os esforos para que todos os fazendeiros sigam essas recomendaes.Os fazendeiros que assinam essas Instrues so grandes nomes

    da produo cafeeira de Vassouras: Joaquim Francisco de Farias, LaureanoCorra e Castro, o Baro de Campo Belo, Domiciano Leite Ribeiro, o

    Visconde de Arax e Joaquim Jos Teixeira Leite, o Baro de Vassouras.

    IV-O Baro de Paty e as novas condies da cafeicultura.

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    Os mesmos problemas por que estavam passando essesfazendeiros, tambm eram os problemas do Baro de Paty.

    Como se explicaria, que apenas sete anos depois de escrever asmemrias sobre a Fundao de uma fazenda, seus companheiros fazendeirosescrevessem um texto com contedo to diferente?

    Embora haja alguns pontos em comum, o contedo das

    Instrues demonstra apreenso, mesmo medo de que haja insurreiesde escravos e procuram oferecer, aos fazendeiros, formas para se precaverdesses perigos.

    J Francisco Peixoto em seu texto no demonstra nenhum medode rebelies de escravos e acha que a postura do fazendeiro que define aatitude do escravo.

    O extremo aperreamento desseca-lhe o corao, endurece-os einclina-os para o mal: O senhor deve ser severo, justiceiro e humano. (In

    Braga, 1978; p.37).Se acompanharmos a trajetria de Francisco Peixoto, vemos que

    aps 1950, ele nem sempre manteve a atitude de bom patroque exaltounas Memrias.

    Em 1856, um fazendeiro, amigo ntimo do Baro, foi assassinadopor dois escravos. O Baro com medo, escreve ao amigo Bernardo Ribeirode Carvalho, em 26 de maro de 1856, e diz: O que aconteceu aqui htrs dias tem me posto a cabea louca, a crueldade manifestou-se de maneiramais atroz e vejas em que vulco estamos, nas mos destes brbaros. (Silva,1984; p.153).

    A partir desse acontecimento o Baro procura reprimir seusescravos e manda um deles para a Casa de Correo recomendando queseja castigado severamente com aoites e colocado a trabalhar nos ofciosmais pesados e acrescenta

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    Tenho medo que me faa por aqui alguma maroteira,... e emoutro trecho da mesma carta diz: H cerca de um ms quelhe fao as costas em uma chaga viva, porm, tornou-se pior es se o matar, o que no fao. (Trecho da Carta a BernardoRibeiro de Carvalho de 31 de maro de 1856). (In Silva,1984; p.153).

    Essas e outras cartas de Francisco Peixoto, demonstram o medo

    que tomou conta dos fazendeiros, quando os problemas se agravaram eficaram mais prximos.

    Todos os demais problemas ocorridos a partir de 1850: carestiade gneros alimentcios, envelhecimento dos cafezais, falta de terra virgem,embora ainda fossem embrionrios, j faziam os fazendeiros sentirem que aestabilidade e riqueza que at ento eles gozaram estava comeando a mostraros primeiros sinais de crise. Esses problemas aliados ao medo das rebeliesde escravos aumentavam a insegurana e faziam aparecer uma outraface dosenhor.No mais o bom senhormas o senhor violento e medroso.

    Outra atitude do Baro de Paty, surpreende quem leu suasMemrias. Em 1858, morre sua tia Igncia Delphina Werneck, solteira. Obaro de Paty seu herdeiro e o inventariante. D. Igncia deixa um testamentodando alforria escrava Bernardina e seus filhos: Rosa, Joo, Jos, Mariae Manuel. Concede-lhes o direito de ter por 2 anos o servio de 2 escravospara ajud -los no incio da vida livre, num pequeno lote de terras. D alforriaa mais 3 escravos. Devemos explicar que D. Igncia no possua terras,morava na casa do Baro e seu caf era plantado junto com o do sobrinho.

    Trs anos depois, 1861, os maridos das ex-escravas reclamaram que aindano haviam recebido o que lhes era devido pelo testamento. O juiz chamao Baro de Paty que pressionado entrega os dois escravos a Bernardina ed liberdade Antnia Congo, Maria Roza e Thereza Congo como eradesejo de sua tia.

    Neste inventrio vemos como o fazendeiro que escrevia sobre

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    Abstract

    The relationship master and slave has always been difficult and tense althoughit has been often remarked the attitude of benevolence as it appears to have occurred onthe part of a few barons towards their slaves. Vassouras as a renowned coffee country inthe nineteenth century has been celebrated by its large slave population that amouned to51% of the regional population. Thus it is clearly proved that the masters often fearedupheavels and insurrections, as it happened in 1838 when Manoel Congo organized a

    much feared Quilombo. Neverthelesss a few masters kept a paternalistic relationship withtheirs slaves as was heartedly recommended by Baron Paty do Alferes, in 1847. After1850, due to Euzebio de Queiroz legislation suppressing transatlantic traffic, which car-ries his name and the subsequent arrival of slaves sold away in different regions of Brazilmasters and slaves relations became even more difficult, being every day more frequentdifferent movementes of insurretions, flights and murders.

    This text tries to analise the attitudes that were taken by Vassours coffeebarons after 1850

    Key Wordsslave - master - paternalistic relations - fear

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    Fontes Primrias

    Inventrio de Igncia Delphina Werneck. 1858. Cx106.Centro deDocumentao Histrica da USS - Vassouras/RJ.

    RefernciasBELLO, Julio. Memrias de um Senhor de Engenho. Recife: Fundart,Governo de Pernambuco, 1985 (1935).

    CARVALHO, Marcus J.M de.Liberdade: rotinas e ruturas do escravismo.Recife: Editora Universitria UFPE, 1998

    FLORENTINO, Manolo & GES, Jos Roberto. A Paz nas Senzalas:famlias escravas e trfico atlntico, Rio de Janeiro,c.1790 - c.1850. Rio de

    Janeiro: Civilizao Brasileira,1997.INSTRUES para a comisso permanente nomeada pelos fazendeirosdo Municpio de Vassouras. In BRAGA, Greenhalg H. Faria. Vassouras.Asilo Baro do Amparo, 1978. (1854, p. 63-68.

    MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silncio: os significados da liberdadeno sudeste escravista. Editora Nova Fronteira, 1995.

    MUNIZ, Clia Maria Loureiro. Os Donos da Terra: um estudo sobre aevoluo fundiria do Vale do Paraba Fluminense no sculo XIX, dissertaomestrado. Rio de Janeiro: UFF - mimeografado, 1979.

    NABUCO, Joaquim. Minha Formao. Porto Alegre: Editora Paraula,1995 (1900)

    REIS, Joo & SILVA, Eduardo.Negociao e Conflito: a resistncia negrano Brasil escravista. S. Paulo: Cia das Letras, 1989.

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    viajantes franceses - colonizao - fim da escravido - Brasil sculo XIX

    Cludia Andrade dos Santos

    Professora Titular de Histria Modernae do Mestrado em Histria da Universi-dade Severino Sombra.

    ResumoOs viajantes franceses no Brasil,

    durante a segunda metade do sculoXIX, se interessam particularmente pelatransformao das condies de trabalhono pas. Para eles, a colonizao umasoluo para os problemas econmicos esociais do Imprio que vai, mais cedo oumais tarde, decretar o fim da escravido.Resta saber o que significa colonizarpara

    cada um desses viajantes. A populaobrasileira suficiente a essa empresaou, ao contrrio, os estrangeiros soindispensveis? Quais so os melhorescolonos? O melhor sistema de coloniza-o aparcerianas grandes propriedadesou as colnias agrcolas independentesbaseadas na propriedade da terra?Na medida em que respondem a essasquestes, os viajantes franceses esboamcertos modelos de colonizao agrcolae de modernizao para a agriculturabrasileira.

    Viajantes Franceses e Modelos de Colonizaopara o Brasil (1850-1990)1

    Palavras-chave

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    O interior do Brasil desconhecido e abriga imensas riquezas. O Brasilpermanece como uma terra a ser explorada. Essas imagens so muito comunsnos textos dos viajantes que, na sua maioria, ope uma natureza luxuriantea uma populao pouco numerosa. A colonizao, isto , a ocupao doterritrio, considerada como uma medida urgente. O que os viajantesnomeiam como a nova colonizao do Brasil considerada como a soluopara os principais problemas econmicos e sociais do imprio: ela valorizar as

    riquezas naturais, assegurar a transio do trabalho escravo para o trabalholivre, permitir o equilbrio da balana comercial, facilitar a obteno decrdito na Europa e, enfim, ela realizar a regenerao moral do pas.

    Se, por um lado, todos esses franceses identificam colonizao modernizao do imprio, por outro lado, no se pode falar de uma idiade modernidade comum a todos esses relatos.

    Para alguns viajantes, como F. Dabadie7, Charles Expilly8 eCharles Ribeyrolles, a modernidade pressupe a aplicao dos ideais da

    Revoluo Francesa, nos quais eles percebem os fundamentos do mundomoderno. A divisa da Revoluo Francesa - liberdade, igualdade, fraternidade- deve orientar as reformas da sociedade brasileira. Inversamente, outrosautores como Emmanuel Liais9, Louis Couty10e Ernest Courcy11negam auniversalidade dos ideais franceses e no os consideram como fundamentaispara a modernizao do Brasil. A adoo do ensino obrigatrio, laico egratuito, por exemplo, um aspecto que divide esses viajantes. Alguns oconsideram como uma das maiores realizaes do processo revolucionriofrancs, enquanto outros deploram as medidas tomadas por Jules Ferry12.Esses ltimos esperam que as iniciativas da terceira repblica francesa notero seguidores no Brasil.

    Se, por um lado, ntida a diferena de princpios entre os via-jantes, por outro lado, existem idias que fazem a unanimidade. A influnciada Europa considerada pela maioria dos viajantes, como uma maneirade fazer avanar a civilizao no Brasil. interessante notar aqui essa

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    referncia idia de Europa: ainda que eles se refiram aos benefcios dainfluncia francesa, eles falam, sobretudo, em prol da influncia europia.No entanto, necessrio notar que a maioria desses viajantes associam amodernizao do Brasil ao distanciamento do pas em relao s influnciasportuguesas. bastante claro que Portugal no faz parte da Europa desses

    viajantes franceses. De fato, no se pode afirmar, com preciso, quais pasescompem essa Europa. Apesar disso, essa Europa, frequentemente evocada

    pelos franceses, deve ser um farol para os pases da Amrica do Sul.Enfim, ainda que a Europa seja erigida como um modelo, vrios

    viajantes chamam a ateno para os perigos de uma incorporao apressadadas novidades europias. Certos autores assinalam uma influncia europiasuperficial entre as elites do Rio de Janeiro: as roupas, a alimentao, oslazeres, os horrios de trabalho, etc. Max Leclerc, por exemplo, acusa aselites brasileiras de preferir esses aspectos superficiais da Europa s trans-formaes estruturais da sociedade e da economia brasileiras13. De fato, se

    a maioria desses autores fala da Europa como fonte de ensinamentos paraas naes em formao, bastante evidente que a palavra Europa tem,para cada um deles, um sentido particular.

    Quais idias so consensuais entre os viajantes? A importnciada cincia e da tcnica para a expanso da civilizao moderna aceita portodos, assim como a idia de que a humanidade deve progredir indefinida-mente. Pode-se dizer o mesmo sobre a idia de que o trabalho a primeiracondio da existncia social. Existe consenso tambm sobre algumas me-didas consideradas como essenciais para transformar o Brasil numa naomoderna. Para todos esses viajantes que tratam desse tema da colonizao,entre eles, Charles Expilly, Charles Ribeyrolles, Adolphe Assier e LouisCouty - mais conhecidos dos historiadores brasileiros - a reabilitao dotrabalho a condio de todas as outras transformaes. Nesse sentido, o fimda escravido faz parte das propostas de todos os viajantes anteriores a 1888,mesmo se existem divergncias importantes nesse aspecto, por exemplo, no

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    que diz respeito maneira de fazer a abolio: com ou sem indenizao dosproprietrios? imediatamente ou progressivamente? O desenvolvimento das

    vias de comunicao e a adoo de mtodos cientficos para a agricultura tmtambm uma grande importncia nos projetos desses viajantes. A civilizao considerada, antes de mais nada, como uma conquista do homem sobrea natureza.

    A idia de colonizao aparece, portanto, associada idiade progresso e a uma certa concepo de natureza: a natureza algo a ser

    conquistado e ocupado. Traduzindo, talvez, as inquietaes dos brasileirosa esse respeito, os viajantes franceses evocam, todos, a gravidade da situaobrasileira: a colonizao do Brasil no pode esperar pois uma grave criseeconmica o aguarda no caso do pas no conseguir aumentar a quantidadee a variedade dos seus produtos de exportao.

    Entretanto, muitas diferenas importantes aparecem quando setrata de definir certos aspectos concretos dessa nova colonizao do Brasil.Em primeiro lugar, trata-se de definir se a populao brasileira suficiente

    para essa empresa. Para a maioria desses autores, a resposta negativapor duas razes. Primeiramente, a populao brasileira numericamenteinsignificante. Em segundo lugar, alguns autores, entre os quais, CharlesRibeyrolles, Adolphe Assier e Louis Couty falam da fraqueza econmicadessa populao. Partindo de uma viso bastante esquemtica e redutorada economia e da sociedade brasileira, esses viajantes consideram que a po-pulao livre brasileira no deve ser considerada como um fator econmicoimportante. A economia brasileira depende inteiramente da produo dasgrandes propriedades agrcolas baseadas no trabalho escravo e nos produtos

    de exportao. A concluso desses viajantes a de que a populao livrebrasileira incapaz de fornecer um trabalho regular ou de criar verdadeirasriquezas.

    Certos autores, como Charles Ribeyrolles e Adolphe Assier,estabelecem uma relao entre a cor da populao livre e a sua pretensa in-dolncia ou incapacidade para a regularidade e a disciplina. Outros autores,como V. L. Baril, observam que o Estado brasileiro s investe nos interesses

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    viajantes que pensam que o imigrante europeu deve ser chamado paravalorizar a terra brasileira. A principal questo consiste em saber se ocolono europeu deve ser chamado para trabalhar nas grandes plantaes ouse, ao contrrio, o governo brasileiro deve garantir a formao de colniasagrcolas independentes. Esses franceses se unem, portanto, aos intelectuaise polticos brasileiros nesse grande debate sobre a nova colonizao doBrasil: a ocupao do territrio brasileiro deve seguir a lgica da grande

    propriedade ou, ao contrrio, deve servir para acelerar a formao de pe-quenas propriedades?

    Nos anos 1850, o governo brasileiro apoiou diversas iniciativasvisando atrair o imigrante europeu. De um lado, ele apoiou a iniciativa deum grande proprietrio da provncia de So Paulo, o senador Vergueiro, queprocurava recrutar colonos europeus para o trabalho nas fazendas de caf.Esses colonos seriam instalados segundo o sistema de parceria, baseado nadiviso das colheitas. Por outro lado, o governo acompanhou diretamente

    a criao de companhias de colonizao cujo objetivo era o de instalar ocolono europeu em pequenas propriedades num sistema de venda de terras crdito. Os dois tipos de iniciativa fracassaram. As fazendas do oestepaulista que adotaram o sistema de parceria foram palco de vrios conflitosentres os colonos e os proprietrios. Um desses conflitos acabou chamandoa ateno dos governos alemo e suo e esteve na origem das medidas derestrio e mesmo de interdio adotadas nesses pases contra a emigraopara o Brasil: trata-se do conflito de Ibicaba15onde o principal ponto dediscrdia era o valor da dvida dos colonos.

    Quanto ao sistema de venda de terras a crdito, ele conheceutambm os seus problemas. A Companhia do Mucury foi acusada dereceber colonos em instalaes imprprias provocando a morte de vriaspessoas. Esses dois acontecimentos tiveram grandes repercusses na Europae deflagraram, na imprensa francesa, uma campanha contra a emigrao deeuropeus para o Brasil.

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    pedir uma reforma do sistema fundirio e a propor um sistema de colonizaobaseado na formao de pequenas propriedades: o acesso propriedaderural visto, portanto, como condio indispensvel emigrao europia.

    A concentrao de terras nas mos de um pequeno nmero de proprietrios considerada como um dos maiores obstculos colonizao.

    Como explicar essa unanimidade de julgamento sobre o sistemade propriedade brasileiro? Por que as crticas grande propriedade renemtodos esses franceses, os de direita e os de esquerda, os republicanos e osmonarquistas? Aparentemente, o nico aspecto comum a todos esses via-

    jantes que discutem sobre o problema da colonizao, o fato de possuremnacionalidade francesa.

    Essa viso crtica em relao grande propriedade pode ser ex-plicada pela admirao dos viajantes pelo sistema de propriedade francs? pouco provvel, pois esses autores tm opinies bastante divergentes sobre osistema de propriedade francs e sobre o futuro da agricultura francesa. Alm

    disso, as dimenses das propriedades no Brasil e na Europa impedem qual-quer comparao. Se, por um lado, bastante difcil explicar esse consensoentre os viajantes, por outro lado, possvel identificar certas idias comunsque se associam as proposies relativas reforma do sistema fundirio: aterra deve servir, antes de tudo, explorao; o desmembramento das grandespropriedades seria a medida mais benfica para o Brasil, principalmentequando se constata que a maioria dos latifndios permanecem improdutivos.

    Alguns viajantes pensam que a reduo do tamanho das propriedades uma consequncia lgica do fim da escravido. Os projetos de colonizaodevem, portanto, fundamentar-se no exemplo do colono livre trabalhandosua pequena propriedade com sua famlia, produzindo para o seu prprioconsumo e para o mercado. Apesar de todas as suas divergncias, os via-

    jantes franceses se reencontram na idia de que o imigrante europeu deveser chamado para regenerar moralmente o Brasil graas ao exemplo dotrabalho livre. Ainda que os casos de colonos europeus instalados no Brasil

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    Notas1Resumo do trabalho apresentado no Colquio franco-brsilien (Modles politiques et culturelsau Brsil: emprunts, adaptations et rejets)realizado na Universidade de Paris - Sorbonne entre os

    Abstract

    During the second half of XIXth century, the French voyagers in Brazilwere chiefly interested in the transformations of the working conditions in the country. Forthem, the colonization would be a solution for the economical and social problem faced bythe Empire, especially with slaverys end. What means colonization for each of these

    voyagers? Would the Brazilian people be sufficient to this enterprise, or foreigners wouldbe necessary? Which would be the best system of colonization: partnerships in large farms,or independent settlements based on land ownership? While trying to answer these ques-

    tions, the French voyagers outline models for agricultural colonization and modernizationof the Brazilian agriculture.

    Key words

    french voyagers - colonization - slaverys end - Brazil XIXth century

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    57R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 5, p. 45-60, 2003

    dias 8 e 10 de maro de 1999, com o ttulo Abolition et immigration: modles de colonisation des

    voyageurs franais (1850-1900).2Frequentemente essas mltiplas questes relativas ao final do escravismo no esto presentes nos

    estudos sobre o perodo. O processo de transio analisado em funo das solues efetiva-mente adotadas: por um lado, nenhuma reforma estrutural; por outro lado, a soluo paulista de

    incorporao do imigrante italiano. Cumpre citar, numa direo diferente, o texto de Eduardo Silva

    O Beija-mo, que reconstitui esse debate em torno da transio, nos anos 1883, levando emconsiderao as diversas tendncias a presentes: os adeptos da soluo chinesa, os imigrantistas,

    os bares do caf, os partidrios de uma reforma do sistema de propriedade como forma deincorporar estrangeiros e brasileiros num sistema de pequena propriedade (Sociedade Central deImigrao, Andr Rebouas, Ennes de Souza, etc), D. Ob II, como representante da frica

    Pequena e da soluo africana fazem parte desse grande debate intelectual e poltico que se

    seguiu extino do trfico africano. Cf. SILVA, Eduardo,D. Ob II dfrica, o Prncipe doPovo, So Paulo, Companhia das Letras, 1997, 96-111.3No mbito da minha tese de doutorado Les voyageurs franais et les dbats autour de la fin de

    lesclavage au Brsil (1850-1800), eu analisei os relatos e artigos de vinte e seis viajantes e dezpublicistas franceses: Gustave AIMARD, Emile ALLAIN, Adolphe ASSIER, Lonce AUBE,

    Emile AUDET, V. L BARIL., Paul BERENGER, Franois BIARD, Jean BONNEFOUS,

    Hippolyte CARVALHO, Auguste COCHIN, Edmond COTTEAU, Vicomte Ernest deCOURCY, Louis COUTY, F DABADIE., S DUTOT., Charles EXPILLY, Joseph FORT,

    Cte Alexis de Cadoine de GABRIAC, Frdric HOUSSAY, R LE CHOLLEUX., MaxLECLERC, Emile LEVASSEUR, Emmanuel LIAIS, L. R., Max LYON, Lon MICHAUX-

    BELLAIRE, Ernest MICHEL, Le Cte Renaud de MOUSTIER, Etienne RANCOURT,

    Elise RECLUS, Charles REYBAUD, Charles RIBEYROLLES, Emile de Saint DnisSAINT MARTIAL, Victor SCHOELCHER, Alfred-Charles Thomas SPONT.4A passagem que se segue, de Charles Ribeyrolles, exprime bem esta concepo da natureza:

    Toda terra sem cultura capital morto, uma paisagem para as aquarelas, um simples horizonteou ponto de vista (...) A terra necessita do trabalho como de sol, da cincia assim como de orvalho

    (...) eu gostaria de ver os grandes pesquisadores do nosso tempo entrarem na floresta e de vernossos proletrios ocupando os vales. A terra e o homem ganhariam com isso, a cincia tambm.RIBEYROLLES, Charles. Brazil pittoresco. Paris, Lemercier, 1861, vol. 3, pp. 81-85. Entre

    os viajantes, somente Franois Biard e Frderic Houssay no se interessam pela natureza enquantodado econmico. Para eles, a natureza fonte de inspirao esttica ou lugar de aventuras.5Charles Expilly fala dos efeitos do calor dos trpicos e Adolphe Assier indica o poder destrutivo

    das inundaes, alm de assinalar o grande nmero de insetos nas margens dos grandes rios. Ape-sar dessas ressalvas, esses dois viajantes acabam se unindo aos outros autores em torno da idia

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    de uma natureza rica e extremamente frtil: Diversos produtos mesmo da indstria parecem sairespontaneamente do solo; po, leite, manteiga, frutos, perfumes, peixes. ASSIER, Adolphe.Le

    Brsil contemporain. Paris, Durant et Lauriel, 1867, p. 25.6Etienne Rancourt se mostra preocupado com os perigos de se divulgar a imagem de uma natu-reza paradisaca. Ainda que ele prefira mostrar as vantagens econmicas de cada regio, Etienne

    Rancourt critica bastante os que prometem fortunas fabulosas aos europeus instalados nos trpicos.

    Cf. RANCOURT, Etienne.Fazendas et estancias, notes de voyage sur le Brsil et lArgentine.Paris, Librairie Plon, 1901, pp. 143-147.7

    DABADIE, F.A travers lAmrique du Sud. Paris, Sartorius, 1858.8EXPILLY, Charles. Le Brsil tel quil est. Paris, Denter, 1862; Du Mouvement dEmigrationpar le port de Marseille, Marseille. Typographie-Roux, 1864;La traite, lmigration et la colonisation

    au Brsil.Paris, A. Lacroix. au Bureau de laRevue du Monde Colonial asiatique et amricain.

    1864;La vrit sur le conflit entre le Brsil, Buenos Ayres, Montevideo et le Paraguay, Paris, Denter,1866;Les femmes et les moeurs du Brsil, Paris, Charlieu et Hillery, 1863.9LIAIS, Emmanuel. LEspace Cleste ou description de lUnivers, accompagn des rcits des

    voyages entrepris pour en complter ltude. Paris, Garnier Frres, 1882.10COUTY, Louis. Lesclavage au Brsil. Paris, Guillaumin et Cia. Editeurs, 1881.11COURCY, Vicomte Ernest de. Six semaines aux Mines dor du Brsil. Rio de Janeiro, Ouro

    Preto, Saint Jean dEl Rey, Petropolis, Paris, L. Sauvaitre, 1889.12Jules Ferry (1832-1893), poltico francs, ministro da Instruo Pblica de fevereiro de 1879

    a novembro de 1881 e de janeiro a agosto de 1882. Sua ao como ministro foi de luta contra ascongregaes educacionais e em favor de uma escola primria laica. Ele empreende uma reforma

    legislativa destinada a fornecer um estatuto para a escola primria: gratuidade e obrigatoriedade

    do ensino.13LECLERC, Max,Lettres du Brsil. Paris, Librairie Plon, 1890, p. 58.14Para um balano dessa discusso sobre a entrada de chineses no Brasil, ver LAMOUNIER,

    Maria Lcia.Da escravido ao trabalho livre, (a lei de locao de servios de 1879). So Paulo,Papirus, 1988.

    15Sobre o conflito de Ibicaba et sobre outros problemas com os contratos de parceria, Cf. LA-MOUNIER, Maria Lcia, op. cit., pp. 43-55.16Gegrafo francs e terico do anarquismo (1830-1905). Ele foi perseguido pelas suas idias

    republicanas e foi exilado depois do golpe de estado de dezembro de 1851 que colocou fim segunda

    repblica francesa. Aps uma estadia de vrios anos em Nova Granada, retornou a Paris ondepublica, principalmente naRevista dos Dois Mundos (Revue de Deux Mondes)e no Volta ao mundo(Tour du monde), seus relatos de viagem e estudos geogrficos sobre os lugares visitados. Eleito

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    59R. Mestr. Hist., Vassouras, v. 5, p. 45-60, 2003

    membro da Sociedade de Geografia de Paris, Elise Reclus participa ativamente das atividadesdessa sociedade. Ele foi condenado e banido da Frana aps ter participado da Comuna de Paris

    em 1871. Cf. BITARD, Adolphe.Dictionnaire de biographie contemporaine. Paris, L. Van Ier,

    1880 et LIGOU, Daniel.Dictionnaire de la franco-maonnerie. Paris, P.U.F., 1987.17RECLUS, Elise. Le Brsil et la colonisation: les provinces du littoral, les Noirs et les colonies

    allemandes,Revue de Deux Mondes, 1862, vol. 4, pp. 375-414.18A criao desse cargo de Comissrio de Emigrao uma das medidas administrativas tomadaspelo governo de Napoleo III no sentido de dificultar a emigrao de franceses. Um decreto de 15

    de janeiro criou os Comissrios especiais de emigrao.19EXPILLY, Charles. La traite, lmigration et la colonisation au Brsil. Paris, A. Lacroix. auBureau de laRevue du Monde Colonial asiatique et amricain,1864, p. 121.20BARIL, V. L.LEmpire du Brsil. Paris, Ferdinand Sartorius, 1862.21Cf. entre outros, SANTOS, Cludia Andrade dos. Projetos sociais abolicionistas: ruptura oucotinusmo? in REIS FILHO, Daniel Aaro (org.). Intelectuais, Histria e Poltica. Rio de

    Janeiro, Sete Letras, 2000 e SANTOS, Cludia Andrade dos.

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    A Questo Filosfica do Princpio de Individuao e asRestries Decorrentes das Condenaes de 1277

    Eduardo Vieira da Cruz

    Professor do Centro de Filosofia, Letrase Cincias Humanas da UniversidadeSeverino Sombra.

    ResumoA partir da afirmao de que o

    princpio de individuao a matria,duas questes encontraro eco na des-confiana instaurada pelas condenaesde 1277: como os anjos se distinguemindividualmente visto que no possuemcorpos e, sobretudo, como a alma huma-na mantm a sua individualidade aps

    a morte?

    Palavras-chavefi losofia medieval - princpio deindividuao - hilemorfismo universal -

    condenaes de 1277

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    Eduardo Vieira da Cruz

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    O objeto primeiro da filosofia , evidentemente, o ser. Umsegundo objeto a que o pensamento filosfico deve se consagrar - e que ganhauma relevncia sem precedente, a partir do sculo XIX, com as cincias ditassociais - o indivduo, ou melhor dito, a questo do seu aparecimento. questo primordial da filosofia o que o ser sucede uma outra que nocessa de ganhar em importncia ao longo da histria da filosofia: como oser se torna um ser individual.

    O primeiro filsofo a levantar a questo do princpio deindividuao como elemento necessrio compreenso metafsica do ser foi

    Aristteles. A pedra de toque para a compreenso do pensamento aristotlicose funda na tenso entre a afirmao do indivduo como a primeira realidadefsica e a concepo metafsica do ser como entidade notica. A passagem doser abstrato ao indivduo concreto estabelece a necessidade de um princpioindividuante. Esse princpio, constituinte e regulador da estrutura metafsica

    do ser, Aristteles o encontrou na matria.1

    Muito se discute sobre o grau de influncia que o pensamentode Aristteles teria efetivamente exercido nos filsofos romanos e nos neo-platnicos da Patrstica Grega ou Latina. O que consenso, entretanto, que os seus textos, sobretudo a Metafsica, s foram progressivamentetraduzidos para o latim - a partir de tradues rabes dos escritos gregos- nos sculos XII e XIII. E precisamente o estudo sistemtico das obrasaristotlicas, pelas Universidades de Paris e Oxford, principalmente, que

    contrabalanaram a unanimidade da autoridade de Santo Agostinho nosestudos escolsticos. E assim, junto com a lgica formal, com as categorias,com a argumentao silogstica, com os elementos metafsicos do ser, comas concepes fsico-biolgicas da substncia e do devir, chega tambm, nafaculdade de Artes e na faculdade de Teologia, o problema da matria comoprincpio de individuao.

    Assim, a clssica afirmao aristotlica de que o princpio da

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    Eduardo Vieira da Cruz

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    distino individual a matria (p. ex. Pedro e Joo se distinguem no pelahumanidade que os fazem ser homens, mas pela matria que os tornamesse ou aquele homem) se depara, em meados do sculo XIII, com umproblema aparentemente sem grande importncia filosfica, embora rico emconseqncias para a prpria filosofia: como os anjos se distinguem, vistoque eles no possuem corpos?

    Ao mesmo tempo, uma outra questo se impe com uma gravi-dade inigualvel: como a alma de Pedro ou de Joo, ao desencarnar, evitarde se dissolver na humanidade que a constitui, uma vez que o que a faz sersingular - a matria - justa mente aquilo da qual se encontra livre? Esse o paradoxo que animar as discusses na segunda metade do sculo XIII,nas quais o poder poltico da Igreja estar sem dvida muito longe de serum mero espectador.

    A partir do conclio de Latro IV (1215), fica estabelecida aobrigatoriedade da confisso anual. Embora, em seus primrdios, a prtica

    da confisso se desse na presena dos olhares da comunidade, a instauraoda concepo propriamente privada da confisso - onde o domnio do segredose torna cada vez mais um domnio individual - se consolida progressivamenteao longo dos sculos XIII e XIV.2

    Alm disso, a partir da segunda metade do sculo XII, delineia-seos contornos daquilo que ficar conhecido sob o nome de purgatrio, ou seja, olugar-tempo intermedirio entre a vida terrestre e o paraso da salvao eterna.Esse advento ser rico em desdobramentos por dois motivos. Primeiramente,

    junto com o purgatrio, nasce tambm uma categoria particular de pecado, opecado venial, que enfraquece a graa sem, no entanto, destru-la. Esse tipo depecado deve ser purgado, assim como os pecados mortais no completamenteredimidos pela penitncia em vida, pelas prticas purgatrias que permitiro alma desencarnada atingir o paraso. Em segundo lugar, a existncia dopurgatrio funda a possibilidade de uma comunicao entre os vivos e osmortos mediada pela Igreja. As prticas litrgicas tm o poder de abreviar

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    A Questo Filosfica do Princpio de Individuao e as Restries Decorrentesdas Condenaes de 1277

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    os suplcios a que as almas devem se