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Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23, p. 113-143, jan/jun 2005 GOIÁS: A INVENÇÃO DA CIDADE “PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE” Andréa Ferreira Delgado Universidade Federal de Goiás – Brasil Resumo: Neste artigo, investigo a instituição de Goiás como uma cidade histórica e turística, entrelaçando séries discursivas que conferem visibilidade e sentidos à cidade ao trabalhar as relações do espaço urbano, o tempo e a história: a delimitação da cidade como bem cultural por meio da incorporação na ordem do discurso do Patrimônio Nacional; a invenção das tradições locais promovida pela Organização Vilaboense de Artes e Tradições; a produção da cidade “Patrimônio da Humanidade” no Dossiê de Goiás e a escrita da memória de Cora Coralina, que configura significados para o passado inscrito na textura material da cidade. Palavras-chave: cidade, literatura, memória, patrimônio. Abstract: In this article, I investigate the institution of Goiás as a historical and touristic town, interweaving discoursives series that gives visibility and meanings to the town by working the relations of urban space, time and the history: the delimitation of the town as a cultural values through the incorporation of the National Patrimony discourse; the invention of local traditions promoted by Organização Vilaboense de Artes e Tradições; the production of the town “Patrimony of Humanity” in the Dossier of Goiás and the writing of Cora Coralina’s memory that takes the form of the past inscribed in the texture of the town material. Keywords: literature, memory, patrimony, town. Em 2001, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) referendou, por unanimidade, a indicação do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos) para que o centro histórico de Goiás recebesse o título de “Patrimônio da Humanidade”. Esse evento coroou uma mobilização que iniciou em 1998, coordenada pelo Movimento Pró-Cidade de Goiás – Patrimônio da Humanidade, e reuniu entidades da cidade de Goiás, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e os governos municipal e estadual.

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23, p. 113-143, jan/jun 2005

    GOIS: A INVENO DA CIDADE PATRIMNIODA HUMANIDADE

    Andra Ferreira DelgadoUniversidade Federal de Gois Brasil

    Resumo: Neste artigo, investigo a instituio de Gois como uma cidade histricae turstica, entrelaando sries discursivas que conferem visibilidade e sentidos cidade ao trabalhar as relaes do espao urbano, o tempo e a histria: adelimitao da cidade como bem cultural por meio da incorporao na ordem dodiscurso do Patrimnio Nacional; a inveno das tradies locais promovida pelaOrganizao Vilaboense de Artes e Tradies; a produo da cidade Patrimnioda Humanidade no Dossi de Gois e a escrita da memria de Cora Coralina, queconfigura significados para o passado inscrito na textura material da cidade.

    Palavras-chave: cidade, literatura, memria, patrimnio.

    Abstract: In this article, I investigate the institution of Gois as a historical andtouristic town, interweaving discoursives series that gives visibility and meaningsto the town by working the relations of urban space, time and the history: thedelimitation of the town as a cultural values through the incorporation of theNational Patrimony discourse; the invention of local traditions promoted byOrganizao Vilaboense de Artes e Tradies; the production of the townPatrimony of Humanity in the Dossier of Gois and the writing of CoraCoralinas memory that takes the form of the past inscribed in the texture of thetown material.

    Keywords: literature, memory, patrimony, town.

    Em 2001, a Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cinciae Cultura (Unesco) referendou, por unanimidade, a indicao do ConselhoInternacional de Monumentos e Stios (Icomos) para que o centro histricode Gois recebesse o ttulo de Patrimnio da Humanidade. Esse eventocoroou uma mobilizao que iniciou em 1998, coordenada pelo MovimentoPr-Cidade de Gois Patrimnio da Humanidade, e reuniu entidades dacidade de Gois, o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional(Iphan) e os governos municipal e estadual.

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    Ao examinarmos esse episdio da histria da memria, parece haverconsenso entre as instituies protagonistas do processo de inveno deGois como uma cidade histrica e turstica. O Iphan, rgo federalresponsvel pela criao do Patrimnio Nacional, que atua nessa cidadedesde a dcada de 1950, est agindo em parceria com as entidades que seorganizaram em Gois para produzir e gerir uma poltica cultural, cujasdiretorias so compostas por um conjunto de moradores que seinstitucionalizaram como guardies da memria da cidade ao criar a entidadecultural pioneira, a Organizao Vilaboense de Artes e Tradies (Ovat), nadcada de 1960.

    No entanto, para alm das alianas, a pesquisa histrica configuradaneste artigo delineia principalmente os conflitos e as disputas que marcaramo campo da memria na cidade de Gois (Delgado, 2003).

    A expresso inveno da cidade pretende chamar a ateno para otrabalho de produo, gesto e imposio de determinada memria coletivaque objetiva Gois como testemunha da histria e guardi do patrimnionacional, merecedora, por isso, do ttulo de Patrimnio da Humanidade.Investigar a instituio de Gois como cidade histrica , portanto, indagaracerca dos atores e das estratgias de enquadramento da memria, naacepo de Michel Pollak (1989).

    No processo de constituio de contedos para o passado, oinvestimento para solidificar e dotar de durao e estabilidade umadeterminada memria para representar o conjunto da sociedade configuraoperaes de seleo, organizao e uniformizao da multiplicidade designificados atribudos ao passado. Nessa perspectiva terica, a memriacoletiva concebida enquanto coero, como imposio, uma formaespecfica de violncia simblica (Pollak, 1989, p. 3).

    A declarao e classificao de algumas cidades como histricasatribui territorialidade histria que as instituies dotadas do poder deconsagrar os smbolos nacionais querem perpetuar, engendrando lugares damemria, como nos ensina Pierre Nora (1993, p. 18), onde a estabilidadee preservao do espao favorecem o relembrar e o reencontrar dopertencimento, princpio e segredo da identidade que se pretendeuniformizar e impor como nacional ou regional.

    O reconhecimento de Gois como cidade histrica no pode ser apenasexplicado pelo fato de ter sido a capital por mais de 200 anos e conservar

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    na estrutura urbana as construes do sculo XVIII. A insero de Goisno mapa do patrimnio no se justifica simplesmente pelo desejo depreservar suas construes como vestgios do passado, cujos valores seriamsupostamente intrnsecos aos objetos e preexistentes a qualquerclassificao. O rgo do Patrimnio Nacional no descobre o valor estticoe histrico dos bens; pelo contrrio, ele institui esses valores.

    A cidade de Gois somente passou a ter visibilidade como bem culturale lugar histrico quando foi inscrita na rede discursiva do patrimnio, medida que o tecido da linguagem lhe foi atribuindo determinados contedospara torn-la smbolo da memria coletiva.

    Nesse processo de composio do campo da memria, um dosmecanismos fundamentais o trabalho de constituio do patrimnioimaterial de Gois empreendido pela Organizao Vilaboense de Artes eTradies. Fundada com a proposta de resgatar e manter as tradiesde Gois, essa entidade torna-se responsvel pela instituio da cidade comobero da cultura goiana.

    Outro agente da construo de Gois como ncora da identidaderegional e nacional Cora Coralina. Ao entretecer o rememorar do tempoaos espaos da cidade, ela torna-se artfice de significados para o passadoe compe um mapa da memria que pea estratgica na consagrao deGois enquanto cidade histrica e turstica.

    A incorporao na ordem do discurso do Patrimnio Nacional, ainveno das tradies locais e a monumentalizao de Cora Coralina comosmbolo emblemtico so maquinarias discursivas que se entrelaam paraobjetivar a cidade de Gois como um lugar da memria. Em outraspalavras, diferentes formas narrativas, categorias discursivas e estratgiassimblicas instauram, de forma articulada, o passado, o presente e o futuroda cidade. Essas sries discursivas que produzem o patrimnio material eimaterial da cidade configuram o documento-monumento Dossi de Gois como ficou conhecido o Dossi Proposio de Inscrio da cidade deGois na Lista do Patrimnio da Humanidade (1999) que delineia ascategorias simblicas que instituem o Patrimnio da Humanidade.

    Investigar essas prticas discursivas que trabalham as relaes entre oespao, o tempo e a histria para conferir visibilidade e sentidos a essacidade constitui a trama deste artigo.

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    A ao da DPHAN na dcada de 1950 e o tombamento de bens isolados

    Quando o rgo responsvel pela instituio do Patrimnio Nacional,ento denominado Diretoria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional(DPHAN) chegou cidade de Gois, no incio da dcada de 1950, pararealizar o tombamento dos principais edifcios pblicos e religiosos, querepresentavam o acervo arquitetnico setecentista, foi recebido comdesconfiana.

    A cidade ainda vivia o trauma da transferncia da capital para Goinia,ocorrida em 1937. Sua identidade estava at ento estreitamente vinculada condio de sede do poder poltico, como capital da Capitania, da Provnciae do Estado de Gois, sucessivamente.

    Sndrome da mudana e trauma da mudana so expressesutilizadas pelos vilaboenses entrevistados para explicar o comportamentodaqueles que identificavam o tombamento com o atraso, a estagnao dacidade, enquanto que o sonho de Gois era crescer, se igualar Goinia(Hercival Alves de Castro ex-secretrio municipal da Cultura, entrevistaconcedida a mim em 14 de novembro de 2001).

    A mesma opinio compartilhada pelo advogado Elder Camargo dePassos, presidente da Organizao Vilaboense de Artes e Tradies desdea fundao, ao se referir resistncia das famlias tradicionais da cidade ao da DPHAN:

    Eu fui contrrio ao tombamento nos primeiros anos, liderado por um grupoque no via a preservao como estmulo ao futuro de Gois. Seria um atrasopara a cidade, voc no poderia mudar a fachada, no poderia mandar dentro.Voc no mandaria na sua casa. [] Seria condenar a cidade morte, comofalavam: voc quer condenar nossa cidade morte, voc no pode mexernada, no pode fazer nada, voc no dono da sua casa, voc no donode nada. [] Inclusive o termo tombado j liga queda, deteriorao.(Elder Camargo de Passos, entrevista concedida a mim em 19 de agosto de1999).

    No campo discursivo do patrimnio, o tombamento expressa o ritual deregistro de um bem nos livros de tombo, momento de sua nomeao oficialenquanto patrimnio e da sua inscrio como objeto de interesse pblico sobguarda do Estado. O poder pblico deve zelar pela preservao econservao das caractersticas que o tornam representativo do passado.Em contrapartida, no discurso contrrio ao tombamento, os argumentos

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    exploram outros significados semnticos do termo, associando o ato aodeclnio, deteriorao e queda, interpretando-o como sinnimo do atrasoe da estagnao, constituindo a condenao da cidade morte.

    Do mesmo modo, os moradores de Gois receberam com reservas ahomenagem prestada, em 1961, pelo governador Mauro Borges Teixeira filho do governador Pedro Ludovico Teixeira, que liderou a transferncia dacapital ao promulgar um decreto determinando que o governo do Estadofosse anualmente transferido para a antiga capital durante uma semana acontar do dia de aniversrio da cidade, 25 de julho, perodo no qual o PalcioConde dos Arcos seria novamente sede do governo e residncia dogovernador.

    Nos dois momentos histricos, Gois configurava-se como campo deconflitos. O ato do governador Mauro Borges e, principalmente, a ao dorgo federal do Patrimnio representavam a imposio de uma identidadede monumento do passado para uma cidade que, at poucas dcadas, erasmbolo da histria do tempo presente.

    Nessa primeira interveno na cidade de Gois, a Diretoria doPatrimnio Histrico e Artstico Nacional consagrou bens isolados comomonumentos histricos, a partir da concepo de patrimnio que orientavasua atuao desde a criao.

    A instituio foi fundada em 1937, com o nome de Servio doPatrimnio Histrico e Artstico Nacional (Sphan) e, at o final da dcadade 1960, foi dirigida pelo mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade, que,juntamente com o grupo de intelectuais modernistas que se integrou aorgo, foi responsvel pela institucionalizao de um conjunto de prticasculturais, enquanto poltica oficial do Estado, que sacramentou determinadosobjetos como patrimnio nacional.

    Na historiografia oficial produzida no interior da prpria instituio, esseperodo denominado fase herica, ressaltando-se que o adjetivo parececorresponder realidade do trabalho que se levou a efeito (MEC-Sphan/Pr-Memria, 1980, p. 28).

    Os tcnicos de notrio saber que compunham o conselho consultivo doSphan detinham poder publicamente reconhecido para enunciar o regime deverdade acerca do patrimnio. Ao pautar a atuao em rigorosas pesquisase na escrita de artigos jornalsticos, relatrios tcnicos e trabalhosespecializados publicados pela prpria instituio, os membros do ConselhoConsultivo produziam uma massa documental que fez muito mais do que

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    inventariar, pois foi responsvel pela inveno do Patrimnio Histrico eArtstico Nacional.

    Mariza Veloso Santos (1996) e Jos Reginaldo Gonalves (1996),utilizando-se de referenciais tericos semelhantes, investigam essasestratgias de construo discursiva que objetivam a nao ao encarn-lamaterialmente em objetos fsicos que so postulados como sagrados eprotegidos como patrimnio nacional. Segundo Mariza Santos (1996, p. 82),a produo discursiva do Iphan culmina na nomeao simblica dos objetosmveis e imveis, que so transformados em ndices de nacionalidade, emreferenciais coletivos por possurem densidade histrica e esttica. Essesdiscursos do patrimnio cultural constituem, conforme Jos ReginaldoGonalves (1996, p.11), uma modalidade de inveno discursiva do Brasilpor produzirem narrativas nacionais [] cujo propsito fundamental aconstruo de uma memria e de uma identidade nacionais.

    Para investigar os mecanismos de inscrio da cidade de Gois nessarede discursiva, o Dossi de Gois (1999) nos oferece algumas pistas: adeclarao de valor de Gois, enquanto patrimnio, estabelecida pelaanlise comparativa com as cidades fundadas no ciclo do ouro. Goisadquire visibilidade quando sua conformao urbana aproximada a outrascidades histricas j consagradas. Assim, podemos inferir que o inventrio,a qualificao e a designao dos bens a serem protegidos em Gois tomoucomo referncia o conjunto de valores atribudos s cidades mineiras que,conforme Silvana Rubino (1992), foram paradigmticas para a construo doPatrimnio Nacional.

    Em 1950, a ento Diretoria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacionaltombou, por meio da inscrio no Livro do Tombo das Belas-Artes, a Igrejade Nossa Senhora da Boa Morte (construda em 1779), a Igreja de SoFrancisco de Paula (1761), a Igreja de Nossa Senhora do Carmo (1786), aIgreja de Nossa Senhora da Abadia (1790), a Igreja de Santa Brbara(1780). No Livro do Tombo Histrico, foi registrado o Quartel do Vinte(1747). Em 1951, no Livro do Tombo das Belas-Artes, ocorreu a inscrioda Casa de Cmara e Cadeia (1761); do Chafariz de Cauda da Boa Morte(1778), da Casa de Fundio e do Palcio Conde dos Arcos (construescontguas que resultam de adaptaes realizadas em cinco edifciosresidenciais, datadas do incio do sculo XVIII).

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    O tombamento de edificaes isoladas justifica-se a partir do conceitode monumento histrico: determinadas construes so consagradas comotestemunhas da histria e passam a incorporar a funo de suscitar arememorao do passado. Com isso, o conjunto dos bens tombados peloSphan constri uma narrativa material de determinada histria do Brasil,considerada como a Histria Nacional, cuja matriz discursiva foi produzidano Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB).

    Esses monumentos, conforme Rodrigo Melo Franco de Andrade (1961apud Rubino, 1992, f. 11), so considerados documentos de identidade danao brasileira, revelando a relao fundamental que se estabelecia entrea construo da nao e a instituio do patrimnio histrico e artsticonacional.

    Essa poltica preservou os testemunhos do poder de uma elite e comeles se props a construo da identidade histrica e cultural da naobrasileira. Alijando do campo do patrimnio os vestgios, por exemplo, dostemplos no catlicos, das senzalas e dos bairros operrios, legitimou-se aexcluso dos outros grupos sociais. A produo da memria coletiva nassociedades contemporneas configura-se, portanto, como uma formaespecfica de dominao simblica.

    Capturados para o campo do patrimnio, determinados monumentosisolados da cidade de Gois foram investidos de significados pelo processode tombamento e consagrados como artefatos de valor excepcional portestemunharem tanto a histria colonial nessa regio quanto a formao danao. Contudo, esse processo teve pouca influncia na dinmica urbana,visto que a DPHAN no promoveu imediatamente restauraes nos bens etampouco estimulou a visitao pblica.

    Percebe-se, portanto, que a primeira interveno do rgo federal doPatrimnio Histrico e Artstico Nacional em Gois no foi acompanhada deuma poltica de gesto efetiva dos bens tombados, que viesse a provocaralteraes no desenvolvimento urbano. A configurao da cidade histrica eturstica ser um processo lento e complexo, que no pode ser compreendidosem a anlise das prticas discursivas da Organizao Vilaboense de Artese Tradies, que prope o resgate e a manuteno das tradies comogesto do futuro da cidade.

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    A Ovat e a inveno das tradies

    Numa poesia intitulada Cidade de Gois I (a cidade a quem chega),Carlos Rodrigues Brando (1976, p. 42) declara:

    H uma Goisque de si mesmaconta mais casosque um almanaqueConta e recontaat que a menteguarde para sempreo antigo e o raro.

    O antroplogo registra o movimento de produo discursiva de Goisque a institua paulatinamente como cidade histrica, fazendo proclamas deum tempo raro e contando de si mesma mais casos que um almanaque.Agenciam-se categorias como passado, cultura e tradio para construir aidentidade da cidade de Gois como bero da cultura goiana, ttulonaturalizado atualmente, mas do qual nos interessa investigar as estratgiasde produo.

    A abertura de vrios prdios histricos para visitao, a elaborao dosprimeiros roteiros tursticos e folhetos informativos e o lanamento de livrosacerca da histria da cidade e de suas manifestaes culturais contam erecontam Gois. Historiando essa produo, nossa ateno converge paraa criao, em 1965, da Organizao Vilaboense de Artes e Tradies(Ovat).

    Os fundadores da Ovat consideram-se herdeiros do movimentoantimudancista, e a concebem enquanto institucionalizao do movimentode ao cultural organizado na esteira da reao mudana da capitalpara Goinia. Elder Camargo de Passos, que preside a instituio desde suacriao, estabelece o discurso fundador:

    A na dcada de sessenta ns criamos a Ovat, Organizao Vilaboense deArtes e Tradies, que era um grupo de pessoas ligadas cultura e artee comeamos a planejar o que seria Gois para o futuro. De que ela poderiaviver, de qu? Ns partimos a pesquisar e ver que o passado de Gois eraum passado muito rico em tradies, em arte, em cultura, em histria. Desde

    H uma Goisque de seus anoslana editaise faz proclamasde um tempo rarono ouvido atentode qualquer genteque surja, passe.

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    1 A expresso inveno das tradies tem sido amplamente utilizada e foi criada por EricHobsbawm, em livro homnimo (Hobsbawn; Ranger, 1997). Na operacionalizao que faodesse conceito, considero importante estabelecer aproximaes e distanciamentos tericos.Por um lado, compartilho a idia de que a tradio inventada compreende a instituio deum conjunto de prticas, de natureza ritual ou simblica, baseadas na invariabilidade erepetio, implicando uma continuidade em relao ao passado. Por outro, distancio-me daconcepo terica de Hobsbawm, que define esse passado como real ou forjado,diferenciando as tradies genunas daquelas tradies realmente inventadas, construdase formalmente institucionalizadas. Discordo dessas dicotomias, pois acredito que prticasdiscursivas constroem narrativas que atribuem sentido a determinados acontecimentos e osarticulam para forjar o passado e construir a fico do resgate de um real preexistente.

    a fundao at 1937, a vida do Estado rolou aqui dentro. Ento, quer queira,quer no queira, isso j um ponto fantstico. E ns tnhamos vrios prdiosque estavam a abandonados, que estavam deixados, emprestados a rgospblicos, a escolas, a n coisas. A ns comeamos a fazer um levantamentohistrico. [] Ns vimos que o futuro de Gois era o passado.

    Categorias como tradio, arte, cultura e histria so arroladas paracompor o passado que esse discurso prope que seja resgatado paraconstruir o futuro da cidade de Gois.

    Ao vislumbrar que o futuro de Gois era o passado, a Ovatempreende e estimula vrias aes culturais: o Gabinete Literrio, fundadoem 1864, foi reaberto; os saraus foram revitalizados; as manifestaesfolclricas e musicais foram pesquisadas e registradas; o acervo de artesacra foi reunido no Museu da Cria e, posteriormente, no atual Museu deArte Sacra da Boa Morte; modificaes foram implementadas nacelebrao da Semana Santa, que passou a contar com a Procisso doFogaru.

    A cidade de Gois, incorporada ao campo do patrimnio pelo Iphan, investida de significados por esse processo de inveno de uma tradio,1que objetiva a construo da identidade vilaboense. Para produzir opatrimnio imaterial, atribuem-se contedos simblicos a determinadasprticas culturais, sacralizando-as como genunas e autnticas portestemunharem a identidade regional cuja origem configura-se na cidadeancestral, onde se deu o incio da formao intelectual do povo goiano.

    O resgate e a preservao desse patrimnio cultural vilaboense soreivindicados pela Ovat. No depoimento de Elder Camargo de Passos, aao da entidade caracteriza-se como recuperao do passado porintermdio das pesquisas empreendidas por seus membros.

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    O presidente da Ovat notabilizou-se como historiador da cidade aoproferir palestras, escrever livros, organizar folders tursticos, alm defornecer informaes para trabalhos a respeito da cidade de Gois. Essasprticas de construo de um capital simblico para si e para o grupo sochamadas por Pierre Bordieu de aes de representao que tm comoobjetivo tornar manifesto um grupo, seu nmero, sua fora, sua coeso, faz-lo existir visivelmente e, a um s tempo, configuram-se como estratgiasde apresentao de si [] destinadas a manipular a imagem de si esobretudo de sua posio no espao social (Bourdieu, 1990, p. 161-162).

    No discurso da Ovat, tal como ocorria no rgo do PatrimnioNacional, a histria agenciada na produo de Gois como lugar damemria. No entanto, enquanto que nesse momento a ao do patrimnioainda no compreendia o turismo cultural, as narrativas da OrganizaoVilaboense de Artes e Tradies j vislumbravam a produo da cidadeturstica.

    No depoimento do presidente, os membros dessa instituio aparecemcomo pioneiros das iniciativas de fomentar o turismo, disputando com oIphan o poder de instaurar os efeitos materiais e simblicos da instituio dopatrimnio da cidade de Gois. Como parte da estratgia de atribuir a umgrupo pequeno de pessoas as aes que resultaram no afluxo constante ecrescente de turistas para a cidade, a partir da dcada de 1970, enfatiza-seo esforo voluntrio para abrir o Museu de Artes Sacras e as igrejas visitao pblica.

    Ao estabelecer, manter e reinventar constantemente as prticasculturais que so institudas como tradio, a Organizao Vilaboense deArtes e Tradies vem mantendo a vigilncia comemorativa, que PierreNora (1993) considera indispensvel para a instituio dos lugares damemria. No final da dcada de sessenta e ao longo dos anos setenta foiestabelecido um calendrio de comemoraes que atribui significados aosbens tombados pelo patrimnio e institui os personagens a seremcelebrizados como referncias culturais.

    A Ovat promove a associao entre a preservao do patrimniocultural e o impulso ao turismo, atribuindo-se a responsabilidade pelaalterao no desenvolvimento da cidade. De acordo com as palavras dopresidente da Ovat, e de outros vilaboenses em entrevistas concedidas aosjornais, o ttulo de Patrimnio da Humanidade aparece como um

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    coroamento para o esforo empreendido ao longo de mais de 30 anos detrabalho desse grupo que dirige as instituies culturais.

    Ao longo desse processo, a multiplicao das instituies criou umaburocracia da rea cultural, onde alguns homens e mulheres participam dadiretoria de todas as entidades e alternam-se no cargo de presidente. Porexemplo, Elder Camargo de Passos presidente da Ovat, Marlene Gomes deVellasco preside a Associao Casa de Cora Coralina e Antolinda Borges diretora do Museu de Arte Sacra cada um ocupando o cargo desde acriao das instituies. Todos participam da diretoria ou do conselho dasinstituies citadas. Portanto, um pequeno grupo controla o patrimnio egerencia a poltica cultural de Gois, alm de participar de negcios ligados aoturismo.

    Esse grupo se auto-representa como guardio da cultura vilaboense eportador de virtudes que so compartilhadas por todos os membros, e queos singulariza em relao aos outros moradores da cidade, evocando otrabalho pioneiro realizado nas entidades culturais e o pertencimento sfamlias tradicionais, que no abandonaram a cidade aps a transfernciada capital, e cujos antepassados se destacaram, quer nas artes, quer napoltica, desde tempos remotos.

    O monoplio dos principais cargos nas entidades culturais constituiestratgia fundamental para o exerccio do poder simblico que, na acepode Pierre Bordieu (1989), institui princpios de viso, diviso e classificaodo mundo social. Como especialistas da produo simblica (produtores atempo inteiro), eles travam lutas pelo monoplio de fazer ver e fazer crer,de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definio legtima dasdivises do mundo social (Bourdieu, 1989, p. 113).

    Em seu depoimento, ao mesmo tempo em que exalta a viso,organizao e servio dos membros da Organizao Vilaboense de Artes eTradies, Elder Camargo de Passos expe que o grupo sofre oposio, eseus componentes so acusados de se comportarem como donos da cidade:

    Esse grupo que tambm no muito benquisto na cidade [] tem a partebenquista, mas tem uma parte que no gosta, que acha que ns queremosser donos de tudo, queremos mandar em tudo. Por qu? Porque ns temosviso, ns temos organizao, muito servio, ns arregaamos as mangas epegamos e fazemos. Agora, sempre tem os que criticam e no realizam. Falar fcil. Criticar fcil.

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    As relaes entre o grupo que dirige as entidades culturais e outrosmoradores da cidade envolvem lutas e conflitos pelo controle do conjunto deeventos que compem o cotidiano da cidade, pela gesto do espao urbanoe pela definio das polticas pblicas.

    O domnio do campo do patrimnio na cidade de Gois constitui,portanto, um instrumento e um objetivo do poder (Le Goff, 1984). Noprocesso de inveno das tradies, determinados agentes controlam oslugares da memria e, por meio de diferentes estratgias, produzemdeterminada interpretao do passado a partir da imposio dos signos quepretensamente representam a memria coletiva.

    O exemplo mais significativo a Procisso do Fogaru, evento queatrai o maior nmero de turistas para a cidade. Introduzida nas celebraesda Semana Santa pela Ovat, na dcada de 1960, essa festa citada porMaria Ceclia Fonseca (2003, p. 57, 66) como exemplo de patrimnioimaterial que deveria ser tombado pelo Iphan, ao criticar a ao do rgoque atribui a condio de patrimnio cultural apenas ao conjunto urbanoedificado das cidades histricas. Classificando a Procisso do Fogaru comomanifestao cultural que constitui o patrimnio intangvel, Fonsecacorrobora o discurso da Ovat e demonstra a efetivao do projeto daentidade de produzir a memria coletiva da cidade.

    Na histria da memria na cidade de Gois, tal como delinearei naseqncia, estratgias diversas foram construindo a aliana entre a Ovat eo Iphan para o estabelecimento de uma poltica hegemnica de preservaodo patrimnio cultural, que culmina atualmente na elaborao das diretrizesdo desenvolvimento da cidade Patrimnio da Humanidade.

    A atuao do Iphan na cidade de Gois e a delimitao do centro histrico

    Em 1978, com o apoio da Organizao Vilaboense de Artes eTradies, o rgo do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional realizou asegunda interveno na cidade de Gois, incluindo o entorno dos principaismonumentos no mbito de proteo do patrimnio.

    No Livro Arqueolgico, Etnogrfico e Paisagstico, foram inscritoso Conjunto Arquitetnico e Urbanstico do Largo do Chafariz e oConjunto Arquitetnico e Urbanstico da Rua da Fundio, que j estavamregistrados no Livro das Belas-Artes desde 1951. Tambm foram

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    incorporados vrios conjuntos paisagsticos formados pelas ruas que fazema ligao entre os prdios tombados, assim como a Praa Castelo Branco,antigo Largo do Palcio.

    O vnculo entre patrimnio e conjunto urbano denota uma alterao deconcepo estabelecida at ento pelo rgo pblico, pois a exemplaridadeno est mais situada em monumentos destacados da paisagem da cidade.Ao contrrio, o tombamento incidiu sobre a paisagem urbana como um todoe estabeleceu que parte considervel da cidade se submeteria s regras depreservao. A ao do poder pblico conforma, portanto, um conjunto debens culturais e delimita o centro histrico para caracterizar Gois comomonumento nacional.

    Se at ento a ao do Sphan concentrava-se em zelar pela aplicaoda legislao que garantisse a preservao dos bens tombados, a partir deoutros conceitos, o rgo passa a intervir para manter, restaurar, revitalizare gestar a rea urbana protegida. Essas prticas demonstram que, mais doque a produo de um determinado passado para as cidades consideradashistricas, o novo arcabouo discursivo do campo do patrimnio volta-separa a inveno de um futuro. Para compreendermos essa nova concepo,devemos considerar as transformaes no campo discursivo do patrimniohistrico.

    Conforme a historiografia oficial do Sphan (MEC-Sphan/Pr-Memria,1980), esse perodo inaugura uma segunda fase da histria da instituio. Em1970, o rgo passou a denominar-se Instituto do Patrimnio Histrico eArtstico Nacional e a direo foi assumida por Renato Soeiro, quepermaneceu no cargo at 1979.

    No campo discursivo do patrimnio, observa-se a incorporao de umacategoria que se torna fundamental para a compreenso da ao atual doIphan: o turismo cultural. Em 1966, com a criao pelo governo federal doConselho Nacional de Turismo e da Empresa Brasileira de Turismo(Embratur), as polticas pblicas passaram a abranger o turismo.

    O Iphan, ainda na gesto de Rodrigo Melo Franco de Andrade, solicitou Unesco a assessoria de tcnicos especializados no aproveitamento tursticodo patrimnio histrico. Nessa nova conjuntura, incluram-se, no conjunto deaes do rgo, as prticas de revitalizao das cidades histricas,atribuindo-se novos significados para o patrimnio a partir da relao dascategorias passado e futuro.

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    A atuao do Iphan em Gois estava de acordo com as concepes eestratgias do Programa das Cidades Histricas, criado pelo governofederal em 1973 para estimular o turismo.

    Denotando ruptura com o campo discursivo elaborado na primeira faseda instituio, est em construo uma concepo de patrimnio interligadacom categorias discursivas construdas na esfera da economia. O objeto dapoltica estatal no apenas o monumento isolado e/ou o conjuntoarquitetnico e paisagstico tombado, mas compreende todo o ncleo urbano.Os objetivos do Patrimnio no so mais explicados apenas em termos dapreservao de bens excepcionais que materializam a nao, mas incluema preocupao com o uso social que deve proporcionar a gerao de rendanas cidades histricas.

    Em 1979, ano que a histria oficial considera como um marco natrajetria da preservao e valorizao do patrimnio cultural no Brasil(MEC-Sphan/Pr-Memria, 1980, p. 55), Alosio Magalhes assumiu adireo do Iphan. Simultaneamente, ocorreu a primeira reformulao naestrutura administrativa do rgo, com a criao de duas entidadesinterligadas, inseridas na estrutura do Ministrio da Educao e Cultura: oIphan foi transformado em Secretaria do Patrimnio Histrico e ArtsticoNacional e unificado com a recm-criada Fundao Nacional Pr-Memria,sob a sigla Sphan/Pr-Memria.

    Esse perodo caracterizado por alteraes nas categorias simblicasque inventam o patrimnio cultural brasileiro. Diferentemente da narrativapatrimonialista de Rodrigo Melo Franco de Andrade, construda em relao histria oficial, a narrativa de Alosio Magalhes incorpora noes oriundasdo campo da antropologia, ao propor que as prticas do Iphan se voltassempara identificar, documentar, classificar, proteger e divulgar os bens culturaisbrasileiros, procedentes sobretudo do fazer popular que esto inseridos nadinmica viva do cotidiano (Magalhes, 1984, p. 42).

    Embora afirmasse que a instituio Sphan credora doreconhecimento nacional, Alosio Magalhes (1984, p. 42) criticava apoltica implementada at ento pelo rgo e propunha sua ampliao,revitalizao e dinamizao a fim de cobrir maior espectro do bensculturais, pois considerava que:

    [] o conceito de bem cultural no Brasil continua restrito aos bens mveise imveis, contendo ou no valor criativo prprio, impregnado de valorhistrico (essencialmente voltados para o passado), ou os bens de criao

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    individual espontnea, obras que constituem o nosso acervo artstico(msica, literatura, cinema, artes plsticas, arquitetura, teatro), quase semprede apreciaes elitistas.

    Nesse novo perodo do rgo do Patrimnio, mais importante que aproduo de uma massa documental que atestasse a autenticidade dos benstombados era a investigao da dinmica atual de relao destes com acomunidade em que esto inseridos. Se antes a produo cultural tombada erapensada em termos da arquitetura, privilegiando-se os perodos mais remotos,nesse momento valoriza-se a diversidade cultural brasileira e enfatizam-se osbens culturais preservados e produzidos pelas comunidades no presente.

    Embora a gesto de Magalhes dure pouco, devido sua morteprematura, seu trabalho foi fundamental para sedimentar a ampliao daconcepo de patrimnio cultural no Brasil. Mrcia SantAnna (2003, p. 52)considera que a principal herana desse perodo foi a introduo, naConstituio Federal, de um conceito mais largo de patrimnio, que inclui osbens de natureza material e imaterial.

    Interessa investigar como essas mudanas discursivas e estratgicas,no campo do patrimnio, consubstanciaram-se em polticas pblicas nacidade de Gois.

    Nas dcadas de 1970, 1980 e 1990, o Iphan executou, por meio deparcerias, diversas restauraes Casa de Fundio, Quartel do Vinte,Igreja da Boa Morte, Igreja So Francisco e Igreja de Santa Brbara.

    At o incio da dcada de 1980, no havia escritrio de representaodo Iphan na cidade de Gois. Sua ao mais efetiva ocorria no Museu dasBandeiras, que funciona na Casa de Cmara e Cadeia, e no Museu de ArteSacra, cujo acervo est na Igreja da Boa Morte. As duas instituies eramdirigidas por vilaboenses, Malu Brando e Antolinda Borges, que foramincorporadas ao quadro de funcionrios do rgo. A atuao do Iphan nacidade passou, ento, a ser personificada e intimamente relacionada com ogrupo que dirigia a Organizao Vilaboense de Artes e Tradies.

    Um marco da relao do Iphan com os moradores da cidade de Goisfoi a implantao do escritrio da Diretoria Regional do Iphan, em 1983,dirigido pelo arquiteto Gustavo Coelho, que permaneceu no cargo at junhode 1986. Tanto ele quanto sua sucessora a tambm arquiteta MariaCristina Portugal em seus depoimentos enfatizam as relaes tensas comos moradores da cidade, decorrentes das limitaes que o tombamento docentro histrico acarretava para os proprietrios de imveis tombados.

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    Em 1997, ocorreu uma nova mudana na 17a Sub-Regional quando,pela primeira vez, o cargo de diretora foi assumido por uma vilaboense: ahistoriadora Salma Saddi Waress de Paiva, uma militante ativa dosmovimentos culturais da cidade de Gois, secretria da Associao Casa deCora Coralina desde a criao da entidade. Sua gesto foi marcada peloincentivo, apoio e participao na campanha para que a cidade de Goisconquistasse o ttulo de Patrimnio da Humanidade.

    Dossi de Gois: sntese da produo da cidade Patrimnio daHumanidade

    No Dossi de Gois configuram-se diversas sries discursivas quecompem o campo do patrimnio e da memria. Proponho, ento, nosvoltarmos para a anlise desse documento-monumento a fim de delinearmosa produo discursiva da cidade histrica e turstica.

    Nesse documento, a inscrio de Gois como bem cultural justifica-se por critrios que agenciam categorias estabelecidas pelo rgo federal doPatrimnio para circunscrever os lugares da memria como testemunhada histria:

    Gois testemunha a maneira como os exploradores de territrios efundadores de cidades, portugueses e brasileiros isolados da me ptria edo litoral brasileiro, adaptaram a realidade difceis de uma regio tropical osmodelos urbanos e arquitetnicos portugueses, e tomaram de emprstimoaos ndios diversas formas de utilizao dos materiais locais.Gois o ltimo exemplo de ocupao do interior do Brasil conformepraticado nos sculos XVIII e XIX. [] Exemplo tanto mais admirvel namedida em que a paisagem que a rodeia permaneceu praticamente inalterada.(Dossi, 1999, p. 5-6).

    A zona proposta para inscrio na lista do patrimnio corresponde aocentro histrico tombado pelo Iphan em 1978, acrescida de uma zona deentorno, compreendendo ruas tpicas do sculo XIX, com uma arquiteturaecltica ou art-noveau consideradas muito importantes para acompreenso da permanente evoluo da cidade (Dossi, 1999, p. 5-6). Talconcepo denota uma alterao na poltica do Iphan que, at ento,recortava da malha urbana o conjunto arquitetnico e paisagsticorepresentativo do perodo mais remoto de formao da cidade. A nova

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    proposta pretende considerar a multiplicidade temporal inscrita no traadourbano, preservando os vestgios de outros momentos da histria da arquitetura.

    Percebemos, contudo, que as condies de possibilidade do discurso nocampo do patrimnio ainda se pautam pela arquitetura como ndice porexcelncia de bem patrimonial e pela delimitao de um centro histrico a serprotegido pelo valor excepcional.

    No Dossi de Gois ressoam ecos de outras categorias simblicas que,ao longo da histria do rgo federal do Patrimnio, agenciam as prticaspblicas. No Anexo IV, encontram-se os resultados da pesquisa Cadastro deBens Culturais de Natureza Imaterial, realizada na cidade de Gois, entre junhoe agosto de 1999, que integra o Inventrio Nacional de Referncias Culturais,projeto-piloto realizado pelo Iphan em algumas cidades histricas tombadas.

    Na apresentao do documento, observam-se os marcos discursivos queorientam a ao do rgo:

    Este sobretudo um trabalho de contato com a populao da Cidade de Gois.Foram realizadas 90 entrevistas no centro histrico e em povoados no seuentorno, numa tentativa de apreender a dinmica cultural dessa regio eampliar nosso conhecimento sobre o contexto sociocultural onde o ncleotombado assumiu historicamente uma posio convergente. Os entrevistadosrelatam sua vivncia cotidiana de costumes, tradio, as histrias e lendas queguardam na memria, os sentimentos e opinies sobre a rea tombada e oambiente natural. [] Alm dos monumentos arquitetnicos, constituem-secomo referncias culturais, por configurarem uma identidade e um sentimentosimblico da regio para seus habitantes, as festas e comemoraes, asmsicas, as artes e ofcios artesanais, os documentos e objetos antigos, opatrimnio natural que se destaca na paisagem. (Dossi, 1999, p. 1-2).

    O emprego de categorias como dinmica cultural e contextosociocultural, operacionalizadas em pesquisas junto s comunidades dascidades tombadas, e a ampliao do conceito de bem cultural para abrangermanifestaes de natureza imaterial ou intangvel, associadas identidadee sentimentos simblicos da regio, denotam a incorporao das propostasde Alosio Magalhes.2

    2 O Inventrio Nacional de Referncias Culturais aplicado pelo Iphan em 1999 buscavaconsolidar uma metodologia de pesquisa para subsidiar as aes de identificao, inventrioe registro dos bens culturais imateriais, conforme concepo registrada no Decreto 3.551/2000, que estabeleceu o Programa Nacional do Patrimnio Imaterial (Abreu; Chagas, 2003).

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    Noventa pessoas foram entrevistadas na cidade de Gois, todasmoradoras do centro histrico. Com isso, delimita-se a comunidade dacidade, desconsiderando-se aqueles que habitam outros bairros. Nada constaa respeito dos critrios de seleo dos moradores ouvidos.

    Na anlise das entrevistas, os coordenadores da pesquisa arrolam bensculturais intangveis e apontam a produo de um texto cultural particularque distingue Gois e a consagra como um depositria do passado regional:

    A existncia de um repertrio de histrias (ou lendas) que se reproduzem acada gerao fonte indicativa de sua distino. Tambm o so a reiteraode personagens de outros tempos, recuados e imersos na experincia culturalpresente, sinalizando para uma constante busca coletiva de significados. Asfestas, suas performances, na forma como aparecem hoje e como o foram nopassado, parecem cumprir o mesmo destino, como linhas invisveis socosturadas as humanidades constitutivas do contexto patrimonial local.Tudo se passa como se alheios s novas snteses e transformaespropostas pelo final do milnio, os vilaboenses insistissem em manter umimaginrio povoado por fantasmas e alegorias de tempos passados. (Dossi,1999, p. 3-4).

    Emerge desse discurso, um contexto do patrimnio local homogneo,marcado pela busca coletiva de significados e pela perpetuao de umamemria coletiva que est sendo transmitida s novas geraes. Paradelinear o patrimnio cultural, idealiza-se a relao do vilaboense com opassado e o patrimnio: O valor do patrimnio histrico de Gois para seushabitantes inteiramente natural, est arraigado em seu viver. (Dossi,1999, p. 3-4).

    Esse discurso silencia as tenses e conflitos constitutivos do processode atuao do Iphan e das instituies locais como a Ovat, e oculta quantoo poder simblico coercitivo, atribuindo ao conjunto do espao social asrepresentaes construdas no campo do patrimnio.

    Assim so os Vilaboenses. Retiram do passado, da experincia coletiva fixadano tempo, a substncia que funda e que organiza a continuidade de suasingular trajetria cultural. [] Tudo se passa como se o rememorar, constantee reiteradamente o passado, pudesse, no presente, exorcizar do futuro osimponderveis derruidores do seu patrimnio. (Dossi, 1999, p. 30-31).

    A definio do ser vilaboense naturaliza o valor atribudo aopatrimnio e essencializa determinada concepo de passado que histrica

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    e socialmente construda, anunciado os atributos que estabelecem aidentidade como se fossem constituintes da prpria natureza dos moradoresda cidade. Enquanto que, como afirma Pierre Bordieu (1989, p. 115), essascaractersticas nada tm de natural e so, em grande parte, produto de umaimposio arbitrria, quer dizer de um estado anterior da relao de forano campo das lutas pelo poder simblico de produzir nesse espao socialuma viso nica da sua identidade, uma viso idntica da sua unidade.

    A singular trajetria cultural dos vilaboenses cuidadosamenteconstruda no Anexo III do Dossi, no texto Gois: histria e cultura.Agenciam-se as pesquisas que produzem a cidade bero da cultura goianaa fim de buscar as origem das manifestaes culturais que permanecemvivas at os dias atuais.

    No Dossi de Gois, encontramos rastros de outras categoriassimblicas que influenciam atualmente prticas pblicas do patrimnio:defende-se que o tombamento pela Unesco promova a extenso da proteoinstituda pelo Iphan, para abranger reas naturais da cidade de Gois. Essaincluso das questes ambientais demonstra o cruzamento do discursopatrimonial com o discurso ecolgico, que constitui um importante espao deluta poltica na sociedade contempornea.

    Em vrias passagens do Dossi, delineia-se a idia de que a prpriamajestade da natureza em Gois, [] aliada cultura que ali se desenvolve,distante dos principais centros urbanos, tenha motivado um tipo particular derelao homem e meio ambiente. A concluso que, na cidade de Gois,manteve-se singular equilbrio entre a riqueza histrico-cultural e oriqussimo patrimnio ambiental, testemunho eloqente do binmio Homem-Cerrado em sua correta acepo (Dossi, 1999, p. 5-7).

    Esse discurso que pretende estabelecer a origem da identidade regional,associada a uma diviso natural do espao, est preso dizibilidaderegionalista e rede de poder que sustenta a idia de regio comoreferencial vlido, tal como analisa Durval de Albuquerque Jnior (1999),constituindo importante estratgia de poder-saber na construo da noo deregio como uma identidade fixa, esttica e homogeneizadora.

    No Dossi de Gois, o patrimnio ambiental que testemunha essarelao singular entre homem e natureza o binmio Homem-Cerrado passa a ser objeto de polticas pblicas para a cidade de Gois, ao constituirum dos eixos do Plano Diretor, definido pela lei municipal no 206, de agostode 1996. Esse documento define os princpios norteadores da poltica

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    urbana, destacando preceitos e diretrizes referentes preservao dopatrimnio cultural e de reas de Preservao Ambiental.

    Anuncia-se no Dossi que a elaborao do Plano Diretor de Gois resultoude discusses com a comunidade. Os dirigentes das entidades culturais dacidade enfatizaram, em seus depoimentos, o papel que desempenharam nesseprocesso.

    Diferentemente do que ocorreu em outros perodos, nos quais aspolticas pblicas municipais no priorizavam o campo do patrimnio, omomento conjuntural de elaborao do Plano Diretor e do Dossi de Goiscaracterizou-se pela aliana entre Iphan, entidades culturais e prefeituramunicipal com o objetivo de elaborar propostas para a cidade, orientadaspela preservao do patrimnio histrico.

    Os planos de interveno no espao urbano apresentados no Dossiorganizam-se tendo como referncia os Programas de preservao da zonatombada como monumento histrico nos quais Estado, Prefeitura e Iphancomprometeram-se, entre outras medidas, com obras de restaurao,retirada de postes e fios eltricos, que sero substitudos por uma redesubterrnea e despoluio do Rio Vermelho (Dossi, 1999, p. 22). Essasobras j foram realizadas e contriburam significativamente para adequarGois s normas da Unesco para preservao das cidades inscritas na Listado Patrimnio Mundial.

    Outras reas urbanas no so sequer objeto de problematizao noPlano Diretor e no Dossi de Gois. Essa excluso do campo discursivosignifica a invisibilidade de vrios bairros e a desconsiderao de demandasde parte significativa da populao. O futuro e o desenvolvimento da cidadeso planejados a partir do centro histrico, demonstrando a eficcia daprtica, tanto do Iphan quanto da Ovat, que circunscreve Gois a umdeterminado espao institudo como histrico que, metonimicamente,representaria toda a cidade.

    Do mesmo modo, a relao dos habitantes com os bens tombados considerada apenas sob a perspectiva de quem mora no centro histrico,naturalizando-se a idia de que todos usufruem dos benefcios de organizara cidade em torno do patrimnio tombado e ocultando-se os conflitos econfrontos que envolvem a implantao dessa poltica de patrimnio e gestourbana.

    A fora simblica da reinveno constante da cidade como lugar damemria produzida por uma multiplicidade de prticas discursivas foipotencializada com o Movimento Pr-Cidade de Gois e a obteno do ttulode Patrimnio da Humanidade.

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    3 Tais mapas no tm valor descritivo como os mapas usuais da cidade, construdos a partirde um lugar absoluto e inexistente, mas seu interesse de outra ordem, mais vivencial enarrativo, em que os trajetos esto amarrados s histrias e no ao presente contnuo dadescrio neutra e absoluta. (Freire, 1997, p. 70).

    A anlise do Dossi Proposio da Cidade de Gois na Lista doPatrimnio da Humanidade demonstrou a historicidade das sries discursivasque se cruzam no campo do patrimnio, referendando a idia de que a instituiode Gois como cidade histrica configura um processo de disputa entre diferentesagentes, categorias discursivas e formas narrativas que produzem os contedossimblicos da memria coletiva.

    Nesse documento, para a construo de Gois como cidade histrica eturstica, outra importante srie discursiva agenciada: a monumentalizao deCora Coralina como smbolo da cidade, entrelaando o ofcio da doceira queinstitui a comida-signo com o ofcio da literata que inscreve determinado passadona materialidade urbana e elabora um mapa da memria3 pessoal e coletiva.

    A escrita da memria topogrfica da cidade de Gois

    Na dcada em que a DPHAN realizou os primeiros tombamentos emGois, mais precisamente no ano de 1956, Cora Coralina retornou para acidade, aps 45 anos morando no Estado de So Paulo. Logo em seguida,ela escreveu e mandou publicar um folheto intitulado Cntico da Volta(1956), que considerava o marco inaugural de sua prtica de escrevermemrias.

    No Cntico da Volta, Cora mitifica e ritualiza o retorno Gois. Anarrativa no expe os dados sensorialmente percebidos no reencontro coma cidade, mas traa a ressignificao promovida pelo trabalho da memria.A poeta inscreve na perenidade do espao urbano a possibilidade deencontrar o passado no presente, redescobrindo costumes, cheiros, sons deGois:

    Velha casa de Gois. Acolhedora e amiga, recende a coisas antigas de genteboa.Vem de dentro um cheiro familiar de jasmins, resed, e calda grossa docede figo ou caju.Um tacho de cobre areado referve numa trempe de pedras. Uma braada delenha e gravetos acende o fogo ancestral. []

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    Sombras do passado deslizam pelas ruas estreitas e curtas, quebradas emngulos imprevistos, abrindo-se em largos de simetria obsoleta. []O Rio Vermelho de guas avolumadas, corre, como sempre, cantando epulando de pedra em pedra, como nos dias da minha infncia.

    Cntico da Volta (Cora Coralina, 1956)

    Diante do trauma causado pela transferncia da capital, a poetacontrape a permanncia do passado no conjunto urbano: A cidade bi-centenria, assentada sobre pedras, sobre pedras se apruma e se sustenta.[] Sentiu com altivez o impacto da mudana. No se despovoou nem sedesagregou com a grande espoliao. (Cora Coralina, 1956).

    A poeta penetra na trama da disputa da memria ao identificar aquelesque haviam permanecido em Gois, chamados de gente da velha ala,considerados, no Cntico da Volta, como velhas sentinelas que morrem noposto de honra; defensores tenazes e valentes do que aqui resta, qual seja,o valioso Patrimnio histrico e cultural e as nobres tradies de Gois.

    No entanto, Cora Coralina se diferencia dessa velha ala ao encerraro Cntico da Volta com um prognstico da nova identidade da cidade deGois: Uma nova esperana acena no horizonte. Com a expanso de Goiniae com a possibilidade da mudana da Capital Federal para o planalto, Goisser, sem dvida, um centro de turismo, dos mais interessantes do pas.

    Com isso, a poeta se aproxima da posio preservacionista do rgo doPatrimnio Histrico, saudado explicitamente, no Cntico da Volta, comoaquele que estava impedindo, em tempo, maiores atentados ao seu feitiocaracterstico e tradicional que merece ser inteligentemente resguardado.

    Portanto, no momento em que a elite da cidade de Gois ainda vive seuressentimento com a transferncia da capital e ope resistncias s aesdo DPHAN, Cora Coralina uma voz dissidente ao vislumbrar que opatrimnio arquitetnico e urbanstico pode trazer o turismo para a cidade.

    A poeta trata de transformar o valioso patrimnio histrico cultural eas nobres tradies de Gois em matria da memria e escreve seuprimeiro livro, Poemas dos Becos de Gois e Estrias Mais, publicado em1965 (Cora Coralina, 1980).

    Na primeira pgina, a poeta revela as motivaes da sua escrita aoleitor:

    Algum deve rever, escrever e assinar os autos do Passadoantes que o Tempo passe tudo a raso.

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    o que procuro fazer, para a gerao nova, sempreatenta e enlevada nas estrias, lendas, tradies, sociologiae folclore de nossa terra.Para a gente moa, pois, escrevi este livro de estrias.Sei que serei lida e entendida.

    Ao Leitor (Cora Coralina, 1980, p. 39).

    Na pgina seguinte, faz uma ressalva:

    Este livro foi escritopor uma mulherque no tarde da Vidarecria e poetiza sua prpriaVida. []Este livro:Versos NoPoesia Noum modo diferente de contar velhas estrias.

    Ressalva (Cora Coralina, 1980, p. 41).

    A memria o fio que Cora Coralina utiliza para esboar o plano dolivro: a poeta acredita na memria capaz de recuperar o passado coletivo,mas reconhece que essa tarefa desempenhada a partir de uma perspectivaparticular: a memria da mulher, da mulher velha, da mulher que escrevepara recriar e poetizar sua prpria vida.

    O amlgama entre autobiografia e memorialismo est na tessitura daescrita e dos depoimentos de Cora Coralina, que so, ao mesmo tempo,momentos de construo de uma memria autobiogrfica e uma formaespecfica de criao da memria coletiva.

    Em todos seus livros, ela escreve e assina os autos do Passado aocompor poemas e contar histrias cujos enredos emergem do jogo dalinguagem com as mltiplas camadas do tempo, interligando o passado, opresente e o futuro pela memria que reconstitui os espaos da cidade deGois.

    O conjunto de textos de outros autores apresentaes e prefcios,fotografias e desenhos que integram os livros de Cora Coralina tambmpromovem a inveno imagtica-discursiva da cidade histrica e turstica.

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    Interessa, portanto, investigar como o discurso literrio de Cora Coralinaproduz determinada forma de dizer e ver a cidade.

    No estudo da obra da poeta, no compreendo a escrita da memriacomo recuperao do que foi vivido, pois, como nos ensina Walter Benjamin(1994), o tecer da rememorao, ao abrir o acontecimento vivido para tudoque veio antes e depois, compe possibilidades infinitas de agenciamentos desentidos e significados para o passado, tanto para o prprio autor quantopara o leitor.

    Com Gaston Bachelard (1996, p. 2), compartilho a idia de que aimagem potica no eco do passado. antes o inverso: com a explosode uma imagem, o passado longnquo ressoa de ecos e j no vemos em queprofundezas esses ecos vo repercutir e morrer. Em outras palavras, aconstruo do passado pela memria operao do presente e estenvolvida na produo do futuro.

    Na anlise dos jogos que a poeta teceu entre tempo e espao, aslembranas se associam configurao material da cidade, onde ruas,edifcios, logradouros evocam as vivncias do passado, tal como enfatizou osocilogo Maurice Halbwachs (1990, p. 143), ao estudar os espaos damemria e afirmar que a estabilidade do espao pode constituir-se emncora da memria:

    [] o espao uma realidade que dura: nossas impresses se sucedem, uma outra, nada permanece em nosso esprito, e no seria possvel compreenderque pudssemos recuperar o passado, se ele no se conservasse, com efeito,no meio material que nos cerca.

    A escrita da memria de Cora Coralina transfigura as casas, o rio, osbecos, as paisagens em matria literria e em marcos da memria que seabrem ao rememorar infinito do tempo entrecruzado com a vida. A paisagemurbana emerge entrelaada poeta, tornando-se espessa de mltiplossentidos, temporalidades e memrias.

    Para investigar como Cora Coralina, valendo-se de diferentes recursosficcionais, tece o tempo e o espao num s movimento, recriando a cidadede Gois, tomo emprestado o conceito de memria topogrfica que WilliBolle (1994) construiu para analisar a obra de Walter Benjamin.

    A escrita da memria de Cora Coralina compe movimentos deapropriao da cidade como forma de encontrar-se a si mesma. Num nicomovimento, o trabalho mnemnico delineia um mapa afetivo e aautobiografia da poeta, tal como na poesia Minha Cidade:

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    Gois, minha cidade[]Eu sou aquelamenina feia daponte da Lapa.Eu sou Aninha.

    Eu sou aquelamulher,que ficou velha,esquecida,nos teus larguinhose nos teus becostristes,contando estrias,fazendoadivinhao.

    Cantando teupassado.Cantando teu futuro.

    Eu sou aquele teumuro []

    Eu sou estas casasencostadascochichando umascom as outras.

    Eu sou a ramadadessas rvores []Eu sou o cauledessas trepadeiras []

    Minha vida,meus sentidos,minha esttica,todas as vibraesde minhasensibilidade demulhertm, aqui, suasrazes.Eu sou a meninafeiada ponte da Lapa.Eu sou Aninha.

    Minha Cidade (Cora Coralina, 1980, p. 47-49).

    A cidade de Gois emerge entrelaada poeta, que constri significadospara as caractersticas do espao urbano ao se apropriar da cidade eentretec-la s fases de sua vida, lugar onde a menina, a mulher e a velhaencontram seus sentidos, esttica, vibraes da sensibilidade. A tessitura detodos os tempos da cidade matria da potica daquela que vive a velhicecontando histrias, cantando o passado e fazendo adivinhaes, cantandoo futuro de Gois.

    As composies poticas de Cora Coralina so tambm arte detopografar, porque configuram um inventrio minucioso de lugares e objetoscomo forma de recriar o passado, compondo temporalidades para revisitarpercepes, sensibilidades e emoes associadas s vivnciasespacializadas.

    A poeta escreveu as experincias da infncia, adolescncia e velhicereconstituindo o espao para configurar a matria das recordaes. A escrita

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    4 A cadeia refere-se Casa de Cmara e Cadeia, e o quartel o Quartel do Vinte, ambostombados na primeira interveno do Iphan em Gois, no incio da dcada de 1950.

    autobiogrfica volta-se para o espao privado e o auto-retrato vai seesboando medida que as recordaes vo desvendando personagens,objetos e acontecimentos associados Casa Velha da Ponte.

    Na descrio do espao pblico da cidade, a autobiografia cede lugarao memorialismo, e o olhar da escritora est menos voltado s experinciasindividuais que s experincias coletivas, menos voltado vivncia interiorque aos eventos compartilhados. Desde o primeiro livro, o tom intimista daspoesias autobiogrficas convive com a aspirao monumentalidade, quemarca o memorialismo potico.

    Em algumas poesias, a histria se confunde com o pico:

    Bartolomeu Bueno,bruxo feiticeiro,num passe de magiahistricatirou Goyaz de um pratode aguardentee ficou sendo Anhangera.

    Anhangera (Cora Coralina, 1994, p. 30-31).

    Aos prdios que so considerados referncias arquitetnicas de Gois,Cora imprimiu, num trabalho minucioso, determinadas lembranas longnquasque os incorporam memria coletiva da cidade.

    C bem bo c bem bo c bem bo,Assim, no dizer da gente da cidade,Respondia o sininho da cadeiaAo toque de silncio do quartel.4

    O quartel da polcia de GoisSempre foi a segurana da cidade.Guardio de um passado bem passado.Antigos tempos superados. []

    A vida do quartel comandava a vidinha das cidades.Sempre foi o quartel o corao da gente de Gois.

    O Quartel da polcia de Gois (Cora Coralina, 1984, p. 189-190).

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    O Palcio dos Arcostem estrias de valorque no quero aqui contar.Vou contar a estria do soldado caraj.

    O Palcio dos Arcos (Cora Coralina, 1980, p. 129-132).

    Num conjunto de poemas, Cora Coralina d visibilidade aos becosdiscriminados e humildes de Gois. Entrelaado s refernciastopogrficas, ela exalta os vrios tempos inscritos nesses lugaresesquecidos e abandonados, e recorda que, na geografia da cidade, elesconstituem o espao da memria dos escravos, lenheiros, lavadeiras,prostitutas, onde famlia de conceito no passava.

    Becos da minha terradiscriminados e humildes,lembrando passadas eras []Conto a estria dos becos, dos becos da minha terra,suspeitos mal afamadosonde famlia de conceito no passava.Local de gentinha diziam, virando a cara.De gente do pote dgua.De gente de p no cho.Becos de mulher perdida.Becos de mulher da vida.Becos de Gois (Cora Coralina, 1980, p. 103).

    Beco da Vila RicaBaliza da cidade,do tempo do ouro.Da era dos polistasde botas, trabuco, gibo de couro.Dos escravos de sunga de tear, camisa de baeta,pulando o muros dos quintais,correndo para o jequed e o batuque.

    Do Beco da Vila Rica (Cora Coralina, 1980, p. 107-116).

    Os becos so caminhos caractersticos do traado urbano setecentista,onde circula a vida humilde da cidade. Eles esto, entretanto, ausentes domapa traado pelo Iphan ao realizar os tombamentos nas cidades histricas.

    Marcelo YuriRealce

    Marcelo YuriRealce

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    Abandono. Silncio.Desordem.Ausncia sobretudo.[]

    Fechado. Largado.O velho sobrado colonialde cinco sacadas,de ferro forjado,cede. []

    Bem que podia ser conservado,bem que podia ser retocado,to alto, to nobre-senhorialO sobrado dos Vieirascai aos pedaos,Abandonado.Parede hoje.Parede amanh. []

    Quem se lembra?Quem esquece? []

    O Passado.

    A escadaria de patamaresVai subindo subindoPortas no alto.

    A visibilidade que adquirem em Gois foi construda pela escrita da memriade Cora Coralina. Os becos, reproduzidos na capa do livro da poeta eagenciados pela mdia no processo de construo da poeta dos becos deGois, foram singularizados e transformados em marcos do conjuntourbano.

    O belo poema Velho Sobrado um exemplo do jogo temporal impregnadoao espao tecido por Cora Coralina. O abandono e o desmoronamento do prdioanunciam o perigo do esfacelamento dos quadros do Passado, quando amemria no mais encontrar os vestgios materiais ancorados na cidade.

    direita. esquerda.Se abrindo, familiares.[].

    O Passado

    Gente que passaindiferente,olha de longe,na dobra das esquinas,as traves despencam. Que vale para eles o sobrado? []

    Quem v nas velhas sacadasde ferro forjadoas sombras debruadas?Quem que est ouvindoo clamor, o adeus, o chamado?Que importa a marca dos retratos na parede?Que importa as salas destelhadas,e o pudor das alcovas devassadasQue importam?

    E vo fugindo do sobrado,aos poucos,os quadros do Passado.

    Velho Sobrado (Cora Coralina, 1980, p. 95-99).

  • Gois: a inveno da cidade Patrimnio da Humanidade 141

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    Diante do sobrado desmoronando, a poeta pergunta: Quem se lembra?Quem se esquece?, para, com gestos de memria, reconstruir os espaos dosobrado e povo-los de personagens, eventos, modos de sociabilidade. Apoesia permeada da dor de no encontrar mais com quem compartilhar OPassado, evocado repetidamente, intercalando as recordaes. Oconsentimento daqueles que contemplam o desabamento faz com que a poetapergunte que vale para eles o sobrado? Eles no conseguem ver as sombrasdebruadas na sacada, ouvir o clamor e o adeus, perceber as marcas deretrato nas paredes, enfim, so incapazes de reencontrar na memria aressignificao para o espao.

    Contra o trabalho do esquecimento, a poeta evoca o poder da palavra.O texto potico cartografa o espao e desenha, a um s tempo, o mapa damemria autobiogrfica da poeta e o mapa da memria coletiva da cidade deGois, instituindo a Mulher-Monumento que inventa o passado, o presente eo futuro da cidade histrica e turstica.

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  • Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23, p. 113-143, jan/jun 2005

    142 Andra Ferreira Delgado

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  • Gois: a inveno da cidade Patrimnio da Humanidade 143

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    Recebido em 06/12/2005Aprovado em 31/03/2005