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V.M.Luz/Pesquisas em Discurso Pedagógico 2013.1 A (im)possível identidade de aprendizes de língua inglesa: um estudo discursivo das formas de resistência em sala de aula Vaniele Medeiros da Luz Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL Resumo Nosso propósito neste estudo é verificar e compreender formas de resistência que se manifestam durante o processo de ensino-aprendizagem de língua inglesa (LI). O objeto de pesquisa é contextualizado a partir das bases teóricas da Análise de Discurso e dos Estudos Culturais. O corpus foi constituído por enunciados emitidos pelos alunos durante algumas situações de sala de aula e por enunciados formulados como resposta a perguntas de um questionário e de entrevistas. A interpretação dos dados permitiu concluir que embora os discursos dos aprendizes produzidos em situações de entrevistas e questionário reproduzam estereótipos inscritos na memória discursiva acerca da importância do ensino e aprendizado de LI, discursos e outras práticas produzidas revelam formas de resistência a esse aprendizado. Palavras-chave: resistência; ensino-aprendizagem de Inglês como língua estrangeira; identificação; poder. Abstract The purpose of this study is to verify and understand forms of resistance that arise during the teaching-learning of the English language. The object of the research is contextualized from the theoretical bases of Discourse Analysis and Cultural Studies. The corpus consists of statements made by students during classroom situations and answers to questions on a questionnaire and in interviews. The interpretation of the data showed that, although the discourse produced by learners in situations such as questionnaires and interviews portrays stereotypes incorporated in their discourse memory about the importance of teaching and learning LI, their discourse and other kinds of practice point to manifestations of resistance to this learning. Keywords: resistance, teaching and learning of English as a foreign language; identification; power INTRODUÇÃO O Inglês, nos dias atuais, goza de uma posição dominante em muitos setores da ciência, comunicação, cultura de massa, imagética e da inovação tecnológica. Do ponto de vista linguístico, o Inglês, segundo Rajagopalan (2003, p. 12 apud DENARDIN, 2010, p. 6), não é somente uma língua, mas já passou a ser tratado como uma commodity, ou seja, “uma mercadoria em torno da qual está sendo construído um poderoso fetichismo”. Não é preciso ir 10.17771/PUCRio.PDPe.21829

A (im)possível identidade de aprendizes de língua inglesa

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V.M.Luz/Pesquisas em Discurso Pedagógico 2013.1

A (im)possível identidade de aprendizes de língua inglesa: um estudo

discursivo das formas de resistência em sala de aula

Vaniele Medeiros da Luz

Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL

Resumo Nosso propósito neste estudo é verificar e compreender formas de resistência que

se manifestam durante o processo de ensino-aprendizagem de língua inglesa (LI).

O objeto de pesquisa é contextualizado a partir das bases teóricas da Análise de

Discurso e dos Estudos Culturais. O corpus foi constituído por enunciados

emitidos pelos alunos durante algumas situações de sala de aula e por enunciados

formulados como resposta a perguntas de um questionário e de entrevistas. A

interpretação dos dados permitiu concluir que embora os discursos dos aprendizes

produzidos em situações de entrevistas e questionário reproduzam estereótipos

inscritos na memória discursiva acerca da importância do ensino e aprendizado de

LI, discursos e outras práticas produzidas revelam formas de resistência a esse

aprendizado.

Palavras-chave: resistência; ensino-aprendizagem de Inglês como língua

estrangeira; identificação; poder.

Abstract

The purpose of this study is to verify and understand forms of resistance that arise

during the teaching-learning of the English language. The object of the research is

contextualized from the theoretical bases of Discourse Analysis and Cultural

Studies. The corpus consists of statements made by students during classroom

situations and answers to questions on a questionnaire and in interviews. The

interpretation of the data showed that, although the discourse produced by learners

in situations such as questionnaires and interviews portrays stereotypes

incorporated in their discourse memory about the importance of teaching and

learning LI, their discourse and other kinds of practice point to manifestations of

resistance to this learning.

Keywords: resistance, teaching and learning of English as a foreign language;

identification; power

INTRODUÇÃO

O Inglês, nos dias atuais, goza de uma posição dominante em muitos setores da

ciência, comunicação, cultura de massa, imagética e da inovação tecnológica. Do ponto de

vista linguístico, o Inglês, segundo Rajagopalan (2003, p. 12 apud DENARDIN, 2010, p. 6),

não é somente uma língua, mas já passou a ser tratado como uma commodity, ou seja, “uma

mercadoria em torno da qual está sendo construído um poderoso fetichismo”. Não é preciso ir

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muito longe para observarmos a presença da Língua Inglesa em nosso cotidiano, desde os

materiais impressos até a Internet; dos estabelecimentos comerciais até nossas próprias

vestimentas. Diante disso, resulta um poder de atração junto a todos aqueles, anglófonos ou

não, que buscam ascensão social, melhores oportunidades de trabalho e sucesso profissional.

Face a esse discurso institucionalizado de valorização da Língua Inglesa, um

estudante tem vários motivos para aprender o idioma. No entanto, apesar dos objetivos que

justificam a aprendizagem dessa língua estrangeira (LE)1, observamos, constantemente, uma

contradição entre os discursos institucionalizados que circundam o ambiente escolar e as

práticas, tanto docentes quanto discentes.

Pretendemos, neste artigo, apresentar parte de uma pesquisa desenvolvida para

uma dissertação de mestrado. As primeiras ideias para realizar o trabalho originaram-se de

comentários e reclamações de meus alunos, tanto na rede pública quanto privada de ensino,

em face do aprendizado de Língua Inglesa: “não se aprende Inglês na escola”; “pra que eu

devo saber Inglês?”; “eu não sei Inglês”; “eu não sei ler em Inglês”; “Inglês é muito difícil”.

Além disso, observamos com frequência, durante minhas aulas, uma baixa participação dos

alunos, ainda que esta fosse estimulada e priorizada pelos princípios pedagógicos da escola.

Todos esses discursos observados, associados à recusa de participação nas aulas e outras

práticas, foram tratados, neste estudo, como formas de resistência.

Tendo em vista as situações apresentadas, ensejamos duas perguntas que

configuraram respectivamente o problema geral e o específico desse estudo: Quais são as

‘possíveis’ causas das formas de resistência que estudantes de Ensino Médio, da rede pública,

manifestam ao aprendizado de Língua Inglesa como língua estrangeira? Como essas formas

de resistência se manifestam?

Portanto, foi na tentativa de responder a esses questionamentos que

desenvolvemos a pesquisa. O objetivo geral norteador, de caráter descritivo e interpretativo,

foi verificar e explicar causas2 possíveis que levam estudantes de ensino regular formal, da

rede pública, a apresentar formas de resistência ao aprendizado de Língua Inglesa como

língua estrangeira. O objetivo específico foi identificar formas/atitudes de resistência que

1 Está sendo feita aqui a distinção entre segunda língua e língua estrangeira no que se refere ao contexto de

ensino-aprendizagem. Aprender Inglês como segunda língua significa aprendê-lo em contexto de imersão,

enquanto que aprender o idioma como língua estrangeira significa aprendê-lo em seu contexto de origem. Um

brasileiro estudando inglês nos EUA está aprendendo uma segunda língua, enquanto um brasileiro estudando

inglês no Brasil está aprendendo uma LE. 2 Embora, nesta pesquisa, estejamos utilizando a palavra ‘causa’, que parece estar relacionada às ciências exatas,

implicando uma mecânica do tipo causa = resultado; aqui, ‘causa’ está relacionada a contextos histórico-

ideológicos que podem e/ou poderiam motivar as formas de resistência que pretendemos submeter à

investigação/interpretação.

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estudantes de ensino regular formal, da rede pública, apresentam durante aulas de Língua

Inglesa como língua estrangeira.

Para dar conta desses objetivos, identificamos o trabalho aos pressupostos de duas

grandes bases teóricas: a Análise de Discurso e os Estudos Culturais. A primeira identificação

é com a Análise de Discurso (AD), na tentativa de conectar o linguístico (a manifestação das

múltiplas marcas linguísticas nos enunciados dos estudantes de Inglês da escola pública) ao

discursivo (discursos constituem identidades de aprendizes de línguas) num pano de fundo

social e ideológico, que resulta na interpretação dos efeitos de sentido do dito e do não-dito na

experiência de aprender línguas. A segunda identificação relaciona-se com a noção de

identidade, entendida como o construto sóciocultural, permeável e inconcluso que se verifica

no mundo globalizado contemporâneo.

Noções como subjetividades, identidades e discursos são de grande valia para a

pesquisa, já que a aprendizagem de uma língua estrangeira insere o sujeito em outra

discursividade. O contato com o estrangeiro pode conduzir a “uma recusa da própria cultura,

reforçada por uma admiração sem limites pelo país do outro, ou a uma revolta inconsciente e

improdutiva.” (PERUCHI; CORACINI, 2003, p. 377) E são essas relações com o estrangeiro

que nos propomos a investigar.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A Análise de Discurso

Existem muitas maneiras de estudar a linguagem; podemos fazer recair a atenção

sobre a língua enquanto sistema de signos – como o faz a linguística – ou como sistema de

regras do bem falar e escrever – como o faz a gramática, por exemplo. A Análise de Discurso

(doravante AD), de linha francesa, não trata da língua, nem da gramática, embora também não

as exclua. Ela trata do discurso e, como assevera Orlandi (2002), a palavra ‘discurso’,

etimologicamente, designa a ideia de curso, de percurso, de movimento, abertura para os

múltiplos sentidos. “O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o

estudo do discurso observa-se o homem falando.” (ORLANDI, 2002, p. 15)

O que mais interessa à AD é a linguagem tomada como prática, trabalho

simbólico, o reconhecimento de sua função pelo confronto ideológico, e não como mero

instrumento de comunicação. Ao falar, ao significar, o sujeito também se significa. Sujeitos e

sentidos só existem a partir de relações, ‘efeitos’, e não podem ser tratados como se já fossem

existentes em si. É só pelo efeito ideológico que sentidos e sujeitos, ilusoriamente, estão já-lá,

a priori. Conforme Orlandi (2002, p. 15), “na análise de discurso, procura-se compreender a

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língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral,

constitutivo do homem e da sua história.”. Portanto, por meio da Análise do Discurso,

conhecemos melhor a capacidade de significar e de nos significarmos, porque ela serve como

mediação entre o homem e a realidade natural e social onde está inserido. Tal mediação torna

possível a transformação do homem e de sua realidade.

Há muitos conceitos pertinentes dentro da conjuntura teórica da AD, entretanto

nos ateremos, aqui, à teorização de sujeito, uma vez que o consideramos ponto de ancoragem

e determinante de muitos outros aspectos-chave para a pesquisa.

Língua e Discurso

A língua, na Análise do Discurso, é vista como um sistema sujeito a falhas, e a

ideologia como constitutiva do sujeito e da produção de sentidos. Seu objeto de estudo é o

discurso. A noção de discurso não se assemelha à noção de parole referida por Saussure

(2006), mas só pode ser formulada se entendemos o uso que fazemos da língua. Desse modo,

a AD resgata, por meio do discurso, o sujeito e o significado deixados de lado pela

Linguística: “mais do que um resultado, o discurso vai definir um processo de significação no

qual estão presentes a língua e a história, em suas materialidades, e o sujeito, devidamente

interpelado pela ideologia.” (FERREIRA, 2003, p. 203, grifo do autor). O discurso pode,

então, ser definido como a palavra em movimento, prática de linguagem que se realiza entre

sujeitos, num determinado contexto.

O discurso não obedece ao esquema tradicional de comunicação, que concebe a

língua de modo estanque e os sujeitos como objetos de transmissão e decodificação de

informações. Para a Análise do Discurso, não há separação entre emissor e receptor, tudo se

realiza simultaneamente e não há transmissão de informações, mas efeitos de sentido.

Os efeitos de sentido a que nos referimos são os diferentes sentidos que os sujeitos

podem formular de acordo com a formação discursiva a que estão identificados no momento,

em sua relação histórica com o(s) outro(s). Isso implica dizer que os sentidos não existem em

si mesmos, não são produtos acabados, mas estão em curso e podem mudar de acordo com a

formação ideológica dos interlocutores.

Quando dizemos que no discurso há efeitos de sentido, queremos dizer que as

palavras, as expressões, as proposições, mudam de sentido dependendo das posições de quem

as emprega e de quem as interpreta. Como o exemplo citado por Orlandi (2002, p. 45), “[...] a

palavra “terra” não significa o mesmo para um índio, para um agricultor sem terra e para um

grande proprietário rural”. Configuram-se aí as formações discursivas e ideológicas –

reguladoras da produção e recepção dos sentidos.

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É assim que a ideologia, em AD, é pensada como um mecanismo estruturante do

processo de significação, pois determina a constituição dos sentidos, uma vez que o sentido

não existe em si, mas é produzido a partir das posições ideológicas colocadas em jogo no

processo discursivo. Esse mecanismo ideológico, ligado ao modo de produção dominante em

uma formação social, é que garantirá, por sua vez, a reprodução das relações de produção que

aí se constituem. A esse conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem

individuais nem universais, mas se relacionam mais ou menos diretamente à posição de

classes em conflito umas com as outras, é que se denomina formação ideológica (FI). E uma

FI tem, por seu turno, como seus componentes, formações discursivas (FD).

A formação discursiva, por sua vez, se refere a uma determinada formação

ideológica projetada na linguagem. Em Semântica e Discurso, Pêcheux chama de formação

discursiva “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada

numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e

deve ser dito” (PÊCHEUX, 2009, p. 147, grifo do autor).

Por aí percebemos que as palavras adquirem sentido a partir das formações

discursivas nas quais se inscrevem. Orlandi (2002) vai dizer que as FD, por isso, “podem ser

vistas como regionalizações do interdiscurso, configurações específicas dos discursos em suas

relações” (p. 43), lembrando que as FD não podem ser pensadas “como blocos homogêneos

funcionando automaticamente. Elas são constituídas pela contradição, são heterogêneas nelas

mesmas e suas fronteiras são fluidas, configurando-se e reconfigurando-se continuamente em

suas relações” (p. 44). É neste sentido que Indursky (2007) tratará de uma FD cujas fronteiras

são bastante porosas, permitindo a entrada de saberes estranhos e colocando em jogo, dessa

forma, a unicidade da forma-sujeito.

Forma-sujeito do discurso

O sujeito do discurso tem essa peculiaridade, segundo Orlandi (2002), de, ao mesmo

tempo, ser “sujeito de” e estar “sujeito a”. Ao dizer que o sujeito é “sujeito de” a autora está

se referindo ao desejo inconsciente que o constitui, e estar “sujeito a” representa a submissão

desse sujeito à ideologia através de sua relação constitutiva com a língua e com a história,

pois ele “é afetado por elas” (ORLANDI, 2002, p. 49) ao produzir sentidos. Isso mostra que

na AD não há um sujeito centrado; nem um sujeito totalmente submisso, pois ele não é apenas

reprodutor de sentidos na medida em que também é capaz de alterar sentidos e produzir o

novo. A noção de sujeito em AD está intrinsecamente relacionada ao exterior que o constitui e

não a um indivíduo plenamente consciente do que diz.

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A noção de sentido está, também, relacionada à exterioridade, pois os sentidos são

produzidos na discursividade, isto é, estão condicionados às posições ideológicas às quais os

sujeitos encontram-se submetidos. E o sujeito de discurso, de dimensão ideológica, é, na

verdade, uma forma-sujeito3; uma forma-sujeito histórica.

Conforme Pêcheux (2009), o sujeito do discurso se identifica a uma formação

discursiva que o constitui e, ao formular o intradiscurso, simula o interdiscurso, de modo que

o interdiscurso aparece como o ‘já-dito’, e é isso que produzirá os efeitos de sentido e os

efeitos de evidência e literalidade. Podemos caracterizar a forma-sujeito como realizando a

incorporação-dissimulação do interdiscurso no intradiscurso.

Vale a pena lembrar que, segundo propõe Pêcheux (2006, p. 56-57, grifos do

autor), “não há identificação plenamente bem sucedida, isto é, ligação sócio-histórica que não

seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma ‘infelicidade’ no sentido performativo do

termo – isto é, no caso, por um ‘erro de pessoa’, isto é, sobre o outro, objeto de identificação”.

Ou seja, não há processo de interpelação do sujeito que se realize em plenitude. Daí o sujeito

relutar e resistir ante as formas de poder estabelecidas.

Poder e Resistência

A noção de sujeito, no pensamento foucaultiano, rompe com o referencial

utilizado pela tradição filosófica, rejeitando a noção de sujeito transcendental e seu papel

unificador dos enunciados como discursos de verdade. Para Foucault, não há sujeito como

fundador, agente de enunciação de verdade. O sujeito não é portador de uma essência nem

possui caráter universal, pois não há uma verdade oculta, uma origem a ser buscada. Para ele,

o sujeito não é jamais uma substância,

[...] é uma forma, e essa forma nem sempre é, sobretudo, idêntica a si mesma. Você não tem consigo próprio o mesmo tipo de relações quando você se constituiu como sujeito

político que vai votar ou toma a palavra em uma assemléia [sic], ou quando você busca

realizar o seu desejo em uma relação sexual. Há, indubitavelmente, relações e interferências

entre essas diferentes formas de sujeito; porém, não estamos na presença do mesmo tipo de

sujeito. Em cada caso, se exercem, se estabelecem consigo mesmo formas de relação

diferentes. E o que me interessa é, precisamente, a constituição histórica dessas diferentes

formas do sujeito, em relação aos jogos de verdade. (FOUCAULT, [1984] 2010b, p. 275)

Assim, Foucault concebe um sujeito que se constitui nas relações de poder e nos

procedimentos de verdade, ou seja, por meio de práticas de assujeitamento e práticas de

liberdade. Trata-se de um sujeito dual, aquele que é assujeitado a alguém pelas técnicas de

3 A expressão “forma-sujeito”, segundo Pêcheux (2009), foi introduzida por L. Althusser: “[...] “Todo indivíduo

humano, isto é, social, só pode ser agente de uma prática se se revestir da forma de sujeito. A ‘forma-sujeito’, de

fato, é a forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais”. (PÊCHEUX, 2009, p.

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controle (objetivação) e também aquele preso à sua própria identidade por uma consciência de

si (subjetivação). Interessa menos para o autor saber o que o ser humano é, mas saber como se

constitui a partir de suas práticas.

Em A história da sexualidade, volume I – A vontade de saber, Foucault (1999)

escreveu que, ao falar a verdade sobre si mesmo, o sujeito tinha a possibilidade de conhecer-

se, ao mesmo tempo em que se tornava também exposto aos outros, num entrecruzamento dos

discursos que definem as nossas verdades sobre nós mesmos e a nossa subjetividade.

Daí reside a afirmação de que o sujeito é constituído e determinado a partir de

relações de poder e saber; relações que , por serem históricas, são passíveis de transformação

e enfraquecimentos. Nesse sentido, apesar de constituído pelos eixos poder/saber, o sujeito

tem condições de questionar seus limites, e é a partir da percepção do que se é possível

transpor e transformar, que a liberdade tem condições de existir.

Em se tratando de liberdade, para Foucault, o poder apresenta-se em circularidade

e faz-se presente em todas as relações que pressupõem liberdade. Para pensarmos o poder a

partir de Foucault, buscamos respaldo teórico, além de em outras obras, principalmente em A

ordem do discurso.

Nessa obra, Foucault (2010a) faz reflexões sobre o poder que produz, controla e

reorganiza o saber na sociedade. Toda a análise sobre as coerções que recaem sobre a

produção de discursos aponta para duas importantes teses. Em primeiro lugar, o poder, antes

de ser negativo, é considerado como uma relação de forças. Por conta dessa especificidade, o

poder está em todas as partes, de tal modo que os sujeitos são atravessados por relações de

poder, não estando independentes delas. Em segundo lugar, o poder não somente reprime,

mas também produz efeitos de verdade e saber, constituindo verdades, práticas e

subjetividades.

É a partir da análise desses dispositivos de controle de ordem discursiva, que

Foucault rejeita uma concepção idealista de sujeito, isto é, de sujeito livre (não determinado

pela exterioridade), que exprimiria um sentido preexistente, refletido pela linguagem.

Voltando à questão do poder – conceito nodal desta seção – para Foucault (1999),

o poder não é algo que se adquire, que se guarda ou se deixa escapar, mas é algo que se

exerce em meio a relações.

[...] as relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com respeito a

outros tipos de relações [...], mas lhe são imanentes; [...] as relações de poder não estão em

posição de superestrutura, com um simples papel de proibição ou de recondução; possuem

lá onde atuam, um papel diretamente produtor; [...] o poder vem de baixo; isto é, não há, no

princípio das relações de poder, e como matriz geral, uma oposição binária e global entre os

dominadores e os dominados, [...] as relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e

não subjetivas [...] lá onde há poder há resistência e, no entanto [...] esta nunca se encontra

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em posição de exterioridade em relação ao poder. [...] Esses pontos de resistência estão

presentes em toda a rede de poder. (FOUCAULT, 1999, p. 90-91)

Refinando essa compreensão, podemos dizer que o poder, em Foucault, não

advém de um ‘rei’, ou seja, que o poder emana de uma fonte que o detém e pode deixá-lo

fluir. Contudo, “o poder deve ser analisado como algo que [...] só funciona em cadeia. Nunca

está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma

riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede.” (FOUCAULT, 2004, p. 183)

Silêncio e resistência

Segundo Orlandi (2007), “o silêncio é [...] a “respiração” (o fôlego) da

significação; um lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido

faça sentido. Reduto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que não é “um”,

para o que permite o movimento do sujeito”. (ORLANDI, 2007, p.13)

O sentido não é fixo, ele não está preso a algum lugar pré-definido, não está

“atrás” das palavras. Ele é construído nas relações entre locutores, já que sentidos e sujeitos se

constroem mutuamente, no jogo das múltiplas formações discursivas. As diferentes formações

discursivas “recortam o interdiscurso (o dizível, a memória do dizer) e refletem as diferenças

ideológicas, o modo como as posições dos sujeitos, seus lugares sociais aí representados,

constituem sentidos diferentes.” (ORLANDI, 2007, p. 20). Para analisar o silêncio e os

mecanismos discursivos do silêncio, é necessário estudar as formações discursivas. Sabendo

que é no silêncio que o movimento dos sentidos é possível e que as diferentes formações

discursivas podem ser transpostas. “[...] o limite de uma formação discursiva é o que a

distingue de outra (logo, é o mesmo limite da outra), o que permite pensar [...] que a formação

discursiva é heterogênea em relação a ela mesma, pois já evoca por si o ‘outro’ sentido que

ela não significa.” (ORLANDI, 2007, p. 21). É aí que se encontra o trabalho com o silêncio,

no funcionamento do equívoco, do non-sens, do sentido “outro”.

Para Orlandi (2007), o silêncio é “a possibilidade para o sujeito de trabalhar sua

contradição constitutiva, a que o situa na relação do ‘um’ com o ‘múltiplo’, a que aceita a

reduplicação e o deslocamento que nos deixam ver que todo discurso sempre se remete a

outro discurso que lhe dá realidade significativa.” (p. 23) Orlandi (2007) classifica dois

funcionamentos principais no trabalho com o silêncio: o silêncio fundador, aquele constitutivo

da linguagem, e de todas as palavras, significando o não-dito e dando espaço de recuo

significante; e a política do silêncio, subdividida em silêncio constitutivo e silenciamento. No

silêncio constitutivo, esboça-se a ideia de que todo dizer cala alguma coisa, diz-se (y) para

significar (x), ou seja, todo dizer tem sentidos silenciados. Na política do silêncio, trabalha-se

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com a concepção de que alguns sentidos são censurados ou pelo sujeito de uma formação

discursiva, ou para toda uma comunidade em algum local historicamente determinado. “Em

face dessa sua dimensão política, o silêncio pode ser considerado tanto parte da retórica da

dominação (a da opressão) como de sua contrapartida, a retórica do oprimido (a da

resistência).” (ORLANDI, 2007, p. 29). Esse é o caso de nossos sujeitos investigados. Os

alunos estão de tal forma submetidos a determinadas formações discursivas que não

conseguem transpô-las, a não ser através do silêncio. O silêncio se torna, então, o (um dos)

local (locais) de resistência.

Passamos agora à segunda base teórica que também sustenta nossa análise.

Os Estudos Culturais

Segundo Longaray (2005), investigações contemporâneas de inspiração

sociocultural, realizadas na área da ASL (Aquisição de segunda língua), têm apresentado uma

perspectiva mais crítica em relação ao aprendiz de línguas. Para a autora, “de acordo com essa

nova postura acolhida por muitos pesquisadores da ASL, o aprendiz de línguas passa a ser

aceito como um ser complexo – detentor de uma identidade mutável através do tempo e

espaço”. (LONGARAY, 2005, p.18). Neste estudo, seguindo a linha teórica de Norton

(1995), serão considerados os conceitos de identidade e investimento, com o objetivo de

estabelecer uma relação entre a noção de identidade social e o aprendizado de línguas. Da

mesma maneira, serão trabalhados conceitos de motivação para traçar um comparativo entre

motivação e investimento. Embora os estudos de Norton (1995) estejam voltados a aquisição

de segunda língua, compreendemos que os conceitos abordados em sua pesquisa são

igualmente relevantes para a nossa pesquisa, que trata de aprendizagem de língua estrangeira.

Norton (1995) inicia sua análise afirmando que os teóricos da ASL encontram

dificuldades em estabelecer uma relação entre o aprendiz de línguas e o mundo social, ou seja,

sugerindo a falta de uma teoria da identidade social que fosse capaz de manter tal relação. A

pesquisadora, então, indica que a concepção de identidade social é múltipla e sujeita a

mudança, ao mesmo tempo que propõe conceitos de investimento em oposição ao de

motivação.

Ela ainda assevera que não há na literatura sobre motivação uma explicação

consistente de como as variáveis afetivas interagem com o contexto social, tampouco o

contexto social é considerado. Além disso, os teóricos não conseguiram constatar por que um

aluno pode estar motivado, mostrando-se confiante e extrovertido e, às vezes, desmotivado,

mostrando-se ansioso e introvertido. Também não é apresentado, nessas teorias, um

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argumento consistente sobre por que um aluno fala em sala de aula e, outras vezes, permanece

em silêncio, no sentido da participação.

No âmbito da ASL, o conceito de motivação estava, segundo Norton (1995),

ligado ao campo da psicologia social, no qual se tentava quantificar o comprometimento do

aprendiz no processo da aprendizagem de segunda língua. Citados pela autora, Gardner e

Lambert (1972 apud NORTON, 1995, p. 16) e Gardner (1985 apud NORTON, 1995, p. 17)

são responsáveis pela introdução das noções de motivação instrumental e motivação

integrativa. De acordo com Norton (1995), a motivação instrumental diz respeito ao desejo de

aprender uma segunda língua com propósitos funcionais, como obter um emprego, por

exemplo. Já a motivação integrativa, refere-se ao desejo do aprendiz de adquirir uma língua

que auxilie a integração bem-sucedida do aprendiz à comunidade da língua-alvo.

Essas concepções de motivação são criticadas por Norton (1995) porque não dão

conta de explicar a relação existente entre as relações de poder, identidade e aprendizado de

línguas. Do ponto de vista de Norton (1995), “the conception of investment rather than

motivation more accurately signals the socially and historically constructed relationship of the

women to the target language and their sometimes ambivalent desire to learn and practice it4”.

(p. 17)

Assim, a autora sinaliza que a noção de investimento pode ser melhor

compreendida por meio da metáfora de capital cultural utilizada por Bourdieu (1977 apud

NORTON, 1995, p. 17). O autor utiliza a expressão para se referir ao conhecimento e aos

pensamentos que caracterizam diferentes grupos e classes em relação a conjuntos específicos

de formas sociais. Segundo ele, determinadas formas de capital cultural possuem valor de

troca mais alto dentro de um determinado contexto social.

Inspirada pelas ideias de Bourdieu, Norton (1995) afirma que, ao investir em uma

segunda língua, o aluno compreende que, por meio dessa língua, ampliará seus recursos

simbólicos e materiais que, em retorno, aumentarão o valor de seu capital cultural. Vale

ressaltar que recursos simbólicos são meios como educação e amizade, enquanto recursos

materiais incluem bens imóveis e dinheiro. O investimento, segundo Norton (1995), cria uma

expectativa de retorno, e um retorno capaz de garantir o acesso aos recursos previamente

citados.

A noção de investimento defendida por Norton (1995), cabe lembrar, não tem a

ver com o conceito de motivação instrumental. Nas palavras de Norton,

4 A noção de investimento sinaliza de forma mais adequada a relação construída social e historicamente pelas

mulheres à língua-alvo e seu desejo, às vezes, ambivalente de aprender e praticá-la. [tradução nossa]

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The conception of instrumental motivation generally presupposes a unitary, fixed, and ahistorical language learner who desires access to material resources that are the privilege

of target language speakers. In this view, motivation is a property of the language learner –

a fixed personality trait. The notion of investment, on the other hand, attemps to capture the

relationship of the language learner to the changing social world5. (NORTON, 1995, p. 17)

Nesse sentido, a noção de investimento pressupõe que, ao falar, o aprendiz está

organizando e reorganizando a sua consciência de quem ele é e como se relaciona com os

outros. Portanto, um investimento na língua-alvo é também um investimento na identidade

social do aprendiz. O aprendiz é concebido com uma identidade complexa e dotado de

múltiplos desejos que são frequentemente alterados através do tempo e do espaço.

Para desenvolver sua concepção de identidade social, Norton (1995) apoia-se em

Weedon (1987 apud NORTON , 1995, p. 15), pois, segundo Norton (1995), os trabalhos de

Weedon distinguem-se das outras teorias pós-estruturalistas no sentido de que o trabalho dela

mantém relações entre experiência individual e poder social numa teoria da subjetividade.

Para Weedon (1987, p. 21 apud NORTON, 1995, p. 15),

language is the place where actual and possible forms of social organization and their likely

social and political consequences are defined and contested. Yet it is also the place where

our sense of ourselves, our subjectivity, is constructed6.

Segundo Norton (1995), para o entendimento dos dados de suas pesquisas, três

características da subjetividade apontadas por Weedon são importantes: a natureza múltipla

do sujeito, a subjetividade como um lugar de luta e a subjetividade como algo mutável.

Norton (1995) realizou um estudo longitudinal com cinco imigrantes; todas eram mulheres

recém-chegadas ao Canadá, depois de completarem um curso de língua inglesa com duração

de seis meses. Apesar de estarem altamente motivadas para o aprendizado, houve condições

sociais particulares sob as quais elas se sentiram mais desconfortáveis para falar. Os

resultados da pesquisa de Norton (1995) apontaram para o fato de que a motivação de um

aprendiz de línguas para falar é mediada por investimentos que podem conflitar com o desejo

de falar. Paradoxalmente, a decisão de permanecer em silêncio ou falar pode, em ambos os

casos, constituir uma forma de resistência a forças sociais desiguais ou práticas sociais

inescrupulosas.

Antes de apresentarmos as contribuições de Longaray (2005) que se fazem

pertinentes para esta pesquisa, consideramos relevante voltar à noção de identidade social

5 A concepção de motivação instrumental geralmente pressupõe um aprendiz de línguas unitário, fixo e a-

histórico que deseja ter acesso aos recursos materiais que são privilégios dos falantes da língua-alvo. Nessa

visão, a motivação é uma propriedade do aprendiz de línguas – um traço fixo da personalidade. A noção de

investimento, por outro lado, captura a relação do aprendiz com o mundo social mutável. [tradução nossa] 6 A língua é o lugar onde formas possíveis e verdadeiras de organização social e suas prováveis consequências

sociais e políticas são definidas e contestadas. Porém é também o lugar onde a nossa percepção de nós

mesmos, nossa subjetividade, é construída. [tradução nossa]

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defendida por Norton (1995). Em textos escritos anos mais tarde, Norton (1997) faz uso do

termo identidade para fazer referência ao modo como as pessoas compreendem sua relação

com o mundo e com elas próprias, e como tal relação se modifica ao longo do tempo, e

abandona o termo identidade social.

Quanto à identidade e aprendizagem de línguas, Norton (1997) considera que o

aprendizado de uma segunda língua envolve as identidades dos aprendizes pela própria

natureza da linguagem, que não é apenas um sistema de signos, mas uma prática social.

Assim, ao falar, os aprendizes não estão apenas trocando informações, mas estão organizando

e reorganizando o senso de quem são e de como se relacionam com o mundo. Durante esse

processo, os aprendizes estão envolvidos na construção e na negociação de suas identidades.

Motivada pelos resultados das pesquisas conduzidas por Norton (1995), Longaray

(2005) analisa eventos de resistência e de não participação a partir de dados gerados em uma

turma de primeiro ano do Ensino Médio de uma escola pertencente à rede pública estadual do

Rio Grande do Sul. Essa pesquisa durou seis meses, período compreendido entre 07 de junho

a 06 de dezembro de 2004, no Instituto Estadual Dr. Barcelos, nome fictício. Foi constatado

um número considerável de faltas por parte dos alunos, devido a problemas domésticos, ou

abstenção durante a troca dos períodos de aula.

Longaray (2005) constatou que a maior parte das aulas observadas no Instituto

Estadual Dr. Barcelos consistia em atividades que não despertavam interesse nos alunos. As

atividades, restritas ao aprendizado da gramática e à tradução de textos, eram desenvolvidas

por meio de um polígrafo totalmente descontextualizado, que foi elaborado pelas próprias

professoras da escola. A pesquisadora verificou também que o tratamento indelicado dirigido

à professora da escola era sempre produzido de forma disfarçada e respeitava certa distância

em relação à posição da professora em sala de aula.

A partir de Longaray (2005), percebemos que a resistência ao aprendizado de

inglês como LE constitui-se numa prática social que envolve as identidades e (a)

subjetividade dos aprendizes e que põe em questão o investimento que o aprendiz apresenta.

ANÁLISE DOS DADOS

Preliminares: as aulas de Inglês

Inicialmente, queremos enfatizar que este artigo se propõe a apresentar parte de

uma análise desenvolvida em dissertação de mestrado. A falta de espaço, aqui, não nos

permite apresentar e analisar os dados de forma sistemática. Assim, nesta seção,

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apresentaremos aspectos metodológicos da pesquisa, parte da análise e, por fim, as possíveis

conclusões.

A fim de coletarmos os dados, optamos por desenvolver um estudo de caso na

mesma escola onde trabalha a pesquisadora. A escola é uma instituição que pertence à rede

pública estadual do Estado de Santa Catarina. Ela atende crianças, adolescentes e jovens de

classe média baixa, a maioria proveniente do mesmo município em que a escola se situa. Para

a realização da coleta dos dados, utilizamos os seguintes instrumentos: notas de campo;

questionário semiestruturado; gravações, em áudio, de aulas e entrevistas semiestruturadas.

A maior parte das aulas que observamos consistia na execução de atividades que

não despertavam interesse nos alunos. Em sua maioria, desenvolvidas de acordo com o livro

didático adotado pela escola, as atividades pareciam penosas e descontextualizadas. O livro

didático adotado correspondia ao livro de Inglês distribuído gratuitamente pelo governo

estadual às escolas da rede pública do Estado de Santa Catarina, e embora apresentasse textos

de diversos gêneros textuais, esses textos eram muito extensos para o nível em que os alunos

se encontravam e as atividades consistiam em interpretação textual e exercícios gramaticais.

Muito embora a discussão sobre a qualidade do livro adotado fuja ao escopo desta pesquisa,

parece-nos possível afirmar que ele consistiria em um bom material de apoio, não fosse sua

utilização quase exclusiva em sala de aula.

As aulas de Inglês do Ensino Médio no Colégio São Jorge7 estavam, portanto,

limitadas aos exercícios de interpretação de texto, tradução e gramática. Todos os

participantes estavam acostumados às aulas expositivas; tradução e leitura feitas, quase

sempre, pela professora e intermináveis listas de exercícios gramaticais e de interpretação.

Durante a exposição de conteúdos pela professora, apesar do silêncio demandado,

boa parte dos alunos permanecia alheia ao que estava acontecendo. A quietude não poderia

ser vista como atitude de engajamento.

Nesse contexto, as atitudes de silenciamento, não-participação explícita ou

dissimulada (a simulação da conclusão de atividades, por exemplo) e indisciplina seriam

caracterizadas como formas de resistência? A análise nos leva a crer que sim. E quais seriam

as possíveis ‘causas’ da manifestação dessas atitudes?

Discursos que revelam formas de resistência nas aulas de Inglês

Analisando os discursos produzidos pelos sujeitos da pesquisa, verificamos que a

atualização dos arquivos discursivos corrobora regularidades e recupera discursos que

circulam, há muito, sobre a importância da Língua Inglesa na sociedade.

7 Nome fictício criado para nos referirmos à escola onde a pesquisa foi desenvolvida.

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A grande maioria dos participantes desta pesquisa vê o conhecimento da Língua

Inglesa como possibilidade de ascensão social. A falácia de que “hoje em dia um emprego de

qualidade exige conhecimentos de Inglês” é compartilhada quase que unanimemente pelos

entrevistados. Um dos alunos, por exemplo, forneceu a seguinte resposta quando questionado

sobre o que ele achava da Língua Inglesa e de estudá-la: “Acho legal e interessante porque o

inglês é muito importante. No futuro talvez eu possa precisar dele para uma viagem ou até

mesmo para uma entrevista de emprego”.

O discurso que ressoa na fala dos aprendizes parece retomar um discurso que

circula na mídia. Em outras palavras, somos constituídos pela discursividade exterior, que não

aparece como exterior, mas como naturalizada pelo processo do esquecimento referido por

Pêcheux (2009), e que está reforçada pelo discurso midiático. Assim, verificamos uma relação

interdiscursiva entre o desejo do aluno em aprender a LI, o imaginário da cultura exterior e o

discurso midiático.

A busca pela aprendizagem de LI vai além de propósitos comunicativos e essa

visão da importância da LI é muito mais histórica e ideológica do que pessoal. O sujeito é

posto em uma rede interdiscursiva que traz interesses políticos, econômicos, culturais e

ideológicos do Outro.

O que constatamos, no entanto, é que as práticas e os discursos desses aprendizes,

produzidos em sala de aula, muitas vezes não condizem com os discursos produzidos nas

entrevistas e questionários. Principalmente por meio de observação de aulas, verificamos

inúmeras formas de resistência que optamos por agrupar em duas categorias, conforme sua

forma de manifestação: a categoria do silêncio e a categoria do ruído.

Tomando a resistência em seu sentido denotativo, consideramos formas de

resistência, neste trabalho, as práticas opositoras ao processo de ensino-aprendizagem

manifestadas pelos aprendizes de LI. Assim, atitudes de não-participação; conversas

paralelas; pedidos para sair da sala; situações de simulação, onde os alunos “faziam de conta”

que estavam engajados numa atividade, foram as constantes formas de resistência encontradas

e que, a título de simplificação, optamos por nomear atitudes de não-participação,

interrupção e argumentação. As atitudes de não-participação foram agrupadas na categoria

silêncio, e as atitudes de interrupção e argumentação foram agrupadas na categoria ruído.

Observe o quadro:

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Quadro 1 – Formas de Resistência

CATEGORIA FORMAS DE

RESISTÊNCIA

EXEMPLOS

SILÊNCIO

Não-participação

P: letra D...número

um...quem pode ler?

((silêncio))

A5: NOssa...

P: nossa mesmo...((silêncio))

eu vou fazer a pergunta mais

uma vez...quem

gostaria...quem

pode...mesmo que não

gostaria...mas quem é que

pode fazer esse favor de ler a

número um?

(Aula – 1ª série)

RUÍDO

Interrupção

((conversas))

P: tá pessoal...eu gostaria que

vocês acompanhassem no

livro...Alisson guarda o

celular...por favor...

A3: não tá pegando

professora...

P: tá...mas mesmo

assim...deixa ele ali...vamos

acompanhar agora o

texto...tá? e vocês já podem

ir sublinhando uma palavra

que tenha bastante

dúvida...mas acompanhem..(

) eu não acredito que vocês

estão com esses boletins aí

ainda...mas é muito orgulho

né...das notas...

((conversas))

((som))

P: eu não quero parar por

causa de barulho...hein?

(Aula – 3ª série)

“Não sei se faço certo ou

errado, mas vivo dizendo

pros alunos que Inglês é

importante, que já faz parte

do nosso dia-a-dia e que

saber Inglês pode

proporcionar a conquista de

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Argumentação

uma oportunidade melhor no

mercado de trabalho que está

cada vez mais competitivo.

Dias atrás um aluno do

terceiro ano quis discutir

essa questão da

importância do ensino de

Inglês dizendo que nunca ia

precisar disso porque

“queria” ser pedreiro. No

fim, fiquei sem palavras.

Acho que eu também duvido

dessa importância”.

(Anotação em diário de

campo – Outubro/2012)

Encontradas algumas formas de resistência, chegamos à possível conclusão de

que essas formas de resistência mantêm relações com as noções de investimento e

comunidades imaginadas de Bonny Norton (1995; 2001) e de relações de poder, de acordo

com Foucault (1996; 1998; 1999; 2004; 2010b). Em primeiro lugar, a maioria dos alunos

pertence a comunidades onde o Inglês não exerce influência e/ou não é necessário. Devido a

esse pertencimento, o investimento despendido na aprendizagem da língua é quase nulo e daí

resultam as atitudes de não-participação. Em segundo lugar, jamais seria possível verificar

resistências onde não houvesse relações de poder. É porque a sala de aula está imersa em

relações de poder que consideramos os subterfúgios como formas de resistência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esperamos ter contribuído para uma melhor compreensão da complexidade das

relações que podem se estabelecer nas aulas de LI como LE na escola pública, e propomos

que as formas de resistência sejam cuidadosamente avaliadas para que não resultem em

frustração para ambas as partes: professor e alunos.

Desde o início nos propusemos a escrever sem sugerir soluções para reduzir as

formas de resistência. A finalidade do artigo foi a de problematizar, fazer pensar o que nos

parecia tão natural.

Nesse sentido, esperamos que aquilo que estudamos, propusemos, afirmamos,

sejam motivos para novas perguntas, outras leituras, para continuar o que acreditamos

inacabado, pois este trabalho só deixará de ser uma intenção se for lido e tornar-se motivo de

“conversa” entre aqueles a quem se dirige de forma mais direta: aos professores e

pesquisadores da linguagem. Cabe, agora, aos que lerão este trabalho produzirem suas

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próprias interpretações. Sugerimos que leiam e façam dessa leitura, e de si mesmos, algo

outro, porque nós, que produzimos esta escrita, já não somos mais como imaginávamos no

início; afinal de contas, ter uma identidade imutável é impossível.

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A AUTORA

Vaniele Medeiros da Luz é mestranda em Ciências da Linguagem pela Universidade do Sul

de Santa Catarina (UNISUL 2011). Possui especialização em Gramática de Texto: leitura,

análise e produção (UNISUL 2010) e graduação em Letras Português/Inglês (UNISUL 2006).

Atua como professora de Língua Inglesa na rede privada de ensino e como pesquisadora,

atuando principalmente nos seguintes campos: discurso, educação e Língua Inglesa. É

participante do Grupo de Pesquisa "Análise do Discurso: pesquisa e ensino" (GADIPE) da

Universidade do Sul de Santa Catarina.

E-mail: [email protected]

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