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5910187 – Biofísica II – FFCLRP – USP – Prof. Antônio Roque – Aula 6 1 Transporte de solvente através de membranas: estado estacionário Estudos experimentais mostram que o fluxo de solvente (água) em resposta a pressão hidráulica, em um meio homogêneo e poroso, é análogo ao fluxo difusivo de uma substância (e, também, ao fluxo de calor e à condutância elétrica). O fluxo convectivo do volume de solvente (em uma dimensão) obedece à lei de Darcy, , x p V = Φ κ (1) onde Φ V é o fluxo de volume de solvente (o volume de solvente que cruza uma área unitária por unidade de tempo (m 3 /m 2 .s = m/s), p é a pressão hidráulica (Pa) e κ é chamada de permeabilidade hidráulica (m 2 /Pa.s), que não deve ser confundida com a permeabilidade de uma membrana a um soluto, definida nas aulas sobre difusão. Esta é uma lei fenomenológica obtida pelo engenheiro hidráulico francês Henry Darcy (1803-1858).

Transporte de solvente através de membranas: estado estacionário

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Transporte de solvente através de membranas: estado

estacionário

Estudos experimentais mostram que o fluxo de solvente (água) em

resposta a pressão hidráulica, em um meio homogêneo e poroso, é

análogo ao fluxo difusivo de uma substância (e, também, ao fluxo

de calor e à condutância elétrica).

O fluxo convectivo do volume de solvente (em uma dimensão)

obedece à lei de Darcy,

,xp

V ∂

∂−=Φ κ (1)

onde ΦV é o fluxo de volume de solvente (o volume de solvente

que cruza uma área unitária por unidade de tempo (m3/m2.s = m/s),

p é a pressão hidráulica (Pa) e κ é chamada de permeabilidade

hidráulica (m2/Pa.s), que não deve ser confundida com a

permeabilidade de uma membrana a um soluto, definida nas aulas

sobre difusão.

Esta é uma lei fenomenológica obtida pelo engenheiro hidráulico

francês Henry Darcy (1803-1858).

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Se assumirmos que a existência de uma pressão osmótica no meio

produz efeitos equivalentes aos de uma pressão hidráulica,

podemos generalizar a lei de Darcy para,

( ).xp

V ∂−∂

−=Φπ

κ (2)

Desta forma, o fluxo de volume de solvente em um meio poroso

(ao solvente) pode ocorrer tanto quando há um gradiente de

pressão hidráulica no meio como quando há um gradiente de

pressão osmótica (que resulta de um gradiente de concentração de

soluto).

Se assumirmos que existe conservação da massa do solvente,

podemos deduzir uma equação que expresse isso matematicamente

(equação da continuidade).

Consideremos um elemento de volume como o da figura abaixo.

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Seja a ρm a densidade de massa do solvente. O volume de solvente

que passa pela face do elemento de volume em x durante o

intervalo de tempo Δt é igual a ΦV(x,t)AΔt. A massa desse volume

de solvente é ρm(x,t)ΦV(x,t)AΔt. Pelo mesmo raciocínio, a massa

do volume de solvente que passa pela face do elemento de volume

em x + Δx durante o intervalo de tempo Δt é dada por

ρm(x+Δx,t)ΦV(x+Δx,t)AΔt.

Então, a conservação da massa requer que a massa líquida fluindo

pelo elemento de volume no intervalo de tempo Δt seja igual à

variação da massa dentro do elemento de volume:

ΦV (x, t)AΔtρm (x, t)−ΦV (x +Δx, t)AΔtρm (x +Δx, t) = ρm (x, t +Δt)− ρm (x, t)( )AΔx.

Rearranjando os termos e fazendo Δx→0 e Δt→0, obtemos a

equação da continuidade para a massa de solvente,

( ).

txmVm

∂−=

Φ∂ ρρ (3)

No estado estacionário, assume-se que todas as variáveis

descrevendo o transporte de solvente são independentes do tempo.

Fazendo 0=∂∂ tmρ na equação acima (o que implica assumir que

o solvente é incompressível), temos,

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4

d ρmΦV( )dx

= 0, (4)

onde a derivada parcial foi transformada em derivada total porque

não há mais dependência em t.

Se, além disso, assumirmos que a densidade do solvente é

uniforme no espaço, ou seja, que ρm não depende de x, a equação

acima nos dá que dΦV dx = 0 , o que implica que ΦV é uma

constante, independente do espaço e do tempo.

Substituindo isto na equação (2),

d p−π( ) = −ΦV

κdx. (5)

Vamos usar esta equação para obter uma expressão para p e π

através de uma membrana porosa e fina de espessura d (e

permeável apenas ao solvente, não deixando passar o soluto).

Vamos supor uma situação como a mostrada no desenho abaixo,

onde os lados esquerdo e direito da membrana são denominados,

respectivamente, de 1 e 2. Na figura também estão indicadas as

concentrações do soluto e as pressões hidráulicas nos dois lados e

dentro da membrana.

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Integrando a equação (5) entre dois pontos quaisquer, x1 e x2,

obtemos a expressão:

( ) ( ) ( ).)()()()( 121122 xxxxpxxp V −Φ

−=−−−κ

ππ (6)

Esta equação nos diz que, no estado estacionário, a variável (p−π)

deve ser uma função linear de x.

Para x1 = 0 e x2 = d, temos:

( ) ( ) .)0()0()()(κ

ππd

pddp VΦ−=−−− (7)

Esta equação nos dá o fluxo de volume de solvente através da

membrana em termos dos valores da variável (p−π) nas posições

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das interfaces 0 e d da membrana com as soluções dos dois lados

dela.

Para relacionar o fluxo de volume aos valores de p e π no interior

das soluções (p1, p2, π1 e π2), devemos adotar condições de

contorno para as duas interfaces.

Segundo a equação (5), a variável (p−π) deve ser contínua nas duas

interfaces. Portanto, p(0)−π(0) = p1−π1 e p(d)−π(d) = p2−π2.

Aplicando estas condições de contorno à equação (7), temos que:

p2 −π 2( )− p1 −π1( ) = −ΦVdκ. (8)

Isolando ΦV na equação acima:

ΦV =κd

p1 − p2( )− π1 −π 2( )#$ %&=κdΔp−Δπ( ), (9)

onde Δp = p1 − p2 e Δπ = π1 − π2 = RT(C1Σ − C2

Σ).

A condutividade hidráulica de uma membrana, indicada por LV, é

uma grandeza que mede a capacidade da membrana de transportar

volume de solvente (água) quando o soluto é impermeante (não

pode passar pela membrana). Ela é definida como o fluxo de

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volume de solvente por unidade de diferença de pressão (hidráulica

e osmótica) através da membrana.

As unidades de condutividade hidráulica da membrana são

m/(Pa.s).

Olhando para a expressão (9), vemos que a definição de LV

corresponde a:

ΦV

Δp−Δπ( )= LV , (10)

e, portanto, LV = κ/d.

Em termos de LV a equação (9) fica:

ΦV = LV Δp−Δπ( ). (11)

Usando a fórmula de van’t Hoff para a pressão osmótica, podemos

reescrever esta equação como:

ΦV = LV p1 − p2( )− RT CΣ1 −CΣ

2( )$%

&'. . (12)

Podemos tirar algumas conclusões desta equação.

Primeiramente, o equilíbrio osmótico através da membrana ocorre

quando o fluxo de volume (de água) é zero, ΦV = 0. Isto ocorre

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quando: (a) LV = 0, isto é, a membrana não é permeável a água, por

maiores que sejam as diferenças de pressão osmótica e hidráulica

através dela; ou (b) p1 – p2 = RT(CΣ1 – CΣ

2).

Esta última condição nos diz que, num caso em que não há

diferença de pressão hidráulica entre os dois lados da membrana

(p1 = p2) , o equilíbrio osmótico só ocorre se as concentrações de

solutos dos dois lados da membrana forem iguais também. Da

mesma forma, se as concentrações de soluto forem iguais dos dois

lados da membrana (CΣ1 = CΣ

2 ), o equilíbrio só existirá se não

houver diferença de pressão hidráulica entre os dois lados (neste

caso, o equilíbrio será mecânico e não osmótico).

Outro estudo que pode ser feito a partir da equação (12) é o da

direção do fluxo de água. Como estamos interessados na pressão

osmótica, vamos considerar o caso em que não há diferença de

pressão hidráulica entre os dois lados (p1 = p2). Neste caso especial

a equação (12) torna-se,

( ).12ΣΣ −=Φ CCRTLVV (13)

Portanto, o fluxo do lado 1 para o lado 2 será positivo se a

concentração de soluto no lado 2 for maior do que no lado 1, e

vice-versa. Isto está de acordo com o que se observa

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experimentalmente (a água vai do lado com menor concentração

de soluto para o lado com maior concentração de soluto).

Podemos agora fazer uma comparação entre dois tipos de

transporte de água através de uma membrana: o osmótico e o

difusivo. O transporte de água por osmose se deve a uma diferença

de concentração do soluto através da membrana (suposta como não

permeável ao soluto). Já o transporte de água por difusão, assim

como qualquer outro transporte difusivo de matéria, é causado por

uma diferença de concentração de água entre os dois lados da

membrana.

Para compararmos os dois tipos de transporte, vamos primeiro

escrever a equação (13) em termos do fluxo molar osmótico de

água (pois nas aulas em que falamos de difusão as equações

obtidas eram relativas ao fluxo molar de uma substância). Vamos

supor que todo o fluxo de matéria através da membrana é devido à

água. Neste caso, o fluxo de volume de água por osmose pode ser

escrito como,

,aaV vφ=Φ (14)

onde φa é o fluxo molar osmótico de água (número de moles de

água que passa por uma área unitária por unidade de tempo, por

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osmose) e av é o volume molar parcial da água (o volume de um

mol de água).

Em termos de φa, a equação (13) fica:

( ),12ΣΣ −= CCa aPφ (15)

onde

.a

V

vRTL

=aP (16)

Pa é chamado de coeficiente de permeabilidade osmótica.

A equação (15) é muito parecida com a lei de Fick para o fluxo por

difusão de uma substância n através de uma membrana (lei de Fick

para membranas).

Se a substância n da lei de Fick para membranas for a água,

teremos:

( ),21aaaa ccP −=φ (17)

onde φa é o número de moles de água que passa por difusão através

de uma área unitária por unidade de tempo, Pa é a permeabilidade

difusiva da membrana à água e cai indica a concentração de água

no lado i (1 ou 2) da membrana.

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Os dois tipos de fluxo de água, dados pelas equações (15) para o

fluxo por osmose e (17) para o fluxo por difusão, são descritos por

equações muito parecidas. Porém, as variáveis Pa (coeficiente de

permeabilidade osmótica) e Pa (permeabilidade difusiva) medem

processos diferentes de transporte de água por uma membrana

(embora elas tenham as mesmas unidades (cm/s)).

O processo associado a Pa é a osmose, um fluxo convectivo de

água pela membrana que depende da diferença de concentração do

soluto. E o processo associado a Pa é a difusão, um fluxo difusivo

de água pela membrana que depende da diferença de concentração

de água.

Mecanismo Macroscópico Responsável pela Osmose

Um estudo mais detalhado do regime estacionário nos permite

ganhar uma compreensão melhor sobre os mecanismos

macroscópicos responsáveis pela osmose. Segundo a equação (6),

a variável (p−π) é uma função linear da distância ao longo da

membrana.

Além disso, ela deve ser uma função contínua de x nas interfaces

entre a membrana e as soluções dos lados 1 e 2, em x = 0 e x = d.

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Portanto, os comportamentos da variável (p−π) e das variáveis p e

π isoladamente, na situação de estado estacionário, são descritos

pelos desenhos abaixo.

A figura de cima mostra o comportamento linear e contínuo de

(p−π) dentro da membrana.

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A figura de baixo mostra os comportamentos de p e π

separadamente. Como a membrana não é permeável ao soluto, a

concentração de soluto no seu interior é nula, CΣ (x) = 0. Isto

implica que a concentração de soluto e, portanto, a pressão

osmótica são descontínuas nas interfaces membrana-solução.

Como (p−π) é contínua, a pressão hidráulica p também deve ser

descontínua nas duas interfaces para compensar as

descontinuidades na pressão osmótica.

No caso das figuras, a pressão hidráulica tem um valor constante p1

no lado 1 e um valor constante p2 menor que p1 no lado 2. Na

passagem do lado 1 para o interior da membrana, a pressão

hidráulica cai de maneira descontínua, para manter (p−π) contínua,

e, a partir daí, decresce linearmente até a interface da membrana

com o lado 2, onde ela sobe de maneira descontínua (de novo para

manter a variação de (p−π) contínua) para o valor p2,

permanecendo neste valor dentro do lado 2.

Como no interior da membrana não há concentração de soluto (e,

portanto, a pressão osmótica é nula) o fluxo de volume dentro dela

é, segundo a equação (1), proporcional ao negativo do gradiente de

p(x). Portanto, o fluxo de água no interior da membrana se dá da

esquerda para a direita (lado 1 para o lado 2).

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A relação entre p e π pode ser explorada ainda mais analisando

uma situação como a da figura a seguir, em que o lado 2 contém

água pura ( 02 =ΣC ), mantida a uma pressão constante p2 e o lado 1

contém uma concentração de soluto 1ΣC constante.

A figura mostra o que acontece com a pressão hidráulica p(x)

dentro da membrana para três diferentes valores da pressão

hidráulica p1 no lado 1. Note que a descontinuidade na pressão

hidráulica na passagem da solução para a interface membrana-

solução é tal que iguala o valor da pressão osmótica no interior da

solução: 1

1interf1 Σ==− RTCpp π . (18)

Para o caso (a) na figura (o caso com o maior valor de p1), a

pressão p(x) decai linearmente dentro da membrana, de maneira

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que o fluxo de volume (dado por (1) é positivo (vai da esquerda

para a direita). Note que o fluxo de volume devido à pressão

osmótica seria no sentido oposto, da direita para esquerda.

Portanto, este é um caso em que as forças mecânicas

(representadas pela pressão p1) são tais que superam as “forças

osmóticas” e o solvente flui do lado de maior concentração de

soluto para o de menor.

À medida que p1 diminui, o gradiente de p(x) dentro da membrana

vai se tornando menor e o fluxo vai se reduzindo. Quando p1 atinge

um valor tal que 21

1 pRTCp =− Σ (o caso (b) na figura), o fluxo de

volume é zero.

A partir daí, valores menores de p1 (o caso (c) é um exemplo)

implicam em gradientes positivos de p(x) dentro da membrana e,

portanto, em fluxo de volume negativo, isto é, da direita para a

esquerda. Este é um caso típico em que se observa osmose, com a

água indo do lado de menor concentração de soluto para o lado

com maior concentração de soluto.