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 Texto e fotografia na arte contemporânea : dois exemplos 1  João Fernandes 2  Durante algum tempo, depois da apari- ção da fotografia, os únicos textos possíveis que podíamos associar a essas eram os de seus títulos, os das legendas que as acom- panhavam em uma publicação, ou, no má- ximo, os de algum painel publicitário, inscri- ção ou diário que encontrávamos represen- tado através de uma foto. A história da fo- tografia parecia abrir um novo gênero na história da arte, onde a natureza do suporte e a especificidade técnica de sua realização definiam as condições de avaliação de suas diversas manifestações. Nesse transcurso, como em outras formas de arte, a fotografia logo se liberou do determinismo a que qua l- quer especificação técnica lhe pudesse sub- meter, encontrando novas gramáticas que contradiziam qualquer possibilidade de sua categorização recorrendo simplesmente à evidência de uma competência técnica em sua realização. O uso do texto será um dos recursos for- mais e conceituais que os artistas incorpo- ram em uma interseção entre texto e ima- gem, que caracteriza uma grande parte da história da produção artística do século XX. Como consequência, a relação entre arte e linguagem foi, ao longo do século XX, um dos contextos mais proveitosos para a supe- ração dos limites aos quais uma h istória dos gêneros artísticos parecia ter limitado à arte ocidental. Se, por um lado, muitos poetas espacializaram seus textos, explorando as possibilidades gráficas que a escritura lhes 1  Texto originalmente publicado em espanhol na Revista Exit, n.º 16, 2004, p.102-106. 2  João Fernandes. Diretor do Museu de Arte Contemporânea de Serreives, Por to. Licenciado em 1985 em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade do Porto. Entre 1992-1996, organizou, como comissário freelance, 3 edições das Jornadas de Arte Contemporânea do Porto. Organizou, igualmente, as representações de Portugal na I Bienal de Arte de Johanes- burgo (1995) e na XXIV Bienal de Arte de São Paulo (1998).  proporcionava, por outro, numerosos artis- tas visuais partiram da palavra e do texto para a abolição das fronteiras que isolavam a arte da experiência da vida cotidiana e condicionavam uma discussão e um conhe- cimento sem limites da natureza do pro- cesso artístico. Arte e poesia se cruzaram desse modo em uma experimentação recíproca das pos- sibilidades que a transgressão de suas gra- máticas específicas lhes propiciava. Se, desde Mallarmé, o Livro surge como uma configuração do mundo, muitas de suas  “pá- ginas” tem sido criadas por uma história que se remonta às primeiras experiências futu- ristas, construtivistas e dadaístas, e se pro- longa até a arte conceitual dos últimos trinta anos. Enquanto os poetas objetivaram a pa- lavra, os artistas a usaram por sua vez para redefinir a condição de objeto de arte. Em consequência, a partir da segunda metade da década de 1960, se questiona a autono- mia e a  “essência” da obra de arte, assim como sua absorção, então traduzível nas ex- periências minimalistas. Assiste-se assim, ao mesmo tempo em que há a consagração da  pop art , à redefinição da condição da obra de arte, a um cruzamento dos gêneros for- mais, ao uso do filme, do cinema, da foto- grafia e do texto como suportes de projetos conceituais, a uma busca das relações entre arte e vida que acompanham a aceitação de novas ideias políticas e sociais, assim como a uma ruptura do conceito de marco ou de

Texto e fotografia na arte contemporânea: dois exemplos - João Fernandes

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Texto de João Fernandes, originalmente publicado em espanhol na Revista Exit, n.º 16, 2004, p.102-106. Tradução: Fabrício Barbosa

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7/16/2019 Texto e fotografia na arte contemporânea: dois exemplos - João Fernandes

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Texto e fotografia na arte contemporânea: dois exemplos1 

João Fernandes2 

Durante algum tempo, depois da apari-ção da fotografia, os únicos textos possíveis

que podíamos associar a essas eram os de

seus títulos, os das legendas que as acom-

panhavam em uma publicação, ou, no má-

ximo, os de algum painel publicitário, inscri-

ção ou diário que encontrávamos represen-

tado através de uma foto. A história da fo-

tografia parecia abrir um novo gênero na

história da arte, onde a natureza do suporte

e a especificidade técnica de sua realização

definiam as condições de avaliação de suas

diversas manifestações. Nesse transcurso,

como em outras formas de arte, a fotografia

logo se liberou do determinismo a que qual-

quer especificação técnica lhe pudesse sub-

meter, encontrando novas gramáticas que

contradiziam qualquer possibilidade de sua

categorização recorrendo simplesmente à

evidência de uma competência técnica em

sua realização.

O uso do texto será um dos recursos for-

mais e conceituais que os artistas incorpo-

ram em uma interseção entre texto e ima-

gem, que caracteriza uma grande parte da

história da produção artística do século XX.

Como consequência, a relação entre arte e

linguagem foi, ao longo do século XX, um

dos contextos mais proveitosos para a supe-

ração dos limites aos quais uma história dos

gêneros artísticos parecia ter limitado à arte

ocidental. Se, por um lado, muitos poetas

espacializaram seus textos, explorando as

possibilidades gráficas que a escritura lhes

1 Texto originalmente publicado em espanhol na Revista Exit, n.º 16, 2004, p.102-106.

2 João Fernandes. Diretor do Museu de Arte Contemporânea de Serreives, Porto. Licenciado

em 1985 em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade do Porto. Entre 1992-1996,

organizou, como comissário freelance, 3 edições das Jornadas de Arte Contemporânea do

Porto. Organizou, igualmente, as representações de Portugal na I Bienal de Arte de Johanes-burgo (1995) e na XXIV Bienal de Arte de São Paulo (1998).  

proporcionava, por outro, numerosos artis-tas visuais partiram da palavra e do texto

para a abolição das fronteiras que isolavam

a arte da experiência da vida cotidiana e

condicionavam uma discussão e um conhe-

cimento sem limites da natureza do pro-

cesso artístico.

Arte e poesia se cruzaram desse modo

em uma experimentação recíproca das pos-

sibilidades que a transgressão de suas gra-

máticas específicas lhes propiciava. Se,desde Mallarmé, o Livro surge como uma

configuração do mundo, muitas de suas “pá-

ginas” tem sido criadas por uma história que

se remonta às primeiras experiências futu-

ristas, construtivistas e dadaístas, e se pro-

longa até a arte conceitual dos últimos trinta

anos. Enquanto os poetas objetivaram a pa-

lavra, os artistas a usaram por sua vez para

redefinir a condição de objeto de arte. Em

consequência, a partir da segunda metadeda década de 1960, se questiona a autono-

mia e a  “essência” da obra de arte, assim

como sua absorção, então traduzível nas ex-

periências minimalistas. Assiste-se assim,

ao mesmo tempo em que há a consagração

da pop art , à redefinição da condição da obra

de arte, a um cruzamento dos gêneros for-

mais, ao uso do filme, do cinema, da foto-

grafia e do texto como suportes de projetos

conceituais, a uma busca das relações entre

arte e vida que acompanham a aceitação de

novas ideias políticas e sociais, assim como

a uma ruptura do conceito de marco ou de

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enquadramento, os quais dão lugar à inva-

são do espaço interior e, às vezes, exterior,

e também à utilização de novos materiais

pobres, reciclados a partir de outros existen-

tes ou, inclusive, materiais tecnologica-

mente sofisticados.

1 Fotografias de Hamish Fulton 

A fotografia será um território onde a ir-

rupção do texto contribui à sua integração

no domínio da criação artística dessa época,

mas além dos limites ou das possibilidades

com os quais sua natureza técnica a possa

definir. A partir da década de 1960, a foto-

grafia surge como suporte de linguagens

conceituais enquanto documento de açõesou de situações nas quais exerce registro.

Se desenvolvem também operações como a

colagem, a justaposição de imagens ou in-

tegração de textos, transferindo o objetivo

da imagem à condição de suporte de um

processo conceitual que encontrava sua nar-

rativa apropriada através dela. Esta textua-

lização da fotografia origina uma campo ex-

pandido para a arte conceitual, possibili-

tando a exploração do efêmero do instantee da situação, nas ações que os artistas em-

preendem nesse momento. Anos antes, um

fotógrafo como Robert Frank teria assumido

em sua obra uma relação dinâmica entre

texto e fotografia, a qual abria novas possi-

bilidades conceituais para a mesma, e sus-

citava uma nova poética do registro fotográ-

fico, valorando o ponto de vista do autor por

cima da natureza do suporte utilizado. Frank

assume esse desejo, já em 1951:  “quando3 Citado por Mikael Van Reis, em  “That Spot of 

Light – Robert Frank’s Life Studies”, in Robert Frank ,

Flamingo, The Hasselblad Prize, 1996. 

as pessoas virem minhas fotografias, quero

que se sintam como quando desejam ler

pela segunda vez o verso de um poema” 3.

Desde então até nossos dias, são inume-

ráveis os casos de artistas que assumem a

textualidade como componente estrutural

de seus trabalhos, explorada graficamenteem livros e catálogos, assim como espacial-

mente em suas exposições. Resulta, deste

modo, uma interação dinâmica entre texto e

fotografia, que possibilitará a construção de

um novo tipo de poética subversora da au-

tonomia dos dois suportes. Entre esses múl-

tiplos casos, podem se destacar as obras de

dois artistas como exemplos das diferentes

gramáticas possíveis nesta relação entre

texto e fotografia que nelas detectamos: sãoestes os casos das obras de Hamish Fulton

e de Boris Mikhailov.

Em Hamish Fulton, a fotografia está car-

tografada pelos textos que o artista insere

graficamente em seus livros ou escultorica-

mente em suas exposições. Fulton supera a

relação acessória do texto em relação à ima-

gem. Inclusive quando um dos textos que

intercala com suas imagens informa ou se

refere diretamente a ela, como se se tra-

tasse de uma legenda, esse texto conquista

uma autonomia semântica e visual na estru-

tura da obra, como se de um poema se tra-

tasse. A textualidade estende assim a obra

a um conjunto de referências suscitadas por

ela mesma. O trabalho de Hamish Fulton se

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desenvolve em torno de largas caminhadas

(walks) que o artista realiza geralmente so-

zinho. O envolvimento do artista e as expe-

riências derivadas desses decorridos são

trabalhados e materializados em fotografias,

acompanhadas por textos concisos, por de-

senhos nas paredes, por cores e palavras

que evocam o sentido do tempo e do espaço

vividos durante a caminhada. As fotografias

e os textos que o artista expõe em galerias

e museus transmitem ao observador sua ex-

periência pessoal com a natureza. A filosofia

do artista britânico é  “no walk, no work ” – 

 “sem caminhar, sem trabalhar” – e, como

tal, cada objeto está diretamente inspirado

em um percurso específico. Para Fulton, as

caminhadas representam uma experiência

espiritual e as fotografias invadem sua rela-ção íntima com a natureza, assim as foto-

grafias realizadas pelo artista nunca são

muito numerosas. Em cada exposição as

imagens são selecionadas cuidadosamente,

de modo que transmitam melhor a experi-

ência de cada excursão. As notas que Ha-

mish Fulton guarda em uma espécie de "di-

ário de bordo” durante suas caminhadas nos

ajudam a conceber o texto para os objetos

que ele cria posteriormente. Tanto a foto-grafia como o texto se revelam importantes

para a construção da imagem, porém en-

quanto o texto se manifesta em sua autono-

mia (Fulton cria “imagens” construídas ape-

nas por palavras), uma fotografia jamais se

apresenta dissociada da série da qual faz

parte. Palavras ou frases configuram geo-

graficamente em suas exposições a revela-

ção espacial de sua evidência escultórica no

contexto das salas em que são apresenta-das.

2 Fotografias de Boris Mikhailov  

Por sua vez, na obra de Boris Mikhailov,

a textualidade surge como legenda ou co-

mentário que abre possibilidades de inter-

pretação da imagem e que questionam mui-

tas vezes sua natureza ideológica, opondo,

em modo quase de diário, sua singularidadee idiossincrasia aos códigos simbólicos que

puderam ser associados a cada fotografia.

Neste sentido, Mikhailov realiza uma inte-

gração do texto na fotografia, o que lhe per-

mite a desmontagem da encenação da rea-

lidade proposta pela ideologia do contexto

soviético ao final dos anos 1970 e princípio

dos anos 1980, confrontando-a com o coti-

diano oculto pela retórica do discurso oficial

daquele tempo. A fotografia surge tambémcomo o suporte desse contraste entre a re-

alidade e sua encenação “realista”, que am-

bas as obras testemunham, denunciam e

protagonizam. A fotografia é encarada como

um universo de representação de onde ex-

plode um conflito ético entre sua condição

de documento e sua apropriação como mo-

numento, enquanto produtora e reprodutora

de discursos que reiteram as possibilidades

de construção ideológica do símbolo a partir

de sua materialidade icônica. Mikhailov as-

socia a fotografia ao texto, através dos co-

mentários verbais com os quais a une, sus-

citando a evidência e a ridicularização da

narrativa muito além da pretendida objetivi-

dade da imagem que a acompanha. Nesse

sentido, a relação entre texto e imagem di-

fere na obra de Mikhailov da poética crono-

lógica, de diário, que encontramos, por

exemplo, nos trabalhos de Robert Frank,

suscitando uma permanente crítica da ima-gem em relação à sua própria natureza sim-

bólica ou representacional, muito além de

sua condição de referência contextual do

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mundo, na realidade em que foi objeto de

um processo de apropriação e transferência.

3 Fotografia de Boris Mikhailov 

Seja no trabalho de Fulton ou no de Mi-khailov, a relação entre fotografia e texto

suscita uma mediação entre dois tempos e

dois lugares: o tempo singular e não repetí-

vel das situações que registram, e o tempo

e o lugar do espectador, diverso e plural, ori-

ginador de uma confrontação com a experi-

ência, a leitura e a interpretação. Sendo as

obras dos artistas totalmente distintas, con-

figuram duas possibilidades de cruzamento

entre texto e imagem a partir da ampliação

da condição documental ou diarística que

essa interseção possibilita. A associação de

imagens e textos suscita mapas inesperados

onde a biografia e diversas cosmogonias

coincidem. A condição documental da foto-

grafia se soma a revelação do autorretrato,

às vezes assumido literalmente, no caso de

Mikhailov, outras vezes transferido para a

reunificação cúmplice da realidade e do

olhar do artista, como ocorre em Fulton. A

experiência dos lugares é filtrada por umadinâmica relacional e seletiva com as ima-

gens e os momentos que elas originam. Em

nenhuma das obras a realidade aparece

como um mero motivo de documentação: a

subjetividade do olhar constrói uma topo-

grafia imprevista do lugar representado,

unindo a paisagem à intimidade, na revela-

ção de um presente atemporal, onde a re-

presentação se une à interpretação, a iden-

tidade à identificação. A textualidade se ma-nifesta como um utensílio de desconstrução

ideológica em Mikhailov, através da ironia

do estilo ou da enunciação do sujeito na re-

presentação; enquanto que em Fulton, uma

topografia individual emerge do contraste

dos tempos e espaços evocados pelo texto,

com os limites e as fronteiras que simulta-

neamente abrem a experiência da arte ao

mundo, em uma intimidade compartilhada

com o espectador nos labirintos de seus tra-

 jetos e topologias.

Essa inter-relação entre texto e fotogra-

fia detectável nas obras dos dois artistas é

exemplar quanto ao uso da fotografia como

suporte dos discursos que, na arte do nosso

tempo, através de sua permanente hetero-

doxia singular em relação às condições téc-

nicas de sua realização e apresentação, de-

safiam os limites dos gêneros artísticos na

revelação inesperada dos novos textos com

os quais a arte contribui para uma releiturado mundo, com novas pistas para sua inter-

pretação, confrontando-nos com novas e in-

cessantes perguntas em vez de esperar en-

contrar suas respostas. A relação entre texto

e fotografia na arte contemporânea desfaz a

ideia de que tudo já está escrito, de que a

fotografia é apenas um exercício de repre-

sentação da uma realidade conhecida ou

desconhecida, ou de que a arte pode ser

apenas a repetição das experiências já des-

cobertas antes por outros. As obras de Ful-

ton e Mikhailov não são as únicas a propor

isso, porém assumem uma particular natu-

reza exemplar e distintiva de muitas das

questões com as quais o discurso irrompeu

na imagem, confrontando a necessidade de

uma permanente reinvenção através da

obra de arte.

Tradução para o português do Brasil:Fabrício Barbosa([email protected])

4 Fotografia de Hamish Fulton