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Texto de João Fernandes, originalmente publicado em espanhol na Revista Exit, n.º 16, 2004, p.102-106. Tradução: Fabrício Barbosa
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7/16/2019 Texto e fotografia na arte contemporânea: dois exemplos - João Fernandes
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Texto e fotografia na arte contemporânea: dois exemplos1
João Fernandes2
Durante algum tempo, depois da apari-ção da fotografia, os únicos textos possíveis
que podíamos associar a essas eram os de
seus títulos, os das legendas que as acom-
panhavam em uma publicação, ou, no má-
ximo, os de algum painel publicitário, inscri-
ção ou diário que encontrávamos represen-
tado através de uma foto. A história da fo-
tografia parecia abrir um novo gênero na
história da arte, onde a natureza do suporte
e a especificidade técnica de sua realização
definiam as condições de avaliação de suas
diversas manifestações. Nesse transcurso,
como em outras formas de arte, a fotografia
logo se liberou do determinismo a que qual-
quer especificação técnica lhe pudesse sub-
meter, encontrando novas gramáticas que
contradiziam qualquer possibilidade de sua
categorização recorrendo simplesmente à
evidência de uma competência técnica em
sua realização.
O uso do texto será um dos recursos for-
mais e conceituais que os artistas incorpo-
ram em uma interseção entre texto e ima-
gem, que caracteriza uma grande parte da
história da produção artística do século XX.
Como consequência, a relação entre arte e
linguagem foi, ao longo do século XX, um
dos contextos mais proveitosos para a supe-
ração dos limites aos quais uma história dos
gêneros artísticos parecia ter limitado à arte
ocidental. Se, por um lado, muitos poetas
espacializaram seus textos, explorando as
possibilidades gráficas que a escritura lhes
1 Texto originalmente publicado em espanhol na Revista Exit, n.º 16, 2004, p.102-106.
2 João Fernandes. Diretor do Museu de Arte Contemporânea de Serreives, Porto. Licenciado
em 1985 em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade do Porto. Entre 1992-1996,
organizou, como comissário freelance, 3 edições das Jornadas de Arte Contemporânea do
Porto. Organizou, igualmente, as representações de Portugal na I Bienal de Arte de Johanes-burgo (1995) e na XXIV Bienal de Arte de São Paulo (1998).
proporcionava, por outro, numerosos artis-tas visuais partiram da palavra e do texto
para a abolição das fronteiras que isolavam
a arte da experiência da vida cotidiana e
condicionavam uma discussão e um conhe-
cimento sem limites da natureza do pro-
cesso artístico.
Arte e poesia se cruzaram desse modo
em uma experimentação recíproca das pos-
sibilidades que a transgressão de suas gra-
máticas específicas lhes propiciava. Se,desde Mallarmé, o Livro surge como uma
configuração do mundo, muitas de suas “pá-
ginas” tem sido criadas por uma história que
se remonta às primeiras experiências futu-
ristas, construtivistas e dadaístas, e se pro-
longa até a arte conceitual dos últimos trinta
anos. Enquanto os poetas objetivaram a pa-
lavra, os artistas a usaram por sua vez para
redefinir a condição de objeto de arte. Em
consequência, a partir da segunda metadeda década de 1960, se questiona a autono-
mia e a “essência” da obra de arte, assim
como sua absorção, então traduzível nas ex-
periências minimalistas. Assiste-se assim,
ao mesmo tempo em que há a consagração
da pop art , à redefinição da condição da obra
de arte, a um cruzamento dos gêneros for-
mais, ao uso do filme, do cinema, da foto-
grafia e do texto como suportes de projetos
conceituais, a uma busca das relações entre
arte e vida que acompanham a aceitação de
novas ideias políticas e sociais, assim como
a uma ruptura do conceito de marco ou de
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enquadramento, os quais dão lugar à inva-
são do espaço interior e, às vezes, exterior,
e também à utilização de novos materiais
pobres, reciclados a partir de outros existen-
tes ou, inclusive, materiais tecnologica-
mente sofisticados.
1 Fotografias de Hamish Fulton
A fotografia será um território onde a ir-
rupção do texto contribui à sua integração
no domínio da criação artística dessa época,
mas além dos limites ou das possibilidades
com os quais sua natureza técnica a possa
definir. A partir da década de 1960, a foto-
grafia surge como suporte de linguagens
conceituais enquanto documento de açõesou de situações nas quais exerce registro.
Se desenvolvem também operações como a
colagem, a justaposição de imagens ou in-
tegração de textos, transferindo o objetivo
da imagem à condição de suporte de um
processo conceitual que encontrava sua nar-
rativa apropriada através dela. Esta textua-
lização da fotografia origina uma campo ex-
pandido para a arte conceitual, possibili-
tando a exploração do efêmero do instantee da situação, nas ações que os artistas em-
preendem nesse momento. Anos antes, um
fotógrafo como Robert Frank teria assumido
em sua obra uma relação dinâmica entre
texto e fotografia, a qual abria novas possi-
bilidades conceituais para a mesma, e sus-
citava uma nova poética do registro fotográ-
fico, valorando o ponto de vista do autor por
cima da natureza do suporte utilizado. Frank
assume esse desejo, já em 1951: “quando3 Citado por Mikael Van Reis, em “That Spot of
Light – Robert Frank’s Life Studies”, in Robert Frank ,
Flamingo, The Hasselblad Prize, 1996.
as pessoas virem minhas fotografias, quero
que se sintam como quando desejam ler
pela segunda vez o verso de um poema” 3.
Desde então até nossos dias, são inume-
ráveis os casos de artistas que assumem a
textualidade como componente estrutural
de seus trabalhos, explorada graficamenteem livros e catálogos, assim como espacial-
mente em suas exposições. Resulta, deste
modo, uma interação dinâmica entre texto e
fotografia, que possibilitará a construção de
um novo tipo de poética subversora da au-
tonomia dos dois suportes. Entre esses múl-
tiplos casos, podem se destacar as obras de
dois artistas como exemplos das diferentes
gramáticas possíveis nesta relação entre
texto e fotografia que nelas detectamos: sãoestes os casos das obras de Hamish Fulton
e de Boris Mikhailov.
Em Hamish Fulton, a fotografia está car-
tografada pelos textos que o artista insere
graficamente em seus livros ou escultorica-
mente em suas exposições. Fulton supera a
relação acessória do texto em relação à ima-
gem. Inclusive quando um dos textos que
intercala com suas imagens informa ou se
refere diretamente a ela, como se se tra-
tasse de uma legenda, esse texto conquista
uma autonomia semântica e visual na estru-
tura da obra, como se de um poema se tra-
tasse. A textualidade estende assim a obra
a um conjunto de referências suscitadas por
ela mesma. O trabalho de Hamish Fulton se
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desenvolve em torno de largas caminhadas
(walks) que o artista realiza geralmente so-
zinho. O envolvimento do artista e as expe-
riências derivadas desses decorridos são
trabalhados e materializados em fotografias,
acompanhadas por textos concisos, por de-
senhos nas paredes, por cores e palavras
que evocam o sentido do tempo e do espaço
vividos durante a caminhada. As fotografias
e os textos que o artista expõe em galerias
e museus transmitem ao observador sua ex-
periência pessoal com a natureza. A filosofia
do artista britânico é “no walk, no work ” –
“sem caminhar, sem trabalhar” – e, como
tal, cada objeto está diretamente inspirado
em um percurso específico. Para Fulton, as
caminhadas representam uma experiência
espiritual e as fotografias invadem sua rela-ção íntima com a natureza, assim as foto-
grafias realizadas pelo artista nunca são
muito numerosas. Em cada exposição as
imagens são selecionadas cuidadosamente,
de modo que transmitam melhor a experi-
ência de cada excursão. As notas que Ha-
mish Fulton guarda em uma espécie de "di-
ário de bordo” durante suas caminhadas nos
ajudam a conceber o texto para os objetos
que ele cria posteriormente. Tanto a foto-grafia como o texto se revelam importantes
para a construção da imagem, porém en-
quanto o texto se manifesta em sua autono-
mia (Fulton cria “imagens” construídas ape-
nas por palavras), uma fotografia jamais se
apresenta dissociada da série da qual faz
parte. Palavras ou frases configuram geo-
graficamente em suas exposições a revela-
ção espacial de sua evidência escultórica no
contexto das salas em que são apresenta-das.
2 Fotografias de Boris Mikhailov
Por sua vez, na obra de Boris Mikhailov,
a textualidade surge como legenda ou co-
mentário que abre possibilidades de inter-
pretação da imagem e que questionam mui-
tas vezes sua natureza ideológica, opondo,
em modo quase de diário, sua singularidadee idiossincrasia aos códigos simbólicos que
puderam ser associados a cada fotografia.
Neste sentido, Mikhailov realiza uma inte-
gração do texto na fotografia, o que lhe per-
mite a desmontagem da encenação da rea-
lidade proposta pela ideologia do contexto
soviético ao final dos anos 1970 e princípio
dos anos 1980, confrontando-a com o coti-
diano oculto pela retórica do discurso oficial
daquele tempo. A fotografia surge tambémcomo o suporte desse contraste entre a re-
alidade e sua encenação “realista”, que am-
bas as obras testemunham, denunciam e
protagonizam. A fotografia é encarada como
um universo de representação de onde ex-
plode um conflito ético entre sua condição
de documento e sua apropriação como mo-
numento, enquanto produtora e reprodutora
de discursos que reiteram as possibilidades
de construção ideológica do símbolo a partir
de sua materialidade icônica. Mikhailov as-
socia a fotografia ao texto, através dos co-
mentários verbais com os quais a une, sus-
citando a evidência e a ridicularização da
narrativa muito além da pretendida objetivi-
dade da imagem que a acompanha. Nesse
sentido, a relação entre texto e imagem di-
fere na obra de Mikhailov da poética crono-
lógica, de diário, que encontramos, por
exemplo, nos trabalhos de Robert Frank,
suscitando uma permanente crítica da ima-gem em relação à sua própria natureza sim-
bólica ou representacional, muito além de
sua condição de referência contextual do
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mundo, na realidade em que foi objeto de
um processo de apropriação e transferência.
3 Fotografia de Boris Mikhailov
Seja no trabalho de Fulton ou no de Mi-khailov, a relação entre fotografia e texto
suscita uma mediação entre dois tempos e
dois lugares: o tempo singular e não repetí-
vel das situações que registram, e o tempo
e o lugar do espectador, diverso e plural, ori-
ginador de uma confrontação com a experi-
ência, a leitura e a interpretação. Sendo as
obras dos artistas totalmente distintas, con-
figuram duas possibilidades de cruzamento
entre texto e imagem a partir da ampliação
da condição documental ou diarística que
essa interseção possibilita. A associação de
imagens e textos suscita mapas inesperados
onde a biografia e diversas cosmogonias
coincidem. A condição documental da foto-
grafia se soma a revelação do autorretrato,
às vezes assumido literalmente, no caso de
Mikhailov, outras vezes transferido para a
reunificação cúmplice da realidade e do
olhar do artista, como ocorre em Fulton. A
experiência dos lugares é filtrada por umadinâmica relacional e seletiva com as ima-
gens e os momentos que elas originam. Em
nenhuma das obras a realidade aparece
como um mero motivo de documentação: a
subjetividade do olhar constrói uma topo-
grafia imprevista do lugar representado,
unindo a paisagem à intimidade, na revela-
ção de um presente atemporal, onde a re-
presentação se une à interpretação, a iden-
tidade à identificação. A textualidade se ma-nifesta como um utensílio de desconstrução
ideológica em Mikhailov, através da ironia
do estilo ou da enunciação do sujeito na re-
presentação; enquanto que em Fulton, uma
topografia individual emerge do contraste
dos tempos e espaços evocados pelo texto,
com os limites e as fronteiras que simulta-
neamente abrem a experiência da arte ao
mundo, em uma intimidade compartilhada
com o espectador nos labirintos de seus tra-
jetos e topologias.
Essa inter-relação entre texto e fotogra-
fia detectável nas obras dos dois artistas é
exemplar quanto ao uso da fotografia como
suporte dos discursos que, na arte do nosso
tempo, através de sua permanente hetero-
doxia singular em relação às condições téc-
nicas de sua realização e apresentação, de-
safiam os limites dos gêneros artísticos na
revelação inesperada dos novos textos com
os quais a arte contribui para uma releiturado mundo, com novas pistas para sua inter-
pretação, confrontando-nos com novas e in-
cessantes perguntas em vez de esperar en-
contrar suas respostas. A relação entre texto
e fotografia na arte contemporânea desfaz a
ideia de que tudo já está escrito, de que a
fotografia é apenas um exercício de repre-
sentação da uma realidade conhecida ou
desconhecida, ou de que a arte pode ser
apenas a repetição das experiências já des-
cobertas antes por outros. As obras de Ful-
ton e Mikhailov não são as únicas a propor
isso, porém assumem uma particular natu-
reza exemplar e distintiva de muitas das
questões com as quais o discurso irrompeu
na imagem, confrontando a necessidade de
uma permanente reinvenção através da
obra de arte.
Tradução para o português do Brasil:Fabrício Barbosa([email protected])
4 Fotografia de Hamish Fulton