19

Click here to load reader

Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

AutoresStélio FurlanJosé Carlos Siqueira

2008

Literatura Portuguesa

Page 2: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

Todos os direitos reservados.IESDE Brasil S.A.

Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482 • Batel 80730-200 • Curitiba • PR

www.iesde.com.br

F985 Furlan, Stélio; Siqueira, José Carlos. / Literatura Portuguesa. / Stélio Furlan; José Carlos Siqueira. — Curitiba : IESDE

Brasil S.A. , 2008. 248 p.

ISBN: 978-85-7638-872-2

1. Literatura Portuguesa. 2. História e Crítica. 3. Movimentos Literários. 4. Poesia. 5. Prosa. I. Título.

CDD 869.09

Page 3: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

Modernismo: geração de Orpheu

José Carlos SiqueiraE evoco, então, as crónicas navais:

Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado

Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!

Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

Cesário Verde

A revista OrpheuAh, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,

Que emprega palavrões como palavras usuais,

Cujos filhos roubam às portas das mercearias

E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! –

Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.

A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa

Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.

Maravilhosamente gente humana que vive como os cães

Que está abaixo de todos os sistemas morais,

Para quem nenhuma religião foi feita,

Nenhuma arte criada,

Page 4: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

Nenhuma política destinada para eles!

Como eu vos amo a todos, porque sois assim,

Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,

Inatingíveis por todos os progressos,

Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(CAMPOS, 2008)

Os versos acima fazem parte da “Ode triunfal”, de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, publicada na revista lisboeta Orpheu, considerada como o marco inicial do modernis-mo português. Criada por Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Luis de Montalvor e amigos, essa re-vista pretendia ser trimestral, mas só conseguiu lançar dois números – um em março e outro em junho de 1915 –, sendo que um terceiro número foi concluído, mas não chegou a sair a público.

Capa do primeiro número da revista Orpheu.

Ali colaboraram Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, entre outros, que aca-baram conhecidos como os escritores da geração de Orpheu. A revista provocou certa celeuma em seu lançamento e podemos imaginar o quanto o trecho da “Ode trinfual” acima reproduzido deve ter pro-vocado comentários entre os lisboetas do início do século XX.

Segundo Fernando Pessoa, em Páginas íntimas e de auto-interpretação,

Orpheu é a soma e a síntese de todos os movimentos literários modernos. Entenda-se que parte do simbolismo, do de-cadentismo, do paulismo, simultaneismo, futurismo, cubismo, expressionismo, sensacionismo, interseccionismo e ou-tros ismos. (PESSOA, 1966, p. 45).

Esse momento da literatura portuguesa ficou conhecido como o Primeiro Modernismo e também como orfismo, indo de 1915 a 1927, quando então surge a revista Presença e em torno dela uma outra geração de escritores do Modernismo.

A primeira geração do Modernismo português se caracterizava pela vontade de ruptura com as estéticas que a antecederam, pelo cosmopolitismo ou transnacionalidade, pela diversidade estética, pelo espírito mistificador, excêntrico, paradoxal, contraditório.

198 | Literatura Portuguesa

Page 5: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

199|Modernismo: Geração de Orpheu

Fernando Pessoa (1888-1935)O principal representante desses escritores foi Fernando Pessoa. De família pequeno-burguesa,

ainda criança ele se mudou para Durban, na África do Sul, em razão do segundo casamento de sua mãe. Ali se formou, chegando a freqüentar por um período a Universidade da Cidade do Cabo. Retornou a Portugal, sobrevivendo como correspondente de casas comerciais e confeccionando horóscopos. Freqüentou parcialmente o curso de Letras da Universidade de Lisboa. Participava da vida boêmia e pu-blicou seus primeiros trabalhos na revista A Águia, em 1912. Primeiramente escreveu poemas em inglês e só depois em português.

Fernando Pessoa retratado por Almada Negreiros.

Fernando Pessoa e a heteronimiaPessoa criou seus três principais heterônimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis) em

1914, antes mesmo da publicação de Orpheu.

O que é um heterônimo? Que diferença tem em relação a um pseudônimo? Um pseudônimo é ape-nas um nome sob o qual um autor se esconde para publicar um texto. Muitos escritores fizeram isso em toda a história da literatura e não há nenhuma novidade nesse procedimento. Já um heterônimo é a cria-ção que o escritor faz de um outro escritor, atribuindo-lhe uma personalidade, um estilo, uma história. Alguns escritores já haviam feito isso na história da literatura, mas nenhum havia criado uma galeria de heterônimos como fez Fernando Pessoa.

Ainda hoje se discute o número de seus heterônimos, pois alguns foram apenas esboçados, en-quanto outros foram detidamente trabalhados. O fato é que a maior parte de sua obra ficou inédita e dispersa, vários escritos podendo ser organizados de diferentes formas, correspondendo ou não a esse ou aquele heterônimo do autor. No caso de não pertencerem a nenhum dos heterônimos, dizemos que são textos do ortônimo, isto é, do Fernando Pessoa ele mesmo.

Seus mais famosos heterônimos, como já observamos, são Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. O surgimento deles se deu de forma quase concomitante. Pessoa pensou em criar um poeta bucólico para “pregar uma partida” a Sá-Carneiro e daí surgiu Alberto Caeiro. Logo em seguida,

Page 6: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

criou Álvaro de Campos e Ricardo Reis, sendo que este último já tinha surgido em seus escritos ainda sem nome e sem consciência tempos antes.

O fato é que Fernando Pessoa criou tudo isso quando se encontrava envolvido em discutir te-ses sobre o paulismo e a sua superação pelo interseccionismo, chegando depois ao sensacionismo. Esses ismos todos foram criados por Pessoa na tentativa de definir uma nova estética para o seu tempo. Portanto, seus heterônimos são resultado de uma reflexão estética profunda, que, no entanto, não se fe-cha, mantendo-se sempre plural.

Vale observar que os heterônimos, juntamente com o próprio Pessoa, trocam observações estéti-cas entre si, aconselham-se, discutem, sendo Alberto Caeiro o grande mestre de todos.

O mestre CaeiroO poeta Caeiro tem por motivos fundamentais a Natureza, os estados de semiconsciência, o pan-

teísmo sensual, a aceitação calma e lúcida do mundo como ele é. Vejamos um trecho do longo poema “O guardador de rebanhos”.

Alberto Caeiro retratado por Almada Negreiros.

O meu olhar

O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de, vez em quando olhando para trás... E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer, Porque o vejo. Mas não penso nele Porque pensar é não compreender ...

200 | Literatura Portuguesa

Page 7: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

201|Modernismo: Geração de Orpheu

O Mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos) Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, Mas porque a amo, e amo-a por isso, Porque quem ama nunca sabe o que ama Nem sabe por que ama, nem o que é amar ... Amar é a eterna inocência, E a única inocência não pensar...

(CAEIRO, 2008)

Note como o eu lírico nega qualquer reflexão sobre o mundo. Ele diz que para ver de verda-de é necessário não pensar. No entanto, o tempo todo ele está fazendo uma reflexão sobre esse olhar. Alberto Caeiro é de fato contraditório, já que toda sua poética afirma a necessidade de apenas sentir sensorialmente o mundo, ingenuamente, sem a contaminação do pensamento, mas o que ele mais faz em seus poemas é refletir. E é justamente isso que faz dele o grande mestre dos outros.

O epicurismo de Ricardo ReisRicardo Reis é o “pagão da decadência”. Voltado para a tradição clássica greco-latina, é um poeta

ao modo árcade e procura, de forma epicurista,1 viver longe da cidade, fugindo dos amores demasiados intensos. Para ele, a felicidade consiste em se deleitar suavemente com os instantes volúveis, buscando o mínimo de dor ou de gozo.

O mapa astral de Ricardo Reis.

Apesar de adotar o mesmo princípio de Caeiro no que diz respeito a aceitar calmamente a ordem das coisas, sofre com os mais comezinhos, os mais corriqueiros males da vida e de sua imprevisibilida-de. Procura evitar a dor construindo um mundo esteticamente controlado. Vejamos o início do poema “Vem sentar-te comigo, Lídia”, que corrobora o que acabamos de dizer.

1 A filosofia epicurista foi criada pelo ateniense Epicuro no século IV a.C. Voltado para aspectos práticos da vida, Epicuro acreditava que a feli-cidade do homem está em evitar a dor e buscar o prazer e que, se nossa percepção do mundo é verdadeira, nosso juízo sobre essa percepção nem sempre é verdadeiro. Seria necessário, portanto, conhecer as causas do sofrimento moral ou espiritual, procurar a verdade para além dos falsos prazeres, e assim alcançaríamos a felicidade: livrando-nos dessas falsas sujeições do mundo, como, por exemplo, o medo da morte. Daí Epicuro e o epicurismo estarem associados à idéia de desprendimento, de voltar-se apenas para o essencial.

Page 8: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas. (Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa, Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado, Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassossegos grandes.

(REIS, 2000, p. 35)

O eu lírico enlaça e depois desenlaça a mão de sua amada, pois mais vale passar a vida com o gos-to do prazer (enlaçar as mãos), mas sem grandes desassossegos (desenlaçar as mãos), do que vivê-la em meio a um turbilhão de emoções. Desse modo, o mundo epicurista de Ricardo Reis controla no âmbito da poesia o que o “sujeito” Ricardo Reis não poderia controlar no plano da sua realidade íntima e mes-mo da realidade portuguesa do início do século XX.

Além disso, como Ricardo Reis é um poeta pagão, considera Cristo mais um entre tantos outros deuses existentes, com fica claro no poema abaixo:

Não a ti, Cristo, odeio ou te não quero. Em ti como nos outros creio deuses mais velhos. Só te tenho por não mais nem menos Do que eles, mas mais novo apenas.

Odeio-os sim, e a esses com calma aborreço, Que te querem acima dos outros teus iguais deuses. Quero-te onde tu ’stás, nem mais alto Nem mais baixo que eles, tu apenas.

Deus triste, preciso talvez porque nenhum havia Como tu, um a mais no Panteão e no culto, Nada mais, nem mais alto nem mais puro Porque para tudo havia deuses, menos tu.

Cura tu, idólatra exclusivo de Cristo, que a vida É múltipla e todos os dias são diferentes dos outros, E só sendo múltiplos como eles ’Staremos com a verdade e sós.

(REIS, 2000, p. 71)

Enquanto o paganismo dos poetas clássicos do renascimento e do arcadismo se conciliava com o cristianismo, aqui as doutrinas entram em choque e o poeta questiona o cristianismo por considerá-lo uma religião que se pretende hegemônica, de caráter autoritário.

202 | Literatura Portuguesa

Page 9: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

203|Modernismo: Geração de Orpheu

A modernidade de Álvaro de CamposDos três heterônimos principais, Álvaro de Campos é o único que fala da vida contemporânea de

modo direto. Já vimos no início desta aula parte da “Ode triunfal”, que enaltece a modernidade e a vida urbana em seus aspectos mais diversos, fazendo o elogio de coisas que nem sempre consideramos dig-nas disso. Isso nos causa um certo constrangimento, que nos obriga a refletir sobre o estilo de vida que adotamos nas grandes cidades.

Caricatura de Álvaro de Campos feita por Almada Negreiros.

O primeiro poema de Álvaro de Campos, “Opiário”, assim começa:

É antes do ópio que a minh’alma é doente. Sentir a vida convalesce e estiola E eu vou buscar ao ópio que consola Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me. São dias só de febre na cabeça E, por mais que procure até que adoeça, já não encontro a mola pra adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral Eu vivo a vincos de ouro a minha vida, Onda onde o pundonor é uma descida E os próprios gozos gânglios do meu mal.

(CAMPOS, 2002, p. 15)

O eu lírico está a bordo de um navio em direção ao Oriente e lamenta a sua miséria em relação a diversos aspectos: fala de sua vida, do que fez, do que desejaria fazer, de suas limitações, concluin-do com o desejo metafórico da morte. Tudo isso sob o efeito do ópio, fazendo um elogio a essa droga que ameniza seu sofrimento. É, portanto, um elogio ao ópio, ainda que o enfoque não seja o das cam-panhas de descriminalização das drogas defendida em nossos dias por alguns setores da sociedade. É, no fundo, o elogio a algo que pode amenizar a dor de sua condição social e psíquica e, nesse aspec-to, o ópio entra sim como elemento transgressor, mas o enfoque recai sobre o sofrimento do eu lírico,

Page 10: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

que, entre outras coisas, queria ser um poeta reconhecido. O conflito existencial é o que está em foco em sua caracterização.

Álvaro de Campos é o poeta que canta a modernidade. Tanto sua “Ode triunfal” com sua “Ode ma-rítima” são paradigmas da poesia moderna em todo o mundo. Um outro poema seu muito famoso é “Tabacaria”, que assim tem início:

Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

(PESSOA, 1994, p. 221)

A idéia do anonimato em que vivemos nas grandes cidades, a idéia de nossa insignificância em meio a essas grandes aglomerações humanas, a idéia de que podemos ser tudo que quisermos em vista de tantas oportunidades, a idéia do fracasso de não conseguirmos ser nada disso – enfim, todo o drama da condição moderna está presente nesse poema, assim como em outros poemas de Álvaro de Campos.

O esteticismo de Fernando Pessoa ele mesmo, o ortônimoO Fernando Pessoa ortônimo é bastante diferente de Alberto Caeiro e de Ricardo Reis porque ja-

mais expõe uma filosofia prática. Pessoa ele mesmo possui um lirismo intelectual que fascina por sua capacidade de sentir e de refletir. Vejamos dois poemas em que o eu lírico tematiza a poesia e, portan-to, fala do seu fazer poético.

Fernando Pessoa caminhando em Lisboa.

Aut

or d

esco

nhec

ido.

204 | Literatura Portuguesa

Page 11: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

205|Modernismo: Geração de Orpheu

Autopsicografia

O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as dores que ele teve, Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama o coração.

(PESSOA, 1994, p. 110)

Em “Autopsicografia”, Pessoa trabalha a idéia do poeta como alguém que encena o sentimento a ponto de encenar o a si próprio, confundindo-se assim com sua encenação. Sentimento e fingimento são mesclados de tal modo que não há mais possibilidade de separá-los, diferentemente do que acon-tecia com o romantismo, para o qual o sentimento deveria ser sempre verdadeiro. A artificialidade da linguagem é aqui assumida em sua plenitude, reconhecendo, no entanto, que o sujeito que a enuncia jamais está completamente distanciado dela.

Essa negação do sentimentalismo romântico é explicitada no poema abaixo:

Isto

Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação. Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, É como que um terraço Sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio, Sério do que não é. Sentir? Sinta quem lê!

(PESSOA, 1994, p.111)

A imaginação no lugar do coração, a mente no lugar do sentimento, essa é a base da poética do Fernando Pessoa ortônimo. Pudemos constatar que os heterônimos são distintos em diversos aspectos, mas o fato é que se aproximam em outros, pois todos rejeitam o sentimentalismo, todos rejeitam o ca-tolicismo (tão característico da cultura portuguesa), todos se distanciam de uma postura socialista ou de esquerda (muito comum no meio intelectual português naquele momento).

Ao tomarmos o conjunto dos heterônimos e o Pessoa ortônimo constatamos que a unidade entre eles atribui verossimilhança à sua diversidade, isto é, o fato de os heterônimos se conhecerem, compar-tilhando idéias ou mesmo sentimentos, doa-lhes maior autenticidade. Ao mesmo tempo, são as diferen-

Page 12: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

ças que permitem o debate entre eles e problematizam a questão da identidade, pois Pessoa não quer simplesmente criar novas identidades ou pseudo-escritores, mas dramatizar a própria condição iden-titária de um escritor, tomado como um sujeito povoado por numerosos personagens, numerosas op-ções estéticas, numerosas perspectivas morais e éticas. É, no fundo, a encenação poética do drama do homem moderno.

Fernando Pessoa e o SebastianismoO Pessoa ortônimo ainda tem uma obra que merece especial destaque, pois passou a ser consi-

derada Os Lusíadas da modernidade na literatura portuguesa. O livro Mensagem, publicado em 1934 e único livro que o escritor publicou em vida, é uma obra que retoma a história da saga portuguesa pelos mares de uma perspectiva sebastianista.

Como já foi mencionado, em 1912 Pessoa colaborou com A Águia (1910-1932), órgão da Renascença Portuguesa, marco importante entre as publicações que contribuíram para o estabeleci-mento do Modernismo em Portugal, fortemente ligada ao Sebastianismo e o Saudosismo de Teixeira de Pascoaes. O Sebastianismo foi também uma marca da obra de Pessoa.

Capa da primeira edição de Mensagem (1934), de Fernan-do Pessoa.

O Sebastianismo tem origem na figura de D. Sebastião (1554-1578), rei português que morreu na Batalha de Alcácer-Quibir, no norte da África. Era o único herdeiro e, em consequência de sua morte, a coroa foi tomada por um dos membros da casa dos Habsburgos da Espanha. Desse modo, Portugal per-deu sua autonomia política por 60 anos, de 1580 a 1640. Criou-se, então, o mito sebastianista, segundo o qual D. Sebastião não teria morrido e iria voltar para promover a restauração da autonomia políti-ca portuguesa. Mesmo depois de essa autonomia ter sido restaurada, o mito se manteve, vendo em D. Sebastião aquele que iria restituir a Portugal a glória e a riqueza que o país tivera nos séculos XV e XVI.

Pessoa irá reeditar esse mito, assim como já haviam feito diversos outros poetas, como o referido Teixeira de Pascoaes ou Antonio Nobre. Mensagem é dividido em três partes:

206 | Literatura Portuguesa

Page 13: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

207|Modernismo: Geração de Orpheu

O brasão;::::

Mar português;::::

O encoberto.::::

Contando ao todo 19 poemas, na sua maioria sobre figuras da história portuguesa, a primeira par-te subdivide-se em:

Os campos;::::

Os castelos;::::

As quinas;::::

A coroa;::::

O timbre.::::

A segunda parte, sem subdivisões, é constituída de 12 poemas nos quais também aparecem figu-ras da história de Portugal, ao lado de figuras mitológicas, entre outros temas diversos. A terceira parte subdivide-se em:

Os símbolos;::::

Os avisos;::::

Os tempos, com 13 poemas ao todo, nos quais ainda aparecem figuras históricas, mas predo-::::minam os temas abstratos.

O livro estabelece uma relação dialética entre mito e história e se organiza entre esses dois pó-los, sendo que no início tende mais para a história e no final mais para o mito, passando, no meio, pelo mar das navegações portuguesas, histórico e mítico. Retomando uma idéia desenvolvida pelo padre Antonio Vieira (1608-1697) – a idéia do Quinto Império, segundo a qual após os impérios dos assírios, dos medos, dos persas e dos romanos, o quinto império seria o dos portugueses –, Pessoa como que profetiza a futura glória lusitana no último poema do livro, intitulado “Nevoeiro”:

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra, Define com perfil e ser Este fulgor baço da terra Que é Portugal a entristecer – Brilho sem luz e sem arder, Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer. Ninguém conhece que alma tem, Nem o que é mal nem o que é bem. (Que ânsia distante perto chora?) Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro. Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!

(PESSOA, 1986, p. 82)

Page 14: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

O último verso instiga os portugueses a fazerem valer novamente a sua força mítica, na dimensão do livro Mensagem, para conquistar o mundo e a glória universal, em uma conquista que não diz respei-to à sua dimensão bélica e armamentista, pois dar-se-ia no âmbito espiritual.

Ao menos no que concerne à obra de Fernando Pessoa, a profecia se concretizou, pois o escritor passou a ser um clássico da literatura universal e, portanto, a cultivar espíritos em todo o planeta para todo o sempre.

Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)Outra figura literária de peso para o Primeiro Modernismo foi Mário de Sá-Carneiro. Nascido em

família abastada, ele estudou em Paris, mas logo abandonou os estudos, dedicando-se somente à lite-ratura. Foi, como vimos, um dos mentores da revista Orpheu, patrocinada por seu pai. De caráter mui-to sensível e afeito a profundos conflitos existenciais, acabou por se suicidar em um quarto de hotel em Paris, aos 26 anos de idade. De sua obra, podemos citar

Dispersão:::: (1914);

A confissão de Lúcio:::: (1914);

Céu em fogo:::: (1915);

Indícios de oiro :::: (1937); e

Primeiros contos:::: (1998).

Mario de Sá-Carneiro.

A obra de Sá-Carneiro tem uma forte densidade dramática e intimista, voltada para o mundo mar-ginal e miserável, boêmio, sendo constante o sentimento de inadequação à vida e ao mundo que cerca o poeta. O poema abaixo nos dá um pouco desse sentimento.

Torniquete

A tômbola anda depressa, Nem sei quando irá parar – Aonde, pouco me importa;

208 | Literatura Portuguesa

Page 15: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

209|Modernismo: Geração de Orpheu

O importante é que pare... – A minha vida não cessa De ser sempre a mesma porta Eternamente a abanar...

Abriu-se agora o salão Onde há gente a conversar. Entrei sem hesitação – Somente o que se vai dar? A meio da reunião, Pela certa disparato, Volvo a mim a todo o pano:

Às cambalhotas desato, E salto sobre o piano... – Vai ser bonita a função! Esfrangalho as partituras, Quebro toda a caqueirada, Arrebento à gargalhada, E fujo pelo saguão...

Meses depois, as gazetas Darão críticas completas, Indecentes e patetas, Da minha última obra... E eu – prá cama outra vez, Curtindo febre e revés, Tocado de Estrela e Cobra...

(SÁ-CARNEIRO, 2004, p. 84)

É como se tudo fosse previsível, domesticado e nada fizesse sentido para o eu poético. Por mais que faça, que escandalize ou barbarize, ele nunca se encontra integrado, sua febre nunca passa. Essa inade-quação tem a ver com o sujeito moderno, que jamais se sente integrado em uma comunidade da qual já perdeu a noção de totalidade, na qual não sabe reconhecer quem são seus verdadeiros interlocutores.

Almada-Negreiros (1893-1970)Ao contrário de Mario de Sá-Carneiro, que morreu jovem, Almada Negreiros viveu 77 anos, tendo

nascido em São Tomé, então colônia luso-africana, e morrido em Lisboa. Como vimos, também colabo-rou com a revista Orpheu e foi poeta, dramaturgo e artista plástico. Entre suas obras podemos destacar:

o :::: Manifesto Anti-Dantas (1916);

as peças de teatro :::: O Moinho (1912), Antes de Começar (1923), Os Outros (1923), S. O. S. (1929), Deseja-se Mulher (1959);

a novela :::: A Engomadeira (1917); o poema “A Cena do Ódio”, publicado na revista Portugal Futurista (1917);

o livro de poemas :::: A Invenção do Dia Claro (1921);

o romance :::: Nome de Guerra (1938).

Page 16: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

Auto-retrato de Almada Negreiros.

Almada ficou muito conhecido com o Manifesto Anti-Dantas, folheto impresso em papel de em-brulho, assinado por: “José d’Almada-Negreiros, poeta d’Orpheu, futurista e tudo”. Eis um trecho desse manifesto:

Basta pum basta!

Uma geração, que consente deixar-se representar por um dantas é uma geração que nunca o foi! É um coio d’indigentes, d’indignos e de cegos! É uma rêsma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero!Abaixo a geração!

Morra o Dantas, Morra! Pim!

Uma geração com um dantas a cavalo é um burro impotente!

Uma geração com um Dantas à proa é uma canôa uni seco!

O Dantas é um cigano!

O Dantas é meio cigano!

O Dantas saberá grammática, saberá syntaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias p’ra cardeais saberá tudo menos es-crever que é a única coisa que ele faz!

O Danta pesca tanto de poesia que até faz sonetos com ligas de duquezas!

O Danta é um habilidoso!

O Danta veste-se mal!

O Danta usa ceroulas de malha!

O Danta especúla e inócula os concubinos!

O Danta é dantas!

O Danta é júlio!

(ALMADA-NEGREIROS, 1993, p. 18)

210 | Literatura Portuguesa

Page 17: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

211|Modernismo: Geração de Orpheu

Esse manifesto era contra Júlio Dantas, poeta, dramaturgo, jornalista e político conservador, colo-cado pela imprensa como representante da geração daquele momento. Dantas criticou fortemente os movimentos vanguardistas. O texto de Almada ataca não só a Dantas, mas toda a geração que se dei-xava representar por ele, procurando marcar o surgimento de uma nova estética e, portanto, de uma nova representação.

Esse texto de Almada é considerado por muitos como a primeira manifestação do futurismo em Portugal.

Tela de Almada Negreiros em sua fase cubista.

A epopéia portuguesa moderna: de Os Lusíadas a MensagemPodemos dizer que a geração de Orpheu caracterizou-se pela transgressão, pela irreverência, pela

vontade de mudar radicalmente os paradigmas da arte. Politicamente, não foram muito atuantes, ao menos se pensarmos em política partidária: em geral, eram avessos a esse tipo de forma de luta social. No entanto, tiveram um papel importante como inauguradores de alguns procedimentos e posturas que caracterizaram a arte moderna em todo o mundo ocidental, como o largo emprego do verso li-vre em poesia, o uso de formas narrativas experimentais, a abordagem e a defesa de temas marginais – como os do feminismo e da homossexualidade.

Fernando Pessoa foi certamente a referência maior dessa geração e marcou esteticamente esse momento, quer por sua original dramaticidade heteronímica – apresentando uma elaboração ímpar da figura do poeta enquanto sujeito plural –, quer por sua síntese do sentimento nacional prefigurada em Mensagem, fazendo dessa obra a moderna epopéia portuguesa e, com isso, colocando-se, em grau de importância, ombro a ombro com o grande ícone literário português que é Luís de Camões.

Para concluir, vale lembrar que enquanto o poeta renascentista cantou as glórias do passado, o poeta moderno cantou não só as glórias do passado português, mas sobretudo as do futuro.

Quem viver verá...

Page 18: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

Dicas de estudoHá um CD-ROM intitulado :::: Vida e Obra de Fernando Pessoa, publicado pela Porto Editora, que contém – além das obras do poeta – numerosos textos de especialistas pessoanos, uma gran-de quantidade de imagens, música, vídeos e até mesmo um jogo interativo.

Você pode saber mais sobre a obra pictórica de Almada-Negreiros a partir do site: <http://::::www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/almada/pintor.htm>.

Texto complementar

Tragédia(SÁ-CARNEIRO, 1998, p. 197-199)

O médico que o seu marido chamara para lhe curar essa dorzinha aguda que ela – havia anos – sentia no fígado e que aumentara nos últimos meses, depois de a ter examinado atentamente che-gara a uma conclusão indubitável, baseada nas mais seguras provas: O mal que causava essa dor era um cancro,... uma sentença de morte, sem apelação, porque o rumor criara já fundas raízes, sendo por isso inútil uma operação que, feita a tempo, poderia dar ainda uma ilusão de cura, durante al-guns anos...

Um cancro!... ah! Ela sabia bem o que era essa terrível doença... Sua mãe morrera da mesma enfermidade, depois de ter sofrido atrozmente! Um cancro!... O seu lindo corpo que tantos haviam ambicionado, iria apodrecendo pouco a pouco e todos fugiriam dele com receio de serem contami-nados pela horrível moléstia... A morte era o menos; as dores cruéis, atormentadoras, que a tortura-riam sem piedade, minuto a minuto; essas é que a enchiam de pavor...

Neste mundo, porém, tudo tem remédio menos a morte, por isso ela, depois dalgumas horas de pro-fundo abatimento, pões-se à procura da receita daquele que a salvaria e... achou-a rapidamente...

À noite, quando o seu marido se dirigia para o seu escritório ela seguiu-o e, ao transpor a porta do gabinete, fechou-a à chave. Ele, admirado, perguntou-lhe:

- Por que fechaste a porta?

- Porque te desejo pedir uma coisa e porque não quero ser importunada, respondeu-lhe. Ah! Mas sossega Luiz... Não é nenhuma jóia custosa nem nenhum vestido que te venho exigir... É ape-nas... um remédio que me salvará... a morte!...

Ao ouvir estas palavras, Luiz recuou estupefacto, exclamando:

- O quê?! A morte?!... O que queres dizer com isso?...

212 | Literatura Portuguesa

Page 19: Texto 2 - Orfismo - Siqueira & Furlan

213|Modernismo: Geração de Orpheu

- Uma coisa simples e racional... Venho rogar-te que tenhas dó de mim, que ponhas termo ao meu martírio... Um horrível fim me está destinado, não é verdade?... Pois bem! para que o hei-de es-perar, sofrendo sem tréguas, se posso deixar a vida quase sem sofrimentos, em poucos segundos e, para mais, feliz... sim feliz, porque morrendo às tuas mãos morrerei venturosa!?...

- Oh! Cala-te! Cala-te, Elisa! ordenou-lhe ele. Pois tu não atinges a monstruosidade das palavras que proferes?... A vida é sagrada! Ninguém tem o direito de dispor dela! Um suicida é tão criminoso como um assassino! Viver é sofrer!... Resigna-te pois e... sofre!...

- Ah! como te agradeço o que acabas de dizer!... Queres então que eu sofra?... Achas mais hu-mano que vá morrendo aos pedaços, atormentada a cada instante, enojando todos?... Pela última vez! Tem compaixão de mim!... Mata-me! Mata-me!...

Caíra aos pés de seu marido derramando abundantes lágrimas, mas este repeliu-a exclamando:

- Por Deus! Cala-te!... Tudo quanto disseres será inútil! Não vês que me estás pedindo a maior das loucuras, o maior dos crimes!?...

A desgraçada então levantou-se, enxugou as lágrimas e, olhando-o fixamente, exclamou:

- Muito bem! Não fazer o que eu te implorei... Não tem dúvida... Outro o fará... outro que me ama mais do que tu, outro que terá o bom senso e a coragem necessária para concordar comigo... um homem a quem me entreguei completamente... a quem abandonei todo o meu corpo... o meu amante!...

Ouvindo estas palavras, Luiz soltou um grito de furor, mas ela continuou serenamente:

- Ah! tu acreditavas em mim... tu acreditavas no meu amor, nos meus beijos!... pobre néscio! Numa mulher nunca se acredita: uma mulher mente sempre! Eu menti-te sempre! Ainda há pouco te mentia!...

- Cala-te, miserável! Cala-te ou mato-te!...

- Não tenho medo! Pedi-te a morte e tu recusaste-ma... Não ma vais dar agora, com certeza... Podes gritar se quiseres, que nem terei medo, nem me calarei!...

Então Luiz avançou para ela gritando, cego de furor:

- Ah! não terás medo!? Não te calarás!?... Veremos, prostituta!... e dizendo isto derrubou-a sobre uma poltrona...

Uma nuvem de sangue toldou-lhe a vista... Lançou-lhe as mãos ao pescoço...

- Calas-te ou não! Calas-te ou não! Calas-te ou não!... ia dizendo, arquejante, enquanto a es-trangulava.

- Sou feliz... Morro como queria... mentira... é men... ti... bradara Elisa com a voz recortada pela sufocação, mas ele não a ouvira e, numa alucinação feroz, continuava apertando... apertando esse lindo pescoço que tantas vezes cobrira de ardentes beijos.

Das personagens desta pungente tragédia só restaram dois corpos. No dia seguinte, um foi le-vado para o cemitério; o outro, para um manicômio...