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22 GESTÃO Educacional ® setembro de 2012 PARA ASSINAR: www.gestaoeducacional.com.br N o início da década passada, a historia- dora Cleo Fante deparava-se com alunos que reclamavam de apelidos e agressões recebidos de colegas. Contudo, não sabia como agir, pois não havia sido preparada para isso. Após algum tempo pesquisando o tema, de- senvolveu um método para identificar, reduzir e prevenir o bullying nas escolas. Hoje, renomada internacionalmente na prevenção a este tipo de violência e autora dos livros Fenômeno bullying: como prevenir a violência nas escolas e educar para a paz (2005) e Bullying escolar: perguntas e respostas (2008), a professora alerta: “As pessoas estão con- fundindo bullying com brincadeiras e es- cárnios que fazem parte das relações so- ciais e da idade de estudantes”. Cleo Fante explicou à Gestão Educacional como identificar e redu- zir essas ocorrências. “Os alunos pre- cisam de segurança para denunciar os casos de forma sigilosa e protegi- da, mas também para se posiciona- rem contrários quando presenciam o bullying”, acredita. ENTREVISTA Por Fabio Venturini [email protected] Gestão Administrativa SABER IDENTIFICAR AJUDA A PREVENIR O BULLYING Proteção excessiva ou deficitária da família, mo- dismo midiático e falta de conhecimento cons- truíram um forte senso comum sobre o que é bullying . A pesquisadora Cleo Fante mostra co- mo identificá-lo e como inibi-lo nas escolas Segundo Cleo Fante, o bullying pode acontecer em qualquer local em que as pessoas em idade escolar se socializam Arquivo pessoal 22 GESTÃO Educacional ® setembro de 2012 PARA ASSINAR: www.gestaoeducacional.com.br

SABER IDENTIFICAR AJUDA A PREVENIR O BULLYING · da, mas também para se posiciona-rem contrários quando presenciam o bullying”, acredita. ENTREVISTA Por Fabio Venturini [email protected]

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22 GESTÃO Educacional® setembro de 2012 PARA ASSINAR: www.gestaoeducacional.com.br

No início da década passada, a historia-dora Cleo Fante deparava-se com alunos que reclamavam de apelidos e agressões

recebidos de colegas. Contudo, não sabia como agir, pois não havia sido preparada para isso. Após algum tempo pesquisando o tema, de-senvolveu um método para identificar, reduzir e prevenir o bullying nas escolas.

Hoje, renomada internacionalmente na prevenção a este tipo de violência e autora dos livros Fenômeno bullying: como prevenir a violência nas escolas e educar para a paz (2005) e Bullying escolar: perguntas e respostas (2008), a professora alerta: “As pessoas estão con-fundindo bullying com brincadeiras e es-cárnios que fazem parte das relações so-ciais e da idade de estudantes”.

Cleo Fante explicou à Gestão Educacional como identificar e redu-zir essas ocorrências. “Os alunos pre-cisam de segurança para denunciar os casos de forma sigilosa e protegi-da, mas também para se posiciona-rem contrários quando presenciam o bullying”, acredita.

ENTREVISTAPor Fabio Venturini [email protected]

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SABER IDENTIFICAR AJUDA A PREVENIR O BULLYINGProteção excessiva ou deficitária da família, mo-dismo midiático e falta de conhecimento cons-truíram um forte senso comum sobre o que é

bullying. A pesquisadora Cleo Fante mostra co-mo identificá-lo e como inibi-lo nas escolas

Segundo Cleo Fante, o bullying pode acontecer em qualquer local em que as pessoas em idade escolar se socializam

Arquivo pessoal

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Gestão Educacional: O que é exatamente o bullying e como identificá-lo? Cleo Fante: É um comportamen-to agressivo, repetitivo, intencional, dentro de um desequilíbrio de forças ou poder, sem um motivo evidente e que causa danos e sofrimento ao ou-tro, normalmente ocorrido entre es-tudantes, desde a educação infantil até a universidade. Se não houver in-tervenção pode chegar à agressão físi-ca. Há um grande equívoco na iden-tificação. O que se vê hoje em dia é a classificação como bullying de ações pontuais ou ofensas e escárnios repe-titivos que sempre existiram nas re-lações sociais.

Gestão Educacional: Por que vo-cê decidiu estudar esse tema?Cleo Fante: Comprei um livro sobre o bullying por curiosidade e, a partir dessa literatura, recordei-me da mi-nha época de escola, quando presen-ciei bullying muitas vezes e fui atin-gida indiretamente. Embora nunca tenha sido vítima ou autora, inco-modava-me bastante, pois não sa-bia o que fazer para ajudar uma co-lega, e na oportunidade me retraí. Depois, quando era professora, mui-tos alunos me procuravam para re-clamar de apelidos que recebiam, ameaças e agressões. Eu não sabia como agir porque não fui prepara-da, assim como muitos professores nunca foram. Vi que era algo mui-to grave, e essas situações me esti-mularam a pesquisar o problema no Brasil.

Gestão Educacional: Como fo-ram essas pesquisas?Cleo Fante: Fiz as duas primeiras na região de São José do Rio Preto, onde moro, com um grupo de dois mil estudantes. Verifiquei que 49% deles se envolviam com bullying, um índice muito alto. Então elegi uma das cinco escolas em que fiz a pes-

quisa para ser piloto de um pro-grama que desenvolvi baseado na proposta do professor sueco Dan Olweus. Nessa experiência-piloto vi como é possível reduzir e prevenir o bullying, desde que se tenha conhe-cimento, compromisso e envolva to-da a comunidade escolar. Em dois semestres houve uma redução do envolvimento com a prática de 49% para 10% dos alunos. Depois de dois anos de trabalho o índice caiu para 4%, números toleráveis. Não que te-nhamos que tolerar, mas chegar a zero não é possível. Algumas situa-ções sempre ocorrerão, como crian-ças que chegam à escola e ainda não passaram pelo programa.

Gestão Educacional: Como é es-se programa que você desen-volveu?Cleo Fante: Ele se chama Programa Antibullying Educar para a Paz, com-posto por diagnóstico e uma série de estratégias pedagógicas que en-volvem toda a comunidade esco-lar. Tudo começa pelo diagnóstico. Sabemos que 100% das escolas do mundo têm bullying, mas não quais são os índices e formas pratica-das especificamente em cada esco-la. Os instrumentos de diagnóstico são aplicados aos alunos, seus fa-miliares e professores para levantar os problemas e identificar a reali-dade escolar, com dados, por exem-plo, dos locais de maior incidência de bullying. No mundo todo, [esse lo-cal] é no pátio de recreio. Nas mi-nhas pesquisas iniciais, no come-ço da década de 2000, verifiquei que era na sala de aula, com ou sem o professor. Coordenei em 2009 outra pesquisa com resultado divulgado em 2010, que também identificou a sala de aula [como um dos luga-res da prática do bullying], com índi-ce menor quando há a presença do professor. Isso mostra que a escola precisa capacitar os seus profissio-

nais, pois muitas vezes não atuam por não saberem como, por omissão ou pela crença de que problemas de alunos devem ser resolvidos entre os alunos.

Gestão Educacional: Quais são as estratégias?Cleo Fante: Os resultados são divul-gados para a comunidade escolar, que é quem traça as estratégias espe-cíficas da escola, acompanhadas por algumas ações básicas. É implanta-do um sistema de denúncia caso a criança seja vítima ou presencie o bullying. Os professores passam por uma capacitação para saber inves-tigar e identificar a prática, o que torna o progra-ma mais efeti-vo. Depois se pas-sa para uma fase de entrevista do professor com o aluno, para verificar se os relatos são condizentes, e então se ensina como encaminhar e inter-vir. Uma intervenção perante a tur-ma toda, muito feita no Brasil, po-de ser pior para a vítima do que os maus tratos que vem recebendo, por-que coloca o problema em evidência. Os professores são preparados pa-ra agir em sigilo de modo a proteger a vítima e também o autor, que po-de estar reproduzindo outra violên-cia, talvez doméstica, da qual tam-bém é vítima. Os encaminhamentos devem envolver a família, e somen-te em casos graves demandam [tam-bém] a participação do conselho tu-telar. O desconhecimento de como se encaminhar os casos faz com que algumas situações que deveriam ser resolvidas nas instâncias escola-res acabem na polícia ou judicializa-dos. Isso não é bom nem para a es-cola nem para os envolvidos e seus familiares. A precipitação pode gerar uma violência maior ainda.

ENTREVISTA

“CONFLITOS SÃO INEVITÁVEIS E

INERENTES ÀS RELAÇÕES

SOCIAIS”

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Gestão Educacional: O que há no ambiente escolar que incen-tiva ou permite a existência do bullying?Cleo Fante: A escola é um espa-ço privilegiado tanto para a cul-tura de paz quanto para a violên-cia. As crianças entram em contato com outras, atuando sem influên-cia e observação direta da famí-lia; [é um espaço] onde se sentem livres, especialmente no espaço de recreio, e acabam encontran-do oportunidade para adotar com-portamentos autoritários, abusivos ou até mesmo de vulnerabilidade. Por que na escola? O bullying po-de acontecer em outros ambientes onde as crianças interagem, como dentro do condomínio em que mo-ram, cursos de idiomas, de dança, de artes marciais, no transporte es-colar e agora também na internet. Ou seja, em qualquer lugar onde elas se socializam.

Gestão Educacional: Além de usar um meio digital de comu-nicação, existe diferença entre o bullying “tradicional” e o ci-berbullying?Cleo Fante: Muitas pessoas aca-bam estudando o ciberbullying de uma forma segregada do bullying, mas não tem diferença alguma, a não ser o ambiente, pois um é real e o outro virtual, e [há também] o fato de na internet não haver maus tratos físicos, não é possível. Os cri-térios de identificação, as causas e as consequências são os mesmos. A escola tem que tratar esse pro-blema, por mais que o ciberbullying aconteça fora dos seus muros. Tem que orientar, além dos estudantes, as famílias, para que participem da vida social dos filhos, virtualmente falando. Alguns acham que isso é violação de privacidade, mas mui-tas vezes os seus filhos podem es-tar expostos a riscos. G

ra de paz, valores humanos, ética, cidadania e relações interpessoais. Não posso fazer uma comparação porque não há como mensurar. A palavra bullying não era usada por-que a prática que ela descreve era colocada dentro do conceito de vio-lência escolar. Em 1990, por exem-plo, preocupava-se muito mais com a depredação do patrimônio da es-cola, pichações, depredações e com a violência contra os profissionais do que as violências entre os alu-nos. Por isso é importante que se tenha uma definição e tipificação para saber se é algo pontual ou se é efetivamente o bullying.

Gestão Educacional: Qual é a diferença do bullying praticado por meninos e pelas meninas?Cleo Fante: O menino é criado pa-ra ser durão, não pode chorar. Ele demonstra poder pela dureza, che-gando à violência física ou verbal, na necessidade de dominação, de estabelecer um poder sobre quem não oferece resistência. As meni-nas são criadas com mais delica-deza e para cuidar do outro. Elas brincam de boneca e de casinha, sendo preparadas para estabelece-rem relações afetivas e casarem-se. Se uma menina parte para a agres-são é comparada a meninos. Por is-so, elas acabam agindo de uma for-ma mais sutil, com a difamação da vítima, exclusão, rechaço dentro do próprio grupo. Elas agem dentro do círculo porque é onde conseguem fazer uma coisa muito discreta, em que a eleita como alvo vai se sentir culpada por ser colocada para fo-ra do grupo por não ter as mesmas condições socioeconômicas, a mes-ma beleza ou o mesmo poder de influenciar. As meninas são mui-to mais perversas e cruéis do que os meninos dentro do bullying. Na for-ma de atuar, eles são mais visíveis e elas, mais discretas.

Gestão Educacional: Em quais ti-pos de escolas ocorre esse tipo de encaminhamento equivocado?Cleo Fante: Públicas e privadas, não há distinção. A família se pre-cipita, e se uma criança apanha de um colega vai direto à polícia. É cla-ro que nenhum pai ou mãe quer que seu filho apanhe na escola, qual-quer que seja o contexto, mas antes de tomar qualquer decisão tem que saber os porquês. Pode ser uma bri-ga entre alunos em que ambos apa-nharam e bateram, coisa que acon-tece com pessoas em idade escolar.

Gestão Educacional: O programa tem efeito nas questões discipli-nares corriqueiras da escola?Cleo Fante: Sim, inclusive na disci-plina em sala de aula. Uma vez que as crianças são preparadas para lidar com as diferenças e valores humanos como respeito, solidariedade, tolerân-cia e o diálogo como estratégias de resolução de conflitos, há uma ten-dência de se reduzirem problemas cotidianos da escola. Não signifi-ca que [isso] acabará com as brigas. Conflitos são inevitáveis e inerentes às relações sociais. A diferença é que os alunos saberão resolver e mediar com diálogo e negociação. É um con-junto muito mais pedagógico do que punitivo, até porque se discute o re-gimento interno escolar com os pró-prios estudantes e os seus pais, e as novas regras sobre o bullying discuti-das com a comunidade são inseridas no regimento. Os acordos definidos dessa forma são muito mais aceitos e respeitados do que quando as normas são ditadas verticalmente pela escola.

Gestão Educacional: Havia algu-ma iniciativa antibullying no Brasil antes das suas pesquisas e da pa-lavra ganhar corpo de mídia?Cleo Fante: Aqui no Brasil não se falava em bullying, mas se trabalha-va com educação para a paz, cultu-

ENTREVISTA

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