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    Antonio Paim

    OS INTRPRETES DA FILOSOFIA

    BRASILEIRA

    ESTUDOS COMPLEMENTARES HISTRIA DAS IDIAS

    FILOSFICAS NO BRASIL

    -VOLUME I-

    Editora UEL

    Londrina

    1999

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    SUMRIO

    PREFCIO DA 3 EDIO ....................................................................................... 004

    PREFCIO DA 2 EDIO ....................................................................................... 005

    INTRODUO ........................................................................................................... 009

    I. OBRAS GERAIS ..................................................................................................... 014

    II. O ESTUDO DAS CORRENTES E AUTORES E A REEDIO DE TEXTOS

    ...................................................................................................................................... 039

    AS IDIAS FILOSFICAS DIFUNDIDAS NA COLNIA AT A EXPULSO

    DOS JESUTAS .................................................................................................... 039

    A HERANA POMBALINA ............................................................................... 043

    EMPIRISMO MITIGADO E RADICALISMO POLTICO ................................ 048

    SILVESTRE PINHEIRO FERREIRA .................................................................. 050

    PRIMRDIOS DO KANTISMO .......................................................................... 054

    ECLETISMO ESPIRITUALISTA ........................................................................ 057

    a) O ciclo de formao ..................................................................................... 059

    b) O ciclo de apogeu ........................................................................................ 065

    c) O ciclo de declnio e da superao .............................................................. 070

    TRADICIONALISMO .......................................................................................... 070

    O PENSAMENTO FILOSFICO NAS PROVNCIAS ...................................... 086

    ESCOLA DO RECIFE .......................................................................................... 099

    FARIAS BRITO .....................................................................................................113CIENTIFICISMO .................................................................................................. 116

    O PENSAMENTO CATLICO ........................................................................... 130

    O NEOKANTISMO .............................................................................................. 134

    MEDITAO CONTEMPORNEA .................................................................. 143

    REEDIO DE TEXTOS .................................................................................... 153

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    III - DISCIPLINAS ESPECIAIS ................................................................................. 155

    PENSAMENTO POLTICO ................................................................................. 155

    FILOSOFIA DO DIREITO ................................................................................... 163

    FILOSOFIA DA EDUCAO ............................................................................. 178

    IV. INDICAES PARA A CONTINUIDADE DA PESQUISA ............................. 185

    FILOSOFIA GERAL ............................................................................................ 185

    a) Estada de Silvestre Pinheiro Ferreira no Rio de Janeiro ............................. 185

    b) Publicaes peridicas nas dcadas de sessenta, setenta e oitenta do sculo

    passado .................................................................................................... 185

    c) O conceito de cincia do Instituto Politcnico e

    suas relaes com a filosofia .................................................... 187

    d) Catlogo das edies da Igreja Positivista na Repblica Velha .................. 187

    e) Confronto entre Positivismo europeu e o brasileiro .................................... 188

    f) O dilogo da filosofia brasileira com Husserl .............................................. 189

    g) Identificao de temtica adequada para os estudos de lgica

    e filosofia das cincias ............................................................................ 192

    FILOSOFIAPOLTICA ......................................................................................... 193

    a) O liberalismo social de Joaquim Nabuco (1849-1919) ............................... 193

    b) Vertentes do liberalismo brasileiro na Repblica Velha ............................. 194

    c) A proposta renovadora do Partido Democrtico ......................................... 195

    d) O manifesto dos mineiros e os percalos do catolicismo liberal ................. 195

    e) A proposta poltica de Armando de Sales Oliveira ..................................... 196

    f) Antecedentes do nacional-desenvolvimento: o caso Itabira Iron ................ 196

    g) A natureza real do socialismo petista .......................................................... 197

    O modelo de Marx ..................................................................................... 198O modelo Lnin-Trotski ............................................................................ 199

    O modelo stalinista .................................................................................... 199

    As revelaes de Waack ............................................................................ 201

    O socialista petista ..................................................................................... 203

    Roteiro da pesquisa .................................................................................... 207

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    BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 208

    a) Obras Gerais ...................................................................................................... 208

    b) Reedio de textos ............................................................................................. 211

    c) Estudos de Pensadores e Correntes ................................................................... 216

    d) Estudos de Autores Portugueses (1981-1998) .................................................. 231

    NDICE ONOMSTICO ............................................................................................ 239

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    PREFCIO DA 2 EDIO

    Ao preparar a 1 edio deste livro tinha em vista sistematizar a experincia do

    Curso de Ps-Graduao da PUC do Rio de Janeiro, onde durante cerca de dez anos

    funcionou uma rea de concentrao dedicada ao pensamento filosfico brasileiro. Essa

    experincia foi abruptamente interrompida, com o afastamento da prof. Celina

    Junqueira da Chefia do Departamento de Filosofia e a ascenso de um grupo, obediente

    liderana do Pe. Henrique de Lima Vaz, que decidiu colocar o curso abertamente ao

    servio do socialismo totalitrio. Contava com o apoio da prpria Ordem dos Jesutas e

    o Reitor em exerccio, pe. Joo Mac Dowell, aderiu francamente a esse projeto. Como

    esse grupo foi longe demais e acabou instituindo a censura a autores com os quais no

    simpatizava, provocando o afastamento de vrios professores, o assunto veio a pblico,

    travando-se pela imprensa uma grande discusso. Reuni todo o material desse debate

    num livro a que dei o ttulo deLiberdade acadmica e opo totalitria(Rio de Janeiro,

    Artenova, 1979). O estudo do pensamento filosfico brasileirocirculou logo depois, na

    Biblioteca Tempo Universitrio (Volume 57), que Eduardo Portela organizou e dirige

    na Editora Tempo Brasileiro.

    Na verdade, o meu propsito na PUC-RJ resumia-se a dar cumprimento a uma

    deciso do Instituto Brasileiro de Filosofia de ajudar a introduzir, nos cursos de

    filosofia, uma cadeira de Filosofia no Brasil. Este correspondia a um dos projetos

    preferidos de Lus Washington Vita (1921-1968), que era o Secretrio Geral do IBF e

    grande animador da Revista Brasileira de Filosofia. Por instncias suas, nos anos

    sessenta, elaborei um documento abordando o assunto e Vita o distribuiu entre vrios

    professores, com o objetivo de colher maiores subsdios. Tratava do programa, do

    material didtico, da formao de professores, etc. Na fase de discusso desse projeto,

    Celina Junqueira achava possvel institucionaliz-lo na PUC-RJ. Armando CorreiaPacheco, que chefiava o Departamento de Filosofia da OEA, entusiasmou-se pela idia.

    Com a morte de Vita decidi publicar na RBF o meu projeto e a avaliao crtica de

    Correia Pacheco (A filosofia no Brasil como disciplina universitria; fascculo 78,

    abril/junho, 1970).

    O fracasso da experincia da PUC- RJ no deixava de ser uma advertncia quanto

    impossibilidade de cultuar-se, na Universidade, uma atitude verdadeiramente

    acadmica em relao filosofia. A bem da verdade, diga-se que o empenho deinstrumentaliz-la, naquela instituio, contemporneo do aparecimento dos cursos de

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    filosofia de nvel superior. Desde a sua criao, os tradicionalistas deles se apropriaram,

    tornando-os uma espcie de tribuna para difuso das prprias idias. As excees

    ficavam por conta da USP, onde os positivistas marxistas faziam a mesma coisa, e da

    Faculdade Nacional de Filosofia, onde a presena de homens como Djacir Menezes e

    Evaristo de Moraes Filho impunha o pluralismo. De sorte que a tentativa de subordin-

    los a uma inspirao de esquerda, igualmente totalitria, no constitua propriamente

    uma novidade.

    Acontece que a filosofia brasileira, pelo menos ao longo dos ltimos anos, a

    coexistncia de perspectivas filosficas divergentes e, no seio destas, mltiplos pontos

    de vista. Aparece nitidamente como um corpo vivo onde sobressai o aprofundamento da

    conscincia dos problemas, em que pese as tentativas hegemnicas de um ou outro

    grupo, que jamais conseguiram eliminar o debate. Ao comprov-lo pelo nosso trabalho,

    sem t-lo desejado expressamente, acabamos barrando o ingresso no Brasil da chamada

    filosofia da libertao, que foi a forma encontrada pelos padres catlicos para

    mascarar sua adeso ao marxismo em vrios pases da Amrica Latina. Esta filosofia

    apresenta-se como um exerccio crtico sobre a meditao precedente, em geral

    distorcendo a verdade do que escreveram os antecessores. Diante da impossibilidade de

    faz-lo, desde que havamos reeditado quase tudo e promovido inmeros estudos

    especficos, tiveram mesmo que aparecer como telogos da libertao.1

    Em vista dos compromissos assumidos com vrios alunos, aceitei participar, com

    Eduardo Soveral, de um projeto de investigao das relaes entre as filosofias

    portuguesa e brasileira, a ser desenvolvido na Universidade Gama Filho, na forma de

    curso de doutorado. Mas estabeleci desde logo que, concludo o doutoramento daqueles

    alunos, daria por encerrada a minha colaborao. Esta se estendeu do segundo semestre

    de 1979 ao primeiro semestre de 1984.

    Embora esteja hoje convencido de que a Universidade brasileira no seja o lugarapropriado realizao de qualquer pesquisa - a instituio revelou-se habilitada a

    ocupar-se to somente da formao profissional-, considero que do empenho de

    institucionalizar a disciplina Filosofia no Brasil, a que me dediquei durante mais de trs

    1Foi submetida censura a comunicao, que me havia sido solicitada, para o Congresso Pan-americano

    de Filosofia de 1977, em Caracas, pelo fato de haver feito essa afirmativa. Os filsofos da libertao

    conseguiram transformar o conclave em concerto de uma nota s. Diante do meu protesto, acabaram

    incluindo-a nos Anais. No Brasil, Leonidas Hegenberg publicou-a emITA-Humanidades(Vol. 13, 1977).

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    lustros, resultou significativo aprofundamento do tema. Tive ento oportunidade de

    orientar 29 teses, sendo 17 de mestrado na PUC e 12 de doutorado na Universidade

    Gama Filho, mantendo por essa razo contado com pessoas de grande talento, que me

    obrigaram a corrigir opinies equivocadas e com as quais muito aprendi. A presente

    edio deste livro equivale forma que encontrei de homenage-los, dando a conhecer

    seus trabalhos a um pblico mais amplo. Poucas so as teses que apareceram como

    livros. Mas se tomou tambm imperativa desde que optei por excluir da 3 edio da

    Histria das Idias Filosficas no Brasil(So Paulo, Convvio, 1984) o captulo em que

    tratava dos intrpretes.

    Nesta segunda edio introduzi um captulo dedicado s obras gerais, inexistente

    na primeira, e atualizei o captulo sobre o estudo de autores e correntes. A bibliografia

    assumiu significativo volume, porquanto integrada por 213 ttulos, assim classificados:

    Discriminao Nmero

    I. Obras Gerais 29

    II. Reedio de textos 47

    III. Estudos de pensadores e Correntes 137

    1. Livros 65

    2. Teses acadmicas 48

    3. Ensaios 24

    Total 213

    O nmero de teses acadmicas pouco maior. Contudo, eliminei do quadro acima

    aquelas que vieram a ser editadas como livro, a fim de evitar dupla contagem.

    Suprimi o captulo que havia intitulado de idia geral dos problemas cogitados

    pela meditao brasileira. O tema considerado com a amplitude requerida na Histriadas Idias Filosficas no Brasil. Limitei-me a registrar quais so, no meu entender, as

    questes tericas mais relevantes relacionadas conceituao da filosofia brasileira.

    Eliminei os captulos intitulados a questo da originalidade e os fundamentos

    morais da cultura brasileira. O primeiro assunto no pode ser considerado

    sumariamente. Requer um confronto minucioso ao menos com as principais filosofias

    nacionais surgidas na poca Moderna (inglesa, alem, francesa, italiana, portuguesa,

    etc.). E quanto ao segundo representa um tema cuja pesquisa no tive oportunidade dedesenvolver. Se o fizer, publicarei seu resultado de forma autnoma.

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    Em compensao, dei tratamento mais sistemtico ao estudo das demais

    disciplinas (pensamento poltico, filosofia do direito e filosofia da educao).

    Queria, nesta oportunidade, agradecer de pblico a Eduardo Soveral pela leitura

    atenta que fez da primeira edio, advertindo para equvocos e imprecises que me

    esforcei por eliminar; a Leonardo Van Acker pelas observaes crticas e tambm pelos

    estmulos e, finalmente, a Snia Raimunda Gomes pela minuciosa identificao dos

    diversos erros de reviso contidos na primeira edio.

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    Somente nos anos vinte volta a emergir o interesse pelo pensamento filosfico

    nacional, de que iria resultar a conquista da requerida imparcialidade. Num primeiro

    momento, esse interesse fruto da evoluo do movimento modernista, ao transitar da

    revoluo esttica para a busca de nossas razes. Expresso significativa dessa retomada

    o livro Introduo ao pensamento brasileiro(1926), de Cndido Motta Filho (1897-

    1977). Embora se atenha, sobretudo, sua expresso literria, constitui sintoma

    eloqente. Iremos assistir formao de novo clima, que chega a adquirir configurao

    plena, na dcada de trinta, e de que resultam diversos estudos, destacando-se as

    contribuies de Alcides Bezerra, frente do Arquivo Nacional, dos continuadores da

    obra de Jackson de Figueiredo, no Centro Dom Vital, e ainda da Sociedade Brasileira de

    Filosofia. Esta buscou congregar, a partir de sua fundao, em 1927, representantes de

    todas as tendncias. O primeiro volume de seus Anais, publicado em 1940, d conta do

    grande nmero de conferncias que promoveu ao longo dos anos trinta, muitas

    dedicadas ao pensamento brasileiro. Os pensadores catlicos, a par da promoo da neo-

    escolstica, dedicam-se igualmente ao estudo de Farias Brito e Jackson de Figueiredo.

    Em 1939, comemora-se em todo o pas o centenrio do nascimento de Tobias Barreto, o

    que enseja a publicao dos conhecidos estudos de Hermes Lima, Omer MontAlegre e

    Celso Vieira.

    Tratando do problema da cultura, numa conferncia de 1929, Alcides Bezerra

    expressa nestes termos o novo clima:

    Passamos, brasileiros e portugueses, por incapazes de nos atirarmos

    especulao filosfica --grave injustia esta e oriunda de falta de observao dos

    motivos por que os pases de lngua portuguesa ainda no ofereceram uma florao

    filosfica comparvel das maiores naes pensantes.

    Quanto ao Brasil, bvio que ainda estamos nos primeiros trabalhos da jornada,

    contamos pouco mais de um sculo de independncia e os empreendimentos materiaisainda figuram pela fora das circunstncias no primeiro plano da vida social. Todavia o

    primeiro sculo de vida autnoma apresenta alguns nomes que em ambiente propcio

    teriam chegado a um relevo universal, tal a pujana de seus espritos. Refiro-me a um

    Tobias Barreto, a um Slvio Romero, a um Farias Brito.2

    2 O problema da cultura (1929) in Achegas histria da filosofia. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,

    1936. p. 28.

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    No novo ciclo aparecem dois importantes estudos de autores estrangeiros,

    Filsofos brasileosdo professor boliviano Guillermo Francovich --escrito no Brasil,

    em 1939, e publicado na Argentina, em 1943, por uma das mais importantes colees da

    Amrica Latina, a Biblioteca Filosfica, fundada e dirigida por Francisco Romero3-- e

    La Filosofia en el Brasil, do professor Antnio Gomez Robledo, editado no Mxico, em

    1946.

    Contudo, o impulso maior no exame do pensamento brasileiro tem lugar neste

    ps-guerra, notadamente aps a criao do Instituto Brasileiro de Filosofia (1949). A

    instituio buscou congregar os pensadores das mais diversas tendncias, inaugurando

    uma prtica no discriminatria que dura por mais de trs decnios e criando o hbito da

    conduo do debate filosfico no ambiente de integral serenidade. Ao antigo esprito

    polmico, que alimenta como valor primordial a conquista da vitria no combate,

    sobreps-se o empenho de aprofundamento dos temas e problemas suscitados. A par

    disto, o prof. Miguel Reale, presidente do Instituto, elaborou um mtodo para o exame

    do pensamento brasileiro de comprovada eficcia. Consiste: 1) em identificar o

    problema (ou os problemas) que tinha pela frente o pensador, prescindindo da busca de

    filiaes a correntes; 2) em abandonar o confronto de interpretaes e, portanto, o

    cotejo das idias do pensador estudado com outras possveis, para eleger entre uma ou

    outra; e, 3) em ocupar-se preferentemente da identificao de elos e derivaes que

    permitam apreender as linhas de continuidade real de nossa meditao. Com semelhante

    esprito, alguns estudiosos conseguiram preencher lacunas, promover a reedio de

    textos e estabelecer novas hipteses de trabalho.

    Consistindo o esforo principal na identificao da corrente a que se filia o

    pensador, deslocava-se o eixo da anlise de nossa meditao para a provvel fonte

    inspiradora externa. Assim, a Escola do Recife seria uma projeo do evolucionismo,classificando-se o movimento positivista em ortodoxo e dissidente, que era a ciso

    francesa conhecida universalmente.

    3O livro do prof. Francovich teve, entretanto, o mrito de despertar o interesse pelo tema em diversos

    jovens brasileiros, um dos quais, Lus Washington Vita (1921-1968), iria destacar-se entre os estudiosos

    do pensamento brasileiro, no perodo subseqente. Foi traduzido ao portugus e publicado em 1947,

    tendo aparecido a segunda edio brasileira em 1979.

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    Tentando identificar o problema que tinha pela frente o pensador verifica-se que o

    empenho de Tobias Barreto cifra-se na superao do positivismo, que ia granjeando

    simpatias crescentes sua volta, como resultado, entre outras coisas, do apoio que lhe

    dera inicialmente. Nessa busca, retirou argumentos da obra de Ernest Haeckel (1834-

    1919), mas no pde aceitar integralmente essa espcie de filosofia, que deixava

    intocado o cerne do positivismo. Acabaria, em decorrncia do contato com o

    neokantismo, descobrindo a frmula segundo a qual se poderia refutar a hiptese

    comteana de erigir uma fsica social. Segundo essa frmula, o homem no se esgota nas

    causas eficientes, tomadas por base no determinismo de tipo fsico, porquanto se prope

    objetivos a atingir e elabora o requerido plano de ao, erigindo desse modo o mundo

    das causas finais, o mundo da cultura, que no se deixa explicar pelo causalismo

    mecnico. Surge, assim, um novo ponto de vista acerca da pessoa humana. Essa parcela

    da meditao de Tobias Barreto foi denominada de culturalismo. De sorte que a

    considerao do problema, como referencial, deu nova dimenso ao exame do

    pensamento brasileiro, deslocando o centro de interesse para o nosso prprio processo

    cultural.

    Tomando a esse tema como leitmotiv -- o da pessoa humana--, logrou-se uma

    viso inteiramente nova tanto do ciclo anterior a Tobias Barreto como do que lhe

    seguiu. Entre outros resultados, chegou-se a uma classificao do movimento positivista

    brasileiro vinculada s circunstncias particulares de nossa cultura. Perdeu o sentido a

    pergunta pelo modelo interpretativo, que, segundo a experincia, acabava levando a

    privilegiar esta ou aquela forma de entendimento da obra de Locke, Kant, Hegel ou de

    qualquer dos outros grandes filsofos que exerceram influncia universal. Fomos

    levados assim a verificar que as idias efetivamente fecundas repercutem das mais

    variadas formas nos diversos pases, segundo os perodos histricos, no fazendo

    sentido o empenho na busca de uma pureza inexistente para, em seguida, confront-la evoluo do pensamento brasileiro.

    Chegamos deste modo evidncia de que importa antes de mais nada identificar

    as linhas de continuidade de nossa meditao. E, no cumprimento de semelhante

    programa, registramos progressos notveis. Retiramos do esquecimento a obra de

    Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), o que nos permitiu estabelecer as etapas da

    adeso brasileira filosofia espiritualista de Victor Cousin (1792-1867). Verificamos

    igualmente que essa corrente comportava uma periodizao extremamente fecunda doponto de vista do adequado entendimento de nossa evoluo cultural. Logrou-se

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    estabelecer os vnculos de Tobias Barreto com o momento do ecletismo e as dimenses

    efetivas que veio a assumir a corrente de filosofia por ele criada, o culturalismo, que

    ocupa posio destacada em nossa meditao contempornea. Revelou-se, desse modo,

    a existncia de uma corrente de filosofia prestes a contemplar um sculo de existncia e

    que corresponde ao amadurecimento de uma vertente que tem razes ainda mais antigas.

    A densidade filosfica desse dilogo no tempo pode hoje ser comprovada sem maior

    dificuldade, graas reedio dos textos nucleares e elaborao dos correspondentes

    estudos monogrficos.

    A linhagem antes descrita no corresponde certamente ao nico vetor de nossa

    meditao filosfica. Estamos igualmente de posse de vrios elementos aptos a sugerir a

    significao da herana portuguesa. Assim, reconstitumos a partir de Pombal o que

    chamamos de cientificismo, conceito que se revelou suficientemente abrangente para

    englobar tanto a meditao efetivada na Real Academia Militar como o perodo

    positivista e o atual ciclo marxista. Tambm o pensamento catlico veio a ser

    considerado tomando a cultura brasileira como referencial.

    Dar ao leitor uma idia geral do progresso registrado, atravs da apresentao dos

    diversos estudos efetivados no perodo recente, tal o propsito deste livro.

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    I. OBRAS GERAIS

    A primeira corrente de filosofia rigorosamente estruturada aps a Independncia, o

    espiritualismo ecltico, tinha todos os ingredientes para elaborar uma anlise da

    Filosofia no Brasil e presumivelmente o fez, embora no tenhamos conseguido localiz-

    la. Preservaram-se, contudo, os indicadores essenciais da posio que guardavam em

    face da meditao nacional.

    No programa concebido para o curso do Colgio Pedro II, pelos espiritualistas

    eclticos, o exame da filosofia que lhes era contempornea achava-se associado ao de

    sua situao em nosso pas.

    Seus integrantes partiam naturalmente da suposio de que o sistema de Cousin

    (1792-1867) era vlido e de certa forma refletia as inquietaes de seu tempo. Mas

    estavam longe de admitir se constitusse numa tbua acabada de enunciados dignos

    apenas de adeso servil. Ao contrrio, nutriam com o mestre srias divergncias e no

    se furtavam em explicit-las. Alm disto, tinham plena conscincia da transitoriedade

    dos sistemas e da perenidade dos problemas. E voltaram-se preferentemente na direo

    destes ltimos, certos de que os brasileiros estavam em condies de contribuir para o

    seu melhor esclarecimento.

    Domingos Gonalves de Magalhes (1811-1882) critica o sensualismo, filosofia

    ensinada nas escolas e mocidade, na dcada de trinta, por entender que era abraada

    como um dogma, como uma verdade incontrastvel, enfim, como a ltima expresso da

    filosofia. Se tomada como refletindo adequadamente um aspecto do real, a filosofia das

    sensaes , entretanto, um momento importante da evoluo do esprito humano.

    Magalhes deseja apenas liber-la do unilateralismo a fim de preserv-la como

    referencial a partir do qual ir descobrir o esprito. Afinal de contas, Maine de Biran

    (1766-1824), que era o grande inspirador, somente pretendia solucionar as questesdeixadas em aberto pelo empirismo, na esperana de torn-lo coerente. Magalhes

    escreveu um ensaio sobre Monte Alverne (1784-1858), cuja ao exalta por haver

    iniciado a sua gerao no espiritualismo. No fim da dcada de setenta, quando o ciclo

    ecltico estava encerrado, examina com serenidade, nos Comentrios e Pensamentos

    (Rio de Janeiro, Garnier, 1880), cada um dos argumentos surgidos entre os cientificistas

    em justificativa ao que lhe parecia uma simples volta s idias do comeo do sculo.

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    A Minerva Brasiliense, revista publicada sob patrocnio dos eclticos, noticiou

    amplamente o Concurso de Filosofia realizado no Colgio Pedro II, em julho de 1844,

    para preenchimento da cadeira cujo primeiro ocupante, Domingos Gonalves de

    Magalhes, a ela renunciara. O autor da notcia, Santiago Nunes Ribeiro --chileno

    radicado no Brasil desde jovem, lente de retrica e poltica do Colgio Pedro II e

    substituto de filosofia, falecido em 1847--, empreende uma caracterizao das diversas

    correntes representadas no concurso que acabaria sendo uma autntica consagrao do

    ecletismo, na pessoa de Francisco Sales Torres Homem (1812-1876), que o venceu.

    Nessa apresentao deixa transparecer a autoridade de que desfrutava Silvestre Pinheiro

    Ferreira (1769-1846), que data ainda vivia.

    Na revistaIlustrao Brasileira, editada no Rio de Janeiro (Vol. I, n 2, maro de

    1854), A. F. Vianna d incio a uma srie de artigos sob o ttulo genrico de A

    Filosofia no Brasil, na qual se prope examinar as idias de Manuel de Arajo Porto

    Alegre (1806-1879), companheiro de Domingos de Magalhes na revista Niteri,

    tambm aluno de Monte Alverne. Lamentavelmente a publicao se interrompeu ou no

    foi preservada.

    A partir de tais elementos e da prpria atividade desenvolvida pelos participantes

    da corrente ecltica, podemos concluir que o culto da filosofia em nosso pas, fora das

    instituies religiosas, comea valorizando a contribuio nacional e dispondo-se a

    participar do debate que se travava na Europa. Acreditavam que o esprito humano

    jamais chegaria a uma situao de plenitude e, simultaneamente, apostavam na

    possibilidade infinita de seu aprimoramento. Entendiam ainda que a filosofia estava

    vinculada a um determinado tempo histrico, achando-se, portanto, as convices que

    nutriam condenadas inevitvel superao. Essas idias foram colhidas na obra deVictor Cousin, cuja fecundidade para a histria da filosofia Rodolfo Mondolfo (1877-

    1976) teria oportunidade de destacar (Problemas y mtodos de investigacin en la

    Historia de la Filosofia.2 ed. Buenos Aires : Editorial Universitria, 1960).

    Os eclticos brasileiros no pretenderam apagar de nossa histria o ambiente

    empirista em que se formaram. Ao estudar especificamente a obra de Monte Alverne ou

    Porto Alegre queriam de certa forma perpetu-lo. Era grande o apreo que tinham por

    Silvestre Pinheiro Ferreira e o jovem Domingos Gonalves de Magalhes, achando-seem Paris, conseguiu que colaborasse na revistaNiteri.

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    A partir do surto de idias novas da dcada de setenta emerge uma atitude

    diametralmente oposta. Vem tona de novo a tnica dominante nas reformas

    empreendidas pelo Marqus de Pombal, expressa na crena de que o progresso

    incompatvel com a tradio. Pombal no queria sequer que se mencionasse o nome de

    Aristteles. Concebia a cultura como sendo constituda de compartimentos estanques e

    no como obra secular e inacabada. Estamos mais uma vez em plena onda cientificista,

    com as mesmas intolerncias e brutais simplificaes dos tempos de Pombal.

    A filosofia perde toda especificidade e deve colocar-se abertamente ao servio da

    conquista dos novos tempos. Tal o esprito das principais obras gerais aparecidas ao

    longo dos decnios subseqentes ao surto de idias novas. Nesse mister, o

    tradicionalismo no se distingue do cientificismo. Em seu caso, a vez do progresso ser

    recusado. certo que alguns estudiosos isolados, como Clvis Bevilqua (1859-1944),

    por exemplo, procuraram valorizar a autonomia do saber filosfico e registrar com

    iseno a meditao brasileira. Mas no chegaram a produzir obras gerais. Estas seriam

    de Silvio Romero (1851-1914), Leonel Franca (1896-1948) e Joo Cruz Costa (1904-

    1978), aparecidas respectivamente em 1878, 1921 e 1956.

    O livro de Silvio Romero chamou-se A Filosofia no Brasil.1Escrito em 1876, s

    veio a ser editado dois anos depois pela Tipografia Deutsche Zeitung (Porto Alegre), de

    Carlos Von Koseritz, a quem dedicado.

    Silvio Romero no se preocupou em realizar obra de pesquisa, comeando pelo

    que se editou na dcada de cinqenta (Compndio de Filosofia, de Monte Alverne;

    Investigaes de Psicologia, de Eduardo Ferreira Frana; e Fatos do esprito humano,

    de Domingos Gonalves de Magalhes). Ignorou o curso de Silvestre Pinheiro Ferreira,

    na segunda dcada, bem como sua obra posterior; a presena dos kantianos; o debate

    dos anos quarenta atravs do qual os eclticos conquistaram a maioria e o prprio

    Antonio Pedro de Figueiredo (1814-1859), tradutor de Cousin.A tese mais geral do livro est enunciada deste modo: Os filsofos brasileiros

    no se prestam... a uma classificao lgica, filha das leis que presidem ao

    desenvolvimento dos sistemas, no existindo estes aqui. Forado a apresentar uma, ela

    seria em trs grupos: a) escritores educados sob o regime do sensualismo metafsico

    francs dos primeiros anos deste sculo e que passaram para o ecletismo cousiniano; b)

    1 Transcrita na Obra Filosfica, edio organizada por Lus Washington Vita (Editora Jos

    Olympio/USP, 1969).

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    reatores neocatlicos filiados s doutrinas de Gioberti e Rosmini, ou s de Balms e

    Ventura; c) e, afinal, espritos que se vo emancipando sob a tutela das idias de Comte

    ou as de Darwin.

    A Filosofia no Brasil no se destinava a ser um balano sereno do pensamento

    nacional, subordinando-se ao propsito de anunciar o alvorecer de tempos novos, em

    plena gestao. Tratava-se apenas de contribuir para acelerar o desfecho, criticando a

    filosofia dominante em seu tempo.

    A apreciao mais geral a respeito do ecletismo, na pessoa de Monte Alverne,

    expressa-a nos seguintes termos: To pobre, to insalubre foi o alimento que lhe

    forneceu a cultura de sua ptria, em seu tempo, to ingratas as influncias a que teve de

    ceder, que a crtica sente-se com impulsos de o absolver.2Em contrapartida, a anlise

    da obra daqueles que encarnavam o novo estado de esprito vem precedida desta

    declarao: Falta-nos agora apreciar os quatro espritos brasileiros de mais saliente

    cunho neste sculo. Estamos em boa companhia; minha pena no deve mais agitar-se

    trmula sobre o papel; idias amigas lhe daro suave curso.3

    Silvio Romero tinha plena conscincia do papel do historiador e realizou uma obra

    verdadeiramente monumental em relao nossa literatura. Ainda assim, ao abordar as

    idias filosficas no o fez nessa condio. Intervinha no debate como propagandista de

    doutrinas que desejava contrapor ao espiritualismo. Referindo-se mais tarde ao agitado

    perodo da dcada de setenta e s crticas ento publicadas contra seu livro, escreveria:

    Retruquei com calor e paixo que sempre mantive nas lides do pensamento. A bulha

    foi grossa e intensa. Fervia ela ainda em torno de A Filosofia no Brasil, galeria de

    esttuas decapitadas pela crtica severa, onde se salvaram apenas dois ou trs bustos,

    quando nas colunas de O Reprter surgiram (1879) os terrveis artigos que vieram a

    constituir outra galeria de notabilidades destroadas --os Estudos de Crtica

    Parlamentar. Era a batalha poltica aps a batalha filosfica.4Desse modo, o prprio autor parecia se dar conta da distino, isto , quando

    procurava fazer obra permanente, trazendo para primeiro plano o interesse cultural, e

    quando escrevia na condio de simples participante. Em que pese o reconhecimento, a

    2A Filosofia no Brasil.Porto Alegre: Tip. de Deutsche Zeitung, 1878. p. 36-37.

    3Idem, p. 66.

    4Zeverissimaes ineptas da crtica, Porto, 1909, p. 56-57.

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    posteridade assim no entendeu. A Filosofia no Brasil tornou-se uma espcie de

    paradigma tanto por seus mritos como por seus defeitos.

    A grande contribuio de Silvio Romero consiste na valorizao simultnea das

    idias filosficas e de sua contemporaneidade. Se bem haja afirmado o contrrio, deu-se

    conta, juntamente com inmeros outros intelectuais contemporneos, da significao

    imensa do substrato filosfico das idias polticas ento vigentes. Ao pretender demolir

    a monarquia, comearam precisamente tratando de levar ao descrdito o ecletismo

    espiritualista. E o fizeram buscando reconstituir os fundamentos do saber e da tica,

    privilegiado o momento em que se inseriam. evidente que essa posio no solidria

    da atitude polmica e participante em que procurou express-la, se bem tenha sido este

    o aspecto que ganhou maior evidncia.

    A herana de Silvio Romero como que passou integralmente s mos do padre

    Leonel Franca e de Cruz Costa. Do mesmo modo que o autor de A Filosofia no Brasil,

    ambos confundem a contemporaneidade do saber filosfico com os limites estreitos de

    seus prprios momentos, negam validade ao passado e, por isto mesmo, no conseguem

    vislumbrar nenhuma conexo interna na meditao brasileira nem se do conta de suas

    peculiaridades.

    A Filosofia no Brasil, do padre Franca, foi escrita nos comeos da dcada de vinte,

    quando o trnsito do naturalismo ao espiritualismo, efetuado por Farias Brito, j

    amadurecera o suficiente para se proclamar como filosofia catlica. Na Europa,

    enquanto o cientificismo parecia perder terreno, o neotomismo ganhava ascendncia e

    lograva retirar a escolstica do ciclo da decadncia a que parecia condenada desde os

    fins da Idade Mdia. Embora a tanto no estivesse obrigado pela sua condio de

    pensador catlico, considerou o padre Franca que o Brasil representava uma excelente

    ilustrao da tese, de validade universal, segundo a qual a filosofia moderna apresenta

    o triste espetculo da mais deplorvel anarquia, cabendo saudar com entusiasmo arenascena escolstica. Constituindo um amontoado de erros e equvocos, ao

    pensamento brasileiro s restaria render-se evidncia dos fatos.

    O curso histrico posterior iria evidenciar que os arautos brasileiros da restaurao

    escolstica no tinham maior compromisso com a filosofia. Seu engajamento era

    eminentemente poltico e nesse plano alcanaram inquestionvel sucesso, em especial

    nas dcadas de trinta e quarenta. Lograram retirar a Igreja do isolamento a que havia

    sido relegada nos primeiros decnios republicanos, voltando a estabelecer-se a alianacom o Estado. De tudo isto resultou o fenmeno denominado surto tomista --

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    aparecimento de grande nmero de adeptos dessa corrente, transformando o Brasil

    numa de suas mais expressivas manifestaes em todo o mundo, para em seguida

    desaparecer sem deixar rastro--, cujo substrato ltimo era de fato poltico. Em seu seio

    no tem lugar o entendimento do tomismo como um ponto de vista a partir do qual os

    filsofos catlicos se dispem a dialogar com as demais correntes contemporneas. Esta

    seria a posio de um grupo reduzido e que de fato s comea a falar em nome do

    tomismo a partir da crise dos anos sessenta e da debandada geral de seus integrantes na

    direo do marxismo.

    O texto do padre Leonel Franca sobre a meditao filosfica brasileira resume-se

    ao confronto de alguns pensadores com o paradigma de que est de posse. Dispensou-se

    de maior pesquisa e s personalidades relacionadas por Silvio Romero limitou-se a

    acrescentar os mais notrios integrantes da Escola do Recife, os animadores do

    movimento positivista e a Farias Brito. A todos dirigir violentas reprimendas.

    O seu estilo pode ser aferido a partir da anlise que empreende das idias de

    Antonio Rosmini (1797-1835), que teve discpulos no Brasil, entre estes o sacerdote

    italiano Gregorio Lipparoni, que viveu em Pernambuco e no Rio de Janeiro, de meados

    dos anos sessenta dcada de oitenta do sculo passado. Aqui publicou A filosofia

    conforme a mente de S. Toms de Aquino exposta por Antonio Rosmini em harmonia

    com a cincia e a religio(Rio de Janeiro: Imprensa Industrial de Joo Paulo Ferreira

    Dias, 1880).

    Rosmini inclui-se entre os pensadores que enfrentaram os problemas da filosofia

    moderna buscando encontrar uma resposta compatvel com o ponto de vista catlico.

    Assim, no que respeita ao conhecimento, ir buscar uma posio eqidistante do

    sensualismo e do kantismo. Resumidamente, supe que as dificuldades encontradas

    poderiam ser superadas postulando algo de anterior relao sujeito-objeto. Este algo

    seria a idia de ser, pressuposta no ato do conhecimento e sua autntica garantia, inataaos homens.

    Fazendo caso omisso do problema filosfico geral, Pe. Franca diz simplesmente

    que o erro de Rosmini advm do desconhecimento da teoria aristotlica da abstrao.

    Acontece que esta no responde s objees modernas e corresponde de fato a uma

    intuio intelectual, possibilidade contestada por Kant e pelos empiristas mais

    coerentes, a exemplo de Hume. O que Rosmini pretendia era explicar o conhecimento

    sem o recurso intuio intelectual e para este fim a teoria da abstrao no tinhanenhuma serventia.

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    Rosmini tinha, portanto, plena conscincia da natureza peculiar da questo e no

    considerava suficiente ignor-la. Este ser, entretanto, o caminho seguido pelo pe.

    Franca. Sendo o dono da verdade basta ignorar a questo para que ela desaparea. E

    como advertncia aos recalcitrantes toma o exemplo dos brasileiros que o fizeram na

    esperana de silenciar toda futura objeo pela simples intimidao. Assim,

    constatao da decadncia do catolicismo por Farias Brito, fato inconteste na poca

    Moderna e presente ao seu tempo, pe. Franca responde deste modo: Sim, Farias, o

    catolicismo vive e s ele pode dar vida. E porque o desconheceste, no s tua obra

    intelectual foi falha, efmera e incompleta, mas tua vida foi um peregrinar incerto,

    amargurado e oscilante entre a dor e o desespero.

    A posse da verdade dispensa-o mesmo de ter um mnimo de rigor nas suas

    afirmativas. Assim, permite-se inferir da simples informao de que Frei Itaparica fora

    professor de Tobias Barreto que seu magistrio repousava num espiritualismo ecltico

    la Cousin, frgil e superficial. Frei Itaparica autor do Compndio de Filosofia

    Elementar (Bahia: Tipografia E. Pedroza, 1852) que o pe. Franca dispensou-se de

    consultar. Se o fizesse veria que era adepto do tradicionalismo.

    A falta de serenidade do padre Franca pode ser ilustrada com a crtica que dirigiu

    classificao das cincias de Silvio Romero, batizando-a de monstruosidade lgica. A

    esse propsito escreve Lus Vita: A censura de Leonel Franca, no obstante sua

    aparente pertinncia escusa e desleal, pois se utilizou da primeira edio dos Ensaios

    de filosofia do direito, onde se l: Uma vez dividimos as cincias, quanto ao grau de

    sua certeza, em verdadeiras cincias, quase cincias, pretendidas cincias (p. 45). No

    entanto, na segunda edio, a frase de Silvio Romero acrescida de um advrbio que

    impedia Leonel Franca de falar em monstruosidade lgica. Ei-la: Uma vez ns

    dividimos humoristicamente as cincias quanto ao grau de certeza, em genunas

    cincias, quase cincias, pretendidas cincias (p. 94). E enquanto frase da primeiraedio seguia-se esta: Entre as primeiras estavam a matemtica, a mecnica, a fsica, a

    astronomia, a qumica. Entre as segundas a biologia, a psicologia, a sociologia em seus

    diversos ramos, como a esttica, o direito, a moral, a economia poltica. No ltimo

    grupo a teologia, a metafsica, a quiromancia, etc., frase da segunda edio seguia-se

    esta outra: Diviso esta que jamais teve a nossos olhos a pretenso de ser considerada

    como classificao orgnica das cincias, como alguns fantasistas chegaram a supor.

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    Quer dizer, em 1908 Silvio Romero respondia ao que Leonel Franca viria afirmar em

    1921.5

    O texto do pe. Leonel Franca reduz-se a um panfleto apaixonado.

    O terceiro produto dessa linhagem - muito justamente batizada de interpretao

    participante - corresponde aos estudos de Joo Cruz Costa, o mais importante dos quais

    denominou de Contribuio histria das idias no Brasil(1956).

    Cruz Costa tambm parte da suposio geral de que o saber est pronto e acabado,

    cumprindo to-somente dele nos apossarmos. Este momento privilegiado corresponde

    obra de Augusto Comte (1798-1857), complementada pela de Karl Marx (1818-1883).

    Trata-se do que se convencionou chamar de verso positivista do marxismo, que tive

    ocasio de caracterizar em outras oportunidades.

    Aplicando esse esquema terico cultura brasileira, Cruz Costa sabe praticamente

    tudo por antecedncia. Seu nico trabalho consistir em dar-lhe um mnimo de

    credibilidade. E, ao faz-lo, abandona francamente o terreno das idias, dedicando-se a

    uma espcie de digresso sociolgica. Alguns exemplos bastaro para definir a natureza

    dessa proposta.

    O prestgio da filosofia ecltica est ligado... ao advento e estabelecimento do

    regime monrquico, ao longo do reinado de Pedro II, o imperador-professor, to

    marcadamente burgus... (obra citada, 1 citada, p. 96). Quanto ao surto de idias novas

    da dcada de setenta, explica-o pela decadncia das lavouras tradicionais do pas e o

    advento do caf (p. 114) que, aliados a outros fatores, leva-o a concluir: O Brasil passa,

    a partir de 1850, por uma completa remodelao material. Sua inteligncia ir seguir

    tambm caminhos novos (p. 115). Deste modo, o significado da investigao das idias

    resume-se apenas identificao de seu substrato poltico-social.

    A grande descoberta de Cruz Costa consiste na tese de que o progresso

    verdadeiro da mentalidade brasileira d-se com a ascenso do positivismo. Fora dessefenmeno no h nada de maior interesse e s por dever de ofcio algum ir compulsar

    as obras do ciclo precedente. Quem o fizer, nessa condio, nas Investigaes de

    Psicologia, de Ferreira Frana, nada mais encontrar que idias verdadeiramente

    ridculas. Em Domingos Gonalves de Magalhes, pouco mais que banalidade e

    chateza.

    5Trptico de idias. So Paulo: Grijalbo, 1967. p. 52-53.

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    morte do literatismo e de todas as formas de verbalismo. Afirma textualmente: No se

    escreve, no se l, no h mais vida intelectual...., A literatura morreu nos anos 40.

    Como s havia literatura, nada restou para lhe tomar o lugar... ... se a formao e a

    interveno de uma nova classe dirigente no se fizerem em prazo curto, terrivelmente

    curto, as contradies econmicas e sociais do pas ultrapassaro o limite de resistncia

    da flexibilidade social e assistiremos irrupo avassaladora do primarismo nacional.

    A empfia do ISEB estagnou, como sabemos, neste patamar contestatrio. Ficou,

    portanto, muito aqum dos outros momentos em que a intelectualidade brasileira

    lanou-se reforma social, comeando pela cultura - eclticos e cientificistas, no sculo

    passado e modernistas no sculo XX. Ao menos empreenderam o passo seguinte,

    apresentando uma proposta alternativa filosofia dominante: o ecletismo em lugar do

    empirismo mitigado; o positivismo em lugar do ecletismo e, finalmente, o marxismo em

    lugar do positivismo. Hlio Jaguaribe acabou sem dizer ao que veio e tal vez por isto

    mesmo haja limitado sua incurso nos arraiais filosficos a este pequeno opsculo de

    1957.

    A tendncia participante correspondeu a uma fase --batizada por Miguel Reale

    como sendo a da filosofia em mangas de camisa, para fili-la ao tom polmico levado

    a extremos pela Escola do Recife--, mas que seria mais explcito denominar de mangas

    arregaadas no de todo superada, mas em franco recesso.

    Neste ps-guerra estruturou-se no pas uma tendncia oposta, que poderia ser

    denominada de compreensiva. Coube a Miguel Reale precisar algumas das

    caractersticas reivindicadas pela nova posio. A primeira delas consiste no empenho

    em superar a atitude polmica, buscando valorizar todas as manifestaes da

    conscincia filosfica nacional, sem perder de vista as circunstncias histricas

    concretas em que tiveram lugar. Ao faz-lo, adverte, o essencial ater-se ao cunho

    filosfico da pesquisa. Resumindo, escreveria: No ignoro que impossvel umahistria da filosofia sem certa perspectiva (no fosse a filosofia sempre uma tomada

    necessria de posio axiolgica perante a realidade das coisas e dos homens), mas o

    que deve ser evitado a crtica externa das obras. S a crtica interna que nos torna

    partcipes do ngulo ou da circunstancialidade do pensador criticado, que se pode

    considerar autntica, mesmo quando chegue a concluses negativas quanto ao mrito

    dos trabalhos.7

    7Filosofia em So Paulo, p.14.

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    Reale no se disps, desde logo, a contestar a afirmativa de Silvio Romero,

    referida precedentemente, quanto ausncia de conexo lgica na meditao filosfica

    brasileira, hiptese errnea que no resiste a exame detido. Contudo, desvendou o

    substrato ltimo de semelhante suposio e que consiste numa espcie de arrogncia

    intelectual, de quem se d conta da fragilidade cultural circundante sem perceber que

    sua primeira vtima, ao alimentar a recndita esperana de que tudo esteja comeando

    no pas a partir de seus escritos.... Sem desmerecer de seu enorme significado, a Escola

    do Recife padece desse vcio, bastando referir o fato suficientemente sintomtico de que

    nenhum de seus integrantes haja sentido necessidade de explicitar a grande dvida em

    que se encontravam em relao filosofia ecltica, evidncia que logo se impe a quem

    examine atentamente a parcela mais importante de seus textos.

    Mesmo sem discutir a validade da tese de Silvio Romero, Reale indicou a

    necessidade de voltarmos nossa ateno para momentos obscuros e mal estudados --

    momentos olvidados, sua denominao-- e que talvez pudessem desvendar os elos e

    derivaes capazes de propiciar avaliao mais equilibrada. Limitando-se apenas a

    referir alguns de tais momentos --aptos sem dvida a comprovar a existncia de

    autntico dilogo filosfico subjacente nossa meditao, como o caso da obra de

    Silvestre Pinheiro Ferreira--, ofereceu-nos ao mesmo tempo anlise acabada de

    determinadas figuras e temas. Tal o caso da ideologia e do kantismo, que se

    apresentam como opes diante da intelectualidade patrcia, nos comeos do sculo

    passado, ao lado do empirismo, que serviu de trnsito corrente ecltica. Cabe-lhe, sem

    dvida, o mrito de haver apontado a novidade essencial apresentada pela Escola do

    Recife e que denomina de culturalismo, Reale autor da caracterizao do que chama

    de esprito positivo, peculiaridade de que no se deram conta muitos dos estudiosos do

    movimento positivista. Essa distino permite apreciar os partidrios brasileiros de

    Augusto Comte em sua dimenso prpria, como parcela do processo mais amplo,inspirado em mltiplos fulcros. Seus estudos sobre o pensamento filosfico nacional

    incluem ainda a anlise da figuras destacadas como Pedro Lessa, Ruy Barbosa, Joo

    Mendes Jnior, Vicente Ferreira da Silva e outros.

    Em sntese, no estudo das idias filosficas em terra brasileiras, Reale quem se

    incumbiu de formular um mtodo que revelou de pronto extremo valor heurstico,

    precisamente o que importa na matria. O mtodo de que se trata vem sendo

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    aperfeioado desde A doutrina de Kant no Brasil (1949) e consiste, basicamente em

    deixar de lado toda arrogncia que nos leve a considerar privilegiada nossa prpria

    situao para tentar compreender queproblematinha pela frente determinado pensador.

    Nessa colocao o centro do interesse volta-se para a obra do autor brasileiro e as

    circunstnciasdo ambiente poltico-cultural em que a elaborou Correlativamente, passa

    a segundo plano a questo de discutir-se a legitimidade dessa ou daquela interpretao e

    perde inteiramente o sentido a tomada de posio pr ou contra uma ou outra corrente.

    Embora apresente outras exigncias, tais so os seus aspectos nucleares e norteadores.

    A tendncia compreensiva congregou expressivo grupo, destacando-se Djacir

    Menezes, Roque Spencer Maciel de Barros, Carlos Lopes de Matos, Machado Neto,

    Nelson Saldanha, alm de outros. Dentre todos, o que reuniu maior acervo de trabalhos

    e se constituiu no animador incansvel de todas as iniciativas foi sem dvida Lus

    Washington Vita (1921-1968).

    Seu interesse pela questo tem lugar desde a dcada de quarenta quando, segundo

    escreve, apenas despertava para a vida e para a filosofia, entre os vinte e os vinte e

    cinco anos de idade. Os escritos dessa fase inicial, reuniu-os em A Filosofia no Brasil

    (1950). Ensaio com idntico ttulo, elaborado em 1957, aparece em O mito de Hfestos

    (1959). Em 1961, redige Panorama da Filosofia no Brasil, includo no livro

    Monlogos e Dilogos(1964). No intervalo e nos anos que se seguiram incumbiu-se da

    anlise do pensamento de Alberto Sales - em livro editado em 1965 -, Silvio Romero,

    Farias Brito, Vicente Ferreira da Silva e lvaro Vieira Pinto, sendo que os ltimos

    figuram em Trptico de Idias(1967). Na fase final da existncia preparou a Antologia

    do pensamento social e poltico no Brasil - aparecida em 1968 -, o livro intitulado

    Panorama da Filosofia no Brasile a Pequena Histria da Filosofia, onde os pensadores

    brasileiros so estudados em conjunto com as correntes mais destacadas da filosofia

    ocidental. Durante mais de vinte anos, Lus Washington Vita dedicou-se de corpo ealma ao levantamento de nosso patrimnio em matria filosfica, com uma verdadeira

    obsesso no que respeita reedio de textos, de que se ocupou de forma sistemtica na

    Revista Brasileira de Filosofia, tendo no preparo da Obra Filosficade Silvio Romero -

    publicada em 1969 - explicitado o tipo de programa cuja realizao acalentava mais que

    nada.

    Desde os escritos iniciais, Washington Vita d-se conta de que h algo de

    insustentvel na atitude negativa de Silvio Romero, Leonel Franca e Cruz Costa.Parece-lhe, poca, que o mal reside nas amplas snteses e nos panoramas gerais,

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    quando o tema requeria, sobretudo, tratamento monogrfico. Somente quando

    chegarmos a um nmero razovel destas - escreve -, quando nos tivermos aprofundado

    na matria, somente ento sero lcitas as grandes snteses e os panoramas histricos.8

    Sua intuio fundamental, poca, parece consistir na tese de que a filosofia se constitui

    de problemas que tm dimenso real e efetiva. Esta precisamente a via ele acesso

    compreenso da dinmica do pensamento brasileiro.

    Nos anos cinquenta, entretanto, Washington Vita limitava o primado dos

    problemas poca atual, que se caracterizaria pela superao dos sistemas. No chega

    propriamente a aceitar o menosprezo tradicional meditao precedente - se bem

    encampe algumas simplificaes representativas daquela atitude -, mas reserva a maior

    parte de suas esperanas ao futuro. Ao mesmo tempo, deixa-se impressionar pela

    hiptese de Francovich, segundo a qual haveria uma histria da criao filosfica e

    outra da assimilao, nas diferentes pocas, de um povo e o seu quociente de

    sensibilidade espiritual -, hiptese que reflete uma abordagem meramente professoral

    do tema. Os pensadores brasileiros dignos desse nome - e que no so poucos - guardam

    diante da filosofia posio bem diversas. Movem-nos problemas concretos, em geral de

    fundo tico, e para solucion-los que buscam inspirar-se no acervo acumulado pelos

    outros povos, nosso comum patrimnio. A chamada cultura ornamental, presente em

    certas fases da evoluo cultural do Ocidente, que retrata com justeza determinados

    perodos da formao de algumas de nossas figuras representativas - e at de grupos

    inteiros em muitos ciclos -, est bem longe de corresponder ao essencial do processo.

    Essa nova compreenso a que se chegou - inclusive pela mo de Washington Vita -

    apenas se insinuava em seus escritos juvenis.

    Mesmo no ensaio de 1957, onde procura demonstrar que o pensamento brasileiro

    ascende universalidade do saber filosfico atravs de problemas que lhe so prprios e

    peculiares, nisto consistindo a sua originalidade, ainda encampa a apreciao negativada fase histrica em que predominou no pas o ecletismo espiritualista. Falta-lhe a

    considerao daquele elo capaz de evidenciar a ausncia de gratuidade na adeso s

    doutrinas popularizadas por Victor Cousin - aquele momento olvidado, para usar a

    feliz expresso de Miguel Reale - e que consiste na obra de Silvestre Pinheiro Ferreira,

    por sinal inteiramente ignorado pelos representantes da tendncia participante, referidos

    anteriormente.

    8A Filosofia no Brasil. So Paulo: Martins, 1950. p. 77.

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    Os trabalhos da dcada de sessenta objetivam mais que nada chamar a ateno

    para o pensamento brasileiro e seu significado. Coroam-se pela Antologia do

    pensamento social e poltico no Brasil, que rene textos de mais de cinqenta

    pensadores, a partir do perodo colonial. Conseguiu o autor desincumbir-se da tarefa

    combinando as exigncias de ordem temtica com o propsito de familiarizar o leitor

    com as bases em que se apiam. A inspirao fundamental reside na pressuposio de

    que a via de acesso mais fecunda compreenso de nosso pensamento poltico-social

    reside na considerao privilegiada da corrente filosfica inspiradora em cada poca.

    Embora se haja furtado a qualquer Introduo geral (que teria por finalidade,

    segundo escreve, destacar os principais temas e localizar os autores elencados numa

    perspectiva de conjunto; p. 13), Lus Washington Vita imaginava que a Antologiairia

    comprovar a existncia de uma permanente disputa entre saber de salvaoe saber de

    ilustrao, conforme o declara logo adiante. Essa idia aparece com insistncia em

    diversos dos breves tpicos introdutrios aos captulos e autores, tendo sido transposta

    para a Pequena Histria da Filosofia.

    A hiptese de colocar o saber de salvao como ponto de partida da meditao

    brasileira parece deveras fecunda. O mesmo, entretanto, no se pode dizer do tratamento

    da Escolstica como um movimento nico e muito menos da suposio de que

    predisporia, nos perodos ulteriores, a uma atitude no s conservadora como,

    sobretudo, reacionria, a partir apenas da aceitao do primado da teologia sobre a

    filosofia.

    A Escolstica Portuguesa no pode ser reduzida a uma s bitola, desde que os

    grandes pensadores do sculo XVI esto mais prximos do entendimento da metafsica

    como saber autnomo e, portanto, do pensamento moderno - que da reintroduo do

    tomismo, efetivada posteriormente. Por isto mesmo Joaquim de Carvalho sugeriu, para

    a ltima, a denominao de Segunda Escolstica Portuguesa, hoje consagrada.No caso brasileiro, parece correto identificar Segunda Escolstica e saber de

    salvao, desde que qualificado da forma indicada na parte inicial destaIntroduo. Os

    pensadores selecionados por Lus Washington Vita e reunidos sob essa rubrica so

    tpicos do estado de esprito erigido a partir da acepo inteiramente negativa da pessoa

    humana.

    certo, por outro lado, que as caractersticas dessa acepo condicionaram o

    empenho de super-lo. Washington Vita destaca o essencial ao definir o saber deilustrao como de confiana no do homem, de reconhecimento de sua finitude e

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    com a nfase nos problemas, mas, de todos os modos, suficientemente explcitas -

    foram apresentadas por Armando Correia Pacheco ao intervir no debate acerca da

    introduo do ensino da disciplina na Universidade brasileira.9 A seu ver, o

    procedimento correto consiste na adoo do critrio ideolgico. Alis, autor de estudo

    paradigmtico sobre a Escola do Recife, considerada como manifestao do

    evolucionismo. Contudo, o trabalho mais completo desse ponto de vista da lavra de

    Antonio Gomes Robledo (La filosofia en el Brasil, Mxico. 1946).

    Geraldo Pinheiro Machado tambm prefere esse procedimento. Assim, em seu

    livro A filosofia no Brasil (1976) examina sucessivamente o ecletismo, o tomismo, o

    positivismo, o evolucionismo e, englobadamente, as correntes mais destacadas do ciclo

    posterior primeira guerra mundial. A exemplo dos demais estudos compreensivos, os

    autores esto colocados em seus respectivos momentos histricos e submetidos a anlise

    serena e respeitosa.

    Desde a primeira edio - aparecida em 1961, como complemento Histria da

    Filosofia de J. Hirschberger - declara expressamente ter abandonado a linha tradicional

    da historiografia filosfica brasileira, aqui denominada de participante, quanto a estes

    aspectos: 1) ao propsito de procurar a originalidade dos escritores de filosofia,

    entendida como inveno mais ou menos espetacular de coisas no antes formuladas;

    e, 2) vontade de manifestar-se a favor ou contra, parecendo-nos que s

    excepcionalmente interessa histria esse tipo de pronunciamento do historiador,

    interessando antes as teses e os temas os objetos de inteligncia apreendidos por ele no

    material de que dispe.

    Adverte tambm quanto ao carter limitado das interpretaes, no pretendem

    ocupar o lugar da obra dos autores estudados, ao afirmar Seu papel, de resto, no

    consiste em substituir-se aos textos originais, mas, ao contrrio, em encaminhar para

    eles o leitor. As perspectivas que o historiador estabelece, portanto, e as selees quepratica no material documentrio de que se serve ficaro a descoberto, para serem

    revistas e criticadas pelo leitor.

    Os estudos compreensivos esto voltados, na maioria dos casos, para as correntes

    e autores isolados. Puderam, entretanto, ser sintetizados numa obra coletiva coordenada

    9A filosofia no Brasil como disciplina universitria. (Revista Brasileira de Filosofia, So Paulo, v. 78, n.

    20, p. 219-221, abr./jun. 1970.

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    por Adolpho Crippa. Trata-se da coletneaAs idias filosficas no Brasil, aparecida no

    de 1978, editada pela Convvio, em trs volumes.

    O primeiro volume est dedicado aos sculos XVIII e XIX, com ensaios de

    Arruda Campos (perodo colonial), Paulo Mercadante (ecletismo), Nelson Saldanha

    (Escola do Recife), Roque Spencer Maciel de Barros (positivismo), Ubiratan Macedo

    (pensamento catlico), D. Odilo Moura OSB (iluminismo) e Miguel Reale (kantismo);

    Os ensaios indicados so precedidos de uma introduo, de Adolpho Crippa, em que

    analisa a reflexo filosfica brasileira no contexto mais amplo da meditao sobre a

    cultura.

    Os dois volumes subseqentes abrangem o sculo XX, achando-se estudadas a

    corrente culturalista (Antnio Paim), o pensamento de Farias Brito (Carlos Lopes de

    Mattos), o pensamento catlico (D. Odilo Moura OSB), a filosofia do direito (A. L.

    Machado Neto), a filosofia da educao (Creusa Capalbo), o pensamento esttico

    (Benedito Nunes) e a lgica e a filosofia da cincia (Lenidas Hegenberg).

    A iniciativa de Adolpho Crippa corresponde ao coroamento do trabalho

    desenvolvido nos decnios anteriores. No no sentido de dar por concluda a tarefa, mas

    como uma prova dos grandes progressos registrados num perodo relativamente curto.

    O livro de Aquiles Crtes Guimares, publicado em 1997, que modestamente

    intitulou de Pequenos estudos de filosofia brasileira, evidencia como o tema passou a

    interessar s principais correntes de filosofia existentes no pas. Os culturalistas, entre

    os quais me incluo, desempenharam na matria papel inquestionavelmente pioneiro, no

    sentido de difundir entre ns uma atitude compreensiva diante da meditao precedente,

    baseada em metodologia rigorosamente estruturada. Os neotomistas, to bem

    representados por Urbano Zilles, esto hoje inteiramente distanciados do esprito

    inquisitorial que presidiu a anlise de pe. Leonel Franca (1896-1948). Entre os

    catlicos, essa atitude de modo algum exclusiva dos neotomistas, bastando referirUbiratan Macedo (orteguiano que verdadeiramente revolucionou o estudo da filosofia

    brasileira no sculo passado) ou Joo de Scantimburgo (blondeliano). No tempo em que

    a filosofia analtica era representada por intelectuais de formao humanista, como

    Lenidas Hegenberg, tampouco partia da suposio de que estaria atuando num vazio

    ansioso de receber novas luzes. Presentemente, a exemplo do que ocorre com o

    marxismo-positivista, sua liderana volta-se para o prprio umbigo, no fundo apenas

    aspirando tornar-se herdeira da verso positivista do marxismo, francamente exaurida.

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    Acrescente-se que o mbito da corrente fenomenolgica em que se integra,

    Aquiles Crtes Guimares no uma voz isolada. A maior figura dessa corrente, Creusa

    Capalbo, tambm est atenta ao que ocorre no pas.

    Os Pequenos estudos de filosofia brasileira constituem valiosa contribuio ao

    entendimento da singularidade da proposta fenomenolgica na anlise da meditao

    brasileira. Esprito metdico, rigoroso consigo mesmo, Aquiles Crtes Guimares no

    considera este livro como a formulao definitiva a que aspira. Como esse tipo de

    formulao, no caso da filosofia, dificilmente pode ocorrer, no temos porque nos

    sentirmos solidrios com o autor.

    Na proposta culturalista, o verdadeiro enunciado da temtica prpria da filosofia

    brasileira - como objeto autnomo em relao filosofia portuguesa - comea com a

    crtica de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) ao empirismo mitigado, tornado

    filosofia oficial em Portugal a partir das reformas pombalinas. Essa crtica encaminhou-

    se na direo do conceito de liberdade, vindo a configurar um primeiro momento da

    filosofia brasileira em que o homem considerado daquele ngulo, isto , com

    liberdade. A temtica da liberdade no sculo XIX veio a merecer um estudo definitivo

    de Ubiratan Macedo.10 At onde a pesquisa desse ciclo permitiu conduzir, a partir de

    Tobias Barreto (1839-1889) muda o enfoque, passando a dominar o interesse pelo

    homem como conscincia.

    Ora, a conscincia justamente o tema privilegiado da fenomenologia. Como

    aplicar essa hiptese ao conjunto da meditao sem violent-la ou tornar o seu exame

    mero expediente para a difuso das prprias idias, a exemplo do que ocorria com o que

    ele se denominou de tendncia participante (Silvio Romero, Franca e Cruz Costa)?

    Como fazer do mtodo fenomenolgico um procedimento heurstico e enriquecedor da

    compreenso da filosofia brasileira? Esquematicamente essa questo que tem

    mobilizado Aquiles Crtes Guimares desde os anos setenta, a partir de seus estudossobre Farias Brito (1863-1917). So mais ou menos vinte anos de anlises e pesquisas,

    no intervalo dos quais publicou alguns livros onde a questo suscitada, a saber: Farias

    Brito e as origens do existencialismo no Brasil(1 ed. 1979; 2 ed. 1984); Momentos do

    pensamento luso-brasileiro (1961) e O tema da conscincia na filosofia brasileira

    (1982).

    10Publicado em 1977 com o ttulo de A liberdade no Imprio, apareceu, em 1997, numa edio revista,

    com o ttulo deA idia de liberdade no sculo XIX: o caso brasileiro(Rio Ed. EXPED).

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    A reunio em livro do grande nmero de ensaios que tem ao tema era uma

    providncia que se impunha. Afinal, como diz a sabedoria popular, da discusso que

    nasce a luz.

    Como seria de esperar, o projeto de Aquiles Crtes Guimares encontrou campo

    mais propcio no perodo subseqente a Farias Brito, quando h inequvoca confluncia

    entre as preocupaes de Husserl e a dos filsofos brasileiros. Assim, so deveras

    enriquecedoras da pesquisa anterior o exame da presena do cientificismo naquele

    perodo; o confronto entre Farias Brito e Antero de Quental, bem como a aproximao

    sucessiva, que vem empreendido, das vrias facetas do pensamento de Miguel Reale,

    tudo considerado de uma perspectiva fenomenolgica. Nesse conjunto, destacaria ainda

    os estudos sobre a situao da filosofia no Estado Novo, a avaliao do legado de

    lvaro Vieira Pinto, a presena dos orteguianos entre ns, o posicionamento em face do

    papel dos franceses no desenvolvimento da fenomenologia, bem como o registro da

    presena desta ltima vertente em nossa atualidade. Para dar um exemplo de como o

    exame da questo de ngulo novo, vale dizer, do ngulo da fenomenologia, no altera a

    atitude compreensiva nessas anlises, que tem sido cultivada neste ps-guerra, indico

    como aprecia a contribuio de Ortega y Gasset para a nossa meditao contempornea:

    Essa abertura do pensamento orteguiano para uma nova viso da cultura e da histria,

    avessa concepo cientfico-natural do mundo, era um convite aos novos horizontes

    do existencialismo e do culturalismo em geral. Em sntese, as idias de Ortega

    facilitaram o trnsito de vrios intelectuais brasileiros do pensamento catlico-

    conservador ao universo do historicismo culturalista, no comprometido com o

    materialismo. Assinala ainda que o contato com o pensamento de Ortega y Gasset no

    levou os que o fizeram a distanciar-se da cultura brasileira (muito ao contrrio,

    acrescentaria).

    Suponho que Aquiles Crtes Guimares considera que este livro no seria ainda averso definitiva da anlise da evoluo da filosofia brasileira numa perspectiva

    fenomenolgica, inteiramente diferenciada da verso culturalista. Talvez porque lhe

    falte exame detido da Escola Ecltica e dos seus antecedentes imediatos. Contudo, os

    textos sobre a filosofia nos sculos iniciais da colonizao e a anlise do ltimo livro de

    Gonalves de Magalhes (1811-1882) Comentrios e pensamentos (1880) - podem

    representar uma primeira indicao do sentido de que se pode revestir essa investigao.

    At onde posso perceber, Aquiles Crtes Guimares pretende reunir o longo perodosobre a gide da problemtica relacionada conscincia religiosa.

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    Trata-se naturalmente de uma idia ambiciosa e complexa, mas certamente na qual

    vale a pena investir. A seu ver, as limitaes da filosofia colonial no se devem ao fato

    de desenvolver-se na atmosfera do sagrado, mas em ter consistido basicamente numa

    espcie de conscincia reflexo, isto , no novo ambiente, os intelectuais portugueses -

    emigrados para o Brasil ou que se formaram entre ns, a exemplo de Vieira, segundo

    toda evidncia to cultos quanto seus mestres - chegaram a questionar a meditao para

    aqui transplantada.

    A esse propsito vale a pena registrar o que concluiu, ao balancear a vivncia

    norte-americana, no mesmo perodo, o professor Richard McKeon, da Universidade de

    Chicago. A seu ver, o balano da meditao precedente, seguindo a trilha aberta por

    William James e Dewey, permitiu descobrir o verdadeiro carter do ensino religioso nos

    colgios universitrios e seminrios, nos sculos de formao da nacionalidade. Ao

    contrrio do que se supunha, o propsito no consistiria apenas em formar os pastores

    incumbidos de divulgar a nova verdade, segundo os ensinamentos dos mestres

    puritanos. Esta educao - prossegue - era tambm a expresso e a justificao do

    modo de vida adotado por certos homens no Novo Mundo, que esses homens

    elaboraram por si mesmos sob a influncia das condies novas; e a investigao

    filosfica dos princpios de uma tal existncia ocupava uma posio maior do que

    supem os historiadores, quando negligenciam as controvrsias teolgicas e polticas da

    poca para investigar testemunhos mais objetivos sobre o seu modo de vida.11

    Segundo McKeon, o mrito do pragmatismo consistiu justamente em permitir que essa

    tradio se consolidasse, numa filosofia que, embora deitando suas razes na matriz

    inglesa, tornou-se plenamente diferenciada, vale dizer, autenticamente norte-americana,

    o que tambm explica o seu significado universal.12

    11O texto de McKeon foi publicado na dcada de cinqenta numa obra coletiva, patrocinada pela Unesco,

    em diversas lnguas. Examinei a verso francesa:L'enseignement de la philosophie dans l'universit. Une

    enquete internacionale de l'Unesco. Paris, 1953. No caso, coube a McKeon deter-se sobre o exemplo

    americano.

    12 Os estudiosos da filosofia norte-americana no presente concluem que o ciclo de predominncia da

    filosofia analtica (acidente de percurso devido emigrao para os Estados Unidos das grandes figuras

    do Crculo de Viena, que ocuparam as principais ctedras) esteja em vias de superao pelo que tem sido

    denominado de neopragmatismo.

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    De sorte que competiria dar continuidade pesquisa dos sculos iniciais,

    notadamente quando no parece ter havido a alegada uniformidade. Carlos Lopes de

    Mattos deixou-nos valiosas indicaes quanto presena do platonismo.13

    No ensaio sobre Gonalves de Magalhes, Aquiles Crtes Guimares d-nos esta

    indicao: A nfase colocada na ordem sobrenatural em grande parte obscureceu a sua

    extraordinria vocao especulativa que poderia t-lo colocado acima de muitas figuras

    de sua poca, que lograram registro na histria da filosofia como mestres de sua

    gerao.

    No tomando a conscincia como instncia ltima da possibilidade de constituio

    do mundo - em tudo concilivel com a intuio de. Deus - o pensador brasileiro acaba

    por reafirmar a permanncia de um dualismo que nos ltimos anos de sua existncia

    histrica se mostrava to insuficiente quanto a fsica aristotlica no sculo XVIII.

    Como se v talvez a problemtica relacionada conscincia religiosa possa

    proporcionar o fio condutor de uma nova viso da filosofia brasileira, no ciclo anterior

    quele em que parece evidente a prevalncia do interesse da considerao do homem

    como conscincia.

    A Editora da UEL tomou a iniciativa de reunir em livro todos os estudos que o

    filsofo portugus Antnio Braz Teixeira tem realizado de autores brasileiros (Espelho

    da razo. Estudos sobre o pensamento filosfico brasileiro, Londrina, 1997), a saber:

    Gonalves de Magalhes, Tobias Barreto, Silvio Romero, Farias Brito, Vicente Ferreira

    da Silva e Miguel Reale.

    Braz Teixeira parte destes pressupostos: 1) os estudiosos brasileiros no

    incluram entre as suas preocupaes as questes relacionadas teologia; e, 2) acha

    pouco relevante averiguar como nos situamos em face das correntes de filosofia

    emergentes nos dois ltimos sculos e que aqui repercutiram.

    Para diz-lo com suas prprias palavras: I) A hermenutica do pensamentofilosfico brasileiro de oitocentos, concentrada, at hoje, quase exclusivamente nas

    questes ticas e polticas e nos problemas antropolgicos, tem ignorado, desatendido

    ou deixado quase inteiramente na sombra a considerao do modo como os filsofos

    brasileiros do sculo XIX se defrontaram com as interrogaes fundamentais da

    teodicia racional, a comear pela prpria idia de Deus; e, II) desaprova

    13Revista Brasileira de Filosofia, v. 20, n. 78, p. 222-225, abr./jun. 1970; texto reproduzido in Moralistas

    do sculo XVIII. Rio de Janeiro: Documentrio, 1979.

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    francamente... a preocupao em tornar patentes as possveis influncias de filsofos

    ou correntes de pensamento oriundos de outros pases ou de outras filosofias ou a maior

    ou menor integrao dos pensadores brasileiros em escolas ou tendncias pretensamente

    universais ou internacionais....

    Quando Braz Teixeira se refere hermenutica do pensamento filosfico

    brasileiro tem em vista precisamente a metodologia elaborada pelo prof. Miguel Reale

    e desenvolvida por grande nmero de seus discpulos, entre os quais me incluo. Embora

    no tenha procurao para falar em nome desse grupo, creio que (pelo menos em sua

    maioria), no apenas deixa de interessar-se por teologia como inclusive no v nenhum

    sentido nesse tipo de especulao. Aprendemos com Tobias Barreto que Deus deve ser

    objeto de amor e no de cincia. A chamada idia de Deus, buscada por alguns

    pensadores portugueses, uma questo religiosa de foro ntimo que no cabe estar

    sendo exibida. Alm do mais, os autores que se ocuparam de teologia so outros e

    certamente mereceriam ser estudados por aqueles que atribuem relevncia ao tema e

    acreditam na possibilidade de uma tal disciplina. Francisco Pinheiro Lima Junior

    inventariou os telogos baianos e Evaristo de Moraes Filho, ao deter-se no ensino da

    filosofia no Brasil, destacou a obra teolgica do Padre Penido (RBF, n.153, 1984).

    Quanto ao desinteresse em relao ao curso histrico da filosofia, a que Braz

    Teixeira nega qualquer valor universal, trata-se de uma posio de muito difcil

    sustentao. No fundo, o autor quer simplesmente recusar o kantismo, justamente uma

    de nossas principais tradies, o que parece no haver ocorrido em Portugal.

    Porm, Braz Teixeira no reflete o curso real da meditao portuguesa, na medida

    em que deixa de levar em conta que a nota distintiva da filosofia portuguesa

    contempornea consiste no vigor alcanado pelo movimento fenomenolgico, do

    mesmo modo que pelo neopositivismo.

    Uma palavra sobre sua convico de estar trilhando o caminho certo paradescobrir o verdadeiro rosto da filosofia luso-brasileira. Como procuro indicar no

    livroAs filosofias nacionais, essa investigao requer uma metodologia acerca da qual

    no conseguimos at o presente nenhum consenso. A soluo de Braz Teixeira para o

    magno problema corresponde a uma posio valorativa. A filosofia luso-brasileira deve

    privilegiar a questo de Deus. Na historiografia filosfica brasileira passamos do campo

    daqueles que procuraram dizer como deveria ser (postulao que batizamos de

    participante) para uma investigao direcionada para descobrir como as coisas defato se passaram, parodiando Ranke.

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    Antnio Braz Teixeira sem favor um dos principais filsofos europeus do

    direito, com uma obra cujo significado tem sido amplamente reconhecido. No tocante

    filosofia geral, contudo, sem dvida capitulou diante do seu esprito religioso. A

    divergncia que aqui procuro explicitar nada tem a ver com a amizade, o respeito e

    admirao que lhe tributamos - acreditando, nesse particular, expressar tambm a

    opinio do prof. Reale. Por isto mesmo fiz questo que escrevesse o prefcio do

    mencionado livro sobre filosofias nacionais, a fim de que indicasse, no lugar prprio,

    onde situa a nossa discordncia e como defende os prprios pontos de vista.

    Nos Encontros de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira, que se

    realizam em Londrina, a cada dois anos, sob a coordenao de Leonardo Prota, Jos

    Maurcio de Carvalho tem se incumbido de balancear a pesquisa. Ao mesmo tempo,

    dele tem sido exigido que apontasse lacunas e sugerisse temas para assegurar a

    continuidade da investigao. Nesse trabalho sucessivo concluiu que as geraes

    contemporneas de estudiosos conseguiram aprofundar o conhecimento, de modo

    satisfatrio, dos principais ciclos e autores. O que, obviamente, no significa inexistam

    aspectos a pesquisar. Muito ao contrrio, a investigao reveste-se de crescente

    complexidade, o que por sua vez impe aprimoramento dos mtodos que se tm

    revelado eficazes. Para dar notcia de toda essa temtica publicou Contribuio

    contempornea histria da filosofia brasileira(1998).

    Jos Maurcio de Carvalho aponta aqueles que seriam os principais estudiosos

    contemporneos da filosofia brasileira, alm daqueles que tambm mereceriam ser

    mencionados em destaque. Como inevitvel em empreitada desse porte, h algumas

    omisses. Creio que o melhor entendimento da Escola Ecltica muito deve a Tiago

    Ado Lara. Neste particular, a distino fixada por Ubiratan Macedo entre

    conservadorismo liberal e tradicionalismo sem dvida fundamental. Graas a Dinorah

    Berbert de Castro, Joo Alfredo Montenegro e Cassiano Cordi, alm naturalmente dosmencionados Ubiratan Macedo e Tiago Ado Lara, passamos a dispor de uma viso

    bastante completa do tradicionalismo. O inventrio da produo filosfica estadual

    mobiliza grupo expressivo (Francisco Pinheiro, Jos Carlos Rodrigues, Jackson da Silva

    Lima, Joo Alfredo Montenegro, entre outros). Cabe destacar ainda o esforo

    desenvolvido por Aquiles Cortes Guimares para enfocar a meditao brasileira do

    ponto de vista fenomenolgico. Sem embargo, Jos Maurcio de Carvalho produziu

    bibliografia ampla e certamente completa.

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    luz das pesquisas efetuadas, no mais se admite hoje que o momento dos

    jesutas, na Colnia, isto , dos primrdios da colonizao aos meados do sculo XVIII,

    possa ser entendido, em matria de filosofia, como de predomnio de uma nica

    corrente. Carlos Lopes de Mattos, aps exame dos manuscritos preservados pelos

    beneditinos, conclui ter-se configurado, nessa Ordem, certa tradio platnica.2

    A unidade parece consistir no primado da meditao de cunho tico-religioso,

    segundo se pode inferir do circunstanciado levantamento bibliogrfico realizado por

    Rubens Borba de Moraes.3 At os comeos da segunda metade do sculo XVIII, a

    produo de autores brasileiros equivale a cerca de duzentos ttulos. As obras literrias,

    de cunho histrico ou descritivas, bem como as de ndole didtica, tcnica ou filosfica,

    oscilam em torno de trinta. Toda a parcela restante poderia ser agrupada como

    apologtico-religiosa, em sua maioria na forma de sermes. As pesquisas do mesmo

    autor permitem ainda evidenciar o contraste flagrante entre o ciclo considerado e o que

    se seguiu Reforma da Universidade, levada a cabo em 1772, porquanto neste ltimo

    perodo predominam os textos de carter cientfico, elaborados em consonncia com a

    maneira pela qual a intelectualidade luso-brasileira apreendeu o novo tipo de saber, isto

    , como algo de ndole operativa.

    Em relao ao tipo de meditao vigente no momento dos jesutas, consagrou-se a

    denominao de saber de salvao, sugerida por Lus Washington Vita.4

    Vita inspirou-se em Max Scheler, que havia proposto esta classificao: saber

    tcnico; saber culto (cincia e filosofia) e saber de salvao (que no se refere a este

    mundo, mas ao outro, tendo por fim a divindade). Dessa classificao adotou apenas o

    saber de salvao, destinando-o a caracterizar aqueles pensadores de formao

    escolstica ou de tendncia mstica, ou outros, cuja especulao filosfica ou teolgica

    se acha dentro dos dogmas sendo a filosofia mera ancilla theologiae. Na Antologia

    Social e Poltico no Brasil o conceito de saber de salvao aplicado ao pensamentocolonial, contrapondo-o, no perodo, ao que denominou de saber de ilustrao.

    Contudo, na Pequena Histria da Filosofia (1968), Vita pretendeu generalizar essa

    2Estudos publicados naRevista Brasileira de Filosofia, v. 20, n. 78 e v. 22, n. 85.

    3Bibliografia Brasileira do Perodo Colonial. So Paulo : Instituto de Estudos Brasileiros, 1969.

    4 Veja-se, desse autor, Antologia do Pensamento Social e Poltico no Brasil. Washington/So Paulo:

    Unio Pan-Americana/Grijalbo, 1968. p. 17-38.

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    dicotomia para toda a evoluo posterior do pensamento hiptese que no logrou

    aceitao pelas razes que indiquei na precedente Parte I. Aplicada ao perodo colonial,

    ora considerado, revelou-se extremamente fecunda. A propsito do debate ento

    suscitado, sugeri que fosse caracterizado nesses termos: O elemento definidor consiste

    no desprezo do mundo, da maneira como o entendia Lotario de Segni. O mundo aqui

    identificado com a dimenso corprea, na qual se integra o prprio homem. Concebe-se

    a este como ser corrompido precisamente pela circunstncia.

    O mundo no estaria a para que os homens nele erigissem algo digno da glria de

    Deus, como nos primrdios do protestantismo em geral e no puritanismo em particular -

    mas para tent-lo. Desse modo, a resistncia tentao equivale ao comportamento

    tico por excelncia.

    transitoriedade da tentao ope-se a eternidade da salvao.

    Tais so os ingredientes fundamentais do saber de salvao. Alm do que se disse,

    tem a peculiaridade de gerar um estado de esprito muito diverso da vivncia do

    religioso de nossos dias, no sentido seguinte: trata-se de um projeto existencial cuja

    validade diretamente proporcional ao seu grau de exteriorizao. No fora o homem

    quase impotente diante do pecado, quando entregue a si ; pudesse assimilar, sem

    resistncia, o que , na verdade, a prpria conscincia culpada, seu resultado seria uma

    comunidade de ascetas ou penitentes. Como esse desfecho no ocorre de modo

    espontneo, os que ascendem ao saber de salvao devem erigir-se em modelo e

    configurar a sociedade sua imagem.

    Precisamente o saber de salvao informa a denominada Segunda Escolstica

    Portuguesa. No caso brasileiro, essa fase legou-nos a manifestao radical expressa no

    Peregrino da Amrica, para quem o homem um vil bicho da terra e um pouco de

    lodo.5

    Na coleo Textos Didticos do Pensamento Brasileiro, organizada e dirigida pelaprof. Celina Junqueira, Anna Maria Moog Rodrigues reuniu a parcela essencial dos

    documentos relativos ao perodo indicado, a saber: textos escolhidos de Nuno Marques

    Pereira (1652-1735) e Feliciano Joaquim de Souza Marques (1730-1808),

    representativos da meditao de cunho moral; o levantamento de Carlos Rizzini sobre

    obras publicadas e inditos; a conferncia de Alcides Bezerra; e o estudo de Carlos

    5A. Paim, op. cit., p. 23.

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    ltimas que Verney contrape a fsica newtoniana e a teoria empirista do

    conhecimento, Justamente o que parece estar ausente do saber de salvao. Neste,

    competiria fazer uma caracterizao mais refinada das obras arroladas.

    O prof. Eduardo Soveral tambm de parecer que as pesquisas levadas a cabo por

    Carlos Lopes de Mattos, cujos textos figuram na preparada por Anna Maria Moog

    Rodrigues, ganhariam luz se tivessem continuidade com o propsito de averiguar seus

    vnculos com a polmica dos neoplatnicos renascentistas contra os aristotlicos.

    A HERANA POMBALINA

    Sebastio Jos de Carvalho e Melo (1699-1782), o famoso Marqus de Pombal,

    pretendeu efetivar uma ruptura radical com a tradio da cultura portuguesa. Ps fim ao

    domnio da filosofia escolstica e expulsou aos jesuta