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Web-Revista SOCIODIALETO www.sociodialeto.com.br Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 Volume 6 Número 17 Novembro 2015 NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 250 O JOGO DE IMAGENS NA CONSTITUIÇÃO DOS SUJEITOS DISCURSIVOS: UMA ABORDAGEM IDEOLÓGICA E SOCIOPOLÍTICA EM CARTUNS Vanessa Raquel Soares Borges (UFPI) 1 [email protected] Francisco Renato Lima (UFPI) 2 [email protected] João Benvindo de Moura (UFPI) 3 [email protected] RESUMO: A constituição da imagem no gênero cartum está alicerçada por ideais sociopolíticos e também ideológicos e é marcada por momentos muitas vezes memoráveis na história de um país. Desse modo, neste estudo os cartuns selecionados como arquivo para análise são de autoria de Angeli e foram coletados do Jornal Folha de S. Paulono período de junho de 2013 e têm como tema principal as manifestações populares que eclodiram no Brasil. O suporte teórico-analítico constitui-se das contribuições epistemológicas de Michel Pêcheux, introdutor da então disciplina Análise do Discurso (AD), versando sobre os princípios da materialidade discursiva, o interdiscurso. Na análise, percebe-se que os cartuns reportam a inscrição, no discurso, dos ideais sociopolíticos de sujeitos em um momento marcante na composição ideológica brasileira observada nos protestos, mostrando como os efeitos de sentido formulam a construção das imagens dos sujeitos discursivos inscritos em redes de memória. PALAVRAS CHAVE: Jogo de imagens. Cartum. Sujeito. Efeitos de sentidos. ABSTRACT: The formation of the image of the cartoon genre is based on socio-political ideals and also ideological and is marked by moments often memorable in the history of a country. This way, in this study the cartoons selected as file for analysis are authored Angeli and were collected from the newspaper Folha de S. Paulo, between June 2013 and have as its main theme the popular demonstrations that erupted in Brazil. The theoretical, analytical and epistemological contributions is based on Pêcheux, then the introducer Discourse Analysis discipline (AD), dealing with the principles of discourse materiality, interspeech. In the analysis, we can see that the cartoons report the inclusion in the speech, socio-political ideals of subjects in a remarkable moment in the Brazilian ideological composition observed in the protests, showing the effects of meaning that formulate the construction of images of the enrolled subjects in discursive that are fixed in memory. KEYWORDS: Relation of Images. Cartoons. Subject. Effects of meanings. 1 Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Especialista em Linguística e Ensino (UESPI). Mestranda em Letras Estudos da Linguagem (UFPI). 2 Graduado em Pedagogia (FSA). Especialista em Neuropsicopedagogia Clínica e Educação Especial (IESM). Especialista em Docência para o Ensino Superior (IESM). Especialista em Educação a Distância (UNOPAR). Mestrando em Letras Estudos da Linguagem (UFPI). 3 Professor Doutor do Departamento de Letras e do Mestrado em Letras Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

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NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 250

O JOGO DE IMAGENS NA CONSTITUIÇÃO DOS SUJEITOS

DISCURSIVOS: UMA ABORDAGEM IDEOLÓGICA E

SOCIOPOLÍTICA EM CARTUNS

Vanessa Raquel Soares Borges (UFPI)

1

[email protected]

Francisco Renato Lima (UFPI)

2

[email protected]

João Benvindo de Moura (UFPI) 3

[email protected]

RESUMO: A constituição da imagem no gênero cartum está alicerçada por ideais sociopolíticos e

também ideológicos e é marcada por momentos muitas vezes memoráveis na história de um país. Desse

modo, neste estudo os cartuns selecionados como arquivo para análise são de autoria de Angeli e foram

coletados do Jornal “Folha de S. Paulo” no período de junho de 2013 e têm como tema principal as

manifestações populares que eclodiram no Brasil. O suporte teórico-analítico constitui-se das

contribuições epistemológicas de Michel Pêcheux, introdutor da então disciplina Análise do Discurso

(AD), versando sobre os princípios da materialidade discursiva, o interdiscurso. Na análise, percebe-se

que os cartuns reportam a inscrição, no discurso, dos ideais sociopolíticos de sujeitos em um momento

marcante na composição ideológica brasileira observada nos protestos, mostrando como os efeitos de

sentido formulam a construção das imagens dos sujeitos discursivos inscritos em redes de memória.

PALAVRAS CHAVE: Jogo de imagens. Cartum. Sujeito. Efeitos de sentidos.

ABSTRACT: The formation of the image of the cartoon genre is based on socio-political ideals and also

ideological and is marked by moments often memorable in the history of a country. This way, in this

study the cartoons selected as file for analysis are authored Angeli and were collected from the newspaper

“Folha de S. Paulo”, between June 2013 and have as its main theme the popular demonstrations that

erupted in Brazil. The theoretical, analytical and epistemological contributions is based on Pêcheux, then

the introducer Discourse Analysis discipline (AD), dealing with the principles of discourse materiality,

interspeech. In the analysis, we can see that the cartoons report the inclusion in the speech, socio-political

ideals of subjects in a remarkable moment in the Brazilian ideological composition observed in the

protests, showing the effects of meaning that formulate the construction of images of the enrolled subjects

in discursive that are fixed in memory.

KEYWORDS: Relation of Images. Cartoons. Subject. Effects of meanings.

1 Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Especialista em Linguística e Ensino

(UESPI). Mestranda em Letras – Estudos da Linguagem (UFPI). 2 Graduado em Pedagogia (FSA). Especialista em Neuropsicopedagogia Clínica e Educação Especial

(IESM). Especialista em Docência para o Ensino Superior (IESM). Especialista em Educação a Distância

(UNOPAR). Mestrando em Letras – Estudos da Linguagem (UFPI). 3 Professor Doutor do Departamento de Letras e do Mestrado em Letras – Estudos da Linguagem da

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1 INTRODUÇÃO

A Análise do Discurso (AD) é uma disciplina que se configura na década de

1960, na França, a partir das contribuições de Jean Dubois e Michel Pêcheux. Com a

intenção de expandir a ciência Linguística, segundo Orlandi (1997), ambos os autores,

apesar de terem enfoques diferentes, assemelhavam-se por partilharem preocupações

com a luta de classes, sobre a história e os movimentos sociais. Nesse ínterim, uma

disciplina que tem como objeto de estudo o discurso se apresenta como necessária, visto

que o estruturalismo já se encontrava em um desgaste explícito.

Então, com a publicação da Análise automática do discurso, em 1969, Pêcheux

insere no plano da análise do discurso as noções de sujeito e ideologia. Seu

posicionamento se fundamenta associado de maneira clara ao materialismo de Louis

Althusser e sua concepção é norteada posteriormente por Michel Foucault, através do

pressuposto sobre Formações Discursivas. Com essa obra, Pêcheux lança um programa

com uma abordagem teórico-prática e evoca a concepção de maquinaria discursiva, no

qual o discurso era definido e determinado sempre em uma relação com a história e a

construção do corpus era associada ao discurso.

Assim, através dessa elucidação sobre a AD, neste estudo busca-se perceber o

papel do discurso na constituição do sujeito, a partir da elaboração de cartuns em um

período referente às manifestações ocorridas em junho de 2013 e os efeitos de sentido

suscitados, partindo-se da noção do quadro imagético de Pêcheux (1990) que mostra a

formulação da identidade dos sujeitos enunciativos, a imagem que fazem do outro, dele

mesmo e do que é enunciado. Esta análise se mostra relevante haja vista ser objeto de

estudo da AD o sujeito em um espaço de tempo e o sentido que o discurso adquire em

um determinado contexto, levando-se em conta a realidade social-político-ideológica

nas quais está inserido (FERNANDES, 2008).

O cartum é um dos meios de comunicação que mais representa a opinião

popular, por meio de recursos verbais e não-verbais. Neste caso, os arquivos utilizados

para a análise são as charges retiradas do Jornal “Folha de S. Paulo”, por ser este

veículo de informação um dos mais respaldados do país. A coletagem dos arquivos deu-

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se no período de junho de 2013, visto que foi o momento em que eclodiam no país as

reivindicações sobre o aumento das passagens de ônibus, a falta de investimentos na

saúde pública, bem como na educação, alegando-se que a verba pública estava sendo

empregada na construção de estádios para a realização da Copa das Confederações, em

2013, e para a Copa do Mundo da Fifa a ser realizada em 2014, no Brasil.

Neste estudo, a AD de linha francesa embasada nos postulados pecheuxtianos

sobre o discurso e a constituição do sujeito será tomada como suporte para um olhar

mais atento, para que se perceba as contribuições de tal disciplina para as questões de

formulação social, ideológica e política na atual conjuntura. Para isso, o trabalho versa

sobre a noção de sujeito na perspectiva do então supramencionado autor, bem como

relaciona a disciplina à história e à ideologia, além de perceber os efeitos de sentido

provocados na constituição imagética dos sujeitos, através do jogo de imagem que

antecipa como o sujeito ver a sim mesmo, como ele imagina que o outro o ver e como

ele ver o outro e o referente (PÊCHEUX, 1990).

2 O DISCURSO NA PERSPECTIVA PECHEUXITIANA

A AD é uma corrente da Linguística que trabalha com a interação verbal e

enunciativa de interlocutores, através de discursos ideologicamente marcados. O objeto

de pesquisa da então disciplina é o próprio discurso, entendido como “efeitos de sentido

entre locutores” (ORLANDI, 2012, p. 64). Contudo, para que se compreenda o discurso

na concepção pecheuxtiana, é relevante relacioná-la à noção de memória discursiva,

uma vez que essa traz à tona o inconsciente e a ideologia.

Michel Pêcheux é o grande nome da Escola Francesa da AD. Isso porque ele

imprimiu a essa disciplina características que relacionam a Linguística à Psicanálise e à

História. Para o teórico, o discurso é concebido na inter-relação entre linguagem e

ideologia. Para chegar a essa conclusão, ele contou com a contribuição de G.

Canguilhen e L. Althusser ao refletir sobre a história da epistemologia e focar no

conhecimento empírico. Através da análise do funcionamento discursivo, Pêcheux

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explicita que a história determina os processos de significação, e que o discurso tem

relação direta com o simbólico e o político. Isso porque na Análise do Discurso as

relações de poder são significadas, simbolizadas.

Assim, na primeira fase da AD, o discurso, na concepção do autor, é definido,

segundo Orlandi (2012), como sendo efeito de sentido entre locutores, um objeto

histórico e social onde o linguístico é pressuposto. Para M. Pêcheux (1997), o saber

discursivo, presente em cada manifestação enunciativa, produz seus efeitos por

intermédio da ideologia (por uma influência de Althusser a sua teoria) e do inconsciente

(relacionando-se à psicanálise de Lacan, através dos estudos de Freud). Além disso, ele

percebe o discurso tanto na sua estrutura como no seu acontecimento que lhe deu

origem.

É, pois, na associação entre o simbólico e as relações de poder que a AD se

configura na abordagem pecheuxtiana. Segundo Pêcheux (2006), a materialidade

discursiva é percebida através do contato, da associação entre linguístico e histórico;

entendendo por história a interpretação dos fatos ocorridos em determinado momento, o

seu real. Sendo assim, o acontecimento histórico dá origem ao acontecimento

discursivo. O autor analisa o discurso na relação entre acontecimento e estrutura,

entendendo que um mesmo acontecimento histórico pode originar outros enunciados

distintos, construindo distintos acontecimentos discursivos.

A corrente francesa traz uma inovação sobre a concepção de discurso, pois,

segundo Orlandi (2005), o autor dá-lhe autonomia, descentraliza o conceito de

subjetividade (preconizado por Benveniste na Teoria da Enunciação), além de pensar o

sentido como sendo regulado no tempo e no espaço da prática humana. Assim, a

discursividade seria a inscrição da língua na história, através dos seus efeitos materiais.

Está inserida, ainda, nesse processo a abordagem imaginária da relação do sujeito com a

linguagem.

Ademais, é importante destacar a contribuição e influência de Michel Foucault

para Pêcheux quanto ao objeto de estudo da AD, o discurso. No que diz respeito à

Formação Discursiva (FD), Foucault (2002, p. 136) considera que é “um conjunto de

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regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram

uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as

condições de exercício da função enunciativa”. A partir disso, constata-se que as

formações discursivas são os elementos que compõem na história os enunciados. Não

são fechados em si mesmos, podendo ser mutáveis. Cardoso (2003, p. 35) explica a

noção de FD quando afirma que

A formação não é a essência do discurso, não é a sua ‘estrutura profunda ou

seu sentido profundo’, mas é, ao mesmo tempo, um operador de coesão

semântico do discurso e um sistema comum de restrições que pode investir-

se nos universos textuais.

Além disso, para analisar o discurso a partir de Pêcheux, é importante destacar

que o sujeito é preso pelas coerções dos discursos e ideologias às quais está submetido.

Não tendo como dizer o que pensa, todo o seu discurso segue as imposições do espaço

que ocupa no interior da formação discursiva. Nesse ínterim, é importante destacar

também que, por envolver sujeitos oriundos de ideologias diferentes, há no interior de

toda FD a presença de diferentes discursos que a AD denomina de interdiscurso. É,

portanto, o interdiscurso configurado na interdiscursividade, a partir do entrelaçamento

de diferentes discursos provenientes de momentos históricos e lugares sociais

determinados.

Assim, a partir da dispersão de discursos e acontecimentos historicamente

marcados, é possível apreender enunciados e analisar sua materialidade linguística,

encontrando-se, dessa forma, a unidade do discurso, segundo Fernandes (2008). Sendo

o discurso marcado por enunciados precedentes ou que o sucedem, ele ajuda, assim, a

compreender a mudança organizacional que caracteriza as transformações sociais de

que o discurso faz parte. Nesse contexto, a combinação de diferentes discursos faz

surgir os efeitos de sentido em um dado enunciado. Esse sentido é decorrente da

ideologia dos sujeitos e da forma como compreendem a realidade em questão. Dessa

forma, há no discurso uma carga valorativa na qual a ideologia se inscreve e encontra

sua materialidade, sua existência. Dessa forma, é necessário analisar essa inter-relação

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entre linguagem, história e ideologia que marcaram a AD de linha francesa,

especialmente os pressupostos pecheuxtianos sobre o discurso.

3 A RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E IDEOLOGIA NA AD

Com a fundação da Escola Francesa da Análise do Discurso, tendo a frente a

figura de Michel Pêcheux, o discurso se estabelece na associação entre a história e a

ideologia. O teórico explicita que a história determina os processos de significação.

Assim, ele inclui a historicidade no estudo da ciência Linguística e afirma que as

ciências sociais têm relação direta com a ideologia que as funda.

A Linguística vive uma espécie de crise epistemológica nos anos de 1960 e

então, Michel Pêcheux surge em um momento em que a noção de linguagem como

instrumento de comunicação (idealizada pelo funcionalismo, em especial por Roman

Jakobson) já se encontrava em declínio. Dessa forma, a concepção de ideologia (assim

como a do inconsciente), através de Pêcheux, não se configura mais como um construto

residual da linguagem, mas como elementos constitutivos de todo e qualquer discurso,

como também de todo sujeito, segundo Orlandi (2005), já que não se pode mais pensar

em discurso sem sujeito, nem em sujeito sem ideologia. Desse modo, o sujeito passa a

fazer parte da linguagem como um elemento importante.

Então, partindo desse pressuposto, Pêcheux afirma que “toda prática discursiva

está inscrita no complexo contraditório-desigual-sobredeterminado das formações

discursivas que caracteriza a instância ideológica em condições históricas dadas”.

(PÊCHEUX, 1975, p. 213). Ou seja, há em todo discurso uma carga valorativa onde a

ideologia está inserida, sendo determinada por um momento histórico estabelecido.

Em relação aos efeitos da ideologia, Orlandi (2008, p. 56) afirma que “produz a

aparência da unidade do sujeito e da transparência do sentido”, o que equivale dizer que

tomá-los como evidências é estar submersos à ideologia. Isso porque a autora concorda

com a noção de Pêcheux ao estabelecer que a unidade do sujeito é uma simulação e que

a ideologia não parte do sujeito; mas constitui o indivíduo em sujeito. Por isso, o autor

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considera que a ideologia não são ideias e nem tem origem no sujeito; ela está inscrita

no sujeito, o qual se reconhece como tal por pertencer a uma formação discursiva.

Para Althusser (1996), a ideologia é fundamental para que se entenda a teoria

discursiva. O autor parte da concepção metafórica de edifício social, releitura de Karl

Marx, para explicar a estratificação social à qual os sujeitos estão inseridos. A classe

desprestigiada, estigmatizada corresponderia à base econômica na escala piramidal,

seria a infraestrutura do edifício social. Consequentemente, a superestrutura seria o

ápice da pirâmide. Nela encontram-se instâncias políticas, ideológicas e jurídicas.

Porém, essa estrutura piramidal é mutável, intercambiável, ou seja, quem faz parte da

infraestrutura pode passar a constituir a superestrutura e vice-versa.

Althusser (1996) destaca ainda que não se trata apenas de um conjunto de ideias,

mas de práticas materiais que reproduzem ou reconstroem as relações de produção.

Assim, pode-se considerar para a articulação das ideias da AD, duas noções: a

Formação Discursiva (FD) – a qual já foi mencionada neste estudo - e a Formação

Ideológica (FI). Com esses postulados, o autor ajuda a compor a noção de discurso e a

correlacioná-la à história e à ideologia na teoria de Pêcheux.

Ademais, para que se reflita sobre a ideologia nos postulados da Escola francesa

de Pêcheux, é preciso que haja a inserção e análise do e sobre o sujeito, haja vista ser

ele, segundo essa noção, assujeitado pela língua e interpelado pela ideologia. Essa é a

condição para que aconteça a subjetivação. Nessa questão, segundo Orlandi (2012, p.

100), “há um efeito que é o efeito ideológico elementar pelo qual, o sujeito, sendo

sempre-já sujeito, coloca-se na origem do que diz”. Quanto mais imerso nessa

ideologia, mais centrado é o sujeito e, por conseguinte, estará preso à falsa ilusão de

autonomia ideológica. Dessa forma, parte-se do pressuposto de que a ideologia é

construída a partir do equívoco e se estabelece através da contradição. Assim, as

possibilidades de falha se dão por meio da certeza do sujeito, pois não é no conteúdo

que a ideologia afeta o sujeito, mas na estrutura por meio da qual ela funciona.

Contudo, a ideologia é entendida não como ocultação, mas como produção de

evidências. Ela é situada na articulação com a discursividade e a subjetividade, sendo

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esta última pelo fato de que a subjetividade leva o sujeito ao equívoco pela impressão

errônea de ser a origem do que diz – como já explicitado. Assim, uma vez o indivíduo

sendo interpelado como sujeito a partir da ideologia, em um processo simbólico, através

da história o sujeito terá sua forma individual concretizada, em uma trajetória bio-psico-

social, segundo Orlandi (2012). Esse percurso será relevante para compreender a

construção imagética do sujeito em Pêcheux, através da produção de sentidos, uma vez

que “sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo, na articulação da língua com a

história, em que entram o imaginário e a ideologia”. (ORLANDI, 2012, p. 99)

4 OS EFEITOS DE SENTIDO COMO FORMADORES DA CONSTRUÇÃO DA

IMAGEM

Para a AD, a noção de sentido é compreendida por efeitos de sentidos, realizados

através da manifestação de uso da linguagem, ou seja, pelo discurso. Assim, Fernandes

(2008, p. 15) afirma que

Quando nos referimos à produção de sentidos, dizemos que no discurso os

sentidos das palavras não são fixos, não são imanentes, conforme,

geralmente, atestam os dicionários. Os sentidos são produzidos face aos

lugares ocupados pelos sujeitos em interlocução. Assim, uma mesma palavra

pode ter diferentes sentidos em conformidade com o lugar socioideológico

daqueles que a empregam.

Pode-se constatar que, é através da análise do contexto, da história e da interação

dos interlocutores que se constroem os efeitos de sentidos do discurso, visto que o

discurso se apoia nas condições sócio-históricas e ideológicas de produção para ter

sentido.

De acordo com Pêcheux (2006), os sujeitos, ao pensarem o que vão dizer, fazem

uma interpretação do discurso frente às condições de produção do mesmo, que, a partir

disso, desencadeiam a construção de diversos efeitos de sentido. Soma-se a isso o fato

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de que para Pêcheux, o sentido das palavras não está ligado a sua literalidade. É tomado

a partir de uma palavra por outra, nas relações metafóricas, tendo seu acontecimento

ligado às formações discursivas da qual faz parte. Isso pode gerar um equívoco na

língua, pois, “todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente

de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro.”

(PÊCHEUX, 1983, p. 53).

Além disso, esses vários sentidos produzidos levam em conta a característica

principal de todo e qualquer discurso, que é a heterogeneidade, segundo Authier-Revuz

(1982). Esta categoria constitui uma condição da leitura dialógica, voltada para a

presença de uma “voz” no discurso. Dessa forma, Bakhtin (2009) afirma que nenhum

discurso é monológico, se assim aparenta é porque “finge”. Os discursos são

polifônicos, pois dentro de cada discurso há um discurso outro.

Nesse contexto, questiona-se: como surge a ideia de sujeito na produção do

discurso? Na produção discursiva, não está em questão apenas o momento da alocução e

as atitudes dos sujeitos presentes nesse ato, pois os protagonistas do discurso, segundo

Ducrot (1987), não devem ser entendidos como seres empíricos, mas como

representantes das instâncias sociais as quais representam. São nessas representações

que, segundo Cardoso (2003, p. 39), surgem

[...] uma série de ‘formações imaginárias’ que designam o lugar que

destinador e destinatário atribuem a si mesmo e ao outro, a imagem que

fazem do referente. O emissor, pode antecipar as representações do receptor

e, de acordo com essa antevisão do ‘imaginário’ do outro, fundar estratégias

do discurso.

De acordo com essa concepção, o sujeito, ao produzir o discurso, seja oral ou

escrito, pode prever a reação do destinatário e avaliá-lo. A autora se apoia na análise da

formação imagética dos sujeitos em um discurso, a partir de Pêcheux (1990). Neste

caso, a AD versa sobre a noção de uma teoria materialista da discursividade na qual o

sujeito, por não ter consciência das condições de produção de seu discurso, representa

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essas condições de maneira imaginária, de acordo com Mussalim (2009), em leitura de

Pêcheux.

O sujeito é preso pelas coerções dos discursos e ideologias às quais está

submetido, não tendo como dizer o que pensa, todo o seu discurso segue as imposições

do espaço que ocupa no interior da formação discursiva. Mas a construção da imagem

só acontece em pleno processo discursivo, pois, como afirma Mussalim (2009, p. 138),

“é nesse sentido que o jogo de imagens faz parte das condições de produção de um

discurso, na medida em que as imagens que o sujeito vai construindo ao enunciar vão

definindo e redefinindo o processo discursivo”.

Assim, este estudo parte da noção de Pêcheux sobre o discurso. Este constituído

na filiação de redes de memória, concebida por interdiscurso, e associado a não-

transparência da história e da língua, e relacionado às formações ideológicas e

discursivas as quais auxiliam na construção do jogo de imagens para a constituição dos

sujeitos discursivos, através de uma abordagem sociopolítica e ideológica em cartuns.

5 ANÁLISE DO MATERIAL DISCURSIVO EM CARTUNS

Os cartuns selecionados como arquivo deste estudo foram coletados do Jornal

“Folha de S. Paulo” no período de junho de 2013 e tem como tema principal as

manifestações populares que eclodiram no Brasil. A partir de quatro cartuns de Angeli,

mostra-se como os efeitos de sentido formulam a construção das imagens dos sujeitos

discursivos inscritos em redes de memória.

As manifestações populares fazem parte de um construto histórico e ideológico

em que os sujeitos reivindicam seus direitos e criticam as decisões políticas frente às

questões associadas à educação, saúde, transporte, entre outras de interesse coletivo.

Assim, adota-se os cartuns para mostrar que através de discursos cômicos e de risos são

formuladas críticas sobre um determinado assunto, neste caso, sobre o levante popular

ocorrido no país no referido período. A escolha deste arquivo se dá porque, segundo

Romualdo (2000, p. 20), o cartum “chega ao riso através da crítica mordaz, irônica,

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satírica e principalmente humorística do comportamento humano, de suas fraquezas, e

de seus hábitos e costumes.”

Quanto às análises, no primeiro cartum de Angeli, a discursivização versa sobre

a relação estabelecida entre os meios midiáticos e os manifestantes, através da

linguagem verbal e não-verbal. A imagem sugerida pela “Folha de S. Paulo” é de uma

posição-sujeito ocupada por um repórter que entrevista sujeitos que se rebelam frente às

decisões que julgam ser inaceitáveis no país, e assim são questionados: “Afinal, pelo

quê vocês lutam?”. A pergunta é feita e em ação conjunta, formula-se uma imagem de

como a mídia percebe os manifestantes deste período. Isso porque está presente no

enunciado dúvidas sobre a finalidade da luta dos sujeitos e qual seu real objetivo. Ou

seja, os manifestantes são vistos como sujeitos assujeitados a um condicionamento de

alienação (por não saberem qual a razão da luta), situação essa que eles não percebem,

pois são atravessados, de acordo com a teoria pecheuxtiana, pelo inconsciente, como

pode ser visto abaixo:

Figura 1 – Cartum de Angeli publicado pelo Jornal “Folha de S. Paulo”, em: 23 jun. 2013

Nota-se também a imagem pejorativa que o repórter tem da posição-sujeito

ocupada por manifestantes a qual pode ser percebida através da colocação de

afastamento do personagem com o microfone na mão, uma vez que diante dos sujeitos

que se encontram na posição de manifestantes há a descrição do sentimento de medo e

perplexidade entendidos a partir da constituição facial da imagem do sujeito repórter no

cartum.

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Logo após a pergunta, os sujeitos manifestantes, através de uma “única voz”,

utilizando o recurso da polifonia (BAKHTIN, 2009), respondem: “Ora! Por um país

mais transparente!” em que fica clara a evasão dos propósitos e finalidades do

movimento. Além disso, observam-se os efeitos de sentido do enunciado, o qual se

apresenta como construto de sujeitos ideologicamente marcados por um período em que

muitos jovens lutam por ideais de justiça no país, bem como pela aplicação adequada da

verba pública aos serviços que são de interesse para a população, como taxas reduzidas

para transporte público, saúde pública adequada às necessidades do cidadão, além da

oferta e garantia da qualidade de um sistema de educação público. Contudo, muitos dos

sujeitos, como esses idealizados pelo Jornal “Folha de S. Paulo”, não estão lutando por

ideias afins ao da posição-sujeito- manifestantes, mas para promover a desordem social.

Isso pode ser comprovado pela utilização de utensílios que provocam agressões e que

intimidam a população.

Ademais, a imagem dos sujeitos manifestantes é formulada negativamente não

só pelo discurso proferido, mas principalmente pela figura representativa deles:

encapuzados, envoltos em chamas e de objetos como cassetetes e garrafas. Outrossim,

os manifestantes deste cartum questionam a não-transparência do país, o que pode ser

entendido pelo nome “corrupção”. Contudo, os sujeitos que idealizam a transparência

do sistema apresentam-se, paradoxalmente, com os rostos cobertos, o que mostra a

opacidade do sujeito e a dupla ilusão da subjetividade de que trata a teoria de Pêcheux,

por acreditarem ser a origem do dizer.

Segundo a AD de origem francesa, para se tornar sujeito, o indivíduo é

interpelado pela ideologia e pela história. Assim, através da memória discursiva, é

possível encontrar sujeitos na história do Brasil em movimentos populares como este

ocorrido em junho e julho inseridos em práticas discursivas semelhantes, mostrando que

a história está inscrita no sujeito, bem como este está inserido na língua, pois não existe

sujeito sem ideologia, nem discurso sem sujeito, de acordo com Orlandi (2012).

No segundo cartum, os personagens apresentados encontram-se na posição de

sujeitos ministros e de presidente do Brasil, Dilma Rousseff. Nele, os sujeitos ministros

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convocados para tratar do movimento “Passe Livre” – movimento esse que inicialmente

surgiu para reivindicar o aumento da passagem de ônibus em algumas capitais do país –

o qual deu margem ao surgimento de outros movimentos populares, mostram-se

incomodados não com a situação de insatisfação da população, mas por estarem imersos

a essa “onda” de protestos. Por isso, apesar de aceitarem discutir sobre a situação e

sobre quais propostas deverão ser sugeridas para a resolução do problema, um deles

sugere que: “... seja feita em recinto fechado”. Isso mostra o real distanciamento e a

briga de classes existentes neste período, o que representa o país como um todo,

conforme a teoria de estratificação social de Althusser (1996), a qual corrobora com a

noção de posição-sujeito moderno capitalista de Pêcheux, da qual cita Orlandi (2012, p.

104), por meio da qual o sujeito é

ao mesmo tempo livre e submisso, determinado (pela exterioridade) e

determinador (do que diz): essa é a condição de sua responsabilidade (sujeito

jurídico, sujeito a direitos e deveres) e de sua coerência (não-contradição) que

lhe garantem, em conjunto, sua impressão de unidade e controle de (por) sua

vontade.

Neste cartum, há também a construção da imagem dos policiais que foram

chamados para acabar com o movimento. É possível analisar, pela situação abaixo, que

eles perseguiam os manifestantes que causavam destruição e queimadas nos locais por

onde passavam, por meio de cassetetes e bombas de efeito moral, o que representa a

condição de responsáveis por promover a ordem social. Porém, esta imagem, conforme

o cartum foi negligenciada pela forma como foi conduzido o controle que a priori se

almejava alcançar. Isso revela como o Jornal “Folha de S. Paulo”, a partir do cartunista

Angeli, configura a situação, como uma real perda de controle, episódio esse que não

condiz com o perfil imagético da posição-sujeito policial, construída histórico, social e

ideologicamente, que pode ser visto a seguir:

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Figura 2 – Cartum de Angeli publicado pelo Jornal “Folha de S. Paulo”, em: 30 jun. 2013

Além disso, ao se afirmar que “não estamos acostumados a negociar à luz do

dia”, o sujeito ministro revela uma ambiguidade no discurso, o qual pode ser entendido

que as negociações se fazem em um horário impróprio ao de trabalho convencional; ou

mesmo sugere que as negociações são feitas em locais apaziguados, ou seja, que não

tenha reivindicações, queimadas (assim representadas pela expressão “a luz do dia”).

No terceiro cartum, a discursivização versa sobre a questão ideológica, de

acordo com Althusser (1996) e das formações discursivas, a partir de Foucault (2002).

Nele, a linguagem verbal e não-verbal se cruzam e ajudam a formular a construção da

imagem que o sujeito-político tem dos sujeitos-manifestantes, a imagem que tem do

referente, e a imagem que os sujeitos-manifestantes têm da posição-sujeito-político,

bem como a imagem que têm do que é enunciado, através do jogo de imagens

desenvolvido por Pêcheux (1969/1990).

Na análise, o sujeito-político, ao proferir o enunciado “Afinal, quem vocês

pensam que são?” tem no imaginário a noção de que sujeitos-manifestantes,

configurados como desprestigiados socialmente, não deveriam promover levantes

populares, pois não são capazes de provocar mudanças sociais, uma vez que

ideologicamente não são detentores do poder. Além disso, a imagem estigmatizada que

o sujeito-político faz da posição-sujeito-manifestante é evidente não só pelo enunciado,

mas também pela construção da imagem de ambos – políticos de terno e manifestantes

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de trajes simplórios, com sandálias sem cadarços – revelando a posição-sujeito da mídia

em relação à luta de classes.

Contudo, nesta imagem, a mídia mostra que, apesar de marginalizados

socialmente, os sujeitos-manifestantes têm um histórico de reivindicações que foram

atendidas, o que fez com que eles “crescessem” literalmente no movimento, tornando

este evento oportuno e provocando, assim, a não aceitação do levante popular e de seus

ideais pelo sujeito na posição de político, o qual tinha o poder; fatos esses que podem

ser observados na análise do cartum abaixo:

Figura 3 – Cartum de Angeli publicado pelo Jornal “Folha de S. Paulo”, em: 20 jun. 2013

Essa noção está ancorada nos postulados de Pêcheux o qual afirma, segundo

Orlandi (2012), que o sujeito está cegamente iludido com a autonomia ideologicamente

constituída do seu dizer, considerando-se na origem do dito. De certo, o jogo de

imagens que se configura nesta construção do cartum mostra um sujeito assujeitado

histórico e ideologicamente à língua, e que não tem consciência do dito. Suas

formulações imagéticas são permeadas pelo interdiscurso, pela ideologia e pelas

formações discursivas da qual faz parte.

No quarto cartum, observa-se a construção da imagem dos locais onde

acontecem as manifestações, revelando a destruição provocada. Nele, as casas e prédios

estão em meio a lixos, chinelos esquecidos, em um cenário de desordem e devastação.

Então, as únicas figuras que aparecem são dos sujeitos-policiais, que surgiram

provavelmente após o término da realização do manifesto, ou foram eles mesmos que

puseram fim ao acontecimento. Dessa forma, é importante destacar o discurso presente

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no cartum, realizado pela posição-sujeito-policial, que diz “Pode parecer estranho, mas,

para mim, esta paisagem é de uma beleza acachapante”.

Na AD de linha francesa, a noção de sentido é entendida por efeitos de sentido

que surgem em meio à manifestação do uso da linguagem, ou seja, no discurso, sendo

este construído com base em um contexto, em um dado período histórico e na interação

entre interlocutores. Assim, na produção do enunciado “Pode parecer estranho, mas,

para mim, esta paisagem é de uma beleza acachapante” emanam efeitos de sentidos que

correspondem a ideologias e formações discursivas as quais constroem a imagem dos

sujeitos-policiais de forma negativa, pois o que a figura representa não corresponde a

uma bela paisagem, mas a uma situação de destruição de patrimônio público, como se

pode observar abaixo:

Figura 4 – Cartum de Angeli publicado pelo Jornal “Folha de S. Paulo”, em: 20 jun. 2013

Ademais, a posição-sujeito-policial utiliza-se da expressão “acachapante” para

caracterizar a situação descrita como sendo incontestável, cabal e absoluta. A

construção, então, designa o lugar que o sujeito ocupa no levante popular, a qual deve

ser relacionada ao histórico de repressões a movimentos como este ocorrido em junho e

julho de 2013. Nesta abordagem, é importante mencionar a ‘Passeata dos cem mil’, por

exemplo, que foi uma manifestação popular que ocorreu no Rio de Janeiro, em 26 de

junho de 1968, - período em que vigorava no Brasil a Ditadura Militar - e foi organizada

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pelo movimento estudantil, contando com a contribuição de vários setores da sociedade;

e o impeachment do presidente Fernando Collor de Melo, em 1992, no Brasil, período

este marcado pelo ‘Movimento dos caras-pintadas’, representando a população que

estava insatisfeita com a situação do país devido ao direcionamento inadequado da

verba pública. Ambos os movimentos foram também repreendidos pelo sujeito-policial,

que por sua vez representava a categoria e o qual fazia parte de ideologias e formações

discursivas que era a de defender os ideais do governo em seus respectivos momentos

histórico-políticos.

Pela memória discursiva, infere-se que é a partir do contexto que há formulação

da imagem dos sujeitos discursivos, bem como faz surgir os efeitos de sentido dos

enunciados, pois, como afirma Maldidier (2003, p. 96), “sentido se forma na história

através do trabalho da memória.”. Isso explica o fato de os efeitos de sentido resgatarem

os acontecimentos anteriores a ele para explicar a reação do sujeito na posição de

policial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo foram trabalhados conceitos e postulados da Análise do Discurso

sob o viés da teoria pecheuxtiana, tendo como arquivo cartuns de Angeli divulgados no

Jornal “Folha de S. Paulo” entre os períodos de junho de 2013, momento este em que

vigorava no Brasil manifestações populares. Na trajetória de análise dos cartuns, foram

observados os efeitos de sentido que serviram para nortear a construção da imagem dos

sujeitos discursivos, imersos em ideologias e formações discursivas que caracterizaram

o momento histórico e político vivenciado. Dessa forma, foi observado que os sentidos

não são imanentes às palavras, mas construído por meio dessas em um contexto social,

através da língua em uso, e que o dito perpassa o interdiscurso, ou seja, a memória

discursiva do sujeito.

Além disso, a partir das elucidações da AD francesa, é possível inferir na análise

dos cartuns, que os sujeitos ocupam posições ideológicas que representam a luta de

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classes, segundo afirma Althusser (1996), e que fazem parte de redes de memória, as

quais retratam momentos históricos semelhantes aos do levante popular analisado, o que

dá aos sujeitos a falsa ilusão de serem a origem do dizer; tudo isso porque o sujeito é

atravessado pelo inconsciente. Neste contexto, a tese corrobora a ideia de que os

sujeitos analisados são assujeitados à língua e interpelados pela ideologia. Essa é a

condição para se tornarem sujeitos do discurso, segundo Orlandi (2012), pois não há

discurso sem sujeito e nem sujeito sem ideologia.

Assim, é através do jogo discursivo que se revela a (re) produção e (re)

formulação de imagens sobre os sujeitos enunciativos nos cartuns tomados como base

para a transmissão de valores de uma sociedade em um processo dialógico que tem em

sua tessitura a relação sujeito-linguagem-história. Dessa forma, esta analise tornou-se

relevante, pois tanto o discurso como o sujeito são tomados, a partir dessa teoria, como

preponderantes para se compreender a atual conjuntura social, tendo como base a

ideologia e as formações discursivas da qual fazem parte e que auxiliam na formulação

de efeitos de sentido em diversos contextos histórico-político-sociais.

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Recebido Para Publicação em 06 de agosto de 2015.

Aprovado Para Publicação em 30 de outubro de 2015.