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ESTUDOS SOBRE A “MEMÓRIA 1 ” QUE MARTIM FRANCISCO 2 APRESENTOU À CONSTITUINTE DE 1823 PARA A CRIAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO BRASILEIRA Vanderlei Amboni Professor do Departamento de História UNESPAR/FAFIPA RESUMO: O artigo aborda a “memória” que Martim Francisco apresentou à Assembléia Constituinte de 1823, propondo a criação de um sistema nacional de educação. Na “memória” está presente a influência dos ideais de educação preconizados pelos iluministas franceses pré e pós revolução burguesa na França. Nossa finalidade é contribuir para a história da educação brasileira, considerando que, sobre o tema proposto, há pouco estudo. Vemos assim que nas proposituras educacionais estão assentadas uma educação classista, pois a forma de domínio material domina a forma de expressão espiritual na vida social. PALAVRAS-CHAVE: Memória, Assembléia Constituinte, educação revolucionária e Iluminismo. 1. A “MEMÓRIA” ou a Proposta de Reforma dos Estudos na Capitania de São Paulo A MEMÓRIA apresentada em 1816, por Martim Francisco Ribeiro de ANDRADA para a Província de São Paulo, continha conteúdos e métodos modernos de ensino; o número e a localização geográfica das escolas a serem criadas; os programas de ensino; a forma e a competência da nomeação de professores; a gratuidade e a responsabilidade do Estado na implementação do sistema de ensino. Seu plano de ensino recebeu um parecer louvável de CARVALHO E MELO quanto ao seu conteúdo, pois atendia às necessidades de formação da mocidade. Mas foi considerado perigoso, pois poderia provocar mudanças no comportamento da juventude e foi “congelado” pela classe dominante. O mesmo plano foi encaminhado ao Marquês de Aguiar, por Luiz José de CARVALHO E MELO, com as seguintes observações: No plano proposto se dirige ele ao útil fim de fazer mais geral a instrução de todas as classes nas coisas úteis, e necessárias à vida social, e nos conhecimentos mais acomodados a todos no período dos primeiros três anos; e no segundo se propõe a Estudos maiores, e que já são mais apropriados a formar a classe literária da Nação. Neste mesmo período é a escolha das doutrinas de mui boa e crítica seleção e a marcha de as aprender muito regular, metódica e bem seguida; assim como no primeiro período é fácil, e marcada a passos iguais ao do desenvolvimento das faculdades intelectuais e físicas dos meninos (apud RIBEIRO, 1943: 70). 1 A “MEMÓRIA” foi um Plano de Educação escrito em 1815, por Martim Francisco Ribeiro de ANDRADA para a Província de São Paulo. No corpo do texto faremos referência a Martim Francisco. Para citá-lo, utilizaremos o sobrenome ANDRADA. 2 Martim Francisco Ribeiro d’Andrada Machado, como ele próprio se assinava, foi o 8º filho de Bonifácio José Ribeiro de Andrada com D. Maria Bárbara da Silva, filhos da aristocracia santista. Irmão de José Bonifácio de Andrada e Silva e Antonio Carlos de Andrada Machado, ilustres homens públicos e constituintes de 1823, nasceu na cidade de Santos, província de São Paulo aos 19 de junho de 1775.

Memória de Martim Francisco

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Educação no Brasil

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  • ESTUDOS SOBRE A MEMRIA1 QUE MARTIM FRANCISCO2 APRESENTOU CONSTITUINTE DE 1823 PARA A CRIAO DO SISTEMA NACIONAL DE

    EDUCAO BRASILEIRA

    Vanderlei Amboni Professor do Departamento de Histria

    UNESPAR/FAFIPA

    RESUMO: O artigo aborda a memria que Martim Francisco apresentou Assemblia Constituinte de 1823, propondo a criao de um sistema nacional de educao. Na memria est presente a influncia dos ideais de educao preconizados pelos iluministas franceses pr e ps revoluo burguesa na Frana. Nossa finalidade contribuir para a histria da educao brasileira, considerando que, sobre o tema proposto, h pouco estudo. Vemos assim que nas proposituras educacionais esto assentadas uma educao classista, pois a forma de domnio material domina a forma de expresso espiritual na vida social. PALAVRAS-CHAVE: Memria, Assemblia Constituinte, educao revolucionria e Iluminismo.

    1. A MEMRIA ou a Proposta de Reforma dos Estudos na Capitania de So Paulo

    A MEMRIA apresentada em 1816, por Martim Francisco Ribeiro de ANDRADA para a

    Provncia de So Paulo, continha contedos e mtodos modernos de ensino; o nmero e a

    localizao geogrfica das escolas a serem criadas; os programas de ensino; a forma e a

    competncia da nomeao de professores; a gratuidade e a responsabilidade do Estado na

    implementao do sistema de ensino.

    Seu plano de ensino recebeu um parecer louvvel de CARVALHO E MELO quanto ao seu

    contedo, pois atendia s necessidades de formao da mocidade. Mas foi considerado perigoso,

    pois poderia provocar mudanas no comportamento da juventude e foi congelado pela classe

    dominante. O mesmo plano foi encaminhado ao Marqus de Aguiar, por Luiz Jos de CARVALHO

    E MELO, com as seguintes observaes:

    No plano proposto se dirige ele ao til fim de fazer mais geral a instruo de todas as classes nas coisas teis, e necessrias vida social, e nos conhecimentos mais acomodados a todos no perodo dos primeiros trs anos; e no segundo se prope a Estudos maiores, e que j so mais apropriados a formar a classe literria da Nao. Neste mesmo perodo a escolha das doutrinas de mui boa e crtica seleo e a marcha de as aprender muito regular, metdica e bem seguida; assim como no primeiro perodo fcil, e marcada a passos iguais ao do desenvolvimento das faculdades intelectuais e fsicas dos meninos (apud RIBEIRO, 1943: 70).

    1 A MEMRIA foi um Plano de Educao escrito em 1815, por Martim Francisco Ribeiro de ANDRADA para a Provncia de So Paulo. No corpo do texto faremos referncia a Martim Francisco. Para cit-lo, utilizaremos o sobrenome ANDRADA. 2 Martim Francisco Ribeiro dAndrada Machado, como ele prprio se assinava, foi o 8 filho de Bonifcio Jos

    Ribeiro de Andrada com D. Maria Brbara da Silva, filhos da aristocracia santista. Irmo de Jos Bonifcio de Andrada e Silva e Antonio Carlos de Andrada Machado, ilustres homens pblicos e constituintes de 1823, nasceu na cidade de Santos, provncia de So Paulo aos 19 de junho de 1775.

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    O Plano atendia, assim, aos anseios da modernidade aristocrtica, mas haveria

    dificuldades em sua implantao, como alertava CARVALHO E MELO:

    Esta adoo, porm, no parece poder-se j verificar, porque sendo uma reforma total do mtodo mandado praticar por Leis e Estatutos em todo o Reino Unido, no convm, que se verifique em uma Capitania s, sem se generalizar em todas as mais partes da Monarquia, e para assim acontecer necessrio revogar Leis, mudar a forma de educao moral e literria da nao, e derribar todo esse edifcio; para o que devem preceder maduros e circunspectos exames e uma legislao ampla e geral (apud RIBEIRO, 1943: 71). No parecer emitido por Luiz Jos de Carvalho e Melo, em 15 de novembro de 1816, este

    aconselhava Martim Francisco a que aguardasse a oportunidade certa, pois o Estado portugus

    no admitiria um plano de educao que atendesse a uma nica provncia do Reino Unido. Para que

    o mesmo fosse implantado, seria necessrio revogar toda a legislao existente sobre as formas e os

    mtodos de ensino, o que no caberia no momento. A Martim Francisco coube resignar-se e esperar

    por uma oportunidade adequada apresentao de seu projeto educacional.

    Aps a independncia do Brasil foi convocada, por D. Pedro I, uma Assemblia Constituinte

    e Legislativa para dotar o Imprio de uma Constituio. Martim Francisco foi eleito deputado

    constituinte pela Provncia do Rio de Janeiro. Havia, ento, chegado o momento certo e foi o que

    ele fez. No deixou passar a oportunidade e apresentou sua MEMRIA Assemblia Constituinte,

    provavelmente, antes de 14 de junho de 18233.

    Apesar de ele no ter adequado seu plano de educao nova realidade poltica no Brasil, na

    medida em que contemplava uma educao laica, estatal e formadora da fora de trabalho, a

    Comisso de Instruo Pblica o recebeu, pois o projeto educacional apresentado atendia, em sua

    essncia, s necessidades do desenvolvimento educacional e produtivo no Imprio Brasileiro, que

    tanto as elites agrrias reclamavam.

    Em 7 de julho de 1823, a MEMRIA recebeu do deputado Antonio Gonalves GOMIDE,

    em nome da Comisso de Instruo Pblica, um parecer altamente favorvel sob vrios ngulos:

    A Comisso de Instruo Publica examinando a MEMRIA oferecida pelo Ilustre Membro desta Assemblia o Sr. Martim Francisco Ribeiro de Andrada, e por ele feita, h muitos anos, para a reforma dos Estudos menores da Provncia de S. Paulo, reconhecendo nela um verdadeiro mtodo tanto de ensinar, como de aprender, pelo arranjamento analtico, com que classifica o comeo e progresso gradual dos conhecimentos humanos, e pela indicao que faz das matrias que sucessivamente devem ser ensinadas, do mtodo a seguir, da escolha dos compndios, e sua composio, lamenta os males, que tem sofrido a instruo publica, pela falta de publicao, e adoo de um to luminoso sistema em todas as Provncias do Brasil; e he de parecer: 1 Que seja recebido, por esta assemblia, com especial agrado um oferecimento to interessante educao Publica. 2 Que se mande imprimir a sobredita MEMRIA, fazendo-se a despesa pelo Tesouro Pblico, para que quanto antes

    3 14 de junho foi a data em que Pinheiro Fernandes discursou em favor de abrir aos gnios brasileiros elaborao do tratado de educao. Martim Francisco deve ter apresentado seu plano de educao diretamente Comisso de Instruo Pblica, pois nas atas da Constituinte no h registro da apresentao do plano Assemblia. S h o registro do parecer, emitido a 7 de julho de 1823, sendo este favorvel, e mandando imprimir cpias para serem distribudas aos deputados Constituintes.

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    possa servir de guia aos atuais professores, e de estimulo aos homens de Letras para a composio de Compndios elementares, em quanto se no d uma adequada forma Instruo Publica: Pao da assemblia sete de julho de 1823: Antonio Rodrigues Velloso de Oliveira Belchior Pinheiro de Oliveira Manoel Jacinto Nogueira da Gama Antonio Gonalves Gomide (GOMIDE, 1973: 365). Em funo da qualidade do projeto, o parecer determinava sua impresso imediata, para os

    deputados tomarem conhecimento do teor do documento (Memria). Mas, os votos da comisso

    no foram cumpridos, pois o Governo no mandou a MEMRIA para impresso.

    Primitivo MOACYR escreveu a este respeito que:

    Os anais da Constituinte do ms de julho (data do parecer) a novembro (data da dissoluo) no disseram mais nada sobre ela. O silncio sobre o assunto nos relatrios dos ministros do Imprio prova que no houve publicidade, pois, no tempo, de acordo com a lei de 15 de outubro de 1827, que mandou criar as primeiras escolas elementares, s se cogitava do mtodo lancasteriano (apud RIBEIRO, 1943: 72). No ocorreu, ento, o debate em plenrio em torno da nica MEMRIA sobre educao

    que foi apresentada Assemblia Constituinte. Para RIBEIRO, o esvaziamento do poder dos

    Andradas levou o Ministrio do Interior a no publicar a MEMRIA, ou seja, tratava-se de uma

    forma de retaliao poltica. Neste Sentido, RIBEIRO afirmou que a queda do Gabinete dos

    Andradas, justamente dez dias depois (o parecer de 7 de julho e a demisso dos Andradas ocorreu

    a 17) e a posio difcil de oposicionistas em que se encontraram desde ento, at a dissoluo da

    Assemblia, teria sido a causa (RIBEIRO, 1943: 72).

    2. A MEMRIA e o Iluminismo francs

    A burguesia europia, na luta contra o Antigo Regime, sagrou-se vitoriosa no sculo XVIII,

    aps a Revoluo Francesa. A vitria da burguesia francesa esteve centrada na aliana com os

    camponeses e trabalhadores dos ncleos urbanos, sob trs princpios: a liberdade, a igualdade e a

    fraternidade.

    Na Inglaterra, a burguesia construiu, sob a Revoluo Industrial, os parmetros sociais de

    uma sociedade baseada no trabalho assalariado. Por outro lado, a Revoluo Industrial alterou as

    estruturas sociais das cidades, tornando-as grandes concentraes das massas trabalhadoras. O

    fenmeno da urbanizao, acelerada com o desenvolvimento do capitalismo, criou expectativas em

    relao educao da classe trabalhadora, pois a complexidade da produo capitalista exigia a

    qualificao da fora de trabalho.

    As revolues burguesas na Inglaterra e na Frana criaram um Estado que dava sustentao

    poltica burguesia, edificando-as como classe dirigente. Assim, as relaes sociais passaram a ser

    determinadas pelo modo de produo capitalista, assegurando, na Inglaterra, as liberdades e, na

    Frana, a democracia, como princpios universais.

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    Consagrada em seu projeto poltico, particularmente na Frana, a burguesia buscou criar a

    igualdade entre os homens, conferindo-lhes a cidadania. O estatuto de cidado representava a

    igualdade jurdica entre os homens, independentemente de seu nascimento. A burguesia

    apresentava-se, assim, como redentora da sociedade, pois destruiu o Antigo Regime, baseado em

    privilgios, e criou uma nova ordem social baseada nas liberdades individuais e na igualdade

    jurdica entre os homens.

    O Iluminismo francs, como iderio terico sistematizado pela burguesia em sua luta contra

    os privilgios da nobreza muito rico em reflexes pedaggicas. Um aspecto importante,

    desenvolvido pelos iluministas, foi uma pedagogia poltica, isto , a luta para universalizar a

    educao tornando a escola laica, pblica e gratuita, ou seja, uma funo do Estado. Alguns de seus

    representantes na Assemblia Legislativa Francesa, como CONDORCET4 e LEPELLETIER5,

    foram autores de projetos educacionais significativos.

    CONDORCET, com o objetivo de formar o cidado, trouxe para o debate pblico o primeiro

    projeto que institua a instruo pblica, laica e gratuita para todos os homens. No entanto, ele

    prprio, apresentava o limite burgus para a concesso da educao universal: O principal limite

    a posio ocupada pelo indivduo na sociedade (LOPES, 2000: 5). O limite so as condies

    financeiras ou o poder da famlia para manter a criana na escola. No limite, portanto, segundo

    CONDORCET, a instruo deixa de ser rigorosamente universal (LOPES, 2000: 5). A soluo

    proposta por ele foi a concesso de bolsas de estudo individuais para os filhos da Ptria que se

    destacassem por seus talentos, ou seja, criava-se a meritocracia na escola francesa, fato que perdura

    at os dias de hoje. Para HOBSBAWM, em sua obra A Era das Revolues, a competitividade

    individualista representava o esprito burgus, no qual a ascenso social se dava por mrito pessoal

    e no pelo nascimento. Nesse sentido, a burguesia continuou to excludente quanto a nobreza o era,

    pois a instituio da bolsa escolar no democratizou plenamente o acesso ao conhecimento.

    Outro representante da burguesia a defender a instruo pblica foi LEPELLETIER, cujo

    Plan dducation Nationale foi apresentado por Robespierre Conveno em 13 de julho de 1793,

    pois LEPELLETIER havia sido assassinado por um guarda de Lus XVI. No projeto defendido,

    alm da laicidade e gratuidade, inclua, tambm, a obrigatoriedade de todos educao. Para

    LEPELLETIER o primeiro a incluir a obrigatoriedade da educao para todos os filhos da Ptria

    a educao deve ser gratuita, literria, intelectual, fsica, moral e industrial, e ainda sendo a

    4 CONDORCET, Marie-Jean-Antoine-Nicolas Caritat, Marques de. 5 LEPELLETIER (Louis-Michel LEPELLETIER de Saint-Fargeau), foi eleito deputado na Conveno e votou pela execuo do Rei Lus XVI. Foi assassinado na vspera da execuo do rei.

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    educao nacional dvida da Repblica para com todos, todas as crianas tm direito a receb-la, e

    os pais no podero se subtrair obrigao de faz-los gozar de suas vantagens (apud ROSA,

    1974: 216-7).

    Um aspecto importante do plano de LEPELLETIER constitua no seu objeto da educao

    nacional, com o objetivo de fortalecer a cidadania na sociedade francesa. A educao, para tanto,

    cumpria com esse objetivo: fortalecer os cidados e a sociedade.

    Para ele:

    O objeto da educao nacional ser o de fortificar o corpo e desenvolv-lo por exerccios de ginstica, de acostumar as crianas ao trabalho das mos, de endurec-las contra toda espcie de cansao, de dobr-las ao jugo de uma disciplina salutar, de forma-lhes o corao e o esprito por meio de instrues teis e de dar os conhecimentos necessrios a todo cidado, seja qual for sua profisso (LEPELLETIER apud ROSA, 1974: 217). A sociedade burguesa, ao estatuir a educao bsica e gratuita para todos, acenou com a

    possibilidade da igualizao social, conferindo-lhe papel de redeno social:

    Uma boa instruo pblica assegurar sociedade bons filhos, bons esposos e bons pais; a liberdade e a igualdade; amigos ardentes e defensores fiis, ao corpo poltico funcionrios esclarecidos, corajosos e devotados e seus deveres. Ela ensinar aos ricos a fazer bom uso de sua fortuna e estabelecer a felicidade sobre a felicidade dos outros; ao pobre a dominar a adversidade atravs de seu trabalho e a prtica de virtudes que convm uma alma orgulhos e elevada (HIPPEAU apud LOPES, 1982: 6). A educao, como foi proposta pela burguesia revolucionria francesa, cumpria, segundo

    Eliane Marta Teixeira LOPES, com os seguintes objetivos:

    1 instrumentalizar os indivduos para que possam, eles mesmos, conseguir seu bem estar e o seu lugar na sociedade; 2 conscientizar os cidados para que cumpram seus deveres e defendam seus direitos; 3 desenvolver habilidades a fim de que o indivduo possa desempenhar as funes sociais a que tem direito de ser chamado e desenvolver seus talentos que recebeu da natureza; 4 socializar os indivduos para que possam participar e construir uma nova sociedade, estabelecendo entre si as novas relaes sociais; 5 re-humanizar os indivduos, recuperando o que de humano fosse perdido no novo processo de produo e sua diviso do trabalho; 6 reconciliar a sociedade, apaziguando os nimos e conciliando a luta de classes (LOPES, 1982: 6). No Brasil, a aristocracia, ao promover a Independncia, em 1822, encontrou uma nao

    dotada de unidade territorial, lingstica, cultural e religiosa e uma populao analfabeta, que no

    valorizava o trabalho manual.

    Para Jos Murilo de CARVALHO, os portugueses tinham deixado uma populao

    analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultura e latifundiria, um Estado

    absolutista. poca da Independncia, no havia cidados brasileiros, nem ptria brasileira

    (CARVALHO, 2001: 18).

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    A sociedade brasileira necessitava criar seus prprios valores sociais e suas instituies e

    romper com os preconceitos, criados pelo regime de escravido, em relao ao trabalho manual e

    implementar as formas de trabalho criadas pelo modo capitalista de produo, ou seja, valorizar o

    trabalho assalariado. Evidentemente, os instrumentos de dominao tinham uma nova tica, que era

    a de assegurar os direitos individuais e o direito propriedade para a classe dominante,

    principalmente.

    A aristocracia brasileira necessitava, portanto, criar as instituies estatais, para celebrar o

    nascente Imprio brasileiro. Para tanto, deveria ser oferecido a todos, o mesmo ensino,

    possibilitando uma carreira aberta aos talentos, tal qual foi preconizado pelos revolucionrios

    franceses. Isto possibilitaria a ascenso social dos integrantes da pequena burguesia mercantil que

    se destacassem por seus talentos naturais, sendo educados e formados sob o princpio da

    individualidade.

    A preocupao da elite era assegurar uma transio sem ruptura com a ordem econmica

    consolidada na colnia. O Brasil teria que organizar, assim, o novo aparelho de Estado,

    assegurando, de forma mnima, os direitos dos homens livres a uma educao bsica, semelhana

    dos modernos estados burgueses da Europa, que tinham criado um ensino laico, estatal e gratuito a

    todos, como forma de garantir a hegemonia de sua classe.

    Na abertura dos trabalhos constituintes, D. Pedro I deixou explcito que a educao pblica

    brasileira necessitava de uma legislao particular. Assemblia Constituinte e Legislativa do

    Imprio do Brasil cumpria dotar o Brasil de um sistema educacional que estivesse de acordo com os

    princpios do liberalismo brasileiro.

    A elite de letrados, falando em nome das categorias socialmente dominantes, seria a porta-

    voz da ideologia liberal mascarando as contradies do sistema social e importando os valores

    sociais e regras educacionais (COSTA: 1987: 54).

    A Assemblia Constituinte procurava, assim, atender s expectativas da sociedade em

    relao instituio escolar como promotora da ordem moral e do desenvolvimento social.

    Aguardava, com ansiedade, a apresentao de um plano de educao no sentido de promover e

    propagar a instruo e os conhecimentos indispensveis formao de homens para os empregos

    pblicos e para o desenvolvimento da agricultura, indstria e comrcio (CHIZOTTI, 1975: 55). E

    foi, nesse contexto, que Martim Francisco apresentou sua MEMRIA.

    3. A MEMRIA e a Matriz Ideolgica Francesa

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    A MEMRIA de Martim Francisco apresentava estreitas semelhanas com os pressupostos

    da educao pblica defendida pelos revolucionrios franceses, pois a instruo pblica para

    todos era imprescindvel consolidao da nova ordem. Consagrava, semelhana do pensamento

    liberal, a defesa dos direitos naturais dos homens, com o argumento de que todos nascem livres e

    iguais e, para tanto, o que devia diferenci-los eram os talentos individuais, adquiridos atravs da

    educao e no do nascimento.

    Neste caso, seu liberalismo deveria se adequar a uma situao social que se fazia entre a

    liberdade e a escravido. Para ele, somente uma educao estatal, promovida e disseminada de

    forma linear para todos homens livres e brancos, possibilitaria a igualdade jurdica entre os

    brasileiros.

    Entretanto, tal como os iluministas franceses CONDORCET e LEPELLETIER, Martim

    Francisco tem, como princpio educacional, os ideais de sua classe, pois a classe que domina

    materialmente tambm a que domina com a sua moral, a sua educao e as suas idias. Assim,

    nenhuma reforma pedaggica fundamental pode impor-se antes do triunfo da classe revolucionria

    que a reclama (PONCE, 2000: 169).

    No Brasil, a aristocracia ainda no havia conquistado o poder poltico para poder impor seu

    projeto educacional. A educao , assim, o processo mediante o qual as classes dominantes

    preparam na mentalidade e na conduta das crianas as condies fundamentais da sua prpria

    existncia (PONCE, 2000: 169). Isto, portanto, nos explica o porqu da no aceitao da

    MEMRIA de Martim Francisco em 1816, por Luiz Jos de Carvalho e Melo.

    Para Martim Francisco, a educao deveria atender formao do homem livre, para o

    servio da sociedade. Tal qual Benjamin Constant, em discurso, disse que homens livres devem

    exercer todas as profisses para prover todas as necessidades da sociedade (CONSTANT, 1992:

    17). Martim Francisco vai defender tambm uma educao destinada educao e formao do

    homem para a sociedade. Assim sendo, props uma educao para o trabalho.

    Ele ressaltou que:

    Os felizes resultados que se deve esperar de uma instruo pblica disseminada por todos, (...) estabelecem a forosa necessidade de criar uma base geral de educao, que encerra em si os elementos de todas as instrues particulares; e para obter-se um fim to saudvel, mister que se designa o limite que deve terminar a educao geral, e a natureza particular, que lhe sucede; mister, que na primeira o homem seja considerado relativamente ao desenvolvimento de suas faculdades, humanidade, e ao Estado; e na Segunda relativamente sua condio, disposies naturais, e talentos pessoais; mister finalmente, que se saiba, o que, e como se deve ensinar... (ANDRADA, 1816: 01). A matriz ideolgica francesa da educao para todos criou no Brasil um forte impacto, pois

    nela explicitava a construo da nacionalidade e da hegemonia da classe dominante. Os ideais de

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    uma educao para todos tinham, portanto, o objetivo de produzir um pensamento hegemnico na

    sociedade, a fim de criar o esprito de nao. No se pode falar em nao se os homens no

    comungarem e viverem os mesmos princpios de vida social. A proposta de uma educao nacional

    cumpria com este objetivo: forjar uma identidade nacional.

    A tentativa de adotar no Brasil o plano de educao proposto por CONDORCET data de

    1812. Sua apresentao foi feita pelo General Francisco Borja Garo Stokler, a pedido de Antonio

    Arajo de Azevedo Conde da Barca.

    No plano, estabelecia que:

    A instruo pblica est dividida em quatro classes ou graus: a primeira compreendia o ensino elementar e primrio e tudo o que indispensvel ao homem, qualquer que fosse sua posio ou profisso; as escolas deste primeiro grau eram chamadas Pedagogias e os mestres Pedagogos; a segunda continha o ensino mais desenvolvido das matrias do primeiro grau e a este ministrava-se todos os conhecimentos indispensveis aos agricultores, artistas, operrios e comerciantes; as escolas desta segunda classe chamavam-se Institutos e os mestres Institutores; a terceira abrangia todos os conhecimentos cientficos que servem de base ou de instruo ao estudo aprofundado da literatura e das cincias e de todos os ramos da erudio, as escolas do terceiro grau eram chamadas pelo nome de Liceu e os mestres pelo nome de Professores; a quarta era reservada ao ensino das cincias abstratas, teorias e aplicao em toda sua extenso, ao estudo das cincias morais e polticas, os estabelecimentos desta classe chamavam-se Academias e os mestres, professores (ALMEIDA apud CHIZZOTTI, 1974: 54). O plano no foi adotado porque a metrpole jamais admitiria a ampliao do ensino s

    camadas populares num esforo de coibir possveis movimentos libertrios (CHIZZOTTI, 1975:

    54). O plano de ensino criado por Stokler teria dificuldades para ser implementado no Brasil por

    dois motivos: a falta de recursos financeiros do Estado e as motivaes ideolgicas das elites

    portuguesas, pois o sistema de educao, nas mos dos inimigos de classe era uma arma poderosa

    contra a ordem absolutista. A tentativa de Martim Francisco, propondo um plano com base em

    CONDORCET, ia ao mesmo sentido. Ele queria implementar uma educao para a destruio do

    absolutismo no Brasil, delegando a uma comisso de literatos a nomeao de professores.

    O plano de educao de CONDORCET, segundo PONCE, concedia ao Estado no s o

    direito de controlar o ensino, como tambm a obrigao de instruir. De instruir mesmo, no de

    educar, porque CONDORCET deixa a formao das crenas religiosas, filosficas e morais a cargo

    dos padres (PONCE, 2000: 139). A instruo pblica deve assegurar a todos um mnimo de

    cultura, de tal modo que no deixe passar despercebido qualquer talento, e possa oferecer-lhe todos

    os recursos que at agora s estavam ao alcance dos filhos dos ricos (PONCE, 2000: 139). Seu

    objetivo explcito era multiplicar as descobertas, possibilitando o aumento do poder do homem

    sobre a natureza. Assim sendo, a educao deveria ser desvinculada de princpios religiosos. Tal

    como CONDORCET e LEPELLETIER, Martim Francisco sustentava a necessidade de uma

    instruo laica, mantida e controlada pelo Estado. Competia ao Estado oferecer ao povo uma

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    instruo que fosse nica, gratuita e neutra. Eis como eles encaminharam as propostas de um

    ensino laico para o povo.

    CONDORCET, em seu Rapport sur linstruction publique, aprovado em 17 de agosto de

    1792, assim se expressava:

    (...) rigorosamente necessrio separar da moral os princpios de qualquer religio particular e no admitir na instruo pblica o ensinamento de algum culto religioso. Este deve ser ensinado nos templos pelos seus ministros (apud MANACORDA, 1992: 251). Martim Francisco, em sua MEMRIA, manifestava-se nos mesmos termos:

    No incluo no pequeno cdigo de moral as opinies religiosas do nosso culto por competirem privativamente aos pais, e curas d'almas; e com toda justia semelhantes opinies devem ficar a cargo deles. Com efeito nunca os princpios religiosos se arraigaram tanto no corao dos moos, como na ocasio, em que os pais, e curas, ensinando os dogmas positivos da religio, que revestem a alma do dogma natural, ou religiosidade, lhes dissessem... (ANDRADA, 1816: 56). Ou seja, os dois colocam em seus planos de ensino que a educao funo e obrigao

    pblica do Estado e que religio ficaria a cargo dos pais. Herdeiros de ROUSSEAU, assumem que

    no h lugar para a religio entre as matrias de estudo. A cincia basta para formar o homem.

    (ROSA, 1974: 221)

    Vejamos como eles propuseram a diviso do ensino.

    O Rapport de CONDORCET, segundo CHIZZOTTI, propunha cinco divises, a saber:

    1 Escolas Primarias, uma para cada vila de 400 habitantes e uma para cada povoado situado a mais de mil toesas de cada vila de 400 habitantes; 2 Escolas Secundrias (primrias superiores), uma para cada distrito e para cada cidade com mais de 4.000 habitantes; 3 Institutos (corresponde aos liceus e colgios) em nmero de 110, ao menos uma para cada departamento; 4 Liceus (corresponde s antigas universidades e faculdades) em nmero de 9; 5 Sociedade Nacional de Cincias e Artes, dividida em quatro seces: cincias matemticas e fsicas, cincias morais e polticas, cincias aplicadas s artes, literatura e belas artes (BUISSON apud CHIZZOTTI, 1975: 54). A diviso da instruo, presente no corpo do projeto de educao, que CONDORCET

    apresentou Assemblia Legislativa francesa, est assim redigido:

    Ttulo Primeiro: diviso da instruo I Haver cinco graus de instruo que correspondero s necessidades que os diferentes cidados tm para adquirir mais ou menos os conhecimentos. II As escolas primrias formaro o primeiro grau. Ensinar-se-o a os conhecimentos rigorosamente necessrios a todos os cidados. III As escolas secundrias, estabelecidas nas cidades, formaro o segundo grau. Ser ensinado a o que necessrio para exercer os empregos da sociedade e preencher as funes pblicas que no exigem uma grande extenso de conhecimentos nem um gnero de estudo particular. IV As do terceiro grau tero o nome de institutos. Ensinar-se-o a os conhecimentos necessrios para preencher todas as funes pblicas e as que podem servir ao aperfeioamento da industria. V Haver no Imprio vrios estabelecimentos onde se ensinar o conjunto e as partes mais relevantes das cincias e das artes. Estes estabelecimentos, sob o nome de liceus, formaro o quarto grau de instruo. VI Uma sociedade nacional, pertencente ao Imprio, dirigir o ensino, ocupar-se- do progresso das cincias e das artes e em geral do aperfeioamento da razo humana. Ela formar o ltimo grau da instruo (CONDORCET apud CHIZOTTI, 1975: 55).

  • 10

    Em Martim Francisco, o ensino foi escalonado da seguinte maneira:

    Quanto ao 1 Grau:

    O primeiro grau de instruo comum, abrangendo todos os conhecimentos, que so mais teis, e necessrios ao homem, e tendo por fim habilit-los para o exerccio de todas as primeiras funes, pblicas, e particulares, a que so destinados pelo comando da lei, e interesse bem entendido da felicidade do pas, de que so membros, e dos quais as primeiras indefectivelmente lhes devem ser confiadas afim de evitar os males, que dessecam a seiva social pela ignorncia daqueles, que desgraadamente as exercitam... (ANDRADA, 1816: 3). Quanto ao 2 Grau:

    O segundo grau de instruo tendo por fim o estudo elementar de todas as matrias relativas s diversas profisses da sociedade, estudo, que deve sempre proporcionar-se ao gradual desenvolvimento das faculdades naturais dos discpulos, e aos servios de segunda ordem, necessrios ao bem do Estado; alm disto devendo este regular-se pela populao, indstria e riqueza do pas... (ANDRADA, 1816: 7). Quanto ao que se ensinar no 2 Grau:

    Este curso compreender 1, as noes fundamentais da gramtica latina, e seu estudo, juntando-se a ele o da lngua francesa, no que pode despender-se dois anos; 2 a metafsica, lgica e moral; 3 as cincias fsicas fundadas na observao e experincia; 4 as matemticas e a parte das cincias fsicas, fundadas no clculo; 5 a histria, e a geografia, juntando-se a elas retrica, ou a arte de exprimir idias (ANDRADA, 1816: 7). Antonio CHIZOTTI apontou a influncia de CONDORCET na MEMRIA de Martim

    Francisco, nos seguintes termos:

    ... A decisiva influncia de CONDORCET transparece na graduao do processo educativo, na idia de uma educao como dever do Estado. A instruo apontada como instrumento da liberdade, da igualdade, a fonte da moralidade pblica, da prosperidade do Estado e do progresso da humanidade, sobreleva-se a importncia dos estudos cientficos sobre os literrios, unifica-se a direo geral do ensino. O segundo grau de instruo do plano de Martin Francisco, completado pelo terceiro grau, reflete a ntida inspirao realista do currculo escolar apresentado por CONDORCET, em oposio ao sentido de cultura geral que veio assumir a partir da lei napolenica de 1802 (CHIZZOTTI, 1975: 57). A influncia de CONDORCET sobre Martim Francisco visvel, quando ele apontou a

    instruo pblica como um dever do soberano para com os seus vassalos, afirmando ser uma

    obrigao contrada no nascimento das sociedades polticas, entre o governante e os governados

    (ANDRADA, 1816: 1). visvel tambm quando ele prope uma instruo pblica disseminada

    para todos, de forma a promover e difundir a instruo e conhecimentos indispensveis aos

    homens destinados no s aos empregos pblicos da administrao do Estado, mas tambm ao

    progresso da agricultura, industria e comrcio (apud CHIZOTTI, 1975: 55):

    A instruo pblica um dever do soberano para com os seus vassalos, uma obrigao contrada no nascimento das sociedade polticas, entre o governante e os governados, e que manifestamente redunda em proveito de ambos: a instruo pblica, igual, e geralmente espelhada por todos os membros de qualquer Estado, nivela pouco mais, ou menos suas faculdades intelectuais; aumenta sem prejuzo a superioridade daqueles, que a natureza dotou de uma organizao mais feliz; aniquila esta dependncia real, triste monoplio, que as luzes de uma classe exercitaro sobre a cega ignorncia da totalidade; destri a desigualdade, que nasce da diferena de sentimentos morais; facilita a cada um o gozo dos bens, que a sociedade confere, corta pela raiz os males e brandes da discrdia, com que a ignorncia em diferentes pocas tem abusado o mundo, e dos quais esto cheios de pginas da histria; e finalmente conspira a promover a prosperidade dos Estados e a torna-los firmes, e estveis pela reunio das foras morais com as fsicas (ANDRADA, 1816: 1).

  • 11

    No Rapport, CONDORCET apresenta como princpio: Oferecer a todos os indivduos da espcie humana os meios de prover suas necessidades, de assegurar seu bem-estar, de conhecer e exercer seus direitos, de entender e executar seus deveres; Assegurar a cada um a oportunidade de aperfeioar seu engenho, de se tornar capaz para as funes sociais s quais tem o direito de ser convocado, de desenvolver toda a extenso dos talentos que recebeu da natureza para estabelecer uma igualdade de fato entre os cidados e tornar real a igualdade poltica reconhecida pela lei (CONDORCET apud ALVES, 1998: 17). E como objetivo da educao:

    Dirigir o ensino de maneira que a perfeio das artes aumente a felicidade da maioria dos cidados e a comodidade daqueles que as cultivam, que um grande nmero de homens se tornem capazes de bem desempenhar as funes necessrias sociedade, e que o progresso crescente das luzes abra uma fonte inesgotvel de recursos para nossas necessidades, de meios para a felicidade individual e de propriedade comum; Cultivar, enfim, em cada gerao, as faculdades fsicas, psquicas, intelectuais e morais; E, por esse meio, contribuir para um aperfeioamento geral e gradual da espcie humana, finalidade ltima para a qual toda instituio deve ser dirigida (CONDORCET apud ALVES, 1998: 18). Tanto na MEMRIA como no RAPPORT podemos perceber o mesmo tom ao

    prescreverem que os princpios de uma educao geral devem ser disseminados para todos os

    homens da sociedade; que a instruo pblica responsabilidade do Estado; que a educao deve

    capacitar os homens para o trabalho, promovendo a igualdade, mesmo que aparente, entre os

    cidados.

    Esses documentos, portanto, elegem como finalidade uma instruo nacional, como

    princpio social, pois a burguesia elegeu o talento como forma de ascenso na sociedade. Para tanto,

    todos deveriam ter os mesmos princpios de educao na sua base, valorizando aqueles que se

    destacavam em sua formao intelectual.

    As linhas traadas, assim, pelas propostas educacionais de Martim Francisco e

    CONDORCET, apontam, como finalidades da instruo pblica, a formao dos homens para

    servir sociedade, como homens livres e integrados por laos polticos. A instruo cumpria, assim,

    o princpio de nivelar os homens para a vida em sociedade, abolindo a hierarquia existente no

    Antigo Regime, colocando o talento individual como expresso social.

    Martim Francisco reconheceu a existncia de classes sociais, quando props estender a

    instruo para todos os membros de qualquer Estado, acabando por pensar em um modelo de

    educao dualista, pois restringiu a educao, no pargrafo terceiro de sua MEMRIA, sua

    condio, disposies naturais, e talentos pessoais. Ou seja, condio financeira para manter-se na

    escola; disposio para a educao formal e as posses.

  • 12

    Tratar da instruo pblica, portanto, implicava considerar a escola, sobretudo, como a

    instituio que tinha a mais relevante funo social: a formao do cidado (ALVES, 1998: 70).

    Nesse sentido, ela era entendida como um recurso decisivo para a consolidao da nova ordem

    social, pois a igualdade, enquanto pressuposto social, assegurava aos homens plenos direitos

    polticos. A educao, portanto, cumpria, na sociedade burguesa, um papel importante, que era o da

    destruio de dogmas, permitindo aos cidados instrudos uma liberdade que lhes traria condies

    de se reconhecerem enquanto homens livres, inseridos na vida social.

    Mas a educao no , para CONDORCET e para Martim Francisco, uma exclusividade do

    Estado. Como eles eram liberais, permitem, em suas MEMRIAS, que a instruo seja livre, ou

    seja, escolas poderiam ser abertos pelo Estado e pela iniciativa privada, pois, segundo eles, a

    rivalidade entre as escolas particulares e estatais seria benfica, gerando qualidade em ambas, j que

    livre concorrncia o melhor caminho para se obter um bom resultado. Eles defendem, tambm,

    uma instruo livre, sem o monoplio do Estado. Em nome da liberdade, recusam o monoplio do

    ensino pelo Estado, para que professores, fora do sistema oficial de ensino, possam ensinar

    livremente, sem a ingerncia do Estado.

    Para esses pensadores, o ensino estatal e pblico moldaria uma classe direcionada para o

    trabalho, enquanto o ensino particular prepararia uma elite ilustrada, para defender sua posio

    social de classe contra a ingerncia do Estado no mundo do trabalho.

    Assim, Martim Francisco, escreveu que:

    ...como toda instruo pblica no exclusiva, a lei deve nos diversos cursos, que compreende este plano, aplaudir, e favorecer os ensinos livres por mestres particulares; porque eles corrigem os vcios da instruo estabelecida, melhoram, ou retificam sua imperfeio, mantm pela concorrncia o zelo, e atividade dos mestres, e submetem o poder pblico censura dos homens iluminados, sem falar na maior massa de luzes, que se dissemina pelos povos (ANDRADA, 1816: 2). CONDORCET chegou a proclamar que o poder do Estado termine no umbral da escola, e

    que cada professor possa ensinar as opinies que acredita verdadeiras, e no as que o Estado cr

    verdadeiras (apud MANACORDA, 2000: 140). Martim Francisco tambm assume este

    afastamento do Estado do controle dos programas de ensino, deixando, a cada professor o deixar

    ler, deixar ensinar.

    Vejamos como Martim Francisco escreveu a respeito das liberdades de ensinar.

    Como, porm, o segundo grau de instruo trata das cincias mais em particular, bem que ainda elementarmente, por isso, me parece justo, se deixe a cargo do mestre a escolha dos livros, porque quer ensinar, fazendo-os, traduzindo-os, ou aproveitando os que h na nossa lngua; desta maneira mantm-se nele uma atividade til, ata-se-lhe novo motivo de emulao, e se lhe concede as liberdade de comunicar aos seus discpulos as descobertas teis, e curiosas, que o progresso no interrompido das cincias pode oferecer... (ANDRADA, 1816: 9).

  • 13

    Em CONDORCET e Martim Francisco est presente a negao ao Estado de duas coisas

    fundamentais, a saber: o monoplio do ensino e a nomeao dos professores. Para retirar do

    Estado, como vimos, o monoplio do ensino, permitindo aos professores escolherem livremente o

    que desejam ensinar, eles esbarraram no fato de que a nomeao dos professores era feita pelo

    Estado. Para que os professores pudessem ter liberdade plena, em ambas MEMRIAS a nomeao

    aparece como atribuio de homens eruditos.

    Na defesa das escolas particulares, diga-se de passagem, escolas burguesas, o Estado no

    poderia intervir. Por isso, o empenho desses homens em procurar anular a participao do Estado na

    Escola Pblica, tanto quanto aos programas de Ensino, quanto nomeao dos professores para a

    rede pblica. CONDORCET props que os professores fossem nomeados por sociedades

    cientficas, constitudas em cada departamento pelos homens eruditos mais esclarecidos

    (MANACORDA, 2000: 140).

    Martim Francisco, como podemos ler em sua MEMRIA, tambm defendeu que a

    nomeao dos professores ficasse a cargo das sociedades literrias. Elas seriam constitudas por

    uma elite culta, compromissada com seus pares na sociedade.

    Vejamos como Martim Francisco desenvolveu sua tese:

    No caso de se pretender dar a devida execuo a este plano, os mestres, que se houveram de criar para as cadeiras, que ele exige, podem ser propostos no nmero de trs para cada cadeira, precedendo exames, e conhecimento de sua capacidade, ou pelo diretor dos estudos se na Capitania, ou pelo Tribunal encarregado deste ministrio se na Corte, e dentre os trs escolhidos e aprovado um pelo soberano; mas quando pelo correr dos tempos, se institurem sociedades literrias, estabelecimentos, que pela grande massa de luzes, que procuram e disseminam, so da maior necessidade nesta, e outras capitanias, ento ficar a cargo de iguais sociedades propor trs mestres para cadeira, do diretor escolher um, e do soberano aprov-lo. Por um melhor semelhante mtodo h de esperar mais luzes e imparcialidade na nomeao dos mestres, mormente, por no ser ela decisiva, e no apresentar preferncia alguma pessoal; alm de que no pode to facilmente insinuar-se a intriga em dois juizes separados, independentes. Depois de institudas as sociedades literrias, julgo desnecessria a adoo dos exames pblicos; 1 porque estes concorrem insensivelmente a corromper os estudos, a substituir palavras a razes, conhecimentos suprfluos a necessrios, e instrutivos, cousas de pequeno momento a cousas grandes, e que aperfeioam a razo; 2 porque ento generalizadas as luzes, os homens de mrito so conceituados em seu justo valor pela opinio pblica, e logo o juzo de homens sbios, e imparciais, deve ser anteposto regra inserta de um exame pblico, que apenas pode decidir de uma qualidade, mas nunca do todo das qualidades diversas, que se requerem num mestre (ANDRADA, 1816: 9). O RAPPORT e a MEMRIA foram apresentados em situao diferentes. Na Frana, a

    burguesia ainda no havia se apoderado da mquina administrativa. No Brasil, a poltica era ditada

    pela nobreza parasitria e a mquina administrativa encontrava-se em suas mos. Assim, a

    burguesia francesa e a aristocracia brasileira precisavam impedir o controle estatal das escolas, pois

    o poder ainda se encontrava em mos inimigas. O que querem CONDORCET e Martim Francisco

    que o Estado crie escolas e pague seus mestres, mas sem exercer nenhuma tutela sobre eles.

  • 14

    A educao, nesse caso, deveria ser livre, porque a burguesia francesa e a aristocracia

    brasileira ainda no haviam assumido o controle da mquina administrativa. A partir do momento

    em que se tornam classes dirigentes assumem posies diferentes, mas isto uma outra discusso,

    que no faz parte de nosso objeto.

    Passemos agora a um estudo mais detalhado sobre o plano de educao de Martim

    Francisco.

    4. A Proposta Curricular de Martim Francisco

    O ideal de Martim Francisco imprimir educao uma tonalidade burguesa6,

    valorizando a preparao da criana para as relaes burguesas de produo. Como o mercado se

    estabeleceu em uma escala mundial e a circulao de mercadorias, em fins do sculo XVIII,

    encontrava-se sob o controle da potncia capitalista mais avanada do universo: a Inglaterra

    (ALVES, 2000: 167), era exigido dos homens uma maior qualificao educacional para o

    desenvolvimento da produo de mercadorias, quer agrcolas, quer manufaturadas. A educao

    pblica, neste caso, pressupe um processo de formao destinado aos filhos dos homens livres,

    pertencentes s camadas pobres da sociedade, nunca aos filhos da classe dominante, cuja formao

    visava ao bacharelismo. Era atravs da educao superior que a elite mantinha sua hegemonia de

    classe. Esta hegemonia ideolgica permitia elite implementar um modelo de dominao poltica

    capaz de assegurar o controle social atravs da ocupao e carreira poltica. Por isso, era

    fundamental que a elite fosse socializada atravs do ensino superior.

    A proposta educacional de Martim Francisco, em coerncia com esta tendncia, objetivava o

    desenvolvimento da agricultura e a expanso das atividades comerciais e manufatureiras. De um

    lado, o pleno conhecimento das riquezas naturais do Brasil era importante para a aristocracia, pois o

    objetivo era explorar economicamente essas riquezas, e por outro lado, a instruo, como

    pretendia Martim Francisco, era imprescindvel, pois formaria uma fora de trabalho qualificada

    para o exerccio das atividades agrcolas e comerciais.

    Para desenvolver seu programa de ensino, Martim Francisco fez, ento, uma srie de

    indagaes, justificando sua ao e, ao mesmo tempo, criticando a educao vigente no Brasil, que

    pouco contribua para o desenvolvimento das atividades burguesas de produo.

    Em sua argumentao, indagou Martim Francisco:

    6 O iderio educacional burgus tinha como fundamento uma escola para todos, isto um princpio democrtico que foi desenvolvido pela burguesia revolucionria francesa. No Brasil, estes princpios deveriam ser adequados ao regime de produo aqui existente, o que implicava adequar o liberalismo ordem escravocrata reinante.

  • 15

    ...Dever continuar uma instruo incompatvel com o progresso gradual de nossa razo, e fundada em princpios sem ordem sem liga, e sem aqueles pontos de contato, que facilitam o conhecimento das verdades e as conservam? Dever continuar uma instruo estribada em noes imperfeitas de coisas, ou pouco teis, ou suprfluas, ou nocivas ao bem da sociedade, e muitas vezes contrrias s verdades especulativas, e prticas, que o gnio e a atividade do homem descobriu j no vasto campo da natureza, j no exame do seu eu interno? Seguramente no; e para obviar todos estes inconvenientes com utilidade do soberano, e da prtica, que eu passo a esboar o plano de uma instruo comum a todos os povos desta capitania, desenvolvendo previamente os princpios, que lhe servem de base... (ANDRADA, 1816: 2). H, em sua indagao, pleno conhecimento das necessidades educacionais que o Brasil

    necessita para impulsionar seu pleno desenvolvimento. Consciente disso, Martim Francisco enfoca

    um processo de educao destinado a formar o novo indivduo que o Brasil necessita. Este novo

    indivduo o cidado, homem livre que dever ser educado para constituir-se socialmente.

    Este deveria despir-se dos preconceitos em relao ao trabalho manual e preparar-se para o

    mundo do trabalho, quer na agricultura; quer nas profisses ligadas ao comrcio e no trabalho

    manual. Assim, segundo ele, todos, com seu trabalho, concorreriam para a melhoria da sociedade.

    Para ele, a sociedade complexa, exigindo, para sua prosperidade, uma instruo que viesse

    atender as necessidades do trabalho agrcola, realizando experincias com plantas nativas e de

    outros lugares; levando ao conhecimento e a uma melhor preparao das terras para o cultivo; e, por

    fim, no trabalho urbano, formando a juventude para a indstria (maquinaria) e o comrcio (vendas,

    bancos, etc). Assim, cada homem livre deveria ter uma educao adequada ao seu talento ou

    posses, para melhor servir ao Estado e sociedade. Martim Francisco, nesse sentido, reconhece a

    especificidade eminentemente agrcola do pas.

    Com vistas a uma melhor aprendizagem, props um ensino em dois graus: o primeiro grau,

    com durao de trs anos, e o segundo grau, com durao de seis anos. A MEMRIA no faz

    referncia ao ensino superior. Esta graduao corresponde a um processo sistemtico de ensino, na

    qual,

    no primeiro grau de instruo deram-se de mistura os elementos de todos os conhecimentos, necessrios ao uso da vida; o segundo grau que j acha as faculdades de discpulo, mais desenvolvidas, e roborizados, exige-se que se tirem linhas de demarcao entre estes elementos, que se separem as matrias, e se acrescentem outras, e se d maior extenso ao estudo delas... (ANDRADA, 1816: 7). A instruo pblica tem, nesse sentido, um carter pedaggico, que parte da necessidade

    de alfabetizar os homens, dotando-os para a vida social, com conhecimentos e habilidades

    necessrias para inseri-los no mundo do trabalho. Era preciso forjar a fora de trabalho no Brasil.

    A aplicao de conhecimentos prticos, necessrios e teis para o trabalho no campo,

    desenvolvendo uma cultura agrcola, seria feita no segundo ano do primeiro grau de estudo,

    conforme demonstrou Martim Francisco em sua MEMRIA:

  • 16

    ...j com a explicao de suas utilidades mais palpveis na agricultura e nas artes; ajuntar-se-o descries de novos animais e vegetais, e os primeiros rudimentos prticos da cultura dos vegetais, tanto indgenas como naturalizados, por exemplo, o tempo e o modo de os plantar, as terras, que lhes so propcias, e as mquinas7, que dando-lhes uma nova forma, os dispem para os diferentes usos da vida... (ANDRADA, 1816: 5). O aluno terminar o compndio do segundo ano pelo estudo das quatro regras simples da

    aritmtica, base de todas as questes que se podem propor sobre os nmeros, e pelas primeiras

    noes de geometria, particularmente as que forem mais necessrias medio dos terrenos

    (ANDRADA, 1816: 5). Isto se tornava cada vez mais necessrio, pois a propriedade privada

    necessitava ser demarcada, implicando, portanto, um conhecimento de geometria, til e

    imprescindvel para um Estado que acabou de nascer.

    O segundo grau, para Martim Francisco, deveria atender, especificamente formao do

    trabalhador, para servir sociedade e ao Estado, de acordo com o talento individual de cada um, em

    conformidade com o desenvolvimento da produo e da riqueza industrial do pas. Ou seja, a

    educao deveria atender a duas formaes especficas, uma destinada formao da elite dirigente

    e a outra, formao do trabalhador, quer da agricultura, indstria ou comrcio.

    Nesse sentido, para ele,

    O segundo grau de instruo tendo por fim o estudo elementar de todas as matrias relativas s diversas profisses da sociedade, estudo, que deve sempre proporcionar-se ao gradual desenvolvimento das faculdades naturais dos discpulos, e aos servios de segunda ordem, necessrios ao bem do Estado; alm disto devendo este regular-se pela populao indstria e riqueza do pas... (ANDRADA, 1816: 7). Ao concluir o ensino de segundo grau:

    o moo se torna capaz do exerccio da mor parte dos misteres da sociedade; com eles chega idade de dezoito anos, tempo em que as suas faculdades esto quase em pleno vigor, e fora: tempo em que suas inclinaes por esta ou aquela profisso da vida, se fazem mais sensveis, e em que ele pode aplicar-se a esta ou aquela cincia em particular, que voluntariamente escolher, ou limitando as suas vistas ao cuidado, e manuteno de sua famlia, limitar tambm sua atividade s funes mais gerais da sociedade (ANDRADA, 1816: 7). Portanto, muitos teriam que ter uma educao que lhes possibilitasse, pelo menos, aprender

    um ofcio, qualificando-se como fora de trabalho para melhor servir sociedade. A educao ,

    para Martim Francisco, um marco social, no qual se distinguem e descobrem os talentos

    necessrios para o desenvolvimento das cincias superiores, aplicveis na produo agrcola e

    industrial e no prprio desenvolvimento da pesquisa cientfica.

    A nosso ver, a pesquisa cientfica um laboratrio necessrio para a produo burguesa,

    dado que esta precisa constantemente revolucionar seus instrumentos de produo. A educao

    burguesa, nesse sentido, um processo de formao contnua de inteligncias qualificadas e um

    meio de ampliar as riquezas e posses dessa classe.

    7 Grifo nosso.

  • 17

    Assim, a diviso da instruo pblica, feita por Martim Francisco em trs graus de ensino,

    cumpria este objetivo: qualificar a fora de trabalho para o campo e para a cidade, fornecendo, a

    cada um, um talento pessoal para a promoo social.

    O terceiro grau, diferente da Frana que instituiu a bolsa de estudo aos que, por mrito

    pessoal, conseguissem se destacar durante o curso, no Brasil, o mesmo foi reservado aos que tinham

    posses, isto , para os filhos da elite brasileira, pois estes poderiam permanecer mais tempo nas

    instituies de ensino, arcando com as despesas de estudo.

    Eis como ele explica as finalidades de cada um desses graus:

    ...a necessidade de leis especiais de instruo: na primeira, e mais comum a sociedade deve ter por fito, primeiro ensinar a cada um aquelas verdades, que so teis, e necessrias a todos, qualquer que seja sua profisso, ou gosto, atendendo ao grau de sua capacidade, e ao tempo, de que pode dispor: segundo conhecer as disposies particulares de cada moo afim de as poder aproveitar para o bem da generalidade; terceiro dispor os moos para os conhecimentos precisos profisso, a que se destinam. A segunda espcie de instruo deve ter por fim os estudos elementares de todas as matrias relativas a diversas profisses da vida, cuja perfeio redunda em vantagem, ou da sociedade, ou dos particulares. A terceira puramente cientfica deve formar os homens destinados pela natureza ao melhoramento da espcie humana por meio de novas descobertas, seu adiantamento, e multiplicao... (ANDRADA, 1816: 2). E eis como ele os justifica:

    A necessidade de dividir a instruo pelos moos em diversos graus, torna-se ainda mais sensvel se refletirmos na desigual fortuna de seus pais, nas diferentes circunstncias em que se acham suas famlias, e no estado, para que se destinam, dados estes, que da fora fazem variar o tempo, que o menino deve empregar em instrui-se; se igualmente refletirmos no progresso gradual, e desigualdade de suas faculdades intelectuais, o que faz, que nem todas as doutrinas possam ensinar-se em todas as idades, e que doutrinas ensinadas pelos mesmos mtodos no possam ser aprendidas por todos durante o mesmo nmero de anos. Graduando, pois os diversos cursos de instruo por estas vistas, concluo, que a soma de conhecimentos oferecidos a cada homem, deve proporcionar-se aos servios de diferente ordem, que o Estado aguarda; ao tempo, que cada moo pode empregar no estudo sem prejuzo de seu estado; fora da sua ateno; extenso e tempo de sua memria; e finalmente facilidade, e preciso de sua inteligncia (ANDRADA, 1816: 2). O fim ltimo da instruo pblica, ao formar o indivduo, era o desenvolvimento social e

    produtivo da sociedade. Assim cumpria sociedade poltica o dever de distribuir

    proporcionalmente, segundo os talentos dos indivduos e segundo as necessidades da sociedade,

    instruo para que todos com seu trabalho, pudessem contribuir para a prosperidade da nao.

    Toda sociedade poltica mantm-se, e prospera pelo servio de todos aqueles, que a constituem, logo, ela deva habilit-los para este fim; porm estes servios sendo de diversos graus de utilidade, e por isso exigindo o esforo, o emprego, j da universidade de seus membros, j de um menor e muito menor nmero deles, foram a sociedade a estabelecer debaixo de uma mesma razo, um sistema de instruo proporcionada aos seus diferentes misteres. Portanto no basta que a sociedade forme homens, releva demais que os conserve e os aperfeioes progressivamente; que os ilumine, abrindo a porta do templo da verdade, a todas as idades, e fechando a do erro, e da ignorncia; releva que, a alma dos meninos, cultivada pela sabedoria de seus pais, se disponha gradualmente a escutar os orculos da verdade, a reconhecer sua voz, e a no confundi-la com os sofismas da impostura; releva que a sociedade, deitando mo de todos os meios fceis, e simples de instruo. E oferecendo-a livremente, aos que a procuram, a reparta na razo direta dos diversos servios, que demanda (ANDRADA, 1816: 2).

  • 18

    Portanto, concluiu Martim Francisco que ao Estado cumpre oferecer uma instruo de

    acordo com os interesses e necessidades do Estado e da sociedade. Mas, para ele, diferentemente

    dos pensadores franceses, a educao no era obrigatria, mas destinada aos que a procurarem. Ao

    Estado cumpria a obrigao de abrir escolas onde lhes conviesse, pois a instruo pblica um

    dever do soberano para com os seus vassalos, uma obrigao contrada no nascimento das

    sociedades polticas entre o governante e os governados (ANDRADA, 1816: 1), respeitando os

    interesses e as necessidades do Estado, possibilitando uma expanso da rede escolar de acordo com

    o crescimento das receitas pblicas.

    No se trata, portanto, de atribuir ao Estado brasileiro a responsabilidade de uma educao

    universal, mas de

    estender-se o mais possvel pelos habitantes desta capitania; e por isso atendendo, j ao rendimento atual do subsdio, j as divises polticas do pas, j ao seu estado de populao, sou parecer, que se devem estabelecer 19 escolas regidas, cada uma por seu mestre, a saber, 10 na comarca de So Paulo, sendo a principal a da cidade, 5 na de Paranagu, 4 na de It, escolhendo para assento delas aquelas vilas, que forem mais povoadas, e tiverem mais comunicao com as freguesias intermedirias... (ANDRADA, 1816: 2-3). A expanso da rede escolar, at atingir todas as vilas da capitania, estava reservada ao futuro

    e dependia de condies financeiras favorveis.

    Cumpre salientar que a MEMRIA destoava do projeto de concurso pblico apresentado

    pela Comisso de Instruo Publica Assemblia Constituinte, da qual Martim Francisco fazia

    parte. O tratado de educao, a ser inscrito no concurso pblico, teria que se orientar pelo trip:

    educao fsica, moral e intelectual, conforme proposto pela referida Comisso. Em sua

    MEMRIA, Martim Francisco no fez aluso s atividades de educao fsica, considerada por

    LEPELLETIER como uma forma de preparar o corpo para as agruras da vida.

    5. Os Mtodos de Ensino

    Todo plano de educao contm um mtodo para que a finalidade da educao se cumpra. O

    mtodo, assim como os programas de ensino que sero trabalhados, acompanham o

    desenvolvimento social e as formas de produo da vida material dos homens.

    Martim Francisco, tal qual D. Pedro I, primaram pelo mtodo de Josef LANCASTER,

    adotado na Inglaterra, como forma de disseminar a educao para a sociedade, com seus custos

    reduzidos.

    O Advento da maquinaria na Inglaterra modificou as relaes de produo, pois imprimiu

    um ritmo intenso de trabalho no sistema fabril e, ao mesmo tempo, intensificou a diviso social do

    trabalho. Isto passou a exigir um maior nmero de pessoas qualificadas para atender a demanda de

  • 19

    trabalho. A educao, nesse processo, passa a ser vista como imperativa para a ordem social

    capitalista.

    No Brasil, pas de extenso continental e com uma populao dispersa, com algumas

    concentraes urbanas, as dificuldades encontradas para disseminar a educao seriam enormes e

    exigiria do Estado uma racionalidade na sua oferta.

    Ao propor sua MEMRIA, Martim Francisco levou em considerao dois mtodos de

    ensino em vigor na Europa, ambos direcionados para o ensino do proletariado. O mtodo

    LANCASTER e o mtodo PESTALOZZI.

    Lemos no captulo III, pargrafo 3o da MEMRIA, que trata do ensino de primeiro grau de

    instruo comum; distribuio das escolas, diviso do curso, e discpulos, a seguinte observao

    quanto ao mtodo LANCASTER:

    Na escola de cada vila os discpulas sero divididos em trs classes, e bastar, que cada um receba uma lio por dia; no posso porm atermar a durao horria da aula, porque esta s deve ser conhecida pela experincia do mestre no exerccio de suas funes, e aprovada pelo Diretor dos Estudos com conhecimento de causa. A totalidade da lio ser dada pelo professor, suprido, ou atenuado por discpulas da ltima classe em adiantamento, que para este fim ele houver de escolher; este mtodo, alm da vantagem de habilitar os discpulos a dignamente ocupar para o futuro lugar, que substituem, tem de mais o seguinte, e vem a ser que eles todos, no mudando de mestre, adquirem com o tempo unidade de instruo, e unidade de carter. Uma s sala decente, subministrada pelo Estado, proporcionada em grandeza, e repartida segundo a ordem das classes, suficiente para cada escola; e deste modo o professor; coadjuvado pelos discpulos mais adiantados e de sua escolha, pode manter a ordem em todas, sem fazer cargo a estes de cuidados superiores ao seu alcance (ANDRADA, 1816: 3). Lemos, tambm, no captulo VII, pargrafos 3o e 4o da MEMRIA, que trata das

    consideraes sobre o mtodo seguido neste primeiro grau de instruo, o princpio apresentado

    por PESTALOZZI, sobre seu mtodo de Ensino. Em sua crtica ao modelo fradesco, Martim

    Francisco assim se expressou:

    Banindo deste plano os castigos, baniu-se o antigo sistema fradesco, e absurdo, que engelhava a atividade natural dos moos, que habitava seus sentimentos morais, e acabava por plantar na alma de um homem livre as sementes da escravido e da baixeza; banindo-se deste plano toda a espcie de distines, baniu-se a ambio, este amor das dignidade, e prerrogativas pessoais e exclusive; baniu-se a ambio extremada, este Deus cruel, que ainda no contente com um templo, e incensos, at aspira a ter vtimas; baniu-se finalmente a avareza, esta ambio tranqila do ouro, que acaba produzindo todos os males, que atualmente contaminam e gangrenam o corao do corpo poltico. Por ltimo o menino, alm do amor e considerao de seus mestres, tem na casa paterna outros encorajamento so estudo; o desejo de ser aprovado, e amado de seus progenitores, a primeira de suas paixes; por conseguinte ele ser sempre, o que seus pais quiserem, sem haver preciso de outros estmulos ao trabalho, que manifestamente ultrajam a natureza (ANDRADA, 1816: 6). O que representa para Martim Francisco a unio desses mtodos de ensino em sua

    MEMRIA? Para ns, a tentativa de construir uma unidade em torno de um projeto poltico para o

    Brasil independente, pois:

    A instruo possibilitaria arregimentar o povo para um projeto de pas independente, criando tambm as condies para uma participao controlada na definio dos destinos do pas. Na verdade, buscava-se

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    constituir, entre ns, as condies de possibilidade da governabilidade, ou seja, a criao das condies no apenas para a existncia de um Estado independente mas, tambm, dotar esse Estado de condies de governo. Dentre essas condies fundamentais, seria, sem dvida, dotar o Estado de mecanismos de atuao sobre a populao. Nessa perspectiva, a instruo como um mecanismo de governo permitiria no apenas indicar os melhores caminhos a serem trilhados por um povo livre mas tambm evitaria que esse mesmo povo se desviasse do caminho traado... (FARIA FILHO, 2000: 137). Percebe-se nas palavras de Faria Filho que havia a necessidade de estabelecer um sistema de

    educao para educar o povo, para que o Estado pudesse ter condies de governabilidade, dentre

    dos princpios de um Estado moderno, ou seja, um Estado governado por leis, onde os direitos dos

    homens so pressupostos que legitimam a vida poltica no pas.

    Para disseminar a educao para uma massa cada vez maior da populao, pois as grandes

    transformaes operadas pelo modo de produo capitalista fizeram das cidades grandes

    concentrao populacional, criando a necessidade de educ-las, para que fosse melhor aproveitada

    sua fora de trabalho pelo capitalista. O mtodo desenvolvido por Joseph LANCASTER consistia

    no fato de utilizar os prprios alunos como auxiliares do professor, possibilitando uma ao

    pedaggica mais ampla, para atender o conjunto do proletariado, presentes nas cidades, cada vez

    mais em expanso.

    Dizia-se que, com esse mtodo, em um espao amplo, um professor, com ajuda de alguns

    alunos mais adiantados da sala, poderia atender at mil alunos em uma nica escola. Assim, Martim

    Francisco, homem de governo, em sua MEMRIA, v a possibilidade de expanso da escolarizao

    para um conjunto maior da populao ao apresentar o mtodo de ensino mtuo como uma arma

    para fazer com que a escola atingisse um nmero maior de pessoas.

    Segundo o Jornal O Universal, de 17 de julho de 1825, a adoo do mtodo mtuo tinha

    seus defensores por trs grandes vantagens: 1o abreviar o tempo necessrio para a educao das

    crianas; 2o diminuir as despesas das escolas e 3o generalizar a instruo necessria s classes

    inferiores da sociedade (FARIA FILHO, 2000: 141).

    Em relao ao mtodo desenvolvido por Johann Heinrich PESTALOZZI, que Martim

    Francisco adotou para sua MEMRIA, podemos destacar algumas consideraes:

    1. Valoriza a famlia como base para toda educao posterior por ser o lugar, por excelncia,

    do afeto e do trabalho comum.

    2. A educao do povo no se restringe simples instruo, mas visa humanizao pela

    qual o homem levado plenitude do seu ser.

    3. Considera o homem como um todo, cujas partes devem ser cultivadas sem a ambio

    burguesa (ARANHA, 1989: 185).

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    Vemos nos escritos de Martim Francisco, fazendo aluso ao mtodo de PESTALOZZI, uma

    certeza evidente, a de conformar os pobres com sua situao de classe.

    Quando Martim Francisco escreveu em sua MEMRIA que baniu-se finalmente a avareza,

    esta ambio tranqila do ouro, que acaba produzindo todos os males, que atualmente contaminam

    e gangrenam o corao do corpo poltico est presente que a educao dos pobres, significa para

    estes, a aceitao de bom grado de sua condio social, ao mesmo tempo que lhes retira a

    possibilidade de uma revolta contra a ordem social estabelecida.

    Tanto LANCASTER como PESTALOZZI, colocam como perspectiva, uma educao

    popular para a massa da populao, para que o Estado possa harmonizar as relaes de classe,

    evitando o perigo revolucionrio.

    6. Os Programas de Ensino

    Martim Francisco desenvolveu em sua MEMRIA toda a estrutura que os alunos deveriam

    aprender nos trs primeiros anos de escolaridade. Assim, desde aprender a ler e escrever, os alunos

    seriam preparados para o trabalho no campo, que requeria conhecimentos especficos e teis para o

    fortalecimento do Brasil como produtor de gneros agrcolas destinados ao mercado globalizado.

    Outra preocupao de Martim Francisco, presente no que se deve ensinar, com a geometria, que

    permitiria uma demarcao precisa da propriedade, evitando com isso possvel conflito territorial.

    Alm disso, Martim Francisco pensou uma educao voltada para o desenvolvimento de todas as

    potencialidades do educando, pois aprenderiam artes, histria natural, cincias e aritmtica. Enfim,

    teriam uma educao para a aplicao na vida prtica, pois a sociedade necessitava de uma ordem

    moral, objeto este que Martim Francisco expressou preocupao, pois deveriam ter regras explcitas

    para se trabalhar a moral, para disseminar boas virtudes sociais.

    O leitor ter que ter pacincia, pois transcrevemos na ntegra, o teor da MEMRIA que

    Martim Francisco produziu para a graduao do ensino nos trs primeiros anos de escolaridade da

    mocidade brasileira.

    No primeiro ano de estudo, criana:

    Ensinar-se- no primeiro ano a ler, e escrever. Adotando um carter de impresso, que representasse ao mesmo passo uma escriturao fcil, o menino poderia apreender simultaneamente ambos estes conhecimentos, o que lhe economizar tdio, e tempo; e se ajuntssemos ao estudo do conhecimento das letras, a ao de imit-los, isto o divertiria muito, e desta arte ele conservaria com mais facilidade as suas formas. Apenas o mesmo souber ler, e escrever, em vez de ocup-lo na leitura de coisas absolutamente superiores sua compreenso, sistema que a superstio, sempre frtil em meios de embrutecer os espritos, faz grassar pela mor parte do mundo, dever ele aprender por um livro mandado fazer para este fim, e designado para seu compndio, o qual contenha, 1 palavras isoladas, e sem nexo, que o menino possa compreender, e das quais o mestre lhe possa dar uma inteligncia mais precisa; 2 um nmero de frases simples, ou sentenas claras,

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    proporcionadas sua capacidade e que exprimam alguns destes juzos, que ele costuma diariamente formar, ou ento algumas observaes sobre objetos, que habitualmente v, de feio que nelas descubra a expresso de suas prprias idias, o que seria para ele um exerccio encantador: nesta ocasio pode o mestre explicar algumas das primeiras noes da gramtica de nossa lngua; 3 curtas histrias morais, despidas de toda a mxima, ou reflexo, prprias a faz-lo atentar sobre os primeiros sentimentos, que experimenta. Na primeira dcada da vida, a compaixo pelos homens, e animais, o aferro habitual por aqueles que nos fizeram ou desejam fazer bem, mimosos germens da ternura filial, e da doce amizade, so os primeiros sentimentos, em que se exercita a alma do menino: eles tm por origem imediata, j novas sensaes de prazer, ou de pena, j esta lei interna da nossa conscincia, que nos mostra a justia, e o dever, como regra de nossas aes em todas as circunstncias da vida; eles moram no fundo de nosso ser, apenas temos noo distinta de um indivduo. A compaixo pelos animais tem o mesmo domiclio, que a primeira; ambos nascem dessa dor; e dever irrefletidos, excitados em ns pela vista, ou lembrana, dos sofrimentos de outro ser sensvel. Se acostumamos o menino a presenciar com indiferena os males dos animais, enfraquecemos, ou embotamos nele os princpios retidos de sua moralidade, e sem os quais no h no homem, mais que um clculo de interesse, ou uma fria combinao de razo; ou ento geramos nele este hbito de dureza, predisponente ferocidade, e quase sempre pretexto especioso para todo proceder tirnico 4 descries concisas dos animais, e vegetais mais teis ao homem na vida social, particularmente dos indgenas ou naturalizados, que o menino pode observar e pela comparao das descries, que leu, julgar de sua exatido. Por este mtodo o menino, gostoso de recordar coisas, que viu sem ateno, apreciando a utilidade, que tm os livros, de trazer-lhe MEMRIA idias adquiridas, que lhe escaparam, habituar-se-ia a ver melhor os objetos ocasionalmente oferecidos a ele; acostumar-se-ia a formar noes mais precisas, e a distingu-las entre si; esta primeira lio de lgica, adquirida antes de conhecer este nome, no seria das menos vantajosas; 5 e ltimo: a exposio do sistema da numerao com os caracteres, que designam os nmeros, e o mtodo de com eles representar todos, escrevendo em cifras qualquer nmero exprimido por palavras e inversamente. Escuso dizer, que tanto no primeiro ano, como nos dois seguintes deste curso de instruo o professor deve ter em vista amestrar-se no mtodo de ensinar, e fazer-se compreender; instruir-se no modo de responder s pequenas dificuldades ou questes que o menino lhe possa propor; analisar escrupulosamente as palavras insertas no compndio a fim de dar ao discpulo idias precisas delas, no se esquecendo de empregar as palavras tcnicas que geralmente foram adotadas, no s porque a linguagem filosfica mais exata, que a vulgar, mas tambm porque iguais exprimem vocbulos exprimem noes mais precisas, designam objetos mais distintos, e correspondem a idias de mais fcil anlise. Escuso finalmente acrescentar, que neste curso de trs anos, o mestre no deve teimar, em que o menino aprenda muito de MEMRIA; mas em que lhe d conta da Histria ou descrio, que leu, ou do sentido da palavra que escreveu, e isto por muitas razes, porm a principal porque mais til, que o menino retenha idias, do que repita palavras. Esta doutrina aplicvel a todo gnero de estudos (ANDRADA, 1816: 3-4).

    No segundo ano: O livro de leitura do segundo ano principiar por histrias morais, nas quais os sentimentos naturais, que se pretenderem despertar j sejam mais refletidos; por exemplo, aos primeiros movimentos de piedade substituir-se-o os da beneficncia, e as douras que se derivam do exerccio da humanidade, ao sentimento do reconhecimento, e desejo de compensar os benefcios recebidos, e o zelo atento de amizade, a estes deveres, sem o exerccio dos quais se no pode ser fiel amigo, etc.. As histrias, pois nesta poca devem ter por fim despertar as idias morais, e excitar o mesmo a que as forme; dar-lhes maior extenso, e exatido; e finalmente conduzir o menino a compreender os preceitos do moral, ou melhor a invent-los. Para tal ensino basta que o mestre desembrulhe o fio, que encaminhou os inventores, mostre a vereda, que eles trilharam; e estou certo de que o discpulo chegar facilmente a iguais resultados. Um semelhante mtodo de toda necessidade, mormente no estudo das cincias morais, porque as leis imperativas e nossa vontade no nascem da vista dos objetos sensveis, mas da reflexo de cada indivduo sobre seu sentimento ntimo sobre o seu eu interno. A estas histrias seguir-se-o as descries dos vegetais e animais, algum tanto mais ampliadas, e j com a explicao de suas utilidades mais palpveis na agricultura e nas artes; ajuntar-se-o descries de novos animais e vegetais, e os primeiros rudimentos prticos da cultura dos vegetais, tanto indgenas como naturalizados, por exemplo, o tempo e o modo de os plantar, as terras, que lhes so propcias, e as mquinas, que dando-lhes uma nova forma, os dispem para os diferentes usos da vida. Terminar o compndio do segundo ano pelo estudo das quatro regras simples da aritmtica, base de todas as questes que se podem propor sobre os nmeros, e pelas primeiras noes de geometria, particularmente as que forem mais necessrias medio dos terrenos neste ensino o mestre se no limitar a ensinar puramente as regras, e noes determinadas; dever alm disto insistir sobre as razes em que elas se fundam: multiplicar as

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    operaes, afim de os habituar a elas; fazer aplicar as regras a diversos exemplos, propondo pequenas questes de fcil resoluo; e finalmente exercitar o menino em traar figuras, j a mo, j com o compasso e rgua (ANDRADA, 1816: 4-5).

    E no terceiro ano:

    ...deve consagra-se explicao dos princpios morais, que diretamente se lhe devem apresentar, e de um cdigo moral suficiente para o conduta da vida: exposio da organizao constitucional portuguesa, e da natureza dos poderes , que a mantm; a um resumo da histria natural do pas, e sua aplicao agricultura, e artes mais comuns; ao aperfeioamento dos mtodos de agrimensura, o que os fortifica no hbito da aritmtica, e geometria: finalmente exposio elementar de alguns princpios de fsica, e explicao dos efeitos das mquinas mais simples, e de mais uso na Capitania. No incluo no pequeno cdigo de moral as opinies religiosas do nosso culto por competirem privativamente aos pais, e curas dalmas; e com toda justia semelhantes opinies devem ficar a cargo deles. Com efeito nunca os princpios religiosos se arraigaram tanto no corao dos moos, como na ocasio, em que os pais, e curas, ensinando os dogmas positivos da religio, que revestem a alma do dogma natural, ou religiosidade, lhes dissessem: Vs comeceis os deveres, que ligam vossa vontade; vs conheceis os fins, para que a natureza e a sociedade vos destinam: apresentando-vos estas bases ns vos propomos novos estmulos ao exerccio de vossos deveres; ns acrescentamos uma felicidade mais pura felicidade, que eles vos prometem, e uma certa indenizao aos sacrifcios que eles vos demandam: ns no vos oferecemos um jogo novo, mas aligeiramos o peso do antigo (ANDRADA, 1816: 5).

    E, por fim, o que os alunos deve aprender no 2o Grau.

    Este curso compreender 1, as noes fundamentais da gramtica latina, e seu estudo, juntando-se a ele o da lngua francesa, no que pode despender-se dois anos; 2 a metafsica, lgica e moral; 3 as cincias fsicas fundadas na observao e experincia; 4 as matemticas e a parte das cincias fsicas, fundadas no clculo; 5 a histria, e a geografia, juntando-se a elas retrica, ou a arte de exprimir idias (ANDRADA, 1816: 7). Martim Francisco se preocupou, portanto, com o desenvolvimento das competncias e

    habilidades necessrias aos homens para produzirem sua existncia material, de acordo com suas

    posies na sociedade, pois todo desenvolvimento da cincia tem um princpio que deriva da sua

    organizao social. O princpio da Economia Poltica o trabalho livre. No Brasil vigorou a

    escravido negra. A educao aceita pela elite brasileira foi excludente, pois atenderia somente os

    brancos de acordo com suas posses.

    Assim, Martim Francisco props uma educao abrangente para o Imprio Brasileiro, pois

    s teria pleno desenvolvimento de suas potencialidades produtivas, quando o povo livre e branco

    tivesse uma instruo bsica que os qualificasse para o trabalho. Essa exigncia, tambm,

    pressupunha o fim das barreiras ao trabalho livre, objeto este que alguns deputados debateram, mas

    foram derrotados no processo de luta parlamentar, pois pisaram em terreno arenoso e a aristocracia

    no abria mo dos privilgios que o trabalho escravo lhes trazia.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ALMEIDA, Jos Ricardo Pires de. Histria da Instruo Pblica no Brasil, 1500 a 1889. Traduo Antonio Chizotti. So Paulo: EDUC, 1989.

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