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    A historia da arte italiana, de Giulio Cario ArganJulio Roberto Katinsky

    RESUMO: Trata-se de uma anlise dos percursos de G. C. Argan em sua Histria da arte italiana,traduzida recentemente para o portugus.

    PALAVRAS-CHAVE: h istria da arte; G. C. Argan; esttica.

    A Editora Cosac & Naify, em um notvel empreendimento editorial, publicou

    em trs volumes, como na verso original, a Historia da Arte Italiana, de Giulio

    Cario Argan, em traduo da professora Vilma K. Barreto de Souza, da Faculdade

    de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP.

    Com o declara seu autor, o livro, lanado originalmente em 1968, foi concebido

    como um didtico panorama da arte italiana dirigido aos estudantes pr-universi-

    trios. Assim, a materia apresentada cronologicamente, dividida em trs etapas:

    a primeira, da pr-histria at Duccio di Buoninsegna; a segunda, de Giotto a

    Leonardo, e a terceira, de Michelangelo ao Futurismo.

    O livro primeiro introduz a concepo de histria da arte de Argan - historia

    centrada na crnica das snteses operadas pela nossa civilizao ocidental respei

    tando, portanto, a viso tradicional que s reconhecia como antecedentes legtimos

    de nossa cultura a produo das populaes instaladas no Egeu e no mundo grego

    e a arte antiga na Itlia, isto , daqueles povos que, contemporneos dos gregos e

    talvez dos egeus, receberam de alguma forma o influxo civilizador desses povos indo-

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    A histria da arte italia na de Giulio Cario Argan Julio Roberto Katinsky

    europeus. Por isso mesmo, o captulo batizado de As Origens apresenta o quadro

    analtico menos defensvel, ainda que relacione minuciosamente todos os sitios

    arqueolgicos no espao geogrfico aproximado do que hoje chamamos Europa.

    Parece, nessa primeira parte, que os relatos mticos de Homero e Virgilio condu

    zam a viso do historiador. Mas essa viso redutora se desgasta no prosseguimento

    da obra, mostrando como nos distanciamos mentalmente do patriotismo de fundo

    religioso romano, umbilicalmente ligado ao fundamento ancestral, o culto dos

    antepassados com o elemento de segurana da cidade.

    Nesse sentido altamente esclarecedora a leitura critica de Ranuccio Bianchi Bandinelli, num comentrio a um texto do escritor grego Polbio que, em 166 A.C.,

    com a idade de quarenta anos, chegou a Roma, onde permaneceu por um perodo

    de dezesseis anos. Hom em educado na grande tradio intelectual ateniense, aponta

    os estranhos costumes brbaros, primitivos talvez dos romanos, por ocasio das

    exquias de um patricio ilustre. Nada mais distante de nossa viso de mundo do que

    aquele culto divinizante dos ancestrais, que, me parece, foi varrido da Itlia quando

    o Imperio se dissolveu e urna nova religio do homem se instalou atravs daquele

    cristianismo oriental que penetrou na Itlia e, aos poucos, atingiu toda a Europa.

    E aqui cabe a pergunta: por que ou com o o poderoso Imprio, que tantos teste

    munhos de sobrevivencia nos deixou, na Glia, na Espanha, em Portugal, e mesmo

    nas ilhas nevoentas, e que tanto deve aos povos do chamado Crescente Frtil ou,

    ao norte da Africa, ao Egito, foi to permevel a essa ideologia?

    Poder-se-ia objetar que a maior parte do que se conhece sobre esses povos foi

    desenterrada a partir do sculo dezenove, depois da expedio ao Egito do General

    Napoleo Bonaparte. Mas, se esse militar levou tantos cientistas consigo, no teria

    sido porque ele j sabia que havia coisas a conhecer? Por outro lado, Roma com

    seus despojos egpcios, como os obeliscos que h sculos pontuavam praas roma

    nas, no seria uma incitao, uma sugesto, um poderoso incentivo para alargar o

    conhecimento destes, cuja cultura j se fazia presente atravs do culto de divindades

    como Isis, encontrado em Pompia, ou do culto do deus Mitra, to disseminado em Roma?

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    verdade que o culto dos mrtires e, depois, o culto dos santos pode ser

    entendido, nesse caso, como uma continuidade do culto dos ancestrais Mas

    devemos reconhecer que o culto dos mrtires, inicialmente patrcios romanos, de

    mocratizou-se para todos os povos da Europa, em pouco tempo, medida que o

    Imprio desmoronava.

    Gombrich, em sua Histria da Arte,procurou estabelecer continuidades entre

    as vrias culturas mediterrneas, em especial a cretense e a monoica, e as outras eli

    minadas por Argan. No se trata, entretanto, de rejeitar a atitude critica de Argan,

    mas de tentar compreend-la.O perodo compreendido entre a dissoluo do Imprio Romano (cerca 476)

    e a atividade de Duccio de Buoninsegna (cerca 1300), ou seja, mil anos, ocupa

    metade do primeiro volume. Nesse perodo h uma forte alterao no imaginrio

    representado nas Igrejas europias, e nas igrejas italianas em particular: a presena

    dominante dos santos mendicantes, a partir do incio do sculo XIII (1200 em

    diante), a freqncia cada vez maior do Cristo crucificado, martirizado, e das santas,

    em seguimento ao culto avassalador da Virgem, me do Redentor. Nesse imaginrio,

    amplamente documentado no primeiro volume, nota-se o progressivo desapareci

    mento do Cristo, Senhor dos Exrcitos, e do Cristo Pancrator, Deus, filho do Pai,

    e a acentuao, cada vez maior, de uma religio terreal, mais prxima de todos ns

    e mais distante do Imprio; ou como diz Lionello Venturi1: Giotto (1266-1337)

    encerra uma civilizao pictural que se ocupa sobretudo de Deus e abre uma outra

    que se ocupa sobretudo do homem.

    Parece-me que a oferta das Leituras Crticas, entremeadas com os captulos,

    sempre que possvel, contemporneas dos perodos apresentados, uma homenagem

    e, ao mesmo tempo, uma sutil afirmao de uma das teses mais caras ao grande

    historiador italiano, Lionello Venturi, exposta em seu livro escrito no exlio, a His

    tria da Critica de Arte.Neste livro, Venturi chega mesmo a afirmar que a histria

    1. Venturi Lionello, Para compreender a pintura de Giotto a Chagall, trad, de Nataniel Costa. Lisboa, Estdios

    Cor, 1954, IV, p. 31.

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    da crtica de arte a prpria historia da arte. Tese difcil de ser aceita, pois, como

    observou Lavedan, poucos foram os perodos nos quais a crtica de arte mereceu

    registro, com extenso e profundidade considerem-se os trs mil anos de arte

    egpcia, os milhares de anos de arte pr-histrica etc. sendo anda urna incognita

    a ser desvendada como essa critica se exerceu no passado distante.

    Mas no pode ser coincidncia o fato de que as seis Leituras Crticas sejam

    compostas de dois textos gregos, praticamente contemporneos, do sculo de P

    neles, dois textos do sculo XX italianos e dois textos de medievalistas do mesmo

    sculo, um francs e um norte-americano. C ontudo, no deixa de ser verdade, que,se arte cosa mentale,como dizia Leonardo, podemos e devemos procurar as aproxi

    maes entre artes plsticas artes mudas, sem palavras com as vises de mundo,

    registradas e comunicadas com palavras. Mesmo porque nessas com unicaes no

    poder haver mais que intercomunicaes, alteraes, acrscimos, ampliaes de

    conceitos, de construes mentais que iro se enriquecendo mutuamente.

    Esse processo no parou nos tempos pretritos; continuou nos sculos posteriores

    ao tempo de sua elaborao. isso que permite novas leituras dos textos de Plato

    ou Aristteles, idias pensadas quando a velocidade de cruzeiro, por assim dizer,

    era quatro quilmetros por hora e o universo conhecido era um crculo de trs mil

    quilmetros, aproximadamente, com centro em Atenas ou Roma. E podemos,

    tambm, reinterpretar a arte grega e romana em nosso mom ento histrico.

    O segundo volume comea com Giotto e termina com Leonardo. o sculo

    italiano por excelncia, segundo Argan. Mas por que aceitar novamente a lio

    de Lionello Venturi, como citado anteriormente? Vasari inicia sua Histria de arte

    italiana com Cimabue, pelo menos cinqenta anos anterior a Giotto, e ainda,

    desse mesmo ponto de vista, j se faziam sentir os sinais de uma nova civilidade

    cem anos antes de Giotto. O fundo ouro, definitivamente eliminado por Giotto

    na Capela Degli Scrovegni, em Pdua, sem dvida deixa o ambiente celestial, para

    se fixar em uma histria antes de tudo terrena. Um outro sinal de mudana o

    aparecimento das ordens mendicantes, especialmente a franciscana, pois so ordens

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    intrnsecamente urbanas (seria possvel mendigar nas extenses vazias do antigo

    imprio Romano?), em contraposio s ordens rurais, auto-suficientes, das quais

    a mais importante foi a Ordem Beneditina. Mas o mosteiro beneditino no uma

    reproduo na terra dacivitas dei,com o D om Abade e sua dignidade e prerrogativas

    (no interior da Abadia) episcopais?

    A tradio nos diz que foi de So Francisco de Assis a idia de construir uma

    representao fsica do nascimento humano de Deus, que perdura at hoje na or

    ganizao anual do prespio Tambm desse perodo, anterior a Giotto, o culto

    daMadonna, da Virgem Maria, me terrena do filho de Deus, e a substituio da

    figura de Cristo Pancrator pelo Cristo pregado na Cruz, com sua morte tambm

    terrena, muito mais poderosa em nossas conscincias que sua ressurreio.

    As ordens mendicantes sero as universidades dos povos, j que as Universi

    dades europias colocaram-se a servio das coroas e da igreja, as mais importantes,

    surgidas entre 1100 e 1300.

    Imediatamente anterior a Giotto tambm uma nova maneira de pesquisa da

    realidade, expressa na carta de Pierre de Maricourt (cerca de 1220), uma espcie

    de discurso inaugural da tecnologia moderna, em oposio tecnologia antiga

    greco-romana. Maricourt investiga e faz experincias com a agulha imantada, com

    o propsito deliberado de aperfeioar a bssola, instrumento til em viagens ma

    rtimas e terrestres, naquele instante especialmente importantes para mercadores;

    enquanto a tecnologia antiga ainda estava exclusivamente ocupada co m a segurana

    e a sanidade das cidades.

    No menos importante essa figura emblemtica, o comerciante contemporneo

    de Dante e Giotto, Marco Plo, que no s foi a Pequim e voltou, como deixou

    um relato minucioso dessa viagem, mais parecido com um caderno de deve-haver

    de um comerciante em seu racionalismo cho, quando comparado com a ferie

    dos relatos rabes sobre as mesmas regies (As m ile uma noites). Isso nos sugere um

    embate ideolgico vigoroso entre duas vises de mundo, simetricamente opostas,

    mas que no deixaram de se fertilizar mutuamente, como atestam as tradues de

    textos de grandes filsofos e cientistas gregos para o latim, a partir das tradues

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    A histria da arte italiana de Giulio Cario Argan Julio Roberto Katinsky

    rabes, assim como os textos dos cientistas, filsofos e arquitetos islmicos sobre a

    cultura europia dos sculos XII, XIII, e as ltimas edies dos tratados mdicos

    rabes as escolas europias do sculo XVIII.Em suma, se Giotto pode ser entendido como o primeiro elo de uma corrente

    que se desenvolve por todo o sculo XIV e encontra seu clmax no sculo XV, com o

    quer Argan, podemos (e devemos) entender Giotto como objetivo final de todo

    um esforo que comeara, modestamente, em pleno sculo XIII, com o queria Vasari,

    ao iniciar suaHistoriacom Cimabue. M esmo porque, em Ravena, os mosaicos do

    Mausolu de Gala Placidia (sculo VI) nos mostram os santos entre verdes, azuis e

    vermelhos, bem terrenos, antecedentes romano-bizantinos paixo do Trezentos

    pela superioridade crist em relao ao Isl, que no conseguia conceber, ainda,

    a participao feminina e o direito voz dos filhos de Deus, queles habitantes

    menos poderosos das cidades, cujo nico poder era justamente sua ausncia de

    poder (os poverelli exaltados por So Francisco). Da mesma forma, o ocaso da

    Renascena se d pelo crepsculo da cidade-Estado: os tempos agora so das novas

    naes-Estado (Portugal, Espanha, Inglaterra, Paises Baixos, Frana). Tempos em que uma das menores naes (Portugal), no curto perodo de sessenta anos, pelo

    seu trabalho coletivo, dirigido e organizado pela coroa, foi capaz de abalr todas

    as certezas acumuladas durante milnios, com as faanhas de Colombo, de Vasco

    da Gama e de Ferno de Magalhes, pondo a nu a imensido dos novos mundos a

    devassar e fazendo de toda a imensa sabedoria antiga apenas um modesto acervo,

    a ser conservado e protegido.

    O volume segundo, entretanto, tem como pice os primeiros anos do quatrocen

    tos, com as trs figuras revolucionrias de Brunelleschi, Masaccio e Donatello, os dois

    ltimos subordinados ao arquiteto, que merece as seguintes palavras de Argan:

    Agora, esta [obra] nasce da experincia histrica e da inveno tcnica de um ho m em que traa um

    proje to e dirige do alto, mas de o utro plano, a execuo. Assim far para a cpula [da San ta M aria D el

    Fiore], a obra qu e o ocupa po r quase toda vida. A ela retornar para m elho r precisar o seu significado:

    com as pequenas tribu nas (1430) que, na base da grande abbada, devem dar-lhe leveza, liber-la no

    espao aberto, com o Lan ternim (1432), que fixa o eixo de rotao e o cen tro perspctico d o sistema.

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    Cad a vez mais se esclarece a sua inteno: p r no centro ideal do espao um organismo plstico qu e

    mea a relao entre o edifcio e a natureza, ponha em proporo o edifcio com a paisagem urban a,

    as colinas e o cu. Todas as outras obras insistem sobre o m esmo problema, fund am ental, d o espao:

    mas o espao sempre u m a realidade concreta, a dimenso da vida.2

    Ou seja, o espao aditivo medieval foi banido por uma concepo nica e total

    da criao, sendo a criao humana seu legtimo reflexo, como em um espelho.

    Note-se que Brunelleschi ter todas as suas obras, com exceo do palcio Pitti,

    examinadas pelo historiador, fato que no se repetir com nenhum dos arquitetos

    italianos, anteriores ou posteriores.

    As leituras criticas deste volume seguem o padro do anterior, entretanto, com

    um nico texto do sculo XV, a dedicatria de Alberti a Brunelleschi, em seu livro

    Da pintura .Os outros so todos crticos contemporneos do autor: Frederick An

    tal, Erwin Panofsky talvez uma homenagem indireta a Ernest Cassirer, de quem

    Panofsky foi o mais notrio discpulo , Andr Chastel e Rud olf Witkower. Aqui

    se patenteia o mais profundo esforo de Argan em libertar-se da tradio italiana

    da visualidade pura (portanto, tcnica) e encontrar-se com a escola francesa dos

    grandes iluministas da Encyclopedic, preservando, porm, alguns dos aportes da

    tradio visibilista da historiografia italiana e austraca3.

    N o difcil reconhecer que este volume central tambm o mais brilhante do

    conjunto e justificaria por si s a traduo da obra para o portugus. Pois ainda es

    tamos sofrendo as conseqncias dessa exploso criadora florentina, principalmente,

    que pode ser comparada ao sculo de Pricles em Atenas, pelo avano civilizatrio

    que materializou.

    Contudo, um dos artistas, Masaccio, reconhecido como um dos mais impor

    tantes, correu o risco de ter uma de suas obras primas, a capela Brancacci na igreja

    2. Giulio Cario Argan,Histria da Arte Italiana, trad, de Vilma de Katinsky, So Paulo, Cosac & Naify, 2003,

    II vol., pp. 177-178.

    3. Com efeito, pode-se interpretar toda a escola austraca, em particular a escola da visualidade pura, como

    um desdobramento da crtica italiana, desde Cennino Cennini, Lorenzo Ghiberti, Giorgio Vasari, Giovanni

    Bellori.

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    A Histria da arte italiana de Giulio Cario Argan Julio Roberto Katinsky

    Del Carmine, destruda, no fosse o empenho pessoal e apaixonado de Vasari junto

    aos Mdici.

    A nossa revalorizao da Renascena deve-se a todo um esforo critico do seculo

    XX, em seguimento nova viso da arte propiciada pela vanguarda da Escola de

    Paris, do incio do mesmo sculo. Pois a Renascena se constitui na mais completa

    recusa do pensam ento escolstico, enquanto reflexo do m undo real (Adequatio

    intelectus et rei), introduzindo a proposio da atividade criativa humana como

    instrumento de transformao e construo da realidade.

    O terceiro volume, que se inicia com o sculo XVI de Michelangelo e encerra-se

    com o Futurismo, o mais vulnervel a crticas, tanto quanto matria, propria

    mente dita, quanto aos critrios valorativos.

    As leituras criticas compem-se de um texto de Hauser sobre o Maneirismo,

    mero reconhecimento de justia, pois foi o historiador austraco quem lanou uma

    poderosa luz sobre esse momento da histria da arte, to desvalorizado pelos grandes

    intelectuais europeus anteriores. O proemio de Vasari, quando este artista andava

    nas pegadas de Maquiavel, prope uma arregimentao de todos os artistas das cida-

    des-estado da pennsula para compor um fundamento ideolgico para a unificao

    italiana sob os Mdici. Esse melanclico projeto artstico, ento fracassado, pois os

    Duques da Toscana no tinham envergadura nem para Maquiavel, nem para Vasari,

    beneficiar os Bourbon franceses, cem anos mais tarde.

    Os demais escritos so um magnfico texto de Giovanni Bellori e um texto sobre

    a arte barroca do prprio Argan. N o terceiro volume no h um desenvolvim ento

    altura do movimento neoclssico e nem mesmo do movimento romntico, ambos

    originados fora da Itlia, mesmo tendo, a arte italiana, produzido obras signifi

    cativas nesses dois perodos, atentos que estavam os seus artistas aos movimentos

    hegemnicos transalpinos.

    difcil aceitar a afirmao de Argan que o Neoclssico comeou em Roma

    e na Frana. Muito ao contrrio, Roma entra s como geografia, pois os artistasneoclssicos que se fixaram em Roma ou eram franceses, ou ingleses, e montaram

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    seu movimento contra Roma, identificada por esses artistas com o Barroco. E para

    esses intelectuais, o barroco era uma teatralidade mistificadora que escondia o vazio

    intelectual da contra-reforma, identificada com a Companhia de Jesus.O Neoclssico um movimento fortemente tributrio do pensamento francs

    do sculo XVIII, em um momento histrico to vigoroso quanto foi o sculo XV

    florentino e to libertrio quanto aquele. Mesmo seguindo a matriz francesa durante

    o sculo XIX, a Itlia deu mostras de um trabalho original, como a Galeria Vitto

    rio Emanuele em Milo, que no tem um equivalente em nenhuma outra capital

    europia. Espaos que podem ser aproximados Galeria so as ruas internas dos

    Shopping Centers do sculo XX.

    Poder-se-ia objetar que no se pode comparar o espao da Galeria milanesa,

    em dignidade e criatividade, com nenhuma igreja de Bernini ou Borromini, mas

    tambm poder-se-ia observar que as atividades que l se desenvolvem no teriam

    lugar nessas edificaes religiosas. A Galeria um espao gregrio, como definiu o

    arquiteto Lucio Costa, que no pertence a ningum, diferente das ruas internas dos

    shoppings que, por mais dotadas de vidros transparentes, continuam a ser espaossemi-privados. Tambm os pintores e escultores italianos oitocentistas, se no so

    to inovadores quanto seus colegas franceses, no deixam de compor o ambiente

    do sculo XIX, como seus colegas pr-rafaelitas, to corretamente exaltados pelos

    ingleses. Seriam to sem importncia a ponto de nem serem mencionados os mac-

    chiaioli,ou Medardo Rosso, no final do sculo? E Giovanni Boldini, retratista de

    damas da alta sociedade, sem dvida, mas com uma densidade que no passou

    desapercebida de artistas seus contemporneos. O fato de esses artistas viverem

    exilados em Paris no nega suas origens culturais, com o Goldoni no sculo anterior,

    que viveu e foi aceito tambm em Paris. Finalmente, o livro, tendo sua primeira

    edio em 1968, no justifica seu encerramento no Futurismo que, j em 1928,

    no representava, nem mesmo na Itlia, um movimento nacional.

    Por que esse alheamento da arte e da discusso artstica travada na Itlia depois

    dessa data? A afirmao de que a arte italiana, depois do Futurismo, se confunde com a arte europia no procede, pois ns acompanhamos, atravs do prprio Argan, as

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    Vhistria da arte italiana de Giulio Cario Argan Julio Roberto Kalinsky

    absores e influncias, desde os etruscos, do que se produzia fora da Italia e nem

    por isso a arte italiana deixou de ter sua individualidade estabelecida com clareza.

    Arrisco-me a dizer que seu desencanto com a arte italiana do Novecentos deriva de

    sua tbua de valores, marcada pela idia aristocrtica (croceana?) de hegemonia social.

    Nada melhor para revelar esse aspecto do que as prprias palavras do autor: Antonio

    Canova (1757-18 22 ) o ltimo artista italiano de importncia europia4,

    Por que Canova? Pela repercusso de sua obra nas Cortes Europias? Mas se o

    motivo fosse esse, ento Marcello Piacentini seria muito mais representativo de um

    artista italiano e de sua repercusso pelo mundo: no conheo uma nica grandecapital europia que no apresente um edifcio no qual as solues do arquiteto

    preferido de Mussolini no estejam evidentes. E mesmo nos Estados Unidos, cer

    tos edifcios da dcada de 30 mostram familiaridade com as solues plsticas do

    arquiteto Piacentini. Como, alis, em So Paulo, onde h inmeros edifcios de

    discpulos do arquiteto italiano.

    A omisso mais desconcertante, entretanto, a ausncia de qualquer comentrio

    ou anlise do cinema italiano, que, entre 1945 e 1970, pelo menos, influenciou

    todo o cinema mundial, inclusive o norte-americano, o mais rico do mundo. O

    neo-realismo italiano, como ficou conhecido, foi to importante no segundo ps-

    guerra quanto o cinema sovitico e o expressionista alemo o foram no primeiro.

    Podemos estender essa mesma observao para o desenho industrial italiano que,

    nos anos 60, influenciou todo o mundo. Como explicar essas omisses? A meu ver h

    uma interpretao possvel que explica, seno justifica, esse quadro de carncias.

    Voltemos origem da Histria da Arte como disciplina autnoma, com Ghiberti

    e seus Commentari.Podemos dizer que a Histria da Arte, desde quando surgiu,

    sempre teve um compromisso critico com a arte de seu tempo e assim prosseguiu

    at nossos dias.

    Vasari comenta sarcasticamente que, se fosse para desistir de suas posies po

    lticas, bastaria fazer um quadro sintico de todos os artistas que o precederam. A

    4. Giulio Cario Argan, op. cit.,Ill vol., p. 416.

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    Histria da Arte, desde ento, confundiu-se com uma proposio militante, no

    sentido de que sempre assumiu uma postura de apoio a certos artistas e de recusa de

    outros. A outra posio, de uma histria neutra, pode ser associada arqueologia,por mais que reconheamos a importncia dessa disciplina.

    Argan, Como todos os historiadores do sculo XX, assumiu seu compromisso

    militante nas monografias que escreveu sobre arquitetos seus contemporneos, como

    Walter Gropius e a Bauhaus, nos seus comentrios sobre Le Corbusier ou Walter

    Gropius, no perodo norte-americano.

    Entretanto, nesta Histria da Arte Italiana, Argan afasta-se de sua militncia,

    produzindo uma histria, at certo ponto, neutra. Isso porque seu escopo declara

    do foi escrever uma introduo arte italiana para jovens pr-universitrios. Mas

    a prpria excelncia de seu trabalho conduziu sua obra para camadas mais amplas

    de estudiosos e, ento, essas falhas assinaladas tornaram-se relevantes. E claro que

    no cabe mais escrever livros ad usum delphini.

    Estas notas, penso, mostraram a pesada dvida de Argan para com Lionello

    Venturi, intelectual dotado de uma respeitvel tradio de pensamento crtico,pensamento que mergulha suas razes na Renascena italiana.

    Mas tambm Venturi nunca negou sua dvida para com Benedetto Croce. Com

    todo seu reconhecimento do pensamento de Hegel, entretanto, o mestre napolitano,

    ao distinguir para a arte um dominio especial da intuio lrica, ou intuio como

    expresso, afasta-se da camisa-de-fora idealista de reduzir toda a atividade humana

    a conhecimento racional (O que real racional, o que racional real).

    Mas h um problema no resolvido na esttica croceana. Com a proposta do

    afastamento do conhecim ento racional do fim ltimo da arte, Croce tambm afastou

    qualquer compreenso consciente da atividade artstica, favorecendo involunta

    riamente todas as mistificaes irrealistas intuicionistas sobre a essncia da arte

    e, por conseguinte, esvaziando toda a possibilidade de se estabelecer uma tica

    universal, ainda que o prprio filsofo tenha sabido manter um comportamento

    de grande dignidade quando foi chamado a se pronunciar sobre o fascismo italiano, no momento da barbrie triunfante. E tanto so discpulos reconhecidos de

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    A histria da arte ita liana de Giulio Cario Argan Julio Roberto Katinsky

    Croce - Lionello Venturi, Bruno Zevi, Guido de Ruggero, Anto nio Gramsci, ou

    Argan , quanto os falsrios populistas daciv ilt latinae de outras impropriedades

    sobre a reconstruo do Imprio Romano contrafaes modernas dofascioroma

    no. Pois os smbolos fascistas, criados para anestesiar os povos, poderiam reivindicar

    a mesma intuio lrica que caracterizou a obra de Goethe, Schiller ou Leopardi.

    verdade que, tardiamente, em seuEsttica in nuce,Croce reconheceu o compromisso

    tico na obra de arte, mas esta atitude final no altera fundamentalmente seu pen

    samento: a esttica e a tica no formam um todo orgnico. Para Croce, o filsofo

    o nico rbitro da verdade, o artista deve som ente arte fazer, o poeta deve poetar.

    Da sua ojeriza por Schiller, pois o poeta alemo no se ajustava ao seu padro: era

    poeta e pensador respeitado, capaz de sutis argumentaes para provar suas teses,

    eminentem ente democrticas.

    Entrementes, podemos reconhecer que h uma condio na arte que irredutvel

    ao conhecimento racional, ponto alis assinalado desde Aristteles at Heidegger.

    Para Aristteles, porque a arte trabalha com juzos de aspirao, que no so nem

    verdadeiros nem falsos, portanto alheios lgica, como assinalou o prprio Croce.

    Heidegger, que reconhece o enigma da arte como intransponvel, admite a irre-

    dutibilidade da arte razo mas sem ser irracional ou contra a razo, diga-se de

    passagem, pois redutvel conscincia, aposteriori-,simplesmente se concretiza na

    obra, enquanto histria. Mas cada etapa de elaborao da obra de arte, que nunca

    se realiza fisicamente num nico instante, apela para o exerccio racional.

    Fazendo um paralelo: a Piazza della Signoria, em Florena, alterou-se radical

    mente quando Michelangelo ali colocou o seu Davi, m esmo que depois tenha sido

    trocada por uma cpia e o original conservado na Galleria deliAcademia.A paisagem

    da praa era uma antes desse fato e passou a ser outra, depois. E esse fato nunca foi

    necessrio. Mas, se aceitarmos essa proposio, foroso reconhecer que a mesma

    praa era uma antes de Arnolfo erigir seu Palazzo della Signoria, era outra depois,

    pois, em todos esses eventos, a paisagem sobre o qual repousam nossas interpretaes

    da realidade se alteram sucessivamente, inclusive pela ao modesta e annima doscalceteiros que trabalharam o piso da citada praa.

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    REVISTA DE Italianstica XIV 2006 Vrias

    o que acentua o poeta Rainer Maria Rilke quando insiste que a realidade do

    poema s ocorre com a presena, em nossa memria, de muitas paisagens, muitas

    cidades. Ora, arte alm de forma superior de desejo de dilogo, de encontro com

    o outro, tam bm desejo, mediante o dialogo, de convvio que ns realizamos, ou

    seja, se a histria concretiza a razo humana, em seu evoluir, desde seus primrdios,

    ela concretiza tambm, e muito mais, os desejos humanos.

    o que nos diz Leonardo: Todo nosso conhecimento principia no sentimen

    to5. O u como disse outro florentino ilustre, Brunelleschi: Todo falso pensar no

    v o ser que a arte d, quando a natureza seqestra6.Argan, apesar de tudo, no conseguiu ultrapassar seu prprio objetivo de intr

    prete. E suas tmidas incurses pela poltica no lhe deram a necessria abertura para

    analisar a arte italiana sob o fascismo e nem a arte e a sociedade italianas depois da

    instalao da Nova Repblica. Revelou-se, nesta obra, um aristocrtico cultor da

    arte tradicional consagrada.

    Mas, independentemente dessas limitaes, em nossa leitura, aHistria da Arte

    Italiana permaneceu como uma manifestao maior da nova Itlia, encerrando

    brilhantemente o esforo italiano do sculo XX. E no deixa de ser admirvel o

    trabalho de sua transposio para a lngua portuguesa, para o qual a Faculdade de

    Filosofia e Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo contribuiu

    to brilhantemente.

    ABSTRA CT: Si presenta unanalisi dei percorsi di G. C. Argan nella suaStoria dellarte italiana, tradottarecentemente in portoghese.

    PAROLE CHIAVE: storia dellarte; G. C. Argan; esttica.

    5. Ogni nostra cognizione principia da Sentimenti, in Leonardo da Vinci, Obras literriasfilosficas e morais,

    traduo Roseli Sartori, So Paulo, Hucitec, 1947, p. 46.

    6. Ogni falso pensiero non vede lessere / Che 1arte d, quando la natura invola. Brunelleschi, soneto contraGiovanni Acquettini da Prato, in Alessandro Parronchi, Studi su la dolceprospettiva,Milano, Aldo Martelli

    ed., 1964, pp. 425-426.

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