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HÁBITOS ECLESIÁSTICOS NA ROMA DO SÉCULO XIX Maurizio Bettoja 1 PREFÁCIO Trajar uma forma identificável de veste clerical sempre foi prescrito pela Igreja e, hoje, o uso da batina em todos os momentos tornou-se um forte símbolo de identidade sacer- dotal e adesão à tradição – particularmente à luz do amplo abandono da veste talar des- de os tempos do Concílio [Vaticano II]. É interessante notar, todavia, que o uso da batina originalmente parte do vestuário tar- dio-romano e medieval dos magistrados sofreu uma evolução nos últimos 150 anos; uma evolução com a qual muitos se surpreenderiam. Do ponto de vista da história, é possível que muitos não tenham conhecimento de que, há pouco mais de um século, a batina era exclusivamente de uso litúrgico, cerimonial e áulico 2 . O uso diário remonta somente à virada do século XIX, seguindo o costume francês dos tempos da revolução de 1789. Ironicamente, o uso diário, hoje considerado símbolo fortemente tradicional, fora, um dia, considerado de maneira diferente. É importante esclarecer que a intenção deste artigo não é desqualificar o uso da batina como vemos hoje. Ao contrário, o propósito é, simplesmente, oferecer uma considera- ção histórica, ilustrando a tradicional lógica, anterior ao final do século XIX, de ter o traje litúrgico e cerimonial distinto do cotidiano, tentando descrever o que era vestido pelo clero antes da mudança de fins do oitocentos, como mostrado numa série de foto- grafias da sociedade romana datadas entre 1860 e 1880 e de retratos e pinturas contem- porâneas. Devemos começar com o final. * * * PARS PRIMA Do diário romano do Príncipe Dom Agostino Chigi: Domingo, 6 de fevereiro de 1848 – Nos últimos dias, tendo alguns eclesiásti- cos, incluindo alguns do Cabido de São Pedro, aparecido em público portan- do chapéu redondo (no lugar do ordinário chapéu de três pontas) com uma curta borla e um cordão pendente, o Cardeal Vigário, por ordem afixada em todas as sacristias, proibiu qualquer inovação no traje dos padres. Segunda-feira, 17 de junho de 1850 – É tido por certo que o plano de ter o Sacro Colégio e todo o Clero usando sotaina como traje cotidiano foi excluí- do, e parece que não mais será discutido 3 . 1 [N.T.] Tradução do artigo produzido por Maurizio Bettoja a pedido de Shawn Tribe para o site www.newliturgicalmovement.org. Original em www.newliturgicalmovement.org/2010/09/clerical-dress- in-city-of-rome-in-19th.html e http://www.newliturgicalmovement.org/2010/09/clerical-dress-in-city-of- rome-in-19th_10.html. 2 [N.T.] Próprio da corte ou dos cortesãos. 3 [N.A.] Al tempo del Papa-Re: il diario del principe Don Agostino Chigi dall’anno 1830 al 1855, Milão, 1966. Uma reunião de cardeais discutiu a adoção da batina para prelados e clérigos.

Hábitos Eclesiásticos Na Roma Do Século XIX

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Hábitos Eclesiásticos Na Roma Do Século XIX

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  • HBITOS ECLESISTICOS NA ROMA DO SCULO XIX

    Maurizio Bettoja1

    PREFCIO

    Trajar uma forma identificvel de veste clerical sempre foi prescrito pela Igreja e, hoje, o uso da batina em todos os momentos tornou-se um forte smbolo de identidade sacer-dotal e adeso tradio particularmente luz do amplo abandono da veste talar des-de os tempos do Conclio [Vaticano II].

    interessante notar, todavia, que o uso da batina originalmente parte do vesturio tar-dio-romano e medieval dos magistrados sofreu uma evoluo nos ltimos 150 anos; uma evoluo com a qual muitos se surpreenderiam. Do ponto de vista da histria, possvel que muitos no tenham conhecimento de que, h pouco mais de um sculo, a batina era exclusivamente de uso litrgico, cerimonial e ulico2. O uso dirio remonta somente virada do sculo XIX, seguindo o costume francs dos tempos da revoluo de 1789. Ironicamente, o uso dirio, hoje considerado smbolo fortemente tradicional, fora, um dia, considerado de maneira diferente.

    importante esclarecer que a inteno deste artigo no desqualificar o uso da batina como vemos hoje. Ao contrrio, o propsito , simplesmente, oferecer uma considera-o histrica, ilustrando a tradicional lgica, anterior ao final do sculo XIX, de ter o traje litrgico e cerimonial distinto do cotidiano, tentando descrever o que era vestido pelo clero antes da mudana de fins do oitocentos, como mostrado numa srie de foto-grafias da sociedade romana datadas entre 1860 e 1880 e de retratos e pinturas contem-porneas.

    Devemos comear com o final.

    * * *

    PARS PRIMA

    Do dirio romano do Prncipe Dom Agostino Chigi:

    Domingo, 6 de fevereiro de 1848 Nos ltimos dias, tendo alguns eclesisti-cos, incluindo alguns do Cabido de So Pedro, aparecido em pblico portan-do chapu redondo (no lugar do ordinrio chapu de trs pontas) com uma curta borla e um cordo pendente, o Cardeal Vigrio, por ordem afixada em todas as sacristias, proibiu qualquer inovao no traje dos padres. Segunda-feira, 17 de junho de 1850 tido por certo que o plano de ter o Sacro Colgio e todo o Clero usando sotaina como traje cotidiano foi exclu-do, e parece que no mais ser discutido3.

    1 [N.T.] Traduo do artigo produzido por Maurizio Bettoja a pedido de Shawn Tribe para o site www.newliturgicalmovement.org. Original em www.newliturgicalmovement.org/2010/09/clerical-dress-in-city-of-rome-in-19th.html e http://www.newliturgicalmovement.org/2010/09/clerical-dress-in-city-of-rome-in-19th_10.html. 2 [N.T.] Prprio da corte ou dos cortesos. 3 [N.A.] Al tempo del Papa-Re: il diario del principe Don Agostino Chigi dallanno 1830 al 1855, Milo, 1966. Uma reunio de cardeais discutiu a adoo da batina para prelados e clrigos.

  • O que considerado mais ostensivamente tradicionalista do que o capelo romano e a batina? Todavia, na conservadora e tradicional Roma de meados do oitocentos, ambos eram, escandalosamente, uma inovao francesa moderna e liberal a resistir-se vigorosamente.

    O traje cotidiano para clrigos e prelados em Roma e no resto da Itlia era o chamado abito corto4 ou abito dabate5, que essencialmente uma casaca de l negra comprida at os joelhos (procedente dos sculos XVII e XVIII, que cristalizou e parou de se desenvolver) com cales, sapatos afivelados e um curto ferraiolo. Essa era a vestimenta apropriada at mesmo para a audincia privada de um cardeal com o Papa, muito embora nas audincias pblicas fosseo hbito coral. Gaetano Moroni, em seu famosoDizionario di erudizione storico-ecclesiastica (Ve-neza, 1840-1865-1879) menciona, inclusive, visitas de cardeais a soberanos em hbito curto; o qual era universalmente portado por todas as categorias de clrigos que no os religiosos. Antes do termo do sculo XIX, os padres geralmente usavam-no como o hbito prprio para os momentos no litrgicos: abatina, sendo um adorno muito mais formal do que o hbito curto, era reservada Sagrada Liturgia e s

    ocasies cerimoniais. Como hbito coral, a batina era designada por abito di formalit6.

    O hbito curto era uma mais austera verso do traje formal dos cavalheiros setecentistas. O abito di citt7, o traje formal ou ulico do laicato na Itlia, era muito similar, sendo totalmente negro e incluin-do, at mesmo, um ferraioletto8 ou um ferraiolone9, um casaco que vai at os joelhos, um colete, botes e fivelas de prata ou de gemas, uma gola rendada ou facciole10, punhos de renda, cales, uma sottanella ou saiote, sapatos de fivelas e uma espada. Esse hbito citadino permaneceu em uso generalizado at cerca de 1848 e continuou a ser usado na Corte Pontifcia at os tempos do Papa Paulo VI.

    4 [N.A.] Hbito curto. 5 [N.A.] Hbito de padre. 6 [N.A.] Hbito formal. 7 [N.A.] Hbito citadino, tambm conhecido como abito di spada. 8 [N.T.] Pequeno ferraiolo. 9 [N.A.] Grande e longo ferraiolo. 10 [N.A.] Facciole era o prolongamento do colarinho consiste de duas faixas de musselina ou renda usadas sobre o colete e no sob a veste como o colarinho clerical , originado no sculo XVII, ornado de rendas e ulteriormente praticamente substitudo por elas. O facciole de cambraia de linho ou rabat era tradicionalmente usado na Frana pelo clero.

    Padre em hbito curto, ferraioletto (as lapelas do ferraioletto so visveis sobre os ombros e a barra da capa pode ser vista pendendo pouco abaixo da casaca) e chapu romano tricorne. (MONTAULT, Mons. Barbier. Le coutume et les usages ecclesiastiques selon la tradition Romaine, Paris, 1897-1901)

  • O hbito curto para eclesisticos era uma verso mais sbria, austera e at mais digna do traje cavalheiresco, com algumas diferenas signifi-cantes: em primeiro lugar, ele era completamente ne-gro, desprovido de qualquer colorao; era de fazenda preta, nunca veludo ou seda (exceto o ferraiolo para estratos mais altos do cle-ro); sem colarinho, borla ou punhos rendados; os botes eram do mesmo material da veste (ou de seda colorida para prelados), nunca de prata, ouro ou pedras; no h espada. Particularmente significativo, na sociedade do Antigo Regime, a es-colha de um simples tecido negro e a ausncia de ren-

    das, as quais, sendo extre-

    mamente caras e preciosas, estavam intimamente asso-ciadas a cargos e splendor vit; o tecido negro era, ento, notavelmente auste-ro. A qualidade da fazenda era relativa posio ocu-pada: em Roma, por exem-plo, nenhum clrigo poderia usar veludo a no ser o Pa-pa, o qual vestia uma murahibernal de veludo prpura e uma longa capa magna tambm de veludo prpura por ocasio do Natal.

    Essa forma de vestimenta, digna ainda que austera e ime-diatamente identificada como eclesistica, correspondia s normas do Conclio Tridentino, o qual regulamentou que os clrigos deveriam se vestir digna, sbria e cleri-calmente, deixando a forma exata ao encargo do bispo diocesano e ao costume local.

    Sua Alteza Serenssima Dom Domenico Napoleone Orsini (1868-1947), por hereditarieda-de Prncipe Assistente da Santa S (cf. website da famlia Orsi-ni), em hbito citadino ou hbi-to de espada, quase idntico ao hbito curto, exceto pelo saiote ou sottanella, o facciole ou cola-rinho rendado, punhos renda-dos, fivelas e botes metlicos e espada. Sua altssima posio indicada pelo veludo, seda e renda em seu trajo e, especial-mente, pelo longo ferraiolo ou ferraiolone (similar ao ferraiolo vestido com hbito piano). Esse era o traje ulico usado pelos mais altos oficiais leigos da Corte Pontifcia; aquela veste neorrenascentista mais teatral dos Camariei Segreti di Cappa e Spada (camareiros papais) foi inventado sob Pio IX no final da dcada de 1840, antes do que eles usavam como ordinrio traje ulico o hbito citadino.

    Gentil-homem do Cardeal Ottaviani (1956). A fotografia est longe de ser clara, mas o traje idntico quele do prncipe Orsini, mas com algumas simplificaes: o ferraiolo um ferraioletto e, consequentemente, mais cur-to; o traje de l negra e os botes de seda negra. Sendo uma procisso, ele porta o chapu cardinalcio.

  • O uso do hbito curto era to universal que alguns padres podiam at mesmo cometer o abuso de celebrar a liturgia com ele, em vez de com a batina: nihil sub sole novi. Em

    1792, o Arcipreste Don Cesare Bellini, proco de Cressa, prxi-mo a Novara, assegurou a seu bispo de que em sua parquia nunca se cometeu o abuso de celebrar a Santa Missa sem a batina o que significa, com certeza, que essa no era uma prtica incomum.

    De fato, o hbito curto seria es-condido pelas alvas, as quais tinham, at a dcada de 1840, borlas ornadas de trs a, no m-ximo, dez centmetros de renda, muito frequentemente forradas para evitar rasgos. A renda era manufaturada e um tanto cara: rendas de quinze a vinte centme-tros seriam um luxo bastante cus-toso11. Outro abuso frequente, em especial na Frana dos modis-mos, era o uso de cores claras, veludos e sedas, no lugar da fa-zenda preta.

    A batina no era (e na Itlia ainda no ) reservada exclusivamente para o clero, mas era (e ainda ) um elemento essencial da veste

    cerimonial de magistrados, advogados, professores universitrios etc.; inclusive a faixa, exatamente como as usadas pelo clero. Esse traje deriva da veste dos magistrados da Antiguidade Tardia e Medievo. Na Itlia, por exemplo, os juzes vestem a batina, com-pleta com a faixa borlada, sob a toga ou robone, da mesma maneira os professores uni-versitrios.

    O barrete tambm no exclusivo dos padres, pelo contrrio, o chapu doutoral era par-te dos trajes cerimoniais de todos os doutores em direito, teologia, medicina etc. desde o medievo. Os toques dos juzes e professores atuais so um desenvolvimento do barrete doutoral.

    11 [N. A.] A renda permaneceu bastante cara at a difuso das mquinas rendeiras, na dcada de 1840, o que fez com que o preo casse drasticamente, permitindo que alvas, roquetes e sobrepelizes fossem orna-dos de grandes rendas com sessenta ou mais centmetros de comprimento. Antes da produo industrial, o custo de rendas feitas a mo nesse comprimento seria exorbitantemente cara, alcanando o que equivale hoje a alguns milhares de euros, o que poderia ser pago somente por alguns cardeais e prelados bastante ricos.

    Cardeal Luigi Macchi (1832 +1907) e sua corte, c. 1890. O cardeal no est usando a cruz peitoral, um desenvolvi-mento posterior. Note-se, da esquerda para a direita, trs criados de libr com os tradicionais gales com as armas do cardeal; o caudatrio, segurando o tricorne romano do cardeal; o camareiro; o cardeal, sentado sobre um tronetto; atrs do qual encontra-se o copeiro e o segundo gentil-homem (ambos em hbito citadino), depois o secretrio (usando um negro ferraiolone de seda), o auditor e, por fim, o decano (de gravata branca, cales, ferraiolone e fivelas), segurando o galero. No plano de fundo, provavel-mente o maestro di casa, e trs aiutanti di camera, de grava-ta branca e colete preto. O secretrio, o maestro di camara e o decano usam ferraiolone de seda preta. A corte cardi-nalcia era dividida em Antecmara Nobre (o maestro di camera, presidindo, e auditor, secretrio, copeiro e gentis-homens), Segunda Antecmara (maestro di casa, caudata-rio, capelo e camareiro) e, finalmente, Cmara ou Quarto (decano, aiutanti di camera, criados e cocheiros). A corte de um cardeal ou prncipe era tambm conhecida como fam-lia ou casa. A corte pontifcia , ainda hoje, chamada de famlia ou casa pontifcia.

  • As figuras que se seguem ilustram o respectivo traje de doutores graduados em Bolonha e Roma nas faculdades de teologia, medicina, direito e filosofia e mostram um clrigo e dois leigos vestindo batina e faixa e segurando o barrete. As imagens so da coleo pessoal do autor, Collectio legum et ordinationum de recta studiorum ratione editarum a SS. D. N. Leone XII P.M. et Sacram Congregatione studiis moderandis, Roma 1827.

    Um clrigo, graduado em teologia pela Universidade de Bolonha. Ele usa uma mozeta ornada de pele e segura o barrete doutoral em sua mo. Notem-se os sapatos de fivelas, sempre usados com trajes for-mais.

    Leigo graduado em direito, medicina, filosofia ou letras pela Universidade de Bolonha: a bati-na, a faixa e o barrete (semelhante ao dos pa-dres, mas com quatro arcos). Ele usa uma toga ou robone sobre a batina; a cor da faixa variava conforme a faculdade e eram, respectivamente, azul claro, vermelho, verde e branco.

    Leigo graduado em medicina pelo Arquigi-nsio Romano. Note-se o almuce, idntico ao dos cnegos, o barrete e a borla da faixa.

  • At 1870, os Senadores Romanos vestiam batina prpura sob o robone tecido a ouro, com faixa de chamalote prpura e borla, como pode ser visto no Museo di Roma no Palazzo Braschi: o traje era idntico ao dos cardeais e inclua at mesmo um galero prpura.

    Isso demonstra que a batina no um traje exclusiva-mente clerical, mas essencialmente cerimonial comum a clrigos, magistrados, professores, graduados, o que, paradoxalmente, fazia do hbito curto muito mais ecle-sistico do que a batina em seus dias.

    Monsenhor Barbier de Montault (1830-1901), o grande historiador, erudito e pesquisador dos trajes clericais, em Le coutume et les usages ecclesiasti-ques selon la tradi-tion Romaine (Pa-ris, 1897-1901), observa que o h-bito curto represen-ta uma veste especi-ficamente clerical (...) porque total-mente distinta da secular e porque

    no usada por nin-gum que no per-tencesse ao clero; para prelados, sua veste de cidade em oposio de viagem a mes-ma que a do restan-te do clero exceto pelo filete prpura dos cales, colete e casaca. As meias, colarinho e solidu permane-cem prpura (...) No inverno, esse traje completado por uma capa violcea ou prpura com adorno dourado12.

    No coincidncia que a introduo do capelo romano (que na verdade francs) e da batina para todo o clero tenha ocorrido em 1848, ano da revoluo e da extremamente

    12 [N.A.] Eu gostaria de agradecer ao Padre Brice Meissonnier, FSSP, presidente da Societ Barbier de Montault, por sua ajuda concernente aos trabalhos de Monsenhor Barbier e as gravuras e pinturas de padres e prelados de seu arquivo que ele carinhosamente enviou-me.

    Cardeal em hbito curto e tabarro andando nos jardins pblicos de Pincio. Note-se o filete vermelho em seu traje e o adorno dourado em seu tabarro. Seus servos o acompanham: a etiqueta proibia que magistrados ou prela-dos de seu estrato andassem ss, deviam, antes, ser acompanhados por algum membro de sua corte. (A pequena gravura faz, provavelmente, par-te de uma srie que mostra os trajes civis e eclesisticos em Roma. Esse tipo de srie era preparada para grandes turistas e viajantes desde o incio do sculo XIX e mostrava todas as principais personagens de Roma e suas vestes, a comear pelo Papa e sua Corte, passando por cardeais e suas cortes, o senado romano, magistrados, ordens religiosas etc.)

    Recente retrato de um juiz italiano por Andrei Dubinin. Ele est vestindo uma batina preta com facciole e uma faixa bor-lada vermelha sob a toga vermelha; na mesa, uma verso modificada do barrete doutoral. Este era o traje formal para os juzes nos estados da Casa Real de Savia, posteriormente do Reino da Itlia e, atual-mente, da repblica italiana. Ele ainda usa condecoraes na batina.

  • anticatlica Repblica Romana que se seguiu: esses novos itens eram fortemente asso-ciadas ao catolicismo liberal francs.

    Na Frana ps-revolucionria o uso da batina aumentou e, em meados do sculo XIX, tornou-se praticamente generaliza-do.

    Monsenhor Barbier de Montault, escre-vendo na dcada de 1890, aponta que o hbito curto geralmente usado pelo clero secular no s em Roma e em toda a Itlia mas no mundo todo, com a exce-o da Frana.

    Foi o moderadamente liberal Pio IX quem criou o abito piano para as audin-cias privadas de cardeais e prelados com o decreto Firma permanente (1851), oqual descrevia a nova veste que deveria substituir o hbito curto como traje uli-co informal. O Papa era cnscio do uso quase geral da batina na Frana.

    Essa nova veste era um misto da zimarra (roupa domstica semelhante a uma toga abotoada com mangas de pellegrina13) com hbito coral e hbito curto. Deste ltimo, reteve os filetes violceo ou prpura, o ferraiolo em sua verso mais comprida de ferraiolone, o colarinho e as meias. Os sapatos de fivela permaneceram, bem como o tricorne romano. O hbito piano inclua tambm um elemento do hbito coral, a saber, a faixa, abolindo, contudo, o fiocchi ou borla e substituindo-o pela franja. Esse traje, de acordo com Moroni, poderia ser usado na vida privada14.

    O decreto foi largamente tratado como letra morta, tanto em Roma como no resto da Itlia: em geral, prelados e clrigos continuaram a vestir o hbito curto at a virada do

    13 Nabuco (Ius pontificalium, Paris, 1956) escreve: Antiquitus extabat distinctio inter vestem talarem et togam aliam talarem qu zimarra nucupabatur. Vestis talaris erat potius pars habitus prlatitii seu di formalit, et contra zimarra erat vestis domestica ampla, cum supermanicis et parvo palliolo humerali pellegrina. Toga hc a Summo Pontifici (a veste branca que o Papa, hoje, quase sempre usa) et a romana prlatura adhibibatur domi et in privati receptionibus. [Outrora, havia distino entre veste talar e aquela no talar como a zimarra. A veste talar era, de preferncia, o hbito prelatcio ou formal, e em oposio zimarra estava a veste domstica ampla, com sobre-mangas e uma pequena capa de ombros ou peregrine-ta. Este traje era usado pelo Sumo Pontfice e pelos prelados romanos em casa e nas audincias privadas.] 14 Acrescenta Nabuco: Sed tempora mutantur et Pio IX necessarium visum est ius novum instituere: vestes prlatitias pro functionibus sacris vel solemnioribus reservandas, aliumque habitum minus solem-nen approbandum ad usum civilem seu extra liturgicum. Et sic in vita ecclesiastica introductus est habitus civilis seu in civilibus receptionibus, conventibus, commessationibus vel ceteris huiusmodi adhibendus, qui quidem habitus a Pio IX pianus nuncupabatur. [Mudando, contudo, os tempos, Pio IX viu como necessrio instituir novo direito: as vestes prelatcias seriam reservadas s funes sagradas ou solenes, e um outro hbito menos solene seria aprovado para o uso civil ou extra litrgico. E, assim, na vida ecle-sistica foi introduzido o hbito civil e nas recepes civis, conventuais, comensais e outras, do mesma feita, o uso daquele hbito de Pio IX, chamado piano.]

    Dom Antnio Alves Martins, bispo de Vizeu, c. 1870. Note-se a cruz peitoral usada com hbito curto e o capelo romano (francs) sobre a mesa.

  • sculo e, em alguns casos, at a dcada de 1930. O Cardeal Pecci, futuro Leo XIII, nunca abandonou o hbito curto. Algumas tentativas precoces de ter todo o clero usando batina integralmente falharam, como a de So Carlos Borromeo, por exemplo.

    A medida de Pio IX causou descontentamento e certa resistncia, haja vista que foi sen-tido como inapropriado que o clero usasse no dia-a-dia aquilo que era normalmente re-servado para a liturgia e cerimnias. Argumentou-se que era como se se usasse traje de gala o dia inteiro e, principalmente, que isso obscurecia a distino entre o hbito ordi-nrio e aquele de maior dignidade (o hbito formal), reservado para a Sagrada Liturgia e as cerimnias. Monsenhor Barbier deplorou o uso de batina nas ruas, o que ele achou bastante inapropriado.

    Afora o forte apego prtica tradicional por parte do clero, havia prticos motivos que aconselhavam o uso do hbito curto: ele era, por exemplo, mais fcil de manter limpo do que a batina nas ruas poeirentas e enlameadas (em sua maioria no pavimentadas), em especial para o baixo clero que tinha cuidado pastoral. Esse ponto prtico era fre-quentemente levantado quando das primeiras tentativas de impor a batina como hbito ordinrio. Deve-se recordar que as roupas da dcada de 1870, embora no to caras quanto as do sculo XVIII, ainda eram um tanto caras. Alm do que, o praticamente nico mtodo de se retirar manchas era esfregando, e uma batina manchada s poderia ser jogada fora, caso a mancha no sasse.

    Foi somente depois de 1870 e da perda do poder temporal que os prelados comearam a usar o hbito piano com mais frequncia, pois que o Papa desejava que os clrigos ado-tassem um modo mais clerical de se vestir, depois da queda dos Estados Pontifcios e num perodo de perseguio. Com o gradual desaparecimento do hbito curto na Corte Pontifcia, os prelados comearam a abandon-lo e, ento, os padres os seguiram e co-mearam usar a batina at mesmo fora da igreja e de casa.

    Mas ainda no Primeiro Conclio Vaticano houve uma proposta francesa para o uso uni-versal da batina, o que demonstra o quo pouco usada ela era. Nabuco (Ius pontifica-lium, Paris, 1956) atesta: proposita in Concilio Vaticano qustione de clericorum ves-tibus, episcopi Galli usum vestium talarium ubique et semper ad universam Ecclesiam extendi voluere, sed eorum emendatio reiecta est; o Conclio sentiu que non esse progrediendum ultra terminos Tridentinum Concilii, qu clericorum vestes vult esse honestas, a laicalibus distinctas, propri dignitati et honori clericali congruentes, sed formam ipsam episcopi ordinationi et mandato determinandam reliquit. Contudo, a influncia francesa se espalhou e por volta do final do sculo a batina e o chapu redon-do j estavam em uso generalizado em todos os lugares. O tradicional chapu tricorne romano j estava, ento, fora de moda at mesmo com o hbito piano.

    O hbito piano para prelados, e tambm para padres, tornou-se, consequentemente, o traje ulico informal ou hbito de etiqueta, como Nainfa15 informa, a ser usado em todas as circunstncias as quais os costumes sociais e a etiqueta requerem um traje for-mal para o leigo, nomeadamente visitas, recepes, jantares, concertos etc. vestido, tambm, nas audincias pontifcias (...)

    Quando usado nas ruas ou fora de cerimnias, a batina deveria ser coberta pela sobreca-saca clerical ou greca, que se originou em Frana naquele tempo (a douillette). Esta

    15 [N.A.] Costume of Prelates of the Catholic Church according to Roman Etiquette, Baltimore, 1909.

  • regra foi reiterada ainda no Snodo Romano de 1960 sob Joo XXIII. Mas j na dcada de 1930 em alguns pases, como a Alemanha, parte do clero j tinha abandonado a bati-na em favor da camisa clerical ou clergyman com terno.

    PARS SECUNDA

    Uma srie de fotografias histricas veio recentemente luz desde os arquivos de uma famlia da Nobreza Romana, foram tiradas entre 1850 e 1880 pelo famoso fotgrafo romano DAlessandri. Essas fotografias mostram no somente membros da sociedade romana mas tambm um nmero de prelados e eclesisticos, dentre os quais a maioria de bero nobre. A maior parte deles veste o tradicional hbito curto, enquanto alguns outros usam o novo hbito piano ou o hbito coral formal.

    Essas fotografias mostram o que era considerado o hbito apropriado para prelados e clrigos at a dcada de 1880 e, talvez, at depois. Que o hbito curto poderia ser uma veste bastante formal demonstrado pelo uso anexo de vrias comandas e medalhas pelos prelados retratados. Do mesmo modo, todos os clrigos fotografados usam tam-bm o solidu para cobrir a tonsura. Os padres mais idosos eram vistos usando o mesmo at cerca da dcada de 1970 na Itlia.

    As fotografias so cuidadosamente compostas, e a procedncia dos formais retratos pin-tados bastante evidente pela pose, fundo e composio geral. Quando prelados ou car-deais esto usando hbito coral, as cadeiras e acessrios so mais formais e caractersti-cos de sua posio: eles sentam-se num tronetto, que uma poltrona semelhante a um trono, ladeada por uma mesa coberta de damasco ou de um rico consolo como suporte de tinteiros (o que alude assinatura de documentos enquanto membros do governo civil ou eclesistico); seus ps descansam sobre uma almofada ou escabelo. Quando em hbito curto ou piano, a pose e o fundo so menos formais. Todos usam fivelas em seus sapatos, posto que sapatos sem fivelas eram de uso informal.

    Em qualquer caso, evidente que as fotografias mostram prelados e padres em sua mai-or formalidade e elegncia e que os retratados so membros da aristocracia romana.

    muito provvel que certo nmero dos prelados, clrigos e cardeais retratados no fos-sem sacerdotes mas somente tonsurados ou, no mximo, diconos: Cria Romana concernia principalmente o governo e a legislao, portanto uma grande parte dos curi-ais incluindo cardeais, como o Cardeal Antonelli, por exemplo era de clrigos mas no de sacerdotes.

    Uma quantidade de fotografias mostra cardeais, prelados e padres no ento recente hbi-to piano e uma, de um padre francs, mostra-o vestindo a batina e o capelo romano em uso na Frana, uma veste que pelo final do sculo espalhou-se pelo restante da Europa.

  • CATLOGO DE FOTOGRAFIAS

    Cardeal Giuseppe Ugolini (1783-1867) O cardeal endossa um tabarro prpura file-tado de ouro e meia de seda prpura e usa sua casaca desabotoada, como usual no sculo XVIII. Note-se a elegante e universalmente indiferente pose do cardeal e o penteado la Brutus, que estava em modo na sua juventu-de.

    Cardeal O ferraioletto pende de seus ombros; note-se o forro de seda prpura da casaca e o tricorne com cordes prpuras e borlas sobre a mesa.

  • Comendador do Santo Esprito Esse prelado, muito provavelmente um bispo haja vista estar usando meias de seda viol-cea, usa o distintivo de seu ofcio (a cruz du-pla do Esprito Santo encimada pela Pomba num sol resplandecente). Note-se, ainda, o enorme tamanho do chapu: a aba do capelo romano bem mais estreita, e pareceria pe-quena em comparao.

    Cardeal Antonio Mateucci (1802-1866) O cardeal est usando um solidu prpura, meias de seda e borlas no chapu, a comanda de uma Ordem no peito e uma pequena con-decorao no segundo ou terceiro boto. O ferraioletto levemente visvel direita, e o chapu, de um tipo romano bem grande, tem provavelmente mais de 70 centmetros. O hbito curto ele usa abotoado como um sobre-tudo.

  • Padre Matteo Mattei O padre veste um hbito curto, como se nota pela abertura do colarinho. Ele usa uma con-decorao pendente desde a casa do terceiro boto, como apropriado.

    Clrigo O clrigo , no mximo, padre, como a meia de seda negra demonstra. A casaca, como a do Cardeal Ugolini, est desabotoada, a orla do ferraioletto pende por detrs dele e o tin-teiro, signo de jurisdio, substitudo por um elegante relgio ormolu.

  • Mons. Andrea Pila, Ministro do Interior Note-se as meias de seda violcea e o punho largo como usado no sculo XVIII; a lapela do ferraioletto visvel sobre o ombro.

    Don Bernardino Lombardi O Padre Lombardi no era de Roma: note-se o tricorne de tamanho menor do que aquelesromanos. As cordas que mantm as abas no lugar so visveis.

  • Padre Gaspar Mermillod (1864-1892) Um dos maiores pregadores de seu tempo, foi feito Bispo de Losaina e Genebra, ape-sar da grande oposio do governo protes-tante da Sua, e, depois, criado cardeal. Vestido no estilo francs do sculo XIX, ele est embatinado e com sapatos sem fivela, enquanto seu capelo romano (francs) est sobre a cadeira.

    Cardeal Nicola Clarelli Paracciani (1799-1872) O cardeal est usando uma zimarra, com a peregrineta e mangas, mas com os file-tes prpuras como no hbito piano; em seu peito, na batina, mas sob a peregrine-ta (um pouco deslocada para mostrar a condecorao), a comenda de uma or-dem.

  • . Cardeal Gaetano Bedini (1806-1864) Jurista e diplomata. Um exemplo bem precoce do novo hbito piano; note-se a pequenez da faixa e a simplicidade da franja.

    Mons. Edoardo Borromeo Membro de uma grande famlia princi-pesca de Milo, ele era Mordomo de Pio IX, que o criou cardeal. Embora de hbi-to piano, ele ainda usa o grande tricorne romano, no lugar do capelo romano. O hbito piano est sem peregrineta, re-servada a bispos e cardeais.

  • Cn. Albini Vigevano Padre do cabido da Catedral de Vigevano. Novamente, embora use a batina e o fer-raiolo, esse cnego usa o tradicional tri-corne, embora menor que os romanos.

    Cardeal Giacomo Antonelli (1806-1876) Fotografia de um retrato pintado, o qual de-monstra o quo prximas so as fotografias de DAlessandri das convenes dos retratos formais, as quais esto todas presentes aqui: o tronetto, a mesa coberta de seda de estilo seis-centista, a sineta e o tinteiro, a petio aguar-dando ser assinada. Note-se a manteleta co-brindo o roquete: sendo este um sinal de ju-risdio, deve ser coberto quando na presena de um superior ou fora de seu prpria juris-dio. Em Roma, o nico roquete descoberto o do Papa. O Cardeal Antonelli, o muitssi-mo caluniado Secretrio de Estado de Pio IX, era um brilhante estadista e ministro de fi-nanas, e um dos ltimos cardeais nunca or-denados sacerdotes, mas simplesmente tonsu-rados. Extraordinariamente belo quando jovem, colecionava flores raras e pedras pre-ciosas.

  • Cardeal A pose, o cenrio e o tronetto so pratica-mente iguais aos do retrato do Cardeal Antonelli. Note-se a cauda de sua batina.

    Cardeal Miguel Garca Cuesta (1803-1873) Estando em Roma, o cardeal usa a manteleta sob a mozeta para cobrir o roquete, que frisado. Ele est usando a Gr-Cruz da Or-dem Espanhola de Carlos III. Note-se o estilo da manga do roquete.

  • Bispo Todos os elementos do retrato formal esto presentes: o tradicional tronetto, o tinteiro sobre consolo ornado, a almofada para os ps. O bispo veste uma manteleta cobrindo o ro-quete, e sua cauda est arrastando no tapete.

    Frei Emiliano Neri Um monge cartuxo, ele est fotografado numa pose pitoresca e melanclica; seu imaculado hbito est arrumado em no-bres e graciosas dobras. Note-se o chapu branco.

  • Madre Marie Veronique Giuliani, no sculo, Guendaline de Raymond, 1873. A formalidade do cenrio a mesa coberta de damasco, o rico crucifixo corresponde ao seu estatuto como abadessa, demonstrado pela longa cauda, emblema de jurisdio. Essa freira, definitivamente bela, tem uma pose melanclica, elegante e romntica. Note-se o curioso estilo de seu calado, feito do mesmo material do vestido.

    Pio IX e sua Antecmara Secreta Nobre A composio dessa famosa fotografia , ao mesmo tempo, extremamen-te formal e pitoresca. Todos os membros de sua Corte esto usando hbi-to coral e manteleta, com exceo do Cardeal Antonelli, que est usando o ento recente hbito piano. Entre aqueles que podem ser identificados, temos, desde a esquerda, Monsenhor De Mrode (Camareiro Secreto Participante), de joelhos; Monsenhor Borromeo (Mordomo); Monsenhor Talbot (Camareiro Secreto Participante); Monsenhor Hohenloe-Schillingfurst (Esmoleiro Secreto e, posteriormente, cardeal); Monse-nhor Negrotto; Cardeal Antonelli, Secretrio de Estado; Monsenhor Pacca; Monsenhor Martinelli (Sacristo de Sua Santidade e, posterior-mente, cardeal). Note-se os grandes chapus romanos.

  • OBSERVAES CONCLUSIVAS

    A batina com a faixa e o barrete e o hbito curto eram respectivamente a veste cerimo-nial comum a magistrados, padres e doutores em direito, medicina etc. e o traje dos ho-mens de corte. O hbito curto conformava-se ao Conclio Tridentino, o qual prescrevia que o hbito clerical deveria ser modesto, austero e identificvel, e ainda digno. Essas duas formas de veste expressavam a posio pblica de honra do clero na sociedade.

    O desaparecimento do hbito curto pode ser visto como um obscurecimento da distin-o entre o traje cotidiano e aquele ulico e litrgico, o que ulteriormente no forneceu uma particularmente adequada veste de rua. Tornou-se, por conseguinte, necessria a introduo da douillette ou greca a fim de que a batina no ficasse exposta nas ruas.