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11 SI VUI M< S CE IIILIIÍ PÍIEUCC I" OlIilfM . í" li l «I1MIII CACLCS AEI H NDfELI)

Fundamento-de-Direito-Público

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11 SI VUI M< S CEI I I L I I Í P Í I E U C C

I " OlIilfM . í" l i l «I1MIII

CACLCS AEI H N D fE L I)

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C a r l o s A r i S u n d fe ld é professor da Es-cola de Direito de São Paulo, da FundaçãoGetúlio Vargas (graduação, mestrado e espe-cialização), de cuja criação participou. Integratambém o Departamento de Direito Público daFaculdade de Direito da Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo, em que ingressou em1983, onde é professor doutor na graduação eno mestrado e pela qual obteve seus títulos dedoutor (1991) e mestre em direito (1987). Suasáreas de produção acadêmica são os direitosadministrativo, constitucional, público, econô-mico e da regulação.

É presidente da Sociedade Brasileira deDireito Público sbdp (www.sbdp.org.br ), daqual foi fundador (1993). A sbdp  mantém umaescola de iniciação científica (a Escola de For-mação) e programas de aperfeiçoamento, depesquisa e publicações, como as editadas pelaMalheiros Editores (os livros Parcerias Público- -Privadas, Leis de Processo Administrativo,  porele coordenados, e outros).

Advogado especializado em consultoria emdireito público e regulação, esteve envolvido naconcepção de diversas inovações legais, emtemas como telecomunicações, agências re-guladoras, parcerias públicoprivadas, licitaçãopor pregão, processo administrativo, sanea-mento e outras.

Além deste Fundamentos do Direito Públi

co,  publicou pela Malheiros Editores as seguin-

tes obras:Direito Administrativo Ordenador (1a ed., 3a

tir., 2003);Direito Administrativo Econômico (1a ed., 3a

tir., 2006);Direito Processual Público - A Fazenda Pú

blica em Juízo Carlos Ari Sundfeld e Cássio S. Bueno (Coords.) (1a ed., 2a tir. 2003;esgotado);

 As Leis de Processo Admin is trativo - CarlosAri Sundfeld e Guilhermo A. Munoz (Coords.)(1a ed., 2a tir., 2006);

Parcerias Publico-Privadas (Coord.) (2a ed.,2011).

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FUNDAMENTOS DE

 DIREITO PÚBLICO

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 Prefácio

A F a c u l d a d e d e D i r e i t o d a U n i v e r s i d a d e C a t ó l i c a d e S ã o P a u

lo , s o b a li d e ra n ç a d e E l iz a b e t m N a z a r C a r r a z z a , c ri o u a d i s c ip l in a  

d e Fundamentos de Direito Público , c o m o r e s u l t a d o d e lu ta , p r e g a

ç ã o e p r o se lit is m o d e C e l s o A n t ô n i o B a n d e ir a d e M e l l o , M ic h e l  

T e m e r , A d i ls o n D a l l a r i , R o q u e C a r r a z z a e n o ss o .

Estávamos, há muitos anos, convencidos da necessidade dessainovação. Como advogados, estudiosos e professores, pensamosque o ensino juridico no Brasil está muitos anos defasado, inclusive

quanto ao currículo dos cursos de graduação, que é quase o mesmoque o do começo do século. Sua principal deformação está na des-

 proporção entre as cargas de ensino de direito público e privado,respectivamente. Como se ainda vivêssemos em 1910, dáse ao es-tudante a impressão falsa de que o mundo do direito é formado pelodireito civil, comercial e penal.

Mais grave fica o panorama quando se verifica que a maioriados estudantes e mesmo dos já graduados supõe que a lei geral de

aplicação de normas jurídicas (entre nós impropriamente designada Lei de Introdução ao Código Civil) é de direito privado, levando aoequívoco de pensar que o direito civil é matriz do direito. Tal pers- pectiva privatista é deformante e tem gravíssimas repercussões na própria vida institucional.

Daí o ignorarse que o direito administrativo é o direito comum da administração pública ( R u y C ir n e L im a ) e norma reguladora dasrelações entre administração e administrados. Daí o menoscabo pelodireito constitucional e pelo direito público em geral. Tudo isso num

contexto em que os litígios de direito público, estatisticamente, jásão quase a metade do movimento dos Tribunais, chegando as rela-ções de direito público a expandirse até estenderse a quase todosos confins da atividade humana.

 Não pode surpreender, assim, o mau desempenho dos diplo-mados (bacharéis em direito) nesse clima Por outro lado isso en-

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8 FUNDAMENTOS DF. DIREITO PÚBLICO

gendra um círculo vicioso: a maioria dos bacharéis atuantes vê omundo pela ótica do direito civil e é levada a assim modelar suas

 próprias funções e ver as dos demais. Daí que os programas de con-cursos públicos para cargos jurídicos tenham escandalosa predom i-nância de matérias privatistas, o que incentiva estes estudos, com

 prejuízo do direito público. Conseqüência é o desconhecimento, edecorrente desprestígio, do direito constitucional e demais setores publicísticos que, ou são ignorados, ou tratados com técnicas, prin-cípios, espírito e perspectiva privatísticas pelos aplicadores, inclu-

sive judiciais. Não é de estranhar, nesse clima, os avanços do totalitarismo:

má legislação, escassa literatura e deficiente jurisprudência de di-reito público, com conseqüente insegurança do administrado diantedo Estado, e dificuldade na evitação dos casuísmos, arbítrios, omis-sões e abusos dos agentes públicos diante de uma cidadania inermee indefesa, como que desarmada pela ignorância dos operadores ju-rídicos.

Como romper esse círculo vicioso? Ensinando, desde o ingres-so na Faculdade de Direito, que o direito constitucional é a matrizde todo o direito e que o direito público é, no mínimo, tão impor-tante como o privado, para a vida social.

Daí a criação dessa disciplina, que vem sendo ministrada comsucesso e excelente acolhimento pelos alunos, com notáveis resul-tados, inclusive para os estudantes de vocação privatística.

Estas breves considerações mostram bem quão oportuno é estelivro de texto, a servir de material para instrução, orientação e ani-

mação do curso. A dedicação e idealismo do professor C a r l o s A r i S u n d f e l d , em tão pouco tempo, permitiramlhe criar este instrumen-to, que terá utilidade bem mais ampla do que a imaginada por elemesmo.

Uma Faculdade de Direito que há muito deu ênfase ao direito público (2 anos de carga de direito constitucional, administrativo etributário) e que foi fundada por publicistas como O s w a l d o A r a

n h a B a n d e i ra d e M e l l o , C a r v a l h o P i n t o , M e i r e l le s T e i xe ir a , F r a n

c o M o n t o r o e tantos outros, é  pioneira mais uma vez, implantando,com êxito, esta disciplina, no primeiro ano de seu currículo.

Pioneiro é também, por isso mesmo, este livro, elaborado tãoeficientemente por um de seus mais ativos professores, como C a r

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P R E F Á C IO 9

l o s A r i S u n d f e l d , que põe, de modo didático e claro, as questões básicas, os princípios e a própria categorização do direito público.

Ensina o professor  C a r l o s A r i o sistema de direito público,habituando o aluno a “pensar” em termos juspublicísticos. Mostrao universo jurídico em suas facetas geral e pública, dandolhe visãomais ampla e abrangente, liberandoo, por antecipação, dos deleté-rios preconceitos civilistas.

O senso didático do professor C a r l o s A r i apoiado em vastaexperiência e ampla cultura jurídica conduz o aluno, ao longo daleitura, de modo suave e seguro, tornando essa iniciação atraente eespontânea.

Estou certo de que não só os estudantes, mas todos os estudio-sos do direito terão grande proveito com a leitura e meditação des-tas excelentes lições.

Daí o alcance desta obra inovadora que, como disse, transcen-de seus objetivos imediatos.

G e r a l d o A t a l i b a

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Sumário

Introdução.......................................................................................... 15

 Ia PartePODER PO LÍTICO E DIREITO

Capítulo I    Regulação jurídica do Poder Político1. Poder....................................................................................... 192. Poder polí tico....................................................................... 203. Estadopoder e Estadosociedade..................................... 224. Direito público e direito privado....................................... 245. Plano...................................................................................... 27

Capítulo II   Evolução histórica da regulação do Poder Político1. In trodução................................................................................ 292. Pré histó ria.............................................................................. 293. Antigüidade............................................................................ 30

4. Idade M édia ............................................................................ 33

5. Absolu tism o........................................................................... 33

6. Idade Contemporânea............................................................ 35

Capítulo III - O Estado Social e Democrático de Direito1. Estado de D ireito ................................................................. 37

1.1 Supremacia da Constituição..................................... 40

1.2 Separação dos Podere s.............................................. 42

1.3 Superioridade da le i.................................................... 45

1.4 Garantia dos direitos individuais............................. 462. Estado Democrático de D ire ito ......................................... 49

3. Estado social e democrático de Direito............................ 54

Capítulo IV O Sujeito Estado1. O Estado é uma pessoa jurídica 5 9

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12 FUNDA MENTO S DE DIREITO PÚBLICO

2. Personalidade jurídicoconstitucional do Estado ........... 663. Personalidade de direito público....................................... 684. Relacionamento externo do Estado .................................. 705. Descentralização política e administrativa do Estado .... 72

Capítulo V - Atividades do Estado1. In trodução............................................................................. 752. Atividade dos particulares.................................................. 77

3. Exploração pelo Estado de atividades dos particulares.... 78

4. Atividades esta ta is .............................................................. 794.1 Atividades instrumentais.......................................... 80

4.2 Atividades-fim:........................................................... 80

4.2.1 Relacionamento internacional....................... 80

4.2.2 Atividades de controle social ........................ 814.2.3 Atividades de gestão adm inistrativa........... 82

5. Atos e fatos ju ríd ic os .......................................................... 85

5.1 Fato ju ríd ico ............................................................... 85

5.2 Ato juríd ico ................................................................ 86

Capitulo VI - Uma introdução ao Direito Processual1. O fenômeno processual no direito público..................... 89

2. Noção de processo.............................................................. 94

3. Relação jurídico-processual............................................... 97

4. Esquema geral dos processos esta ta is .............................. 98

4.1 Processo legislativo................................................... 99

4.2 Processo ju dic ia l........................................................ 100

4.3 Procedimento administrativo................................... 101

Capitulo VII - O que e Direito Adm ini stra tivo ? ...................... 102

Capitulo VIII - Equilíbrio entre Autoridade e Liberdade1. A sociedade como titular e destinatária do po d er ......... 1092. Competência........................................................................ 1123. Direitos dos pa rticula res.................................................... 115

2a Parte 

O DIREITO PÚBLICO

Capítulo IX - Direito e Ciência Jurídica1. I n tr o d u ç ã o ........................................................................................................ 121

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2. Normas jurídicas. Os mundos do ser e do deverser ....... 1233. Sistema ju ríd ico .................................................................. 126

4. Direito e ciência ju rídica.................................................... 129

5. A atividade do profissional do direi to ............................. 1326. Divisão da ciência jurídica em ra m o s ............................. 134

Capitulo X - A Dicotomia Direito Público x Direito Privado1. A dicotomia público x privad o.......................................... 1382. A dicotomia público x privado no direito ....................... 139

3. Distinção entre direito público e direito privado com base no regime juríd ico ....................................................... 140

Capitulo XI - Os Princípios no Direito1. Princípios e ciência do dire ito ........................................... 1432. Os princípios jurídicos são parte do ordenam ento ........ 1453. Importância dos princípios no direito púb lico ............... 1474. Utilidade dos princípios na aplicação do direito ............ 147

5. Princípios explícitos e im plícitos...................................... 148

Capítulo XII Princípios Gerais do Direito Público1. Introdução............................................................................. 152

2. Autoridade pública.............................................................. 154

3. Submissão do Estado à ordem ju ríd ica ............................ 158

4. Função................................................................................... 163

5. Igualdade dos particulares perante o Estado................... 167

6. Devido processo................................................................... 173

7. Publicidade........................................................................... 1778. Responsabilidade obje tiva................................................. 180

9. Igualdade das pessoas políticas......................................... 185

 B ib liografia ...................................................................................... 187

SUMÁRIO 13

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 In trodução

Terminei este livro em 1991, para festejar o nascimento da Ticiana. Quis fazer um texto apaixonado, espontâneo, simples, sem

 preconceitos como são as crianças. O objetivo era didático: apoiar meu curso de Fundamentos de Direito Público na Faculdade de Di-reito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Os anos se passaram. O livro desprendeuse de mim: saiu a an-dar sozinho por aí, fez seus próprios amigos, viajou por salas deaula em tantas Faculdades do Brasil, foi sendo reeditado. Mas este-ve sempre próximo, acompanhandome a vida. Viu nascer o Adria-no (que ganhou seu próprio livro), a Roberta querida a meu lado,meus pais Ary e Zezé me olhando como menino isso é tão bom.

Teve grande responsabilidade na criação da Sociedade Brasileira de Direito Público. Aproximoume de alunos, que viraram assis-tentes, passaram a professores, agora são doutores.

Aqui vai uma nova edição, adaptada às mudanças constitucio-nais recentes e com mais um capítulo, falando do direito adminis-trativo. Espero que vocês gostem.

Reproduzo, ainda agora, o Prefácio que o Prof. Geraldo Atali ba escreveu para a ly edição. É um jeito de ouvir seu estímulo, desentir seu espírito, de dizer obrigado, de matar as saudades...

Preciso agradecer a muita gente. Os Profs. Jacintho de ArrudaCâmara e Vera Cristina Scarpinella Bueno ajudaram na atualização.Os Profs. Benedicto Pereira Porto Neto, Cássio Scarpinella Bueno,Floriano Azevedo Marques Neto e Márcia Pellegrini, entre tantosoutros, foram e são companheiros dos cursos. Os Profs. AgustínGordillo, Aires Barreto, Celso Antônio Bandeira de Mello, Marce-lo Figueiredo, Márcio Cammarosano e Weida Zancaner estão entreos que colaboraram com idéias. Álvaro e Suzana Malheiros vêmcuidando com carinho da publicação.

Falo mais uma vez com a Ticiana, que já entende tudo. Aquiestá seu presente, minha filha. Feito de palavras e idéias. Pura vida.

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Capítulo I 

 Regulação juríd ica do Poder Político

1. Poder. 2. Po de r po lítico. 3. Esíado -pod er e Estad o-socied ade . 4. Di re ito públi co e di re ito priv ado. 5. Plan o.

1. Poder 

1. Os seres humanos não vivem sós. Buscam sempre, por di-versos modos, estabelecer relações as mais variadas com seus se-melhantes: comunicamse, trocam bens, unem esforços em ativida-des comuns, compartilham os espaços. A vida humana é, essencial-

mente, uma experiência compartilhada. A vida impõe, portanto, aformação de grupos sociais.

Cada indivíduo participa de inúmeros grupos, no interior dosquais mantém relações. Inicialmente, todos integram o grupo de ha-

 bitantes da Terra, vinculados por interesses em parte semelhantes a preservação da paz e da natureza, o respeito mútuo e em partedistintos a disputa por territórios, o pagamento de dívidas interna-cionais. Depois, esse grande grupo vai se dividindo, quase ao infi-nito, em múltiplos outros: o dos habitantes de um mesmo continen-

te, o dos nacionais de um país, o dos moradores de uma cidade, odos empregados de uma empresa, o dos membros de um partido

 político, o dos integrantes de uma família.

A convivência, seja dos indivíduos no interior desses grupos,seja de cada grupo com os demais, depende de um fator essencial:da existência de regras estabelecendo como devem ser as relaçõesentre todos.

Em uma palavra: a convivência depende da organização.

Os integrantes de cada grupo social uma família, uma em - presa, um clube, uma cidade, um país, o mundo vivem sob regrascomuns.

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20 FUNDAMENTOS DF. DIREITO PÚBLICO

O grupo social pode ser definido, portanto, como a reunião de

indivíduos sob determinadas regras.2. Para existirem tais regras, alguma força há de produzilas;

 para permanecerem, alguma força deve aplicálas, com a aceitaçãodos membros do grupo. A essa força, que faz as regras e exige oseu respeito, chamase poder.

 Norberto Bobbio, mencionando a distinção de três correntesexplicando o significado do poder, indica que a mais aceita “esta- belece que por ‘poder’ se deve entender uma relação entre dois su- jeitos, dos quais o primeiro obtém do segundo um comportamento

que, em caso contrário, não ocorreria. A mais conhecida e tambéma mais sintética das definições relacionais é de Robert Dahl: kA in-fluência (conceito mais amplo, 110 qual se insere o de poder) é umarelação entre atores, na qual um ator induz outros atores a agiremde um modo que. em caso contrário, não agiriam’ (1963, trad. it.. p.68). Enquanto relação entre dois sujeitos, o poder assim definidoestá estreitamente ligado ao conceito de liberdade; os dois concei-tos podem então ser definidos um mediante a negação do outro: o 

 poder de A implica a nào-liberdcide de B. A liberdade de A implica 

o nào-poder de B"  (Estado. Governo, Sociedade, p. 78).Em todo grupo, um, ou alguns, dos membros exerce sobre os

outros o poder: na família, os pais sobre os filhos; na empresa, odiretor sobre os gerentes, os gerentes sobre os chefes de seção, oschefes sobre os demais.

2. Poder político

3. Se é certo que em todo grupo organizado há um poder, exis-

tem, 110 entanto, diferentes espécies de poderes e, em conseqüên-cia, diferentes espécies de grupos sociais. Dentro da empresa, o po-der do patrão sobre o empregado resulta da dependência econômi-ca: o empregado insubmisso (que não aceita 0 poder do patrão) per-de o emprego. No clube, o poder da diretoria se expressa, entre ou-tros meios, pela possibilidade de punir os associados.

Ao pensarmos no Brasil como um grupo de pessoas (brasilei-ras e estrangeiras) organizadas sob determinadas regras, que permi-tem a convivência de todas, verificamos ser ele também um grupo

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social, pertencente à espécie a que chamamos de Estado. Então, noEstado brasileiro há um poder, que sujeita todos os habitantes do

 país. Damos a esse poder a designação de  poder político. Qual a peculiaridade dele, a determinar sua distinção em relação aos de-mais tipos de poderes existentes?

4. A primeira característica do poder político é a possibilidadedo uso da forç a física contra aqueles que não se comportem de acor-

do com as regras vigentes: quem não obedece à proibição de matar seu semelhante é perseguido e preso; quem não paga os impostos é

 privado de seus bens. E verdade ser uma exceção o uso, pelo Esta-do, da força física contra os membros do país. Mas essa possibili-dade existe, como último recurso contra os insubmissos, e é em vir-tude dela que as pessoas, normalmente, aceitam, sem resistir, as im-

 posições do Estado.

Isso não é tudo. O que há de significativo no Estado é o fato de

ele reservar para si, com exclusividade, o uso da força. O Estadonega. a quem por ele não autorizado, o direito de usar a força con-tra os outros indivíduos. Assim, a segunda característica fundamen-tal do poder estatal é a de não reconhecer a ninguém poder seme-lhante ao seu.

Então, a peculiaridade do poder do Estado (poder político) é,de um lado, o basearse no uso da força física e, de outro, o reservarse, com exclusividade, o uso dela.

“Uma vez reduzido o conceito de Estado ao de política e o con-ceito de política ao de poder, o problema a ser resolvido tornase ode diferenciar o poder político de todas as outras formas que podeassumir a relação de poder. (...) O poder político vaise assim iden-tificando com o exercício da força e passa a ser definido como aque-le poder que, para obter os efeitos desejados (retomando a defini-ção hobbesiana) tem o direito de se servir da força, embora em últi-ma instância, como extrema ratio. (...) Se o uso da força é a condi-

ção necessária do poder político, apenas o uso exclusivo deste po-der lhe é também a condição suficiente” (Norberto Bobbio. Estado.Governo. Sociedade, pp. 7880 e 81).

5. Decorrem disso duas conseqüências muito importantes. Aprimeira: o poder do Estado se impõe aos demais poderes existen-

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22 F UNDAM E NTOS DE DIREITO P ÚBLICO

 patrão, do pai, do sindicato, da diretoria do clube, são subordinadosao poder do Estado. A segunda: o Estado não reconhece poder extemo superior ao seu. O Estado brasileiro não admite que o alemãoexerça qualquer poder sobre as pessoas residentes no Brasil. A issodenominamos soberania.

6. Resumindo, o grupo organizado de pessoas chamado Estado:

a) mantémse com o uso da força;

b) reserva para si seu uso exclusivo;

c) não reconhece poder interno superior ao seu;

d) não reconhece poder externo superior ao seu (é soberano).

3. Estado-poder e Estado-sociedade

7. Mas, no interior do Estado, como em todo grupo, há alguémque exerce o poder e quem se submete a ele. Quem é, dentro doEstado, o detentor do poder e quem é seu destinatário?

Chamaremos o detentor do poder político de Estado-poder  e

seu destinatário de Estado-sociedade. O Estadopoder é integrado por aqueles que definem as regras de convivência na sociedade e asaplicam, com o uso da força, se necessário: o presidente da repúbli-ca, os ministros, os deputados e senadores, os governadores, os de- putados estaduais, os prefeitos, os vereadores, os juizes, os servido-res públicos em geral. O Estadosociedade é formado por todos oshabitantes do país.

8. O Estadopoder cria e faz cumprir as regras regendo as rela-ções das pessoas dentro do Estadosociedade: as de relacionamento

entre pais e filhos, patrão e empregado, credor e devedor, entre vi-zinhos. Quem não as cumpre espontaneamente, sujeitase ao uso daforça, pelo Estadopoder, para a obtenção da obediência. A essasregras, criadas pelo Estadopoder e impostas com o uso da força,chamamos de normas jurídicas.

C .Norm as, são regras.de coii3utà>A regra segundo a qual as pes-soas não devem comer à mesa com as mãos também é uma norma,

 pois também pretende impor condutas. Porém, não é norma jurídi-ca. A razão é simples: sua observância não pode ser imposta com o

uso da força. Se não atentar a ela, não mais serei convidado a jantar 

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R E G U L A Ç Ã O J U R Í D I C A D O P O D E R P O L Í T I C O 23

com os amigos, mas nào serei por eles fisicamente constrangido ausar os talheres. A regra pela qual os pais devem alimentar os fi-lhos é norma jurídica: se descumprida, pode levar à prisão do pai,imposta pelo Estadopoder.

9. O Estadopoder não é um ser humano, não é pessoa no sen-tido comum da palavra. Vimos que é integrado por indivíduos. Noentanto, quando realizam as atividades do Estadopoder, seus inte-grantes não o fazem como se cuidassem de suas próprias vidas, massim como se, naquele momento, fossem outras pessoas. Quando oservidor público varre a rua, quem está limpando a cidade é o Estadopoder. Quando o Presidente da República expulsa estrangeiro do país, quem pratica o ato é o Estadopoder. Quando o ju iz condenaum criminoso, a sentença é do Estadopoder. Assim, podese dizer que esses indivíduos agem no lugar de outra pessoa (o Estadopo-der), que só existe em nossa imaginação. Essa pessoa imaginária éuma pessoa jurídica.

O Estadopoder é uma pessoa jurídica. Para maior facilidade, passemos a chamálo simplesmente de Estado.

O Estado, como pessoa que é, relacionase com os membrosda sociedade. O Estado se relaciona com o criminoso, quando ocondena à prisão; com a empresa, quando a contrata para fazer alimpeza de prédio público; com o servidor público, quando o dem i-te do trabalho; com todos os indivíduos, quando edita normas jurí-dicas regendo suas vidas. Existirão regras estabelecendo os termos

da convivência da pessoa Estado com os membros da sociedade?(Quando alguém pode ser condenado à prisão? Quais os direitos edeveres da empresa que contrata com o Estado? E possível demitir servidor público? Como deve ser feita a norma que vai reger a vidados indivíduos?)

O que regula tudo isso são normas jurídicas. Existem, portan-to, normas jurídicas para reger a relação da pessoa Estado com asdemais pessoas.

Interessante perceber que, sendo normas jurídicas, essas regrasdevem ser obedecidas, seja pelos indivíduos, seja pelo Estado. Daía dúvida: se o Estado não cumprir as normas (condenando alguémindevidamente à prisão, deixando de pagar a empresa pelos servi-ços realizados, demitindo servidor que não podia ser dispensado.

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24 FUNDAM ENTOS DE DIREITO PÚBLICO

editando normas sem observar os requisitos necessários), quem vai

obrigálo a se submeter, usando até a força, se necessário? Veremosmais tarde que é o próprio Estado quem fará isto. Parece imprová-vel, à primeira vista, que o Estado constranja a si próprio, mas exis-tem mecanismos adequados para garantir o funcionamento do sis-tema.

4. Direito público e direito privado

10. Vimos até aqui que as relações dos membros da sociedade

entre si (o marido com sua mulher, os comerciantes com os consu-midores, os empregados com seus patrões, o locador com o inquili-no) sào regidas por normas jurídicas. E, também, as relações entreo Estado e os membros da sociedade (indivíduos em geral, empre-sas, servidores públicos) são regidas por normas jurídicas.

O conjunto de todas essas normas forma o Direito. Para facili-tar seu estudo, vamos dividilo em dois grandes grupos: o direito 

 público e o direito privado. Veremos mais tarde qual a utilidade esentido exato dessa distinção. Por ora, podemos trabalhar com es-

tas noções aproximativas (um tanto imprecisas, ainda):a) O direito privado é formado pelo conjunto de normas regen-

do as relações dos indivíduos entre si, dentro do Estadosociedade(relações de família, relações dos comerciantes entre si e entre co-merciantes e seus clientes, relações entre locador e inquilino, e ou-tras mais);

b) O direito público é formado pelo conjunto de normas queregulam as relações entre Estado e indivíduos (relações Estadoservidor, Estadoempresa etc.).

11. Podemos, agora, ampliar um pouco a idéia de direito públi-co, embora sem pretender um conceito científico.

O Estado, sendo pessoa jurídica, é integrado por muitos indiví-duos, que realizam (cada qual como se fosse o próprio Estado) asvárias atividades estatais: produzir leis (uma das espécies de nor-mas jurídicas), julgar os acusados de crimes, prestar os serviços pú- blicos (como os de transporte coletivo e iluminação urbana), e as-sim por diante. Chamamos esses indivíduos de agentes públicos (o

governador de Roraima, o juiz de Piraçununga, o deputado federal

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R E G U L A Ç Ã O J U R Í D I C A D O P O D E R P O L Í T I C O 25

do Paraná, o fiscal de rendas, o procurador da república). É claroque os agentes públicos não escolhem, por sua vontade, a atividadeestatal que vão desenvolver. Cada qual tem sua competência, suaatribuição. Vários agentes integram um órgão (os procuradores darepública integram a Procuradoria Geral da República). A divisãode competências entre os vários agentes (O que faz um governa-dor? O que faz um fiscal?) e entre os vários órgãos (Qual a atribui-ção do Ministério da Fazenda? E da Secretaria da Segurança Públi-

ca?) é estabelecida em nonnas jurídicas. Normas de direito público,é evidente, por tratarem da organização da pessoa jurídica Estado.

Ainda mais. O Estado brasileiro trava relações com outros Es-tados (o argentino, o indiano, o italiano), celebrando tratados, tro-cando embaixadores, fazendo intercâmbio científico. Essas relaçõessão regidas por normas de direito público.

12. Agregandose essas referências, podemos dizer que o Di-reito Público é o ramo do Direito composto de normas jurídicas tra-

tando:

a) das relações do Estado com os indivíduos:

h) da organização do próprio Estado, através da divisão decompetências entre os vários agentes e órgãos;

c) das relações entre Estados.

Perceba como esses conceitos simples são apresentados por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, um dos mais importantes ju-

ristas que se dedicaram, no Brasil, ao estudo do direito público:“As normas jurídicas que organizam o Estadopoder e regulam

a sua ação, seja em relação com outros Estados, seja em relaçãocom a própria entidade, através dos seus órgãos, ou com outras pes-soas, que receberam o encargo de fazer as suas vezes, ou mesmocom terceiros, particulares, no Estadosociedade, a fim de realizar o objetivo deste, são de valor social diferente das normas jurídicas prescritas para regerem as relações dos particulares, entre si, ou dascomunidades por eles formadas.

“Isto se explica porque ordenam institutos jurídicos para o Estadopoder alcançar o bem comum dos indivíduos coletivamenteconsiderados, como elementos do Estadosociedade, como partici- pantes de um todo político. Não se confundem com os oferecidosaos particulares para alcançarem imediatamente o seu bem indivi-

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26 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

dual, de cada qual isoladamente considerado, nas suas relações re-cíprocas.

“Fundamentam, destarte, a distinção do direito em dois ramosdistintos: público e privado” (Princípios Gerais de Direito Administrativo , vol. I, p. 13).

13. Voltando, agora, à idéia de poder político, é fácil constatar que o direito público compõese das normas jurídicas reguladorasdo seu exercício. Definimos o poder político como aquele que, paraobter os efeitos desejados (para obrigar os indivíduos a respeitarem

suas determinações), tem o direito exclusivo de se servir da força eque não reconhece poder superior ao seu, interno ou externo. O di-reito público disciplina as relações entre o Estado (que detém o po-der político) e os indivíduos (que sofrem o poder político), organi-za a distribuição do poder político dentro da pessoa jurídica Estado(entre os diversos agentes e órgãos) e regula as relações entre osvários Estados (isto é, entre os detentores de poder político).

14. Nosso curso, de fundamentos do direito público, estuda a

regulação jurídica do poder político, isto é, as normas juríd icas quedisciplinam sua organização (dentro da pessoa jurídica Estado) eseu exercício, nas relações com quem sofre o poder (os indivíduos)e com os outros Estados.

Veja que não estudaremos o próprio poder político, mas as nor-mas jurídicas que o regulam. Portanto, não veremos a sociologia do

 poder, a história do poder, a psicologia do poder, mas apenas o di-reito do poder.

Em suma, cuidaremos da ciência do direito público (estudo das

normas que regulam o poder político).15. Só se conhece o direito público depois de saber  o modo 

como as normas regulam o poder político (É ele limitado? Como édividido seu exercício? O indivíduo tem instrumentos jurídicos parase opor ao poder político? Um Estado obedece às leis do outro?).Até este momento, sabemos apenas qual será o objeto do estudo.Por isto, não podemos ainda definir o direito público: antes, preci-samos descobrir as características dele, em seus aspectos fundamen-tais. Também não há como indicar ainda o que o distingue, em es-

sência, do direito privado. Qual a distinção entre um macaco e um

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R E G U L A Ç Ã O J U R Í D I C A D O P O D E R P O L Í T I C O 27

ganso? Certamente não é o tato de terem nomes diferentes; antes, aocontrário: têm nomes distintos porque têm características diversas.

Em outras palavras, queremos dizer que a reunião, em doisconjuntos distintos (direito público/direito privado), de certas nor-mas jurídicas resulta de havermos constatado que as normas do con-

 junto que chamamos direito público regulam as relações delas ob- jeto (as relações do poder político) de modo radicalmente diversodo que as normas do conjunto direito privado disciplinam as rela-

ções de que se ocupam (outras relações que não as envolvidas como poder político).

5. Plano

16. Sendo certo que o Estado exerce o poder político, o estudoda regulação jurídica deste deve esmiuçar aquele, tanto em seu as-

 pecto estático (enquanto ser, enquanto instituição) quanto em seu

aspecto dinâmico (enquanto ação).Partindo de rápida visão sobre o progresso, através dos tem-

 pos, da regulação ju rídica do poder político que servirá ao menos para vislumbrar as razões que encaminharam o Estado moderno aser como é hoje em dia , fixaremos o conceito de Estado Social eDemocrático de Direito. Isso porque não nos interessa verificar omodo de ser do direito público de qualquer Estado, mas sim o dotipo de Estado no qual o brasileiro atual se classifica.

Com esse pano de fundo, iniciaremos um percurso que nos levea surpreender o poder político em seus aspectos quem?, o quê?, como? e para quem?.

17. A análise revelará que o Estado é pessoa jurídica (dandosignificado à afirmação nesse sentido lançada um pouco acima),mostrando como se estrutura e como se relacionam seus agentes eórgãos. O primeiro ponto, então, consiste no exame do Estado en-

quanto sujeito de direito.O segundo tópico destinase a apontar o que faz o Estado, quais

são suas atribuições. Relevante, aí, será não apenas conhecer as ati-vidades em si, como, sobretudo, saber de sua repercussão jurídicana vida social. Resultará, igualmente, uma nítida distinção entre ocampo público de atividades (o setor das atividades reservadas ao

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28 FUND AMENT OS DE DIREITO PÚBLICO

Estado) e o campo privado de atividades (o setor reservado aos in-

divíduos).Prosseguindo, teremos noção de como se exerce o poder, das

várias etapas que demanda a produção de um ato estatal e da ma-neira como os indivíduos podem participar.

A seguir, será hora de verificar a posição em que o Estado seapresenta em face do indivíduo e este em face daquele. Em outras palavras, de saber quais são os termos das relações jurídicas entreeles. Descobriremos, então, que o direito público não é como po-deria parecer, inicialmente, de um ramo jurídico relativo à discipli-

na do poder político um direito autoritário, mas certamente ooposto: um conjunto de normas cuja finalidade primordial é cercear o poder e, como conseqüência, proteger os indivíduos.

18. Delineado o painel inicial, poderemos aprofundar e tomar mais precisos nossos conhecimentos, o que faremos estudando emseqüência o direito e a ciência jurídica, a grande dicotomia direito público x direito privado, a função dos princípios no direito e, fi-nalmente, os princípios gerais do direito público.

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Capitulo II 

 Evolução histórica da regulação do Poder Político

 I. In trod uç ão . 2. Pré -h is tó ria. 3. Antigüid ad e. 4. Idade Média. 5. Abso - 

 hi tism o. 6. Id ade Contem po râ nea .

/.  Introdução

1. Um estudo jurídico do direito público há de ser feito a partir das normas vigentes em dado país, num certo momento. Os proble-mas jurídicos não se resolvem, de fato, senão com o exame do di-

reito positivo. As cogitações históricas, políticas e ideológicas nãosão, enquanto tais,  atribuição específica dos juristas.

Contudo, o Direito é fruto de produção cultural, longamentesedimentada, sendo por vezes impossível compreendêlo sem situálo dentro da história. Em outras palavras: o Direito consagra certosmodelos cujo sentido advém do contexto histórico, ideológico ou

 político em que concebidos. Quando se fala, hoje, em direito públi-co, fazse referência a um plexo de idéias consagradas moderna-

mente, sobretudo após as Revoluções Americana e Francesa, emtomo das relações entre indivíduo e Estado, mas que nem sempreforam aceitas e aplicadas. Por isso, como introdução á análise jurí-dica do direito público e, em certa medida, como condição dela, fazse necessário um exame préjurídico, que revele seu significado cul-tural.

2. Pré-história

2. Nos primórdios pensemos no homem das cavernas asrelações humanas também adotavam estruturas de poder. Evidenteque o caçador, ao usar da força para impedir o outro de se apoderar do animal abatido, estabelece com ele relação de poder.

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30 FUNDAMHNTOS DE DIREITO PÚBLICO

É difícil, porém, identificar poder político em um grupo préhistórico nômade. Por razão muito simples: o emprego da força nãoera reservado a ninguém. Ao contrário, todos disputavam suas po-sições 110 grupo através da força. Eram instáveis, em conseqüência,as posições no grupo, dependendo do resultado das disputas físi-cas. que se sucediam.

3. Na medida em que o homem começa a se fixar na terra e osgrupos vão se organizando em torno de certas regras mais ou me-

nos estáveis sobretudo as que permitem a determinação de quemmanda e quem obedece , começa a surgir poder político, ainda queembrionário.

Pensemos na comunidade indígena o exemplo atual de socie-dade primitiva e na existência de um cacique e um pajé: estesexercem poder político dentro do grupo.

Há regulação jurídica do exercício desse poder? Em verdade,sim, porém de modo muito limitado. Realmente, observamse re-

gras de sucessão na posição de chefe (passando de pai para filho, por exemplo), de divisão de atribuições (indicando as do cacique,as do pajé), de solução de conflitos. As regras sobre o exercício do poder são, entretanto, em pequeno número, mesmo porque são pou-co extensas as atribuições dos chefes.

 Não há Estado em sociedade como esta, dada a extrema sim- plicidade da estrutura de poder e sua nãoinstitucionalização.

3. Antigüidade

4. A cidade é a unidade política, não só dos gregos, como detoda antigüidade clássica. O grego é um cidadão, integrante da ci-dade, de cujos órgãos participa.

A lei é elemento essencial da identificação do grego com a ci-dade: a coesão desta vem daquela. O grego sente orgulho de se sub-meter a uma ordem (à lei), não à vontade de um homem. Entretan-

to, a concepção grega de lei que vigorará por longos séculos difere substancialmente da atual. A lei para os antigos era sagrada eimutável, sendo atribuída a um poder divino, e, desse modo, inte-grando a religião. Isso explica por que não se podiam identificar normas regulando o exercício do poder de editar leis (isto é, de edi-

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E V O L U ÇÃ O H I ST Ó RI CA D A RE G U L A ÇÃ O D O PO D E R PO L Í T I CO 31

tar as normas disciplinando as relações dos indivíduos entre si, que

hoje chamamos como normas de direito privado): ou não se reco-nhecia aos homens tal poder embora, de fato, sempre tenha sidousado pelos poderosos , ou se o reconhecia a título de exceção, ouera explicado pelo poder divino dos soberanos.

5. O julgamento dos conflitos envolvendo os indivíduos desdetempos imemoriais foi assumido pelas autoridades públicas, embo-ra sem a exclusão imediata de membros da comunidade em cenasdecisões. Contudo, isso não levou à identificação da atividade de

 ju lgar como regulada por um direito público, diverso do direito pri-vado que se visava aplicar. As normas regendo a atividade de julgar (que hoje incluímos no direito processual, um dos ramos do direito público) eram entendidas como parte do direito civil (ramo do di-reito privado).

Os tribunais só conheciam das demandas entre cidadãos, nãose cogitando do exame judicial de questões envolvendo o Poder Público. Vale dizer: não havia como questionar, perante um órgão

 julgador, o desrespeito pelos detentores do poder político das nor-mas que regulavam seu exercício.

“Mesmo depois de passar a ser missão do Estado, a proteçãodos direitos continuou circunscrevendose à proteção dos cidadãosentre si. Os tribunais públicos não podiam conhecer nem das pre-tensões do Estado ou contra o Estado nem das transgressões da or-dem sacra ou doméstica. O Estado se encontrava acima dos tribu-nais. A sanção dos crimes contra o Estado cabia apenas aos magis-trados competentes, com a intervenção, quando necessária, dos co-mícios (iudicium publicum, provocado adpopulum). A solução doslitígios entre o Estado e os particulares com relação aos contratos

competia, do mesmo modo que o exercício dos direitos públicos ad-ministrativos, aos funcionários que gozavam do necessário poder coer-citivo (coercitio), sem fiscalização judicial e sem intervenção de jui-zes" (Robert Von Mayr,  História dei Derecho Romano, v. I, p. 105).

6. A administração dos negócios públicos (recolhimento deimpostos, policiamento da ordem na cidade etc.) sempre esteve con-fiada a certos agentes públicos. Contudo, freqüentemente, essa ati-vidade se confundiu com a de editar normas, estando ambas em po-der de um soberano. Em rigor, desconhecia a distinção entre as ati-

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32 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

vidades legislativa e executiva, que só poderá ser feita com clareza

quando, a partir sobretudo das idéias de Rousseau, afirmarse o princípio da superioridade das leis. Ademais, não se podia cogitar de regras cogentes (de observância obrigatória) a regular o exercí-cio das funções administrativas, eis que não se conhecia a idéia dedireito individual. Por isso, é totalmente descabido falar de um di-reito administrativo da época.

7. Cumpre ressaltar devidamente a inexistência, na antigüida-de, dos direitos individuais.

É certo que, na Grécia, as idéias de liberdade e de igualdade

ocupam espaço fundamental no pensamento político. Porém, sãoinconfundíveis as concepções grega e moderna de liberdade. A li-

 berdade para os helênicos era, essencialmente, a oportunidade de participar dos negócios públicos, de cumprir uma função na cidade,de se submeter à lei (liberdade política), e a não sujeição corporalde um cidadão a outro (liberdade civil).

Como a cidade, enquanto instituição, era o instrumento da li- berdade, esta não seria oponível àquela. Inexistia um direito à liber-dade individual contra a autoridade.

Fustel de Coulanges, demonstrando que os antigos não conhe-ceram o conceito individualista de liberdade, escreve: “Singular erroé, pois, entre todos os erros humanos, acreditarse que nas cidadesantigas o homem gozava de liberdade. O homem não tinha, sequer,a mais ligeira concepção do que esta fosse. Ele não se julgava ca-

 paz de direitos, em face da cidade e dos deuses”. E, mais adiante:“ter direitos políticos, poder votar e nomear magistrados, poder ser arconte, a isto se chamou liberdade; mas o homem, no fundo,

 jamais deixou de ser escravo do Estado. Os antigos, sobretudo osgregos, exageravam muito sobre a importância e os direitos da

sociedade e isto, sem dúvida alguma, devido ao caráter sagrado ereligioso de que a sociedade se revestiu na origem” (A Cidade Antiga, p. 185).

8. A distinção teórica entre direito público e privado foi for-mulada pelos romanos, que desenvolveram intensamente a doutrina privatista. Entretanto, inexistindo uma consciência clara, à época,da diferença entre o poder político e outras espécies de poderes,como acabamos de examinar, seria impossível levar muito longe os

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E V O L U Ç À O H IS T Ó R IC A D A R E G U L A Ç Ã O D O P O D E R P O L ÍT IC O 33

estudos em tomo da regulação jurídica do poder político (do direito público), que teriam de aguardar muitos séculos até que pudessemadquirir feição.

4. Idade Média

9. O advento da Idade Média, com a dispersão da autoridadeentre inúmeros centros de poder (os reis, a Igreja, os senhores feu-

dais, as corporações de ofício etc.), toma mais complicada a identi-ficação de normas de direito público a regerem as relações entre os

 poderosos e os indivíduos.

Com a autoridade central enfraquecida, as atividades legislati-va, judicial e administrativa serão disputadas entre os reis, a Igreja,os senhores, as corporações e explicadas com o recurso a idéias va-riadas. A aspiração da Igreja em erigir um Império da Cristandadee a conseqüente pretensão de interferir em assuntos temporais esta-

rá fundada na religião. Os poderes militares, administrativos, fis-cais e jurisdicionais dos senhores feudais serão explicados pela situa-ção patrimonial, pela posse da terra, regulada pelo direito privado.

Dalmo Dallari bem analisa a situação do período: “Conjuga-dos os três fatores que acabamos de analisar, o cristianismo, a inva-são dos bárbaros e o feudalismo, resulta a caracterização do EstadoMedieval, mais como aspiração do que como realidade: um poder superior, exercido pelo Imperador, com uma infinita pluralidade de poderes menores, sem hierarquia definida; uma incontável multi- plicidade de ordens jurídicas, compreendendo a ordem imperial, aordem eclesiástica, o direito das monarquias inferiores, um direitocomunal que se desenvolveu extraordinariamente, as ordenaçõesdos feudos e as regras estabelecidas no fim da Idade Média pelascorporações de ofícios. Esse quadro, como é fácil de compreender,era causa e conseqüência de uma permanente instabilidade política,econômica e social, gerando uma intensa necessidade de ordem ede autoridade, que seria o germe da criação do Estado Moderno”

{Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 62).

5. Absolutismo

10. A Idade Moderna, com a centralização do poder em tomode um soberano, permitirá enfim a identificação mais clara das re-

l õ d t údit

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34 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

O período se caracteriza pela formação do Estado, de um po-der soberano dentro de certo território, sujeitando todos os demais.A idéia de soberania, formulada originalmente por Jean Bodin ( Les  Six Livres de la Republique, 1576), identificará a partir de então asnormas ligadas ao exercício do poder político. De um lado, expli-cará a unificação do poder dentro de certo território, com a submis-são de todas as pessoas à mesma ordem jurídica e o não reconheci-mento de outras ordens as vigentes em outros territórios comoaplicáveis. E a origem do Estado Moderno. De outro lado, a mesmaconcepção de soberania servirá para a justificação do absolutismo.

O poder soberano não encontra limitação, quer interna, quer exter-na. Será, por isso, insuscetível de qualquer controle. Parecia, ao es- pírito da época, que quem detinha o poder de impor normas, de julgar, de administrar não poderia ser pessoalmente sujeito a ele:ninguém pode estar obrigado a obedecer a si próprio.

11. Tentando sintetizar as normas que então disciplinavam oexercício do poder político, podemos indicar as seguintes:

a) O Estado, sendo o criador da ordem jurídica (isto é, sendoincumbido de fazer as normas), não se submetia a ela, dirigida ape-nas aos súditos. O Poder Público pairava sobre a ordem jurídica.

b) O soberano, e, portanto, o Estado, era indemandável peloindivíduo, não podendo este questionar, ante um tribunal, a valida-de ou não dos atos daquele. Parecia ilógico que o Estado julgasse asi mesmo ou que, sendo soberano, fosse submetido a algum contro-le externo.

c) O Estado era irresponsável juridicamente: le roi nepe ut mal  faire, the king can do no wrong. Destarte, impossível seria exigir ressarcimento por algum dano causado por autoridade pública.

d) O Estado exercia, em relação aos indivíduos, um poder de polícia. Daí referiremse os autores, para identificar o Estado da épo-ca, ao Estado-Polícia, que impunha, de modo ilimitado, quaisquer obrigações ou restrições às atividades dos particulares. Em conse-qüência, inexistiam direitos individuais contra o Estado (o indivíduonão podia exigir do Estado o respeito às normas regulando o exercí-cio do poder político), mas apenas direitos dos indivíduos nas suasrecíprocas relações (o indivíduo podia exigir do outro indivíduo a ob-servância das normas reguladoras de suas relações recíprocas).

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l iVOLUÇÀO HISTÓRICA DA REGU LAÇÃ O DO PODER POLÍTICO 35

e) Dentro do Estado, todos os poderes estavam centralizadosnas mãos do soberano, a quem cabia editar as leis, julgar os confli-tos e administrar os negócios públicos. Os funcionários só exerciam poder por delegação do soberano, que jamais o alienava.

12. Como se vê, o direito público (vale dizer, as regras que re-giam o exercício do poder político) poderia ser resumido, na época,

a uma norma básica: o poder deve ser acatado e é ilimitado.O notável jurista argentino Agustín Gordillo explica por queseria impossível desenvolverse, nesse clima, o estudo do direito

 público:

“No Estado de Polícia, em conseqüência, ao reconhecerse aosoberano um poder ilimitado quanto aos fins que poderia perseguir e quanto aos meios que poderia empregar, mal poderia desenvol-verse uma consideração científica desse poder. Não cremos que se

 possa afirmar, pura e simplesmente, que não existia um Direito Pú- blico, como por exemplo disse Mayer. pois inclusive este princípiodo poder ilimitado e as normas que dele emanaram constituem umcerto ordenamento positivo; porém, ao menos podese sustentar quenão existia, em absoluto, um ramo do conhecimento jurídico em tor-no do mesmo” (Princípios Gerais de Direito Público , p. 28).

6. Idade Contemporânea

13. A transformação radical da regulação do poder político,dandolhe a feição que tem hoje e ensejando a construção da ciên-cia do direito público, ocorrerá na Idade Contemporânea, sendo asRevoluções Americana e Francesa (e as Constituições delas resul-tantes) seus marcos históricos mais notáveis.

O que há de significativo neste novo período é que os sujeitosincumbidos de exercer o poder político deixarão de apenas impor 

normas aos outros, passando a dever obediência no momento emque atuam a certas normas jurídicas cuja finalidade é impor limi-tes ao poder e permitir, em conseqüência, o controle do poder pelosseus destinatários.

O exemplo mais remoto de norma jurídica imposta ao poder político para limitá lo com a finalidade de proteger os destinatários

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36 FU N D A M E N T O S D E D I REI T O PÚ BL I CO

impuseram ao rei em 1215. O seu § 39 dispõe: “Nenhum homemlivre poderá ser detido ou mantido preso, privado de seus bens, pos-to fora da lei ou banido, ou de qualquer maneira molestado, e não

 procederemos contra ele nem o faremos vir. a menos que por julga-mento legítimo de seus pares e pela lei da terra”.

14. Perceba como as normas sobre o exercício do poder se am- pliam. Até então, em todas as épocas anteriores, destinavamse aimpor praticamente sem limites e sem controles a obediênciadas pessoas às determinações do poder político. Agora, cuidarão

ainda de fazer prevalecer o poder político sobre os indivíduos (que pagarão impostos ao Estado, subm eterseão ao seu julgam ento,obedecerão às leis por ele produzidas); mas também e sobretudo de organizar o Estado para limitar e controlar seu poder (os cida-dãos escolhem em eleições os parlamentares, o Parlamento faz nor-mas para regular a cobrança de impostos pelo Executivo, um Tribu-nal pode anular a lei feita pelo Parlamento, o indivíduo pode mover uma ação judicial para se furtar da cobrança ilegal de impostos...).

Cunhase, a partir de então, o conceito de Estado de Direito, 

isto é, de um Estado que realiza suas atividades debaixo da ordem jurídica, contrapondose ao superado Estado-Policia, onde o poder  político era exercido sem limitações jurídicas, apenas se valendo denormas jurídicas para se impor aos cidadãos.

15. Não há como conhecer o direito público moderno sem ter  presente a noção de Estado de Direito. Por isso, vamos estudálacom detalhes a seguir. Contudo, a evolução da disciplina jurídicado poder político não terminou aí. A idéia de Estado de Direito,sem perder o conteúdo inicial, foi sendo enriquecida até se chegar,

hoje, ao Estado Social e Democrático de Direito. Saber o que sejaum Estado ao mesmo tempo de Direito, democrático e social é oobjeto do Capítulo seguinte.

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Capítulo III 

O Estado Social e Democrático de Direito

1. Estado de Direito: 1.1 Supremacia da Constituição 1.2 Separação  

 dos Podere s — 1.3 Superio rid ade da le i - 1 . 4 G ara ntia dos dir eitos in di

viduais. 2. Estado Democrático de Direito. 3. Estado social e democrá

 tico de Direito .

 I. Estado de direito

1. Terminamos o capítulo anterior indicando a noção Estado de Direito como fundamental ao conhecimento das característicasessenciais do direito público. Estudála significa descobrir princípiosque estão estampados em cada norma de direito público.

A idéia intuitiva a respeito dada pelo próprio sentido literalda expressão é aquela segundo a qual Estado de Direito é o quese subordina ao Direito, vale dizer, que se sujeita a normas jurídi-cas reguladoras de sua ação. O Estado Polícia apenas submetia os

indivíduos ao Direito, mas não se sujeitava a ele.O professor português Afonso Rodrigues Queiró, após enfati-

zar, como nós, que “o Estado de Direito não é uma noção secundá-ria e transcurável, mas essencial, primária, um postulado, um pres-suposto teórico do direito público”, explica seu conceito em termossemelhantes. Confira: “Para nós, como conceito desse tipo de Esta-do, vale o de Stahl: ‘o Estado deve ser Estado de Direito (...) deveassegurar inviolavelmente e perfeitamente determinar os confins e

limites de sua atividade e as esferas de liberdade dos seus cidadãosna forma do Direito’. O Estado de Direito é, para Stahl, de certomodo, um conceito formal, e é nesta medida que na ciência do di-reito público deve ser acolhido. Todas as funções do Estado e aadministrativa in specie se devem realizar na forma do Direito eas normas do Direito são o quadro da atividade do próprio Estado.

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38 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

(...) A fórmula de Stahl, que perfilhamos, permite dizer que os finsdo Estado devem ‘tecnicizarse nas formas do Direito’ (Ravà) e é oque se não passa 110 outro tipo técnico e histórico, o chamado EstadoPolícia, que por isso se opõe como ‘categoria’, como ‘espéciefixa logicamente’ (Panunzio), ao Estado de Direito. Portanto: o Es-tado do Direito Público moderno é o Estado de Direito. A sua ativi-dade realizase dentro de normas, e precisamente de normas jurídi-cas; assim a justiça como a Adm inistração” (Reflexões sobre a Teoria cio Desvio de Poder em Direito Administrativo , pp. 8 e 9).

2. Adotado este ponto de partida o Estado de Direito define erespeita, através de normas juríd icas, seja os limites de sua ativida-de, seja a esfera da liberdade dos indivíduos podemos agregar ainda duas idéias, para chegarmos, finalmente, ao conceito que pro-curamos.

De um lado, percebemos que a vinculação do Estado à lei, paraser efetiva, exige que. dentro dele, uma mesma autoridade não sejaincumbida de fazer a lei e de, ao mesmo tempo, aplicála. Caso con-

trário, ao fazer a aplicação, poderia alterar a lei anteriormente feita.Ainda: necessária a presença de outra autoridade, também diversadas demais, para julgar as eventuais irregularidades da lei e de suaaplicação. Em outras palavras, as funções de fazer as leis (legislar),aplicálas (administrar) e resolver os conflitos (julgar) devem per-tencer a autoridades distintas e independentes. A isso denominamosseparação dos Poderes.

De outro lado, essa separação não pode ser mudada pelo legis-lador, através de lei, pois, do contrário, bastarlheia exercer sua ati-

vidade (legislar) para anular o poder do administrador e do juiz.Também, os indivíduos não teriam direitos oponíveis ao próprio Es-tado se este pudesse suprimilos através de lei. Em suma, deve ha-ver uma norma superior à lei (e, em conseqüência, superior ao Es-tado que a produz) definindo a estrutura do Estado e garantindo di-reitos aos indivíduos. A essa norma chamamos Constituição.

Assim, definimos Estado de Direito como o criado e regulado por uma Constituição (isto é, por norma jurídica super ior às de-mais), onde o exercício do poder político seja dividido entre órgãos

independentes e harmônicos, que controlem uns aos outros, demodo que a lei produzida por um deles tenha de ser necessariamen-

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O ES TA D O S O C I A L E D EM O C R Á TI C O D E D I R EI TO 39

te observada pelos demais e que os cidadãos, sendo titulares de di-reitos, possam opôlos ao próprio Estado.

Acompanhe como Norberto Bobbio constrói seu conceito emtennos semelhantes:

“Por Estado de direito entendese geralmente um Estado emque os poderes públicos são regulados por normas gerais (as leisfundamentais ou constitucionais) e devem ser exercidos 110 âmbitodas leis que o regulam, salvo 0 direito do cidadão recorrer a um juizindependente para fazer com que seja reconhecido e refutado o abu-so e 0 excesso de poder. Assim entendido, o Estado de direito refle-te a velha doutrina associada aos clássicos e transmitida atravésdas doutrinas políticas medievais da superioridade do governo dasleis sobre o governo dos homens, segundo a fórmula le.x fa cit regemi, doutrina, essa, sobrevivente inclusive da idade do absolutismo, quando a máxima princeps legibus solutus é entendida no sen-tido de que o soberano não estava sujeito às leis positivas que ele próprio emanava, mas estava sujeito às leis divinas ou naturais e às

leis fundamentais do reino. Por outro lado, quando se fala de Esta-do de direito no âmbito da doutrina liberal do Estado, devese acres-centar à definição tradicional uma determinação ulterior: a constitucionalização dos direitos naturais, ou seja, a transformação des-ses direitos em direitos juridicamente protegidos, isto é, em verda-deiros direitos positivos. Na doutrina liberal. Estado de direito sig-nifica não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grauàs leis gerais do país, limite que é puramente formal, mas tambémsubordinação das leis ao limite material do reconhecimento de al-

guns direitos fundamentais considerados constitucionalmente, e portanto em linha de princípio ‘invioláveis’ (esse adjetivo se encon-tra no art. 2a da Constituição italiana).

“Do Estado de direito em sentido forte, que é aquele próprioda doutrina liberal, são parte integrante todos os mecanismos cons-titucionais que impedem ou obstaculizam o exercício arbitrário eilegítimo do poder e impedem ou desencorajam 0 abuso ou o exer-cício ilegal do poder” (Liberalismo e Democracia, p. 19).

3. As pedras de toque desse novo modo de conceber as rela-ções entre os indivíduos e o Estado cuja falta faria desmoronar todo o edifício são, portanto:

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40 F UNDA M ENT OS DE DIREITO P ÚBLICO

a) a supremacia da Constituição;h) a separação dos Poderes;

c ) a superioridade da lei; e

d) a garantia dos direitos individuais.

Vamos examinar cada uma, verificando seu funcionamento erelacionamento.

1.1 Supremacia da Constituição

4. Acima das leis, produzidas pelo Estado, existe uma norma jurídica fundamental, que não é feita nem alterada por ele, estabele-cendo os termos essenciais do relacionamento entre as autoridadese entre estas e os indivíduos: a Constituição (também chamada deCarta ou Lei Magna).

O ordenamento juríd ico (conjunto das normas jurídicas) podeser visto graficamente como uma pirâmide. No topo dela encontrase a Constituição, pairando sobre todas as demais normas. A Cons-tituição define quem pode fazer leis (quem tem competência legis-lativa), como deve fazêlas (qual o processo a ser seguido) e quaisos limites da lei (p. ex.: os direitos individuais, que não podem ser 

 prejudicados pela lei). Por isso se diz que a lei tira seu  fundamento de validade da Constituição. Uma lei vale, deve ser obedecida seja pelos Poderes Executivo e Judiciário, seja pelos indivíduos ,

 porque foi feita com base e na forma da Constituição. Um ato doPresidente da República (a nomeação de funcionário, a doação deleite para crianças desnutridas) tira seu fundamento de validade dalei; este ato vale, deve ser acatado, por haver sido produzido na for-

ma e com base na lei. A sentença do juiz (condenando um crimino-so, decretando o despejo de inquilino em débito) também tira seufundamento de validade da lei. Por isso o ordenamento jurídico éuma pirâmide: o ato administrativo e a sentença valem se estiveremde acordo com a lei, que lhes é superior; a lei vale se estiver deacordo com a Constituição, que lhe é superior. Olhando no sentidoinverso, verificamos que a Constituição é o fundamento de valida-de de todas as normas do ordenamento jurídico. Nisso consiste asupremacia da Constituição.

A lei editada por alguém não autorizado pela Constituição, oucujo conteúdo viole direito individual por ela assegurado, será in

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O E S T ADO S OC I AL E DE MOC R ÁT I C O DE DI R E I T O 41

constitucional.  A norma inconstitucional, como não encontra seufundamento de validade na Constituição, não vale, não pode nemdeve ser acatada. Para garantir que leis inconstitucionais não sejamaplicadas, com isto violando os direitos individuais, a própria Cons-tituição concebe um sistema para sua eliminação do mundo jurídi-co. É o chamado controle cia constitucionalidade das leis , realizadono Brasil pelo Poder Judiciário, através de ações adequadas.

5, A Constituição é feita por um Poder Constituinte. A Carta brasileira de 1969 foi ditada por três pessoas: os chefes militaresautoinvestidos na função de constituintes. A Carta de 1988 foi pro-mulgada por Assembléia de representantes do povo, eleita para talfinalidade. Os militares, num caso, e a Assembléia, no outro, foramo Poder Constituinte.

Inexistem normas jurídicas regulando o Poder Constituinte: eleé poder de fato, não jurídico. Exerce a função de constituinte quemtiver força para fazer respeitar o conjunto de regras de organização

do Estado que houver concebido.Feita a Constituição, o Poder Constituinte desaparece. Surge o

Estado, como criatura da Constituição. Podemos dizer, então, que oEstado brasileiro atual nasceu, no sentido jurídico, em 5 de outubrode 1988, com a promulgação da vigente Carta.

A Constituição opera papel importantíssimo na sujeição do Es-tado à ordem jurídica, eis que, como norma jurídica anterior a ele,supera a dificuldade de submetêlo às normas que por si próprio

crie. A Constituição não é feita pelo Estado. Ao contrário, o Estadoé fruto da Constituição. O Estado, em conseqüência, é pessoa jurí-dica, criada e regida pelo direito constitucional, que o precede. Por isso, todo seu funcionamento haverá de atender às disposições cons-titucionais.

“Não só estarão o Poder Executivo e o Poder Judiciário sub-metidos à lei. mas também estará o legislador submetido à Consti-tuição, cujos limites e princípios não poderá violar nem alterar ou

desvirtuar. Desta maneira todos os órgãos do Estado, todas as ma-nifestações possíveis de sua atividade, inclusive as que outrora se puderam considerar como supremas, estão hoje submetidas a umanova ordem jurídica superior. Este há de ser um passo de suma im-

 portância para o posterior desenvolvimento do Direito Público sobre

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42 F UNDAM E NTOS DE DIR EITO P ÚB LIC O

a base dos princípios constitucionais e nào só legais ou regulamenta

res" (Agustín Gordillo, Princípios Gerais de Direito Público, p. 64).

1.2 Separação dos Poderes

6. Para ser real o respeito da Constituição e dos direitos indivi-duais por parte do Estado, é necessário dividir o exercício do poder  político en tre órgãos distintos, que se controlem mutuamente. Acada um desses órgãos damos o nome de Poder. Poder Legislativo,Poder Executivo e Poder Judiciário. A separação dos Poderes esta-tais é elemento lógico essencial do Estado de Direito.

Cada Poder (isto é, cada órgão) exerce uma espécie de função. Ao Legislativo cabe a função legislativa, correspondente à ediçãode normas gerais e abstratas (as leis), seja para regular os demaisatos estatais, seja para regular a vida dos cidadãos. Ao Executivocabe a função administrativa, isto é, a atividade de, em aplicaçãoda lei anteriormente editada, cobrar tributos (dos quais o imposto éuma espécie), prestar serviços (como a distribuição de água encanada, de geração de energia elétrica, de transporte aéreo), ordenar avida privada (multando indústrias poluidoras, controlando o trânsi-to de veículos pelas ruas, autorizando a construção de edifícios), eassim por diante. Ao Judiciário cabe a função jurisdicional'. julga,sob provocação do interessado, os conflitos entre os indivíduos (adisputa em tomo da propriedade de terreno, a cobrança de dívida, aação de divórcio), ou entre indivíduos e Estado (a ação proposta por empresa para anular multa imposta pelo Executivo, ou por ci-dadão para se livrar de imposto cobrado de forma inconstitucional).

Os Poderes exercem suas funções com independência em rela-ção aos demais. Cada um tem suas autoridades, que nào devem res-

 peito hierárquico às autoridades do outro Poder. O Presidente da

República é impotente para dar ordens ao juiz. O Presidente doCongresso Nacional nào avoca para si atribuições dos Ministros doExecutivo.

A cada função corresponde uma espécie de ato (de norma) es-tatal: a lei (função legislativa), o ato administrativo (função admi-nistrativa) e a sentença (função jurisdicional). A lei se submete àConstituição. O ato administrativo e a sentença são inferiores à lei.A sentença pode anular (isto é, desfazer os efeitos, tirar do mundo

 jurídico) o ato administrativo ilegal.

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O E S T A D O S O C IA L E D E MO C R Á T IC O D E D IR E IT O 43

Agora está solucionada dúvida surgida no Capítulo I: se o Es-tado deve se submeter às normas jurídicas e se o descumprimentodelas é sancionado (punido) pelo próprio Estado, como evitar queele escape à sanção? A resposta é simples: o Judiciário órgão in-dependente e, por isso, imparcial é quem, dentro do Estado, in-cumbese de velar pelo respeito dos demais Poderes à ordem jurídi-ca, negando efeito às leis inconstitucionais e anulando atos admi-nistrativos ilegais. Assim, o Estado se submete à lei porque se sub-

mete à jurisdição. Esse ponto é especialmente destacado por Geral-do Ataliba em obra fundamental para o direito público brasileiro:“Assim também, para que se repute um Estado como de Direito é preciso que nele se reúna à característica da subordinação à lei, ada submissão à jurisdição, nos termos postulados por Giorgio Balladore Palieri (v.  Diritto Costituzionale, 3a ed., Milão, Giuffrè, pp. 80e ss. Especialmente p. 85). Este notável publicista milanês insisteque só é possível reconhecer Estado de Direito onde: a) o Estado sesubmete à jurisdição; b) a jurisdição deva aplicar a lei preexistente;c) a jurisdição seja exercida por uma magistratura imparcial (obvia-mente, independente), cercada de todas as garantias; d) o Estado aela se submeta como qualquer  pars, chamada a juízo em igualdadede condições com a outra pars” (República e Constituição, p. 120).

Em resumo, à separação de órgãos (Poderes), corresponde umadistinção de atividades (funções), que produzem diferentes atos,como segue: Poder Legislativo função legislativa lei; Poder Exe-cutivo função administrativa (ou Governo) ato administrativo;Poder Judiciário função jurisdicional (ou justiça) sentença.

7. Percebese a importância da separação dos Poderes no con-trole do exercício do poder político. Cada Poder corresponde a umlimite ao exercício das atividades do outro. Assim, o poder freia o

 poder, evitando a tirania.

A formulação teórica da divisão dos Poderes e funções do Es-tado é de Montesquieu, em sua obra clássica  Do Espirito das Leis, cuja citação é inevitável.

“A democracia e a aristocracia, por sua natureza, não são Esta-dos livres. Encontrase a liberdade política unicamente nos gover-nos moderados. Porém, ela nem sempre existe nos governos mode-rados: só existe nestes últimos quando não se abusa do poder; mas

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44 F U N D A ME N TO S D E DIR EITO P Ú B LIC O

a experiência eterna mostra que todo homem que tem poder é tenta-

do a abusar dele; vai até onde encontra limites. Quem o diria! A própria virtude tem necessidade de limites.

“Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela dis- posição das coisas, o poder freie o poder. Uma constituição podeser de tal modo, que ninguém será constrangido a fazer coisas quea lei não obriga e a não fazer as que a lei permite. (...).

“Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legis-lativo, poder executivo das coisas que dependem do direito das gen-tes, e executivo das que dependem do direito civil.

“Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz leis por certo tem- po ou para sempre e corrige ou abroga as que estão feitas. Pelosegundo, faz a paz ou a guerra; envia ou recebe embaixadas, esta- belece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os cri-mes ou julga as querelas dos indivíduos. Chamaremos este últimodo poder de julgar e, o outro, simplesmente o poder executivo doEstado.

“A liberdade política, num cidadão, é esta tranqüilidade de es- pírito que provém da opinião que cada um possui de sua segurança;

e, para que se tenha esta liberdade, cumpre que o governo seja detal modo, que um cidadão não possa temer outro cidadão.

“Quando na mesma pessoa ou no mesmo coipo de magistratu-ra o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existeliberdade, pois podese temer que o mesmo monarca ou o mesmosenado apenas estabeleçam leis tirânicas para executálas tiranica-mente.

“Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao

 poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãosseria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.

“Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo coipodos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três po-deres: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de

 ju lgar os crimes ou as divergências dos indivíduos” {Do Espírito das Leis, pp. 148 e 149).

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O ESTADO SOCIAL E DEM OCRÁTICO DE DIREITO 45

1.3 Superioridade da lei

S. A lei, que, até o período medieval, era vista como sagrada eimutável e, no período absolutista, como fruto de um querer divino(que o soberano expressava), ganha, com o Estado de Direito, ca-racterística humana: passa a ser a expressão da vontade geral. A lei,destinada a reger a vida dos homens, deve ser feita por eles.

“As leis nào são, propriamente, mais do que as condições da

associação civil. O povo, submetido às leis, deve ser o seu autor. Sóàqueles que se associam cabe regulamentar as condições da socie-dade”, dirá Jean Jacques Rousseau, em seu  Do Contrato Social. ADeclaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, acolhendo suadoutrina, estabelecerá que “a lei é a expressão da vontade geral. To-dos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou por seus representantes, para sua formação” (art. 62).

9. Sendo expressão da vontade geral, a lei imporseá ao pró- prio Estado, quando este se ocupar do Governo e da Justiça. Nistoconsiste a superioridade da lei: na virtude de ser superior e, por-tanto, de condicionar aos atos administrativos e às sentenças. Des-se modo. estabelecendose uma hierarquia entre a lei e os atos desua execução (atos administrativos e sentenças), criamse os meiostécnicos indispensáveis ao funcionamento da separação dos Poderes.

“Parecenos que a idéia rousseauniana da superioridade da lei

(vontade geral) postula a existência duma repartição orgânica dasfunções do Estado, pois só se concebe que a lei seja revestida desuperioridade quando há órgãos que na realização das suas funçõeslhe devam obediência. Quer dizer: Rousseau é insuficiente por si esó ao lado de Montesquieu o seu pensamento adquire relevância para a ciência do direito público” (Afonso Rodrigues Queiró, ob.cit., pp. 8 e 9, nota 2). Em verdade, aqui temos uma via de mão du- pla: nem a superioridade da lei pode funcionar onde inexista separa-

ção dos Poderes, nem esta é possível sem a superioridade da lei.O administrador e o juiz, ao exercerem suas atividades (produ-

zindo atos administrativos e sentenças), apenas aplicam a lei, ape-nas realizam concretamente a vontade geral, sem que suas vontades

 particulares interfiram no processo. A atividade pública deixa, as-sim, de ser vista como propriedade de quem a exerce, passando a

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46 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

ligado a finalidade estranha ao agente. Ademais, ninguém exercerá

autoridade pública que nào emane da lei.10. De outro lado, só a lei pode definir e limitar o exercício

dos direitos individuais. O interesse individual só cede ante interes-ses públicos e estes são estabelecidos pela lei, não pela vontade iso-lada do príncipe. A propósito, a citada Declaração dos Direitos doHomem e do Cidadão estabeleceu que os limites ao exercício dosdireitos naturais de cada homem nào poderiam ser determinados se-não pela lei (art. 4U), de modo que “tudo o que não está proibido

 pela lei nào pode ser impedido, e ninguém pode ser obrigado a fa-

zer o que ela não ordene”.Com isso, os cidadãos se submetem ao governo da lei, vale di-

zer, têm seus deveres regulados por uma norma geral e abstrata,emanada da Assembléia de seus representantes.

“Por ‘governo da lei’ entendemse duas coisas diversas embo-ra coligadas: além do governo sub lege, que é o considerado atéaqui, também o governo per leges, isto é, mediante leis, ou melhor,através da emanação (se não exclusiva, ao menos predominante) denormas gerais e abstratas. Uma coisa é o governo exercer o poder 

segundo leis preestabelecidas, outra coisa é exercêlo mediante leis,isto é, nào mediante ordens individuais e concretas” (Norberto Bo

 bbio, O Futuro da Democracia Uma Defesa das Regras do Jogo , p. 157).

É essa nova concepção de lei que permitirá a construção detodo o direito público moderno.

1.4 Garantia dos direitos individuais

11. Também da Constituição resulta o reconhecimento de cer-tos direitos os de liberdade e igualdade, sobretudo que os indi-víduos titularizam independentemente de outorga estatal. As Decla-rações de Direitos, solenemente embutidas nas Constituições ame-ricana e francesa e depois repetidas e aumentadas em todas as Cons-tituições modernas, permitirão que os indivíduos oponham seus di-reitos ao próprio Estado.

O preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos da América,editada em 1787, afirmava: “Nós, o Povo dos Estados Unidos, a

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O ESTADO SOCI AL E DEMOCRÁTI CO DE DI REI TO 47

fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a Justiça, asse-gurar a tranqüilidade interna, prover a defesa comum, promover o

 bemestar geral e garantir para nós e para os nossos descendentesos benefícios da Liberdade, promulgamos e estabelecemos estaConstituição para os Estados Unidos da América”. Contudo, o tex-to da Constituição se limitou a regular o funcionamento dos Pode-res Públicos. A enumeração de direitos individuais contra o Estadosurgirá através da Primeira Emenda. Nela. prevêse, por exemplo,

que “o Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma reli-gião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a li-

 berdade de manifestação ou de imprensa, ou o direito do povo dese reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a re-

 paração de seus agravos” .

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 deoutubro de 1789, posteriormente mantida como preâmbulo da Cons-tituição francesa de 1791, afirmava, com eloqüência ainda maior:

“Os representantes do povo francês, reunidos em Assembléia Nacio-nal, considerando que o desconhecimento, o esquecimento ou o des-

 prezo dos direitos do homem são as únicas causas das infelicidades públicas e da corrupção dos governantes, resolveram expor, em umadeclaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados dohomem, a fim de que esta declaração, constantemente presente atodos os membros do corpo social, lhes relembre sem cessar os seusdireitos e deveres; a fim de que os atos do poder legislativo e os do

 poder executivo, podendo ser a todo momento comparados com afinalidade de qualquer instituição política, sejam mais respeitados;a fim de que as reclamações dos cidadãos, fundadas em princípiosclaros e incontestáveis, sirvam sempre à manutenção da Constitui-ção e à felicidade de todos”. Em seguida, em seus artigos Ia e 2e,estabelecia que os homens nascem e permanecem livres e iguais emdireitos e que a finalidade de toda associação política é a conserva-ção dos direitos naturais e imprescritíveis do homem: a liberdade, a

 propriedade, a segurança e a resistência à opressão.Sendo de origem constitucional, tais direitos não poderão ser 

suprimidos pelo Estado, nem mesmo por via legislativa. Portanto,ainda que o interesse público prevaleça sobre o interesse particular,isso nunca poderá se dar em prejuízo dos direitos individuais pre-vistos na Constituição. A Declaração Francesa dos Direitos do Ho-

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48 F UNDAM ENTOS DE DIREITO P ÚBLICO

mem e do Cidadão dispôs, a propósito, que “a lei não tem o direitode proibir senão as ações prejudiciais à sociedade” (art. 5Ü) e que “alei não deve estabelecer senão as penas estrita e evidentemente ne-cessárias” (art. 8U). Assim, o respeito aos direitos dos indivíduos passa a ser um dos fins do Estado, tomase de interesse público.

12. Da garantia, contida na Constituição, de direitos em favor dos indivíduos surgirá a noção de direito subjetivo público, isto é,de um direito que o indivíduo titulariza contra o próprio Estado,ampliando o antigo conceito de direito subjetivo, até então circuns-crito às relações entre particulares. O direito de propriedade, que jáera assegurado em Roma pelas leis civis, consistia, então, num di-reito subjetivo privado: o proprietário tinha a faculdade (o direito)de recorrer aos tribunais contra qualquer semelhante que invadisseseu imóvel. Mas não teria a mesma faculdade se a violência viessedo Estado; por isso, o direito de propriedade era apenas um direitosubjetivo privado, nào direito subjetivo público (isto é, oponível aoEstado). Contudo, quando a Constituição garante o direito de pro-

 priedade como direito individual, está conferindo ao proprietário um

direito subjetivo público, que o Estado haverá de acatar e garantir.

13. Com a referência propositalmente a última à garantiados direitos individuais, nós, que já havíamos apreendido a dinâmi-ca do funcionamento do Estado de Direito, conseguimos visualizar sua razão de ser, sua finalidade. A separação dos Poderes, a superio-ridade da lei, a Constituição, nào são valores em si mesmos, antesexistem para tomar efetiva, permanente e indestrutível a garantiade direitos individuais. A proteção do indivíduo contra o Estado é o

objetivo de toda a magistral construção jurídica que percorremos. Nada mais natural, portanto, que o direito público por inteiro estejaembebido desta preocupação última, que exala desde a Constitui-ção até a mais ínfima das normas.

Gordillo, ao analisar a evolução do Estado de Direito da meralegalidade para a ampla constitucionalidade, acentua com proprie-dade esta idéia: “O conceito de Estado de Direito, por certo, não éunívoco e sofreu uma evolução que o foi aperfeiçoando: numa pri-meira fase podese dizer que o fundamento era um respeito à lei por 

 parte do Poder Executivo: este era o então vigente princípio da le-galidade dos particulares. Logo os limites que o Estado de Direito

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O E S T A D O S O C IA L E D E M O C R Á T IC O D E D IR E IT O 49

impõe são estendidos à própria lei: se diz então, como já vimos,que também a lei deve respeitar princípios superiores: é o outro princípio fundamental do respeito à Constituição por parte das leismanifestado através do controle judicial da dita constitucionalidade. O indivíduo aparece, assim, protegido contra os avanços injus-tos dos poderes públicos numa dupla face: por um lado. que a Ad-ministração respeite a lei, e, por outro, que o legislador respeite aConstituição. O cerne da questão radica sempre, como se percebe, 

em que os direitos individuais nào sejam transgredidos por parte  dos poderes públicos” (Princípios Gerais de Direito Público , p. 68).

2. Estado Democrático de Direito

14. Vimos no tópico anterior que Estado de Direito é o criadoe regulado por uma Constituição (isto é, por uma norma jurídicasuperior às demais), onde o exercício do poder político seja dividi-do entre órgãos independentes e harmônicos, que controlem uns aosoutros, de modo que a lei produzida por um deles tenha de ser ne-cessariamente observada pelos demais e que os cidadãos, sendo ti-tulares de direitos, possam opôlos ao próprio Estado.

Pois bem. Um Estado como esse não é necessariamente demo-crático. iniciando nossa construção do conceito de Estado demo-crático ao qual iremos agregando, pouco a pouco, todas as notasque definam as condições suficientes de um Estado do gênero , podemos definilo como aquele onde o povo, sendo o destinatário

do poder político, participa, de modo regular e baseado em sua li-vre convicção, do exercício desse poder. O mero Estado de Direitodecerto controla o poder, e com isso protege os direitos individuais,mas nào garante a participação dos destinatários no seu exercício.

A noção de democracia, que já existira desde a Grécia, chegouinclusive a ser entendida como contraditória à de Estado de Direito,consagrada pelo liberalismo. “O liberalismo dos modernos e a de-mocracia dos antigos foram freqüentemente considerados antitéticos, no sentido de que os democratas da antigüidade não conheciamnem a doutrina dos direitos naturais nem o dever do Estado de limi-tar a própria atividade ao mínimo necessário para a sobrevivênciada comunidade. De outra parte, os modernos liberais nasceram ex- primindo uma profunda desconfiança para com toda forma de

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50 F U N D A MEN TO S D E D IR EITO P Ú B LICO

governo popular, tendo sustentado e defendido o sufrágio restrito

durante todo o arco do século XIX e também posteriormente. Já ademocracia moderna não só nào é incompatível com o liberalismocomo pode dele ser considerada, sob muitos aspectos e ao menosaté certo ponto, um natural prosseguimento” (Norberto Bobbio,  L iberalismo e Democracia, p. 37).

15. Superada sua fase inicial, o Estado de Direito foi paulati-namente incorporando instrumentos democráticos, com a finali-dade de permitir a participação do povo no exercício do poder de modo muito coerente, aliás, com o projeto inicial de controlar 

o Estado. O conceito jurídico que inicialmente sintetiza tais instru-mentos é o de  República idéia que se vai mesclando à de Estadode Direito, para formar com ela, na atualidade, um todo uno e indi-visível.

A República, tal como consagrada por nossa Constituição, im- plica fazer dos agentes públicos, que exercem diretamente o poder  político, representantes diretos do povo, por ele escolhidos e reno-vados periodicamente. Os agentes passam a exercer mandato pa-lavra que, em sua origem no direito privado, significa contrato en-tre o titular de certo direito e alguém por ele investido temporaria-

mente no poder de exercêlo. Estabelecese, destarte, relação de re- presentação entre o povo (titular do poder) e os agentes públicos(exercentes do poder), atuando estes como mandatários, como ver-dadeiros procuradores daquele. A procuração política se outorga por tempo determinado, através de eleições, de modo a permitir queo dono do poder seja chamado periodicamente a renovála ou cas-sála, transferindoa a outrem. Mas a renovação dos mandatos nãoé o único controle do povo sobre os exercentes do poder. Estes po-dem ser responsabilizados (punidos e destituídos de seus cargos)quando violam seus deveres, excedendo ou descumprindo os ter-

mos do mandato que receberam.“República é o regime político em que os exercentes de fun-

ções políticas (executivas e legislativas) representam o povo e deci-dem em seu nome, fazendoo com responsabilidade, eletivamente emediante mandatos renováveis periodicamente. São, assim, carac-terísticas da República a eletividade, a periodicidade e a responsa- bilidade. A eletividade é instrumento da representação. A periodi-cidade assegura a fidelidade aos mandatos e possibilita a alternância

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O E S T A D O S O C I A L E D E M O C R Á T I C O D E D I R E I T O 51

110 poder. A responsabilidade é o penhor da idoneidade da represen-tação popular” (Geraldo Ataliba.  República e Constituição, p. 13).

16. A Constituição brasileira não se contentou, contudo, emadotar o modelo republicano (art. lü, caput), baseado essencialmen-te na representação, é dizer, 110 exercício indireto do poder pelo povo, através de seus representantes eleitos. A ele somou instru-mentos de participação popular direta, anunciando, já 110 parágra-

fo único de seu art. lü: “Todo 0 poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos destaConstituição”. Tais mecanismos são objeto, por exemplo, do art. 14,onde se prevê a realização de plebiscito (votação para conhecer aopinião popular sobre determinada decisão fundamental) e referen-do (exame popular de lei elaborada pelo Legislativo), bem como a possibilidade de iniciativa popular das leis (propositura ao legislati-vo, por certo número de cidadãos, de projetos de lei).

Dessa maneira, o Estado democrático não se limita a ser repu- blicano, estendendose a mecanismos de exercício popular diretodo poder.

17. A influência do ser democrático de um Estado na faceconcreta do direito público é evidente. Nào só justifica a existênciade ramo dedicado exclusivamente às questões eleitorais (o direitoeleitoral), como produz uma categoria diferenciada de direitos: osdireitos políticos.

Os direitos garantidos pela Constituição aos indivíduos queno mero Estado de Direito se limitavam à proteção das manifesta-ções individuais em face do poder: direito de exercer uma profis-são, direito de não ser preso indevidamente, direito de possuir bens se ampliam em outros de diversa qualidade: no asseguramento

 jurídico da participação popular nas decisões do Estado. Surgemnão apenas os direitos de votar, de ser votado, de fundar e partici-

 par de partidos políticos correspondentes à garantia imediata da

 participação 110 poder como seus necessários sustentáculos: osdireitos à liberdade de expressão do pensamento e de imprensa, dereunião, de informação, e outros mais.

Balladore Pallieri insiste em que os direitos políticos não po-dem se resumir à garantia formal de participação (isto é, ao assegu-

t d ã d d i ã l ) õ

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52 F UNDA M ENTOS DE DI R EI TO P ÚB LIC O

sibilidade de livre formação da vontade que se vai expressar. “Nãohá Estado democrático onde o direito não preveja e discipline ma-nifestações inequívocas, regulares e freqüentes, da vontade do povo,das quais resulte de maneira objetiva o pensamento dele sobre osnegócios públicos, e pelas quais as decisões mais importantes se-

 jam realmente tomadas livremente pelo povo, segundo seu juízo.Por isto, o regime democrático só é possível em clima de liberdade  

 po lítica" (Diritto Costituzionale, p. 98, grifos nossos).

Também o notável pensador italiano Norberto Bobbio expres-sa essa idéia, ao expor as condições da democracia: “E indispensá-

vel uma terceira condição: é preciso que aqueles que são chamadosa decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diantede alternativas reais e postos em condição de poder escolher entreuma e outra. Para que se realize esta condição é necessário que aoschamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direi-tos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, dereunião, de associação, etc. os direitos à base dos quais nasceu oestado liberal e foi construída a doutrina do estado de direito emsentido forte, isto é, do estado que não apenas exerce o poder  sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados do reconhecimentoconstitucional dos direitos ‘invioláveis’ do indivíduo. Seja qual for o fundamento filosófico destes direitos, eles são o pressuposto ne-cessário para o correto funcionamento dos próprios mecanismos predominantemente procedimentais que caracterizam um regimedemocrático" (O Futuro da Democracia - Uma Defesa das Regras do Jog o , p. 20).

 IS. Podemos agora aditar em verdade, salientar algo já sub- jacente às noções expostas: República, direitos políticos uma últi-ma condição indispensável à democracia, que demonstra a necessá-ria vinculação entre ela e o Direito: o respeito às regras do jog o.

 Nào é democracia o regime onde a adoção das decisões funda-mentais para o Estado, mesmo se expressivas da vontade de muitoshomens, nào seja feita com absoluto respeito a regras predetermi-nadas e estáveis, definindo quais os sujeitos titulados a decidir (todoo povo? Só os maiores de idade? Os soldados?) e o modo como ofarão (a eleição se faz em um ou dois turnos? E necessária maioriaabsoluta ou relativa?). A inexistência de regras anteriores e estáveisregulando a decisão a tomar permite que, na dependência do inte-

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O ES TA D O S O C I A L E D EM O C R Á TI C O D E D I R EI TO 53

resse dos poderosos, sejam chamados a decidir ora um grupo, oraoutro de pessoas em evidente manipulação, totalmente alheia àidéia de participação popular. A inexistência de regras definindo o

 papel de cada membro do grupo, cujo respeito ele possa exigir, per-mite excluir pessoas sempre que sua presença não convenha. Re-gras estáveis e predeterminadas têm nome: normas jurídicas, sobretudo as constitucionais', normas jurídicas definindo os direitos políticos, o processo eleitoral, a participação direta, e assim por dian-

te. Não há democracia sem normas jurídicas (de direito público, de-certo) regulando o processo político.

 Neste momento adquire sentido a afirmação, posta de início,de que Estado democrático e Estado de Direito, conquanto origi-nalmente distintos, fundemse hoje em necessária convivência. Maisuma vez Bobbio: “Disto segue que o estado liberal é o pressupostonão só histórico mas jurídico do estado democrático. Estado liberale estado democrático são interdependentes em dois modos: na dire-ção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são ne-cessárias certas liberdades para o exercício correto do poder demo-crático, e na direção oposta que vai da democracia ao liberalismo,no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir aexistência e a persistência das liberdades fundamentais. Em outras

 palavras: é pouco provável que um estado não liberal possa assegu-rar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte é pouco provável que um estado não democrático seja capaz de ga-rantir as liberdades fundamentais. A prova histórica desta interde-

 pendência está 110 fato de que estado liberal e estado democrático,quando caem, caem juntos” (O Futuro da Democracia..., p. 20).Sabendo perfeitamente disso, o Constituinte brasileiro de 1988,após informar, no preâmbulo da Constituição, que pretendia insti-tuir um “Estado democrático” imediatamente estabeleceu, no caput  do art. Ia, estar criando um “ Estado democrático de direito”.

19. Chegamos assim aos elementos do conceito de Estado De-mocrático de Direito:

a) criado e regulado por uma Constituição;b) os agentes públicos fundamentais são eleitos e renovados

 periodicamente pelo povo e respondem pelo cumprimento de seusdeveres;

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54 F UNDAM ENTOS DE DIR EI TO P ÚB LI C O

c) o poder político é exercido, em parte diretamente pelo povo,

em parte por órgãos estatais independentes e harmônicos, que con-trolam uns aos outros;

d) a lei produzida pelo Legislativo é necessariamente observa-da pelos demais Poderes;

e) os cidadãos, sendo titulares de direitos, inclusive políticos, podem opôlos ao próprio Estado.

Em termos sintéticos, o Estado Democrático de Direito é asoma e o entrelaçamento de: constitucionalismo, república, partici- pação popular direta, separação de Poderes, legalidade e direitos

(individuais e políticos).

3. Estado social e democrático de Direito

20. Fechando o ciclo que nos impusemos para definir o modo jurídico de ser do Estado brasileiro atual e, com isto, fixar adequa-dos pontos de partida para o estudo do direito público, topamos como Estado Social.

O liberalismo, gerador do Estado de Direito, tinha seu modelo

econômico calcado no absenteísmo estatal: era preciso que o Esta-do não interferisse nos negócios dos indivíduos, restringindo suaação à garantia da ordem, da paz, da segurança. Em suma, queriase um Estado mínimo, com reduzidas funções, sem interferência navida econômica.

As idéias de Estado de Direito e Estado mínimo, conquantoresultantes ambas do liberalismo, não são autoimplicantes. Um Es-tado pode ser mínimo (isto é, limitar suas atividades, deixando gran-de espaço para a iniciativa econômica dos indivíduos) e não ser deDireito, por adotar formas autoritárias de exercício do poder políti-

co lembremse algumas ditaduras latinoamericanas muito recen-tes. Será possível, porém, que o Estado amplie suas funções, pas-sando a interferir intensamente na vida econômica, inclusive para ni-velar as desigualdades sociais, sem deixar de ser Estado de Direito?

21. A questão foi posta neste século quando a crise econômicado primeiro pósguerra levou o Estado a assumir forçado, digase, pelas exigências da própria sociedade um papel ativo, sejacomo agente econômico (instalando indústrias, ampliando serviços,

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O E S T A D O S O C IA L E D E MO C R Á T IC O D E D IR E IT O 55

gerando empregos, financiando atividades), seja como intermediáriona disputa entre poder econômico e miséria (defendendo trabalhado-res em face de patrões, consumidores em face de empresários).

As Constituições mais modernas, sobretudo após as de Weimar (1919) e do México (1917). cuidaram de incorporar estas no-vas preocupações: a de desenvolvimento da sociedade e de valori-zação dos indivíduos socialmente inferiorizados. O Estado deixaseu papel não intervencionista para assumir nova postura: a de agen-

te do desenvolvimento e da justiça social.

Enquanto as clássicas declarações de direitos consagravam ba-sicamente a proteção do indivíduo contra o Estado, reservandoàqueles um espaço intangível de liberdade, as novas declarações

 passaram a se ocupar também da proteção dos indivíduos em face do poder econômico e em propiciarlhes prestações estatais positivas.

22. O Estado tomase um Estado Social, positivamente atuante

 para ensejar o desenvolvimento (não o mero crescimento, mas a ele-vação do nível cultural e a mudança social) e a realização de just iça  social (é dizer, a extinção das injustiças na divisão do produto eco-nômico).

Em um primeiro plano, aparecem os chamados direitos sociais, ligados sobretudo à condição dos trabalhadores: garantese o direi-to ao salário mínimo, restringese em nome da proteção do eco-nomicamente fraco a liberdade contratual de empregadores e em-

 pregados.De outro lado, o indivíduo adquire o direito de exigir certas 

 prestações positivas do Estado: o direito à educação, à previdênciasocial, à saúde, ao segurodesemprego e outros mais.

Para incrementar o desenvolvimento econômico, sobretudo nos países subdesenvolvidos, o Estado passa a atuar como agente econômico, substituindo os particulares e tomando a si a tarefa de de-senvolver atividades reputadas importantes ao crescimento: surgem

as empresas estatais.

23. O Estado Social substitui o Estado de Direito e seu desen-volvimento, o Estado democrático de Direito?

A resposta é enfaticamente negativa: o Estado Social nào sóincorpora o Estado de Direito, como depende dele para atingir seus

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56 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

objetivos. O oferecimento de prestações positivas aos indivíduos(serviços de educação, saúde, previdência) corresponde a um direito destes a tais prestações. Não há como falar em direitos contra oEstado senão onde exista Estado de Direito! A proteção do pobrecontra o rico se faz com a atribuição de direitos àquele em face des-te. Os direitos dos trabalhadores, constitucionalmente previstos, só

 podem prevalecer onde haja controle de constitucionalidade das leis(contra as leis que os violem), onde haja um Judiciário independen-

te (não só em relação aos demais órgãos estatais, como em relaçãoao poder econômico): tudo isso é mecanismo do Estado de Direito.

E esse também o pensamento de Gordillo, que utiliza a expres-são Estado de BemEstar para designar o Estado Social: “A dife-rença básica entre a concepção clássica do liberalismo e a do Esta-do de BemEstar é que, enquanto naquela se trata tãosomente decolocar barreiras ao Estado, esquecendose de fixarlhe tambémobrigações positivas, aqui, sem deixar de manter as barreiras, se lheagregam finalidades e tarefas às quais antes não se sentia obrigado.A identidade básica entre Estado de Direito e Estado de BemEstar,

 por sua vez, reside em que o segundo toma e mantém do primeiro orespeito aos direitos individuais e é sobre esta base que constrói seus próprios princípios” (Princípios Gerais de Direito Público, p. 74).

24. Assim sendo, para definir juridicamente o Estado brasilro de hoje não só ele: a maioria dos Estados civilizados bastaconstruir a noção de Estado Social e Democrático de Direito , agre

gandose aos elementos ainda há pouco indicados a imposição, aoEstado, do dever de atingir objetivos sociais, e a atribuição, aos in-divíduos, do correlato direito de exigilo.

Os elementos do conceito de Estado Social e Democrático deDireito serão, portanto:

a) criado e regulado por uma Constituição;

b) os agentes públicos fundamentais são eleitos e renovados periodicamente pelo povo e respondem pelo cumprimento de seus

deveres;c) o poder político é exercido, em parte diretamente pelo povo,

em parte por órgãos estatais independentes e harmônicos, que con-trolam uns aos outros;

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O ES TADO S OCIAL E DEM OCRÁTICO DE DIREITO 57

d) a lei produzida pelo Legislativo é necessariamente observa-da pelos demais Poderes;

é) os cidadãos, sendo titulares de direitos, inclusive políticos esociais, podem opôlos ao próprio Estado;

 f) o Estado tem o dever de atuar positivamente para gerar de-senvolvimento e justiça social.

Em termos sintéticos, o Estado Social e Democrático de Direitoé a soma e o entrelaçamento de: constitucionalismo, república, parti-

cipação popular direta, separação de Poderes, legalidade, direitos (in-dividuais, políticos e sociais), desenvolvimento e justiça social.

Verifique, no Preâmbulo e no Título I da Constituição brasilei-ra de 1988, se a ciência do direito público brasileiro isto é, o estu-do das normas jurídicas que regulam o exercício do poder político deve ou não tomar como base a noção de Estado social e demo-crático de direito:

“Preâmbulo: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidosem Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado de-

mocrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais eindividuais, a liberdade, a segurança, o bemestar, o desenvolvimen-to, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma socieda-de fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia so-cial e comprometida, na ordem internacional, com a solução pacífi-ca das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a se-guinte Constituição da República Federativa do Brasil.

Título 1 DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

Art. 1Q. A República Federativa do Brasil, formada pela união

indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, consti-tuise em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:

I a soberania;

II a cidadania;

III a dignidade da pessoa humana;

IV os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce

 por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos destaConstituição.

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58 FUNDAMEN TOS DE DIREITO PÚBLICO

Art. 2U. Sào Poderes da União, independentes e harmônicosentre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 3Ü. Constituem objetivos fundamentais da República Fe-derativa do Brasil:

I construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II garantir o desenvolvimento nacional;

III erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desi-gualdades sociais e regionais;

IV promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Vale a pena também correr os olhos pelas demais disposiçõesconstitucionais para testar se consagram ou não o modelo desenha-do inicialmente.

25. Edificar uma ciência do direito público fundada na idéia deEstado social e democrático de direito expressiva, em conseqüên-cia e como deve ser, das normas de direito público vigentes no Bra-

sil é o desafio que temos de começar a enfrentar.

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Capítulo IV  

O Sujeito Estado

1. Ü Estudo á uma pess oa jurídica . 2. P erson alidad e jurídico-con stitu- 

 cio na l do Estad o. 3. Perso nalidade de direito público. 4. Relacionamen

 to exte rn o do Estado. 5. D escentraliza ção p o lí ti ca e adm in is tr ativa do  

 Estado.

 I. O Estado é uma pessoa juríd ica

1. Ao colocarmos, logo no início de nosso curso, a questão so- bre quem maneja o poder político, cujo exercício é regido por nor-mas de direito público, imediatamente obtivemos a resposta: é oEstado. Dissemos então ser ele uma pessoa jurídica. Cumpre agoraverificar o significado desta última afirmação.

O que é uma pessoa jurídica?

Pessoa jurídica é espécie do gênero  pessoa. Para compreender o que seja uma pessoa jurídica, precisamos entender o significado

de pessoa para o Direito.

2. Antes de definila, lembremos algumas noções básicas doDireito.

 Normas jurídicas são regras determinando as condutas dos in-divíduos: “Pague o aluguel estipulado”; “Alimente seu filho”; “Res-

 peite a propriedade de seu vizinho” . Diante de uma norma, sempreexiste alguém obrigado a cumprila e alguém que pode exigir seu

cumprimento. Na norma “Pague o aluguel estipulado”, o obrigadoé o inquilino (deve pagar o aluguel) e o beneficiado é o locador (pode exigir o aluguel); na norma “Alimente seu filho”, obrigado éo pai, beneficiado é o filho. Dizemos que o obrigado pela norma (oinquilino, o pai) tem um dever, está vinculado a realizar a ação por ela exigida. O beneficiado (o locador, o filho) tem um direito: a fa-

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60 F UNDA M ENTO S DE DIREITO P ÚBLICO

culdade de exigir a prestação do outro. Entre o titular do direito e odevedor a norma estabelece uma ligação, um vínculo, a que damoso nome de relação jurídica: locador e locatário, pai e filho, são su-

 jeitos das respectivas relações jurídicas. O titular do dever é o su je ito passivo (porque sofre a ação do credor), o titular do direito é osujeito ativo (porque pode exigir a prestação).

3. Pessoa, para o ordenamento jurídico, é um conjunto de d reitos e deveres.

A primeira vista, parece estranha a definição. A estranheza re-sulta de não estarmos fornecendo o conceito comum de pessoa, quetodos conhecem. Afinal, nào estudamos o Direito? Devemos, en-tão, desvendar o conceito de pessoa  para o Direito, quer dizer, oconceito jurídico de pessoa.

De que adiantaria dizer, em um estudo jurídico, que pessoa é oconjunto formado por cabeça, tronco e membros? O que isso nostraria de útil para conhecer a aplicação das normas jurídicas? Obvia-mente, nada.

O Direito nada tem a ver com o mundo da natureza (mundo doser). Direito é o conjunto das normas jurídicas. Normas jurídicassão regras que se destinam a dispor como as coisas devem ser. A leiestabelecendo que um homem não deve furtar os bens do outro ape-nas regula como deve ser  o comportamento do homem. Nada dizsobre o modo como são normalmente tais comportamentos.

O Direito não descreve a realidade (não diz como ela é): quer interferir nela, dispondo como deve ser. Essas noções simples per-mitem visualizar a existência de dois mundos distintos: o mundo do

ser  (da natureza) e o mundo do dever-ser  (das normas). Pois bem.Quando estudamos o Direito, devemos nos ocupar do mundo dodeverser, não do mundo do ser. Ao tentarmos compreender o sig-nificado de pessoa para o Direito, nos confundimos um pouco emvirtude do uso do termo “pessoa”, cujo sentido no mundo do ser jáconhecemos anteriormente.

Por isso, somos instintivamente levados a transportar, para omundo do deverser, a idéia de “pessoa” que trazemos do mundodo ser. Isso causa sérias confusões, que o emprego de palavra di-versa talvez evitasse.

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O SUJEITO ESTADO 61

O carro (objeto do mundo do ser) não é a junção de motor,lataria, pneus, vidros etc.? Pois pessoa, para o Direito (objeto domundo do deverser), é a reunião de direitos e deveres.

Podemos também dizer, se o quisermos, que a pessoa tem di-reitos e deveres, do mesmo modo que o carro tem motor, lataria,

 pneus, vidros. O importante é perceber que o carro não é algo dis-tinto da reunião desses elementos, assim como a pessoa, para o Di-reito, nào é diversa da reunião de direitos e deveres.

É o que ensina Hans Kelsen, o mais importante jurista desteséculo: “Ser pessoa ou ter personalidade jurídic a é o mesmo queter deveres jurídicos e direitos subjetivos. A pessoa, como suporte de deveres jurídicos e direitos subjetivos, nào é algo diferente dosdeveres jurídicos e dos direitos subjetivos dos quais ela se apresen-ta como portadora da mesma forma que uma árvore da qual dize-mos, numa linguagem substantivista, expressão de um pensamentosubstancializador, que tem um tronco, braços, ramos, folhas e flo-

res não é uma substância diferente deste tronco, destes braços, ra-mos, folhas e flores mas apenas o todo, a unidade destes elementos.A pessoa física ou jurídica que tem como sua portadora deveres

 jurídicos e direitos subjetivos è estes deveres e direitos subjetivos,é um complexo de deveres jurídicos e direitos subjetivos cuja uni-dade é figurativamente expressa no conceito de pessoa. A pessoa étãosomente a personificação desta unidade” (Teoria Pura do Direito, pp. 242 e 243).

Assim, pessoa, no sentido que nos interessa (o jurídico), é umcentro, uma unidade, um conjunto de direitos e deveres. Dizemosque, ao reconhecer a certo ente a qualidade de centro de direitos edeveres, o ordenamento jurídico lhe outorga  personalidade jurídica. A personalidade jurídica é produzida pelas normas jurídicas.

4. Por que dar definição como essa, tão diferente da idéia quetemos usualmente de pessoa? Por um motivo essencial: para deixar claro que pessoa, no sentido jurídico (um centro de direitos e deve-res), não precisa corresponder a nenhuma realidade física, material.

Em tempos remotos (nem tão remotos assim, no nosso país),alguns seres humanos não eram centros de direitos e deveres, istoe>não tinham direitos e deveres: os escravos. Eram considerados, pelo Direito, como simples coisas. Podiam ser vendidos e compra-

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62 FUNDAM ENTOS DE DIREITO PÚBLICO

dos. doados, destruídos; como os bens, como os animais. Nào eramsujeitos de direitos, eram objetos de direitos. Percebese claramen-te, com isso, que o Direito constrói suas próprias realidades, semque elas devam coincidir com realidades naturais.

Quando dizemos que o Direito negava a qualidade de pessoaao escravo, estamos apenas afirmando que as normas jurídicas nãoo tomavam como centro de direitos e deveres, isto é, não lhe outor-gavam personalidade jurídica.

Pelas mesmas razões, é possível ao Direito tomar como centrode direitos e deveres outras realidades que não o ser humano. Sealguém, sendo proprietário de uma casa, resolver abrir mão dela,destinandoa ao abrigo de estudantes pobres, se redigir, em escritu-ra pública, uma série de regras sobre o modo como será usada eadministrada, e se levar essa escritura a registro em Cartório, teránascido uma nova pessoa. Teremos aí uma pessoa porque o Direitoreconhece a esse ente (chamado fundação) a possibilidade de ad-quirir direitos e deveres: a fundação poderá fazer contratos (p. ex.:

de compra e venda de camas, para mobiliar a casa), contraindo odever de pagar quantias e o direito de receber bens, e assim por dian-te. Veja que a fundação não corresponde a qualquer ser humano e,nào obstante, é pessoa para o Direito, tem personalidade jurídica.

5. Agora que já temos uma visão sobre a idéia jur ídica de psoa, podemos fazer referência a duas espécies: a pessoci fí sic a (ou pessoa natural, como diz o Código Civil) e a pessoa juríd ica (ou pessoa moral, como prefere o direito francês).

É fácil visualizar uma e outra. Os indivíduos são pessoas físi-cas. As empresas, as associações esportivas, as fundações, são pes-soas jurídicas. Em ambos os casos, temos pessoas porque o Direitooutorga personalidade jurídica, vale dizer, cria centros de direitos edeveres.

Alguns escritores afirmaram que a pessoa jurídica, ao contrá-rio da pessoa física, seria uma ficção criada pela lei. Esse pensa-mento não faz sentido. Tanto uma quanto outra são criações do Di-reito: é ele, afinal, quem outorga a personalidade jurídica a ambas,

ao fazêlas centros de direitos e deveres. Ambas são, portanto, en-tes do mundo do deverser. A pessoa jurídica inexiste na natureza(no mundo do ser), mas a pessoa física também não. Pessoa física é

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O S UJ E I T O E S T ADO 63

conceito jurídico. O que existe no mundo do ser é o homem, queterá ou não personalidade jurídica, dependendo do que dispuser oDireito. Acompanhe a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello,certamente dos mais notáveis nomes que a ciência jurídica brasilei-ra já produziu: “Perante o Direito as pessoas morais, como as físi-cas, e bem assim todas as categorias jurídicas, só existem enquantoentidades criadas pelo Direito. Ambas são entes privativos do mun-do jurídico, seres que residem nesta ordem. Sua existência é cir-

cunscrita à dimensão do Direito. (...) As personalidades ditas jurí-dicas ou morais, se se quiser, são ‘ficções’, mas apenas no sentidode que correspondem a uma construção do Direito e que, por con-seguinte, só existem nesta dimensão. Entretanto, cumpre notar queem face do Direito idêntica é a situação das pessoas físicas cujaexistência se resume em qualificação procedida pelo Direito ao eri-gir ‘titularidades’, ‘sujeitos de direitos e obrigações’” (Natureza e  Regime Jurídico das Autarquias , pp. 240241).

Partindo do pressuposto de que tanto a pessoa física quanto a

 jurídica são pessoas porque o Direito lhes confere personalidade ju-rídica (faz delas centros de direitos e deveres), parece óbvio que adistinção entre elas não está no fato de uma ser criação natural e aoutra criação do Direito. Ambas são seres do Direito. Qual a dife-rença, então?

Para compreendêla, precisamos ter em mente um aspecto im- portante do funcionamento das normas juríd icas. Como já afirma-mos, as normas regulam comportamentos humanos. Apenas os ho-

mens não as coisas ou as abstrações podem realizar os compor-tamentos impostos pelas normas. As normas podem proibir, impor,autorizar, e sempre estarão se referindo a condutas humanas. Con-fira as seguintes normas: “O proprietário não poderá derrubar o pré-dio de valor histórico”; “O devedor pagará a dívida no vencimen-to”; “O proprietário poderá construir sobre seu terreno”. Alguémduvida que o ordenamento jurídico está regulando outra coisa quenão as ações humanas? Certamente não. Pagar dívida é algo queexige ação humana: tomar certa quantidade de dinheiro e passála

às mãos de alguém. O mesmo se diga dos atos de derrubar ou cons-truir um prédio. Portanto, temse como óbvio que o Direito regulaapenas comportamentos humanos. Ocorre, entretanto, que às vezeso faz diretamente, às vezes indiretamente.

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64 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

Temos uma pessoa física quando, diante de uma norma jurídi-ca, sabemos imediatamente qual é o ser humano cujo comportamen-to está sendo regulado. Repetindo, em termos diferentes: há pessoatísica quando, ante uma norma conferindo direitos ou deveres, po-demos identificar diretamente o ser humano que é o destinatário docomando. Se, quando a norma impuser o pagamento de uma dívi-da, logo pudermos apontar Sinfrônio como o ser humano obrigadoa entregar certa quantia a outrem, saberemos com certeza estarmosdiante de pessoa física (Sinfrônio).

De outro lado, temos uma pessoa jurídica quando, diante denorma juríd ica que confere direitos e deveres, apenas sabemos qualo comportamento a ser realizado, mas não identificamos diretamen-te o homem obrigado a realizálo. Em outras palavras, temos pes-soa jurídica quando a norma nos permite conhecer o elemento ma-terial da conduta (o ato a ser praticado) mas, para apontarmos o ele-mento pessoal da conduta (o ser humano obrigado), necessitamosrecorrer a outra norma jurídica. Imagine que, ao deparar com nor-

ma impondo o pagamento da dívida contraída, você possa afirmar apenas que o devedor é o “Esporte Clube Arranca Toco e QuebraCanela”. Como identificar o ser humano que deverá tomar de certaquantidade de dinheiro e entregála a outrem? Será preciso consul-tar os estatutos (a norma jurídica organizando o funcionamento doClube) para descobrir que o responsável pelo pagamento é o diretortesoureiro. Em seguida, consultará a ata de eleição da Diretoria,onde saberá que Sinfrônio foi eleito diretortesoureiro. Só aí poderáafirmar que a norma jurídica inicialmente considerada estava regu-

lando o comportamento de Sinfrônio. Evidentemente, a regulaçãodo comportamento de Sinfrônio é indireta, já que feita com a inter-mediação de outras normas (os estatutos e a ata de eleição). Nessecaso, saberemos com certeza estarmos diante de uma pessoa jurídi-ca (o Esporte Clube Arranca Toco e Quebra Canela).

Sintetizando:  pessoa física é o centro de direitos e deveres re-ferido a (ou, se preferirmos, “constituído por”) um ser humano, cujocomportamento é diretamente regulado pela norma, e pessoa jurídica é o centro de direitos e deveres referido a um estatuto (isto é,

referido a um conjunto de regras jurídicas indicando quais são osseres humanos obrigados a realizar os comportamentos impostos pela norma).

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O SUJEITO ESTADO 65

A pessoa jurídica, vista internamente, não passa portanto deuni conjunto de normas jurídicas: as normas que definem os sereshumanos que realizarão os comportamentos impostos pelo Direitoà pessoa jurídica. Pense 11a sociedade comercial “Batatas FritasLtda.”, instituída por três irmãos para vender alimentos. A criaçãoda empresa ocorreu quando os três se reuniram, escreveram algu-mas regras sobre sua organização (José cuidará de fritar as batatas,João as entregará aos clientes, Antônio fará as compras, cada 11111

fornecerá 1.000 reais para o capital inicial etc.) e registraram o do-cumento na Junta Comercial. A pessoa jurídica surgida não é 0 con- junto dos três irmãos, mas o conjunto de normas que produziram para reger seu relacionamento. Se a pessoa jurídica fosse o conjun-to dos homens que a instituíram, a morte de 11111 deles extinguiria asociedade. Não se preocupe, porém: a morte de João não extinguiráa pessoa “Batatas Fritas Ltda.”; seu filho Joãozinlio assumirá seulugar, sem que a pessoa jurídica se altere em absolutamente nada.

6. O Estado é titular de direitos (direito de propriedade sobre prédio público, direito de punir os indivíduos etc.) e de deveres (de-ver de pagar os vencimentos de seus funcionários, dever de respei-tar a liberdade dos indivíduos etc.). Logo, o Estado é um centro unificador de direitos e deveres. Perante o Direito, é uma pessoa.

Mas quem são os homens que realizam concretamente os com- portamentos a que a pessoa Estado está obrigada isto é, que admi-nistram o imóvel público, prendem os criminosos, entregam os ven-cimentos aos funcionários? São os homens (a que chamamos de

agentes públicos) indicados pelas normas jurídicas que organizama estrutura interna do Estado. Se fosse possível espiar dentro do Es-tado, veríamos ser ele um conjunto de normas de organização detrabalho (vale dizer, 11111 conjunto de normas jurídicas estabelecen-do quem são os seres humanos que realizam concretamente os com- portamentos impostos a um centro de direitos e deveres). Logo, oEstado é uma pessoa jurídica.

Reconhecer ao Estado a condição de pessoa jurídica significaduas coisas. Inicialmente, que ele é pessoa, um centro de direitos edeveres (isto é, que ele tem direitos e deveres). Em segundo lugar,que, quando o Estado se envolver em relações jurídicas, titularizando direitos ou contraindo deveres, só saberemos quem é 0 ser hu-mano cujo comportamento está sendo vinculado se consultarmos

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66 FU NDA M EN TOS DE DIREITO PÚBLICO

outras normas: as de organização deste centro unifícador de direi-tos e deveres a que chamamos de Estado.

Atenção para um problema terminológico: usase correntemen-te a palavra “Estado” para designar duas coisas diferentes. Veja oemprego da palavra em duas frases. Do PrimeiroMinistro em visi-ta ao estrangeiro, ao descer do avião: “Saúdo o povo deste Estado”.Do político ao Ministro: “Pense no meu filho. Vê se lhe arruma umemprego público no Estado”. Agora, compare duas definições. A primeira de Dalmo Dallari: “O Estado é a ordem jurídica soberanaque tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado

território” (Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 104). A se-gunda de Kelsen: “(...) o Estado é uma corporação, isto é, uma co-munidade que é constituída por uma ordem normativa que instituiórgãos funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho (...)”(Teoria Pura do Direito, p. 390). Os conceitos descrevem objetosdiferentes. O de Dallari se refere ao conjunto de todas as normas

 jurídicas vigentes no Brasil, regulando todos os aspectos da vida dasociedade. O de Kelsen se refere apenas àquelas normas, semelhan-tes às contidas no estatuto de uma empresa, que organizam interna-mente um centro de direitos e deveres (uma pessoa). Tanto o Pri-meiroMinistro quanto Dallari estão se referindo ao Estadosocie-dade. Já o político e Kelsen tratam do Estadopoder. No primeirocaso, “Estado” significa a sociedade organizada por um conjuntode regras; no segundo, significa o centro unifícador de direitos edeveres organizado por normas jurídicas (isto é, significa “pessoa

 jurídica” ). No texto, estamos, obviamente, usando a expressão nes-te último sentido.

2. Personalidade jurídico-constitucional do Estado

7. Se o Estado é pessoa juríd ica, quem lhe conferiu personali-dade, quem lhe atribuiu direitos e deveres?

 Nos países, como o Brasil, onde exista uma Constituição comonorma jurídica suprema, a personalidade jurídica do Estado é con-ferida pela Constituição. A Carta de 1988 foi produzida pelo povo

 brasileiro, através dos seus representantes, eleitos para tal fim. AConstituição (isto é: o povo, através da Constituição) decidiu criar uma pessoa jurídica para exercer certos poderes: criou o Estado bra-

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O SUJEITO ESTADO 67

sileiro. Poderia não fazêlo (ao menos em teoria), adotando um mo-delo anarquista, ou fazêlo de modo diverso, ao lhe conferir direitose deveres outros que nào os previstos na vigente Carta.

Ficaram superadas, com a implantação do Estado de Direito,as lições de juristas antigos no sentido de que o Estado jamais po-deria ser pessoa jurídica, pois, sendo o criador do Direito (quer di-

zer, sendo incumbido de fazer as leis), não poderia ele próprio ser criatura do Direito, ou, em outras palavras, uma criatura de si pró- prio. No novo regime, o Estado nào cria todo o Direito, mas apenasas leis e atos sublegais (sentenças, atos administrativos). A primei-ra norma jurídica, a Constituição, não é criada pelo Estado, mas sim

 pelo Poder Constituinte. E o Poder Constituinte quem cria o Estadoe lhe dá a incumbência de produzir normas jurídicas. Assim, o Es-tado não exerce um poder soberano, no sentido de “poder sem limi-

tes jurídicos”. As competências do Estado são limitadas pelas nor-mas constitucionais que as outorgaram. Poder soberano, quem exer-ce é, exclusivamente, o Constituinte.

Decorre disso que a personalidade juridica do Estado lhe é atri- buída pela Constituição. Logo, é uma personalidade jurídicoconstitucional.

8. A personalidade jurídica dos homens que vivem no Brasiltambém é conferida pela Constituição. Dissemos ainda há poucoque pessoa, para o Direito, é quem tem direitos e deveres. Pois aCarta de 1988 conferiu direitos a todos os homens. Veja o cciput doart. 5a: ‘Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentesno País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,à segurança e à propriedade”.

Destarte, a personalidade jurídica dos residentes no Brasil tam-

 bém lhes é atribuída pela Constituição: é uma personalidade jurídicoconstitucional.

9. Sob esse aspecto, em conseqüência, o Estado e o homemsão iguais: ambos retiram suas personalidades do Direito, mais es-

 pecificamente da Constituição. Resulta que ambos se relacionaml i t t d Di it i

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sonalidade. um poder, que nào tem. No momento em que quisesseultrapassar a linha das competências que a Constituição lhe demar-cou. imediatamente evaporaria, pois, fora dos limites dessa linha,simplesmente inexiste. Isto é evidente: para negar os direitos dosindivíduos, o Estado precisaria negar a Constituição; tendo sido cria-do pela Constituição, o Estado. ao negar os direitos individuais, negaria a si próprio.

Consultese Gordillo: “Em definitivo, temos que da ordem ju-rídica constitucional nascem em igualdade de situação e em equilíbrio necessário os direitos dos indivíduos e as atribuições do Esta-

do; que estas últimas não têm, em nenhum caso, características su prajurídicas de ‘soberania’ ou ‘império’; são simplesmente atribui-ções ou direitos reconhecidos pela ordem jurídica e carentes de toda

 peculiaridade estranha ou superior ao Direito; se estas faculdadessão exercidas em excesso, transformamse em antijurídicas e serãodeixadas sem efeito pelos tribunais ante o reclamo do indivíduo afe-tado” (Princípios Gerais de Direito Público, p. 67, grifos nossos).

3. Personalidade de direito público

10. Não obstante, a pessoa jurídica Estado é diferente de ou-tras espécies de pessoas jurídicas. O Estado é  pessoa jurídica de direito público , enquanto a sociedade comercial, por exemplo, é

 pessoa jurídica de direito privado. Existem portanto a personalida-de de direito público e a personalidade de direito privado. Qual adiferença?

A pessoa de direito público é aquela cuja organização e rela-ções com terceiros são regidas por normas de direito público, en-quanto a de direito privado tem sua estrutura e relações com suassemelhantes estabelecidas em normas de direito privado.

11. Tais definições, assim isoladas, dizem muito pouco. Defato, ainda nào sabemos o que é o direito público. No Capítulo I, aoreferirmos o problema, alertamos só ser possível dar o conceito doconjunto de normas a que chamamos de “direito público” após co-nhecer como tais normas regulam as relações jurídicas delas obje-to. Quais são as características das normas de direito público que asdiferem das normas de direito privado?

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O SUJ EITO ESTADO 69

Essa pergunta só poderá ser resolvida ao final do curso. Entre-tanto, para não alongar o suspense. é útil dar alguma idéia dos pon-tos de distinção.

As normas de direito público outorgam ao ente incumbido decuidar do interesse público (o Estado) posição de autoridade nasrelações jurídicas que trave. Expressase no poder de impor deve-res ao outro sujeito, independentemente da concordância deste. A

lei (espécie de ato estatal, regido pelo direito público) ingressa noâmbito jurídico dos indivíduos, impondolhes deveres. E, como sesabe, o legislador não consulta os atingidos pela lei a fim de saber se estão ou não de acordo com a nonna a ser posta. O mesmo se passa com o ato administrativo, como a ordem determinando o pa-gamento de uma multa de trânsito. Também com a sentença do juizdeterminando a entrega de bem por um indivíduo a outro. Por issose diz, usando uma figura de linguagem, que a relação jurídica de

direito público (isto é, regida pelo direito público) é vertical: um su- jeito (o Estado) se situa em posição mais elevada que o outro (o par-ticular). A essa espécie de poder, consistente na possibilidade de obri-gar unilateralmente a terceiros, chamamos de poder extroverso.

Já as normas de direito privado regulam as relações jurídicasde que tratam em termos de igualdade. Entre particulares, quandocuidam de seus interesses individuais, os deveres só nascem, de re-gra, pelo consentimento, é dizer, pela concordância de ambas as par-

tes envolvidas na relação. Para alguém ser obrigado a transferir ouso de sua casa a outrem, necessário que tenha celebrado contrato,onde, ao ajustar uma locação, livremente se comprometeu a tanto.Metaforicamente, dizse que a relação jurídica de direito privado éhorizontal, situandose os sujeitos no mesmo plano: nenhum tem poderes para, unilateralmente, impor obrigações ao outro; os sujei-tos só dispõem de  poder interno (poder para constranger sua pró- pria esfera jurídica, nào a alheia).

Perceba a oposição: interesses públicos x interesses individuais;autoridade x igualdade; relação vertical x relação horizontal; poder extroverso x poder interno; ato unilateral x ato bilateral (ex.: o con-trato). Em suma: direito público x direito privado.

Quem admiravelmente expôs estas diferenças, falando de um

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70 F UNDAM E NTOS DE DIR EITO P ÚB LICO

trativo (pp. 23 e ss.) e  Ato Administrativo e Direitos dos Administrados (pp. 13 e ss.). No último capítulo, depois de nos depararmos,ao longo do texto, com múltiplas aplicações concretas das idéias aquiexpostas sinteticamente, poderemos retomálas, polindoas, aprofundandoas e ampliandoas para todo o direito público. Por ora nos bastam os pontos apresentados.

Contudo, convém ir insistindo em que, se o Estado tem o po-der de mandar, de dar ordens, de impor obrigação, nem por isso tal poder é ilimitado; ao contrário, é limitado, condicionado, controla-do, pelas normas jurídicas que o concederam ao Estado. O estudo

desses limites, condições e controles é um dos tópicos mais impor-tantes da ciência do direito público.

Agustín Gordillo também pensa assim. Confira: “Essa atuaçãodo Estado na sua personalidade jurídica não tem o mesmo regimelegal que as atividades dos seres humanos nas suas próprias indivi-duais personalidades jurídicas, pois a Constituição estabelece queos atos do Estado têm na sua maior parte a virtualidade de obrigar  aos habitantes, enquanto os habitantes não podem ordenar nada aninguém a menos que a lei os autorize. Esta faculdade de mandar 

concedida pelo povo soberano através da Constituição à pessoa ju-rídica estatal denominase ‘poder público’. (...) O poder público éassim uma faculdade de mandar porém é distinto e inferior ao po-der soberano: não existe por si mesmo, mas enquanto e na medidaem que o poder soberano o cria; seus limites são os que o povo lheimpõe na Constituição’’ (Princípios Gerais de Direito Público, p. 90).

12. Destarte, pessoas de direito público cuidam de interesses públicos, estabelecendo através de atos unilaterais, praticados nouso de poder extroverso relações jurídicas verticais, em que com-

 parecem como autoridade, de modo a criar deveres para os particu-lares. Já as pessoas de direito privado cuidam de seus interesses par-ticulares, estabelecendo com terceiros por meio de contratos, tra-vados no uso de seu poder interno relações juríd icas horizontais,onde comparecem em posição de igualdade.

4. Relacionam ento externo do Estado

13. O Estado, ao mesmo tempo em que é pessoa pública nodireito interno, também o é no direito externo. Tem, portanto, per-

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sonalidade de direito interno e externo. Esta distinção fundase emoutra, separando o próprio direito público em interno e externo.

O objeto das normas de direito público externo (ou direito in-ternacional público) é o relacionamento entre Estados. Cada um de-les se apresenta, na ordem internacional, como soberano, isto é, nãovinculado a um poder superior. O Brasil, como a China, não reco-nhece autoridade externa superior à sua.

Como ensina o Ministro Francisco Rezek, na ordem internacio-nal identificase o Estado “quando seu governo não se subordina aqualquer autoridade que lhe seja superior, não reconhece, em últi-ma análise, nenhum poder maior de que dependam a definição e oexercício de suas competências, e só se põe de acordo com seushomólogos na construção da ordem internacional, e na fidelidadeaos parâmetros dessa ordem, a partir da premissa de que aí vai umesforço horizontal e igualitário de coordenação do interesse coleti-vo. Atributo fundamental do Estado, a soberania o faz titular decompetências que, precisamente porque existe uma ordem interna-cional, nào são ilimitadas', mas nenhuma outra entidade as possuisuperiores” {Direito Internacional Público, pp. 227228).

Como todos os Estados são, na ordem internacional, sobera-nos, impera a mais absoluta igualdade jurídica entre eles. Decorredisso que os direitos e deveres na órbita externa, gerados nas rela-

ções entre Estados, não provêm de qualquer poder extroverso aocontrário do que sucede com cada Estado, em suas relações nacio-nais. Na ordem internacional, os Estados se obrigam por mútuo con-sentimento, por sua livre vontade, nunca por imposição de outrem.Por isso mesmo, o instrumento normal para criação desses direitose deveres é o Tratado (também chamado Convenção ou Cana) aoqual cada Estado adere e permanece vinculado se, quando, enquan-to e na medida em que lhe interessar.

Por isso, também, as decisões da Corte Internacional de Justi-ça instituída pela Carta das Nações Unidas firmada em São Fran-cisco, em 26 de junho de 1945 só serão obrigatórias para os Esta-dos envolvidos na disputa se estes, por suas vontades, as aceitarem.De fato, o art. 40, 1, do Estatuto da Corte estabelece que as ques-tões serão submetidas à Corte por notificação do acordo especial

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72 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

se as partes não a cumprirem espontaneamente: nào há na ordeminternacional ao contrário da ordem interna de cada país um poder que, sendo superior ao dos Estados, possa executar as sen-tenças da Corte em relaçào a eles.

14. A afirmação da soberania do Estado em suas relações in-ternacionais não contradiz aquela, anteriormente feita, de que a pes-soa jurídica Estado não é soberana. A pessoa Estado, quando travarelações internacionais, apresentase como representante da ordem

 jurídica nacional, que, esta sim encimada pela Constituição , é

soberana.Isso também não significa que, ao travar relações com seus pa-

res na ordem internacional, a pessoa Estado se livre das limitaçõesque seu direito nacional lhe impõe e que o perseguem sempre queatua internamente. O Presidente da República, ao assinar, pelo Es-tado brasileiro, tratado com o Estado francês, só poderá fazêlo nostermos, condições e limites da competência que a Constituição bra-sileira lhe outorgou. Em caso de inobservância desses termos, limi-tes e condições, o direito interno não reconhecerá o tratado como

válido, como obrigando a soberania brasileira. Exemplo, no Brasil,de condição a ser observada pelo Chefe do Executivo antes de rati-ficar (confirmar) um tratado é a necessidade de obter a aprovaçãodo Congresso Nacional (CF, art. 49,1).

5.  Descentralização política e administrativa do Estado

15. Se é verdade que a República Federativa do Brasil, repre-sentada pelo Presidente da República, apresentase na órbita inter-

nacional como uma unidade, isto é, como pessoa jurídica una, noâmbito interno ela se desdobra em múltiplas pessoas jurídicas.

As pessoas de direito público interno se dividem em duas es- pécies: pessoas políticas e pessoas administrativas. Qual a distin-ção entre elas?

16. Para indicála, necessitamos compreender um pouco me-lhor a existência de várias funções   estatais, que referimos quando,no Capítulo III, mencionamos a separação dos Poderes.

O Estado exerce as funções legislativa, administrativa e juris-dicional.

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O SUJEITO ESTADO 73

 Legislar  significa inovar originariamente na ordem jurídica(Oswaldo Aranha Bandeira de Mello), isto é, criar para as pessoas,em aplicação da Constituição, direitos e deveres anteriormente ine-xistentes. Só a lei (o ato produzido no exercício de função legislati-va) inova originariamente na ordem jurídica. Lembre do que ficoudito ao explicarmos a superioridade da lei: só ela define e limita oexercício dos direitos individuais.

 Administrar significa aplicar a lei de oficio (Seabra Fagundes),isto é, aplicar a lei independentemente de provocação de qualquer 

 pessoa. O ato administrativo (o ato produzido no exercício de fun-ção administrativa) não inova originariamente na ordem jurídica;apenas aplica concretamente a lei que, esta sim, produz as inova-ções jurídicas originárias. Por isso havíamos afirmado que o ato ad-ministrativo é norma situada, na pirâmide jurídica, abaixo da lei. AAdministração Pública (que exerce a função administrativa) não

depende de qualquer pedido ou requerimento para aplicar a lei: pro-cede de ofício, por sua própria iniciativa.

 Julgar significa aplicar a lei ao caso concreto conflituoso, sob provocação do interessado e com efeitos definitivos. A sentença (oato produzido 110 exercício da função jurisdicional) também nãoinova na ordem jurídica, limitandose a aplicar a lei anteriormenteexistente. Nisso se assemelha ao ato administrativo. Porém, o juiz(que exerce a função jurisdicional) não age de ofício. Só aplica a

lei, para resolver um conflito, quando provocado por alguém neleinteressado (o autor da ação). Por fim, a sentença transita em julga-do, isto é, tornase definitiva e imutável, depois de apreciados to-dos os recursos oferecidos pelos envolvidos no processo.

Postas essas noções, a permitir uma diferenciação das váriasfunções exercidas pelo Estado, podemos retornar ao problema dadistinção entre as pessoas políticas e as pessoas administrativas.

17. Pessoa política é a pessoa de direito público que tem capa-cidade para legislar (quer dizer: para, em aplicação da Constitui-ção, inovar originariamente na ordem jurídica).

São, no Brasil, quatro: a União, os Estados (normalmente cha-mados de Estadosmembros), o Distrito Federal e os Municípios.Cada uma dessas pessoas possui um Poder Legislativo, produzindo

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Pessoa administrativa é a pessoa de direito público criada como

descentralização de pessoa política, com capacidade exclusivamen-te administrativa (capacidade para aplicar a lei, de ofício). O BancoCentral do Brasil foi criado como descentralização da União para ofim específico de aplicar as leis tratando das reservas cambiais do país e da fiscalização das instituições financeiras. Obviamente, oBanco Central não tem Poder Legislativo e não faz leis: apenas apli-ca a lei editada pela União.

 No âmbito internacional, como dissemos, a República Federa-tiva do Brasil se apresenta como uma unidade. É a pessoa política

União quem a representa. As outras pessoas públicas políticas ouseja, Estadosmembros, Distrito Federal e Municípios bem comoas pessoas públicas administrativas como o Banco Central nãotêm reconhecida personalidade de direito internacional.

18. Por fim, vale mencionar que a Administração indireta,de pessoas públicas de capacidade administrativa (autarquias e fun-dações governamentais públicas), é integrada também por outrosentes, parcialmente sujeitos ao direito privado: sociedades de econo-

mia mista, empresas públicas e fundações governamentais privadas.

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Capítulo V 

 Atividades do Estado

 I. In trod ução . 2. A tivid ade dos particula res. E xplo ra ção p e lo Estad o  

 de ativid ades dos particula res. 4. A tivid ades est ata is : 4.1 A ti vid ades ins

 trum entai s 4.2 A tivid ades-f im : 4.2 .1 R ela cio nam ento in te rnacio nal -  

 4.2 .2 A tivid ades de controle so cia l - 4 .2 .3 A ti vid ades de gestã o admi

 nis trativa. 5. A to s e fato s ju ríd ic os: 5.1 Fato ju r íd ic o - 5 . 2 Ato jurídico.

1. Introdução

1. Para aprender direito público, há dois passos elementares:saber quais são as atividades estatais e como as normas jurídicas  as tratam. Pelo primeiro, conhecese o campo de incidência do di-reito público; pelo segundo, o regime de direito público.

Encarando certo problema, o jurista quer, antes de mais nada,identificar o bloco de normas que o regulam. Ao julgar uma ação,o juiz opta entre aplicar as normas sobre contratos privados e asdos contratos públicos (administrativos). O contrato ligado a ativi-

dade do Estado (ex.: construção de estrada de rodagem) governase pelo direito público; o relacionado a operação dos particulares (ex.:a venda, por incorporadora, de apartamento residencial), pelo direi-to privado. Feita a escolha entre um ou outro bloco, passase à se-gunda etapa: a descoberta, dentro dele, dos princípios e regras aaplicar.

2. O Estado é criação do direito. Por isso, as normas jurídicasé que definem suas atividades.

 Nos vários países, o direito público terá campo mais estreitoou mais largo: cada ordenamento é livre para decidir se uma ativi-dade pertencerá ao Estado (sendo regida pelo direito público) ouaos particulares (direito privado). No Brasil, a Constituição reservaao Poder Público a manutenção do serviço de correio (art. 21, inc.

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76 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

X). Nada impede que, na Zâmbia, atribuase aos particulares a pres-

tação livre dele, sob regime de direito privado.

Porém, certos poderes devem necessariamente pertencer aoEstado, sob pena de não existir Estado: os de coagir, julgar e impor tributos. E o que ensina Bobbio:

“Quem já teve uma certa familiaridade com a história da for-mação do Estado moderno ou do Estado tout court (se entendermos por ‘Estado’ o conjunto de aparelhos que caracterizam os ordena-mentos políticos nascidos da dissolução da sociedade medieval)sabe que os poderes principais dos novos ordenamentos políticos

que fazem deles um Estado no sentido moderno da palavra são o poder coercitivo, que exige o monopólio da força física, considera-do, de Hobbes a Max Weber, como o caráter fundamental do Esta-do, o poder jurisdicional (não apenas o poder de fazer leis, pelo fatode as normas jurídicas poderem ser produzidas quer pelo costumequer pelos próprios juristas, mas o de aplicálas, ou seja, o poder de

 julgar a razão ou a semrazão, o justo e o injusto) e o poder de im- por tributos, sem os quais o Estado nào pode desenvolver nenhumade suas funções essenciais.

“O Estado tem esses poderes porque é indispensável que eledesenvolva certas funções. E as funções que correspondem a tais poderes são as funções mínimas do Estado, quer dizer, as funçõessem as quais o Estado não será mais Estado. Todas as outras fun-ções que o Estado moderno se tem atribuído, desde a função de pro-videnciar o ensino até a função assistencial, caracterizam o Estadonão enquanto tal, mas certos tipos de Estado” (As Ideologias e o Poder em Crise, p. 178).

3. O que define a incidência de um ou outro ramo jurídico é a

atividade, nào a pessoa envolvida.O direito público nào é o direito do Estado, aplicável exclusi-

vamente às relações das quais participem as entidades governamen-tais. Também o direito privado não é o conjunto de normas inciden-tes apenas e sempre nos vínculos travados entre particulares. O pú- blico é o direito das atividades estatais, enquanto o privado é o di-reito das atividades dos particulares.

Quando o Estado explora atividade econômica (que é privada, por força do previsto em nossa Constituição, art. 170). o faz no re-

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A T I V I D A D E S D O E S T A D O 77

gime privado: se presta serviço público (educação ou saúde, por exemplo), sujeitase ao direito público. A pessoa jurídica estatal par-ticipa tanto de relações de direito público quanto de direito privado.

A afirmação de que o Estado, em dadas hipóteses, submeteseao direito privado há de ser tomada com cautelas. Mesmo ao desen-volver atividade econômica, o ente governamental deve observar algumas normas típicas do direito público, como as de licitação,

concurso público para seleção de empregados, controle do Tribunalde Contas e outras mais. O Estado, como um Midas, publiciza tudoo que toca.

Veremos logo adiante que, em certos casos, o Estado pode de-legar a particulares a realização de atividades estatais. A empresa

 particular que, tendo recebido delegação, explora o transporte cole-tivo aéreo de passageiros (que é de titularidade da União CF, art.21, XII, “c”), o faz no regime de direito público. A empresa parti-cular que desenvolva atividade econômica (ex.: industrialização delã) submetese ao regime privado. Logo, os particulares tanto po-dem atuar sob regime de direito público quanto de direito privado.

2. Atividades dos particulares

4. A vida social vale dizer: o conjunto de atividades desen-

volvidas em uma sociedade é formada pela soma de dois setores,delimitados pela Constituição: o campo estatal e o campo privado.Este último é constituído pelas atividades próprias dos particulares:as atribuídas a eles pela Constituição como um direito subjetivo eas que, não tendo sido reservadas ao Estado, lhes são facultadas.

Em tese, os indivíduos podem realizar todas as ações cuja ex-clusividade não tenha sido conferida ao Estado, com a conseqüenteinterdição da atuação privada. Exemplo de serviço estatal é o de

navegação aérea (CF, art. 21. XII, “c”). Hipótese em que a opera-ção é privada, por não haver sido reservada ao Estado, é a da assis-tência social aos deficientes tísicos.

Além disso, integram o campo privado todas as operações quea Constituição tenha assegurado aos indivíduos, rotulandoas comodireitos: a manifestação do pensamento (CF art 5Ü inc IV) a tro-

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78 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

a associação (inc. XVII), a propriedade de bens (direito de proprie-

dade inc. XXII), a exploração de atividade econômica (art. 170, parágrafo único), e assim por diante.

5. O conceito jurídico de atividade econômica cujo desen-volvimento, em princípio, reservase aos particulares (CF, art. 170,

 parágrafo único) é obtido residualmente. Em termos constitucio-nais, atividades econômicas sào as nào reservadas ao Estado. Paraidentificálas, mister verificar quais as operações exclusivas do Po-der Público.

A este, a Constituição brasileira confere uma série significati-va de atribuições. Entretanto, nem todas elas lhe são reservadas. Éo caso dos “serviços sociais”, englobando a educação e a saúde. OEstado é obrigado a prestálos (CF, arts. 196 e 205), mas são livresà iniciativa privada (CF, arts. 199, cciput, e 209). Os particulares osdesenvolvem como agentes econômicos, não como delegatários deserviço estatal. Quando prestados por particulares, esses serviçosintegram o campo privado.

Podem ser multiplicados os exemplos de operações atribuídas

ao Poder Público sem caráter de exclusividade: o abastecimento ali-mentar e a construção de moradias (art. 23, VIII e IX), as operaçõesdas instituições financeiras, de seguros, previdência e capitalização(art. 192). Todas essas atividades, cujo desenvolvimento pelos parti-culares independe de delegação estatal, integram o campo privado.

 Nessas condições, só se excluem do campo privado por nàoconstituírem atividade econômica no sentido jurídico as opera-ções que, cabendo ao Estado, não possam ser realizadas pelos par-ticulares sem ato estatal de delegação. É o caso dos serviços públi-

cos, como dispõe o art. 175 da Constituição.

6. As atividades dos particulares são por eles desenvolvidas noregime do direito privado, estampado nas normas dos Códigos Ci-vil, Comercial, Trabalhista e em inúmeras leis esparsas.

3. Exploração pelo Estado de atividade dos particu lares

7. Em princípio, a Constituição do Brasil reserva aos particula-

res a exploração de atividade econômica. O art. 170, parágrafo úni-

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ATI VI DADES DO ESTADO 79

co, diz ser livre o exercício de atividade econômica, independente-mente de autorização de órgãos públicos.

Mas o art. 173 permite que o Estado, em situações especiais,intervenha no domínio econômico. Diz ele: ‘‘Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade eco-nômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos impe-rativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, con-

forme definido em lei”. Destarte, embora a atividade econômicaseja tipicamente privada, poderá sofrer exploração estatal quando justificada pela segurança nacional (ex.: fabricação de armamentos,essenciais à defesa nacional) ou por relevante interesse coletivo(ex.: fabricação de remédios, para enfrentar epidemia).

Ademais, a própria Constituição menciona expressamente al-gumas atividades econômicas a que o Estado pode ou deve se dedi-car, em regime de convivência com a iniciativa privada. São os ca-

sos de: instituições financeiras (arts. 163, VII, e 192, IV), construçãode moradias (art. 23, IX) e abastecimento alimentar (art. 23, VIII).

8. Como as atividades econômicas integram o campo privado,sua exploração pelo Estado se faz sempre no regime do direito pri-vado. É o que determina o § lc do mencionado art. 173: “§ lc. A leiestabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedadede economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividadeeconômica de produção ou comercialização de bens ou de presta-

ção de serviços, dispondo sobre: (...) II a sujeição ao regime ju rídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; (...)”.

A empresa estatal que atue na fabricação de alimentos enlata-dos mantém com seus empregados relações jurídicas regidas pelodireito privado, nào pelo direito público.

4. Atividades estatais9. O Estado desenvolve apenas as atividades que a ordem jurí-

dica lhe atribui, estando proibido de fazer o que a Constituição ouas leis não autorizam expressamente.

Muito extenso e variado, é difícil sistematizar o conjunto des-i id d id d úd d l

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80 FU N D A M E N TO S DE DIR EITO PÚB LICO

ser classificadas em dois grandes grupos: o das atividades instru-

mentais e o das atividadesfim. Estas últimas justif icam a existênciado Estado; as outras apenas servem ao seu aparelhamento, para arealização das atividadesfim.

4.1 Atividades instrumentais

10. Dentre elas, citemse:

a) a captação de recursos financeiros, através de empréstimos,lançamento de títulos da dívida pública e cobrança de tributos, esta

última regulada pelo direito tributário;b) a gestão dos recursos financeiros do Poder Público, regida

 pelo direito financeiro;

c) a escolha de agentes públicos, através de eleições (no casodos agentes políticos) e de concurso (na maior parte dos agentes

 profissionais), a primeira regida pelo direito eleitoral e a última pelodireito administrativo;

d) a obtenção dos bens indispensáveis ao suporte da atividadedo Estado, através de aquisição (desapropriação, compra etc.), pro-

dução (impressão de Diário Oficial etc.) e construção de edifícios públicos, atividades, essas, também disciplinadas pelo direito ad-ministrativo.

4.2 Atividades-Jim

11. São classificáveis em três grupos distintos: 4.2.1) O das ati-vidades de relacionamento com outros Estados ou com entidadesinternacionais; 4.2.2) o das atividades de controle social; e 4.2.3) odas atividades de gestão administrativa.

4.2.1 Relacionamento internacional

12. Consiste no estabelecimento e manutenção de vínculos comentidades internacionais e com Estados estrangeiros, bem como nadefesa contra invasões do território nacional.

Tratase de atuação exclusiva do Poder Público, que nela ex- pressa a soberania da sociedade, não admitindo delegação a parti-culares. Pertence à União (CF, art. 21,1a IV). E regida pelos direi-tos constitucional e internacional público.

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ATIVIDADES DO ESTADO

4.2.2 Atividades de controle social

13. Destinamse a regular a vida em sociedade, com a utiliza-ção do poder de coerção. Ordenam o comportamento dos indivíduos,a fim de que estes, além de não prejudicarem os interesses da cole-tividade, ajam para realizálos.

14. A mais importante atuação do Estado nesse setor é a legis

lativa. Por meio dela editamse normas legais regulando o exercí-cio dos direitos e o cumprimento dos deveres dos particulares.

Dois tipos de normas podem ser editados pelo Estado para or-denar a vida privada. De uma parte estão as leis que admitem a in-terferência da Administração em seu cumprimento. São normas dedireito público (ex.: lei reguladora da construção de edifícios nazona urbana, exigindo a prévia apresentação de projeto à Adminis-tração). De outro lado existem as normas cuja aplicação se dá no

âmbito das relações dos particulares, sem ingerência administrati-va. São normas de direito privado (ex.: lei regendo a locação deimóveis residenciais).

A produção de normas legais é regulada pelo direito constitu-cional, isto é, pela Constituição Federal, pelas Constituições Esta-duais e pela Lei Orgânica de cada Município, que tratam, respecti-vamente, da edição das leis federais, estaduais e municipais.

15. O segundo grupo de operações estatais voltadas ao contro-le social compreende a atuação cio Judiciário na solução dos con-flitos (ex.: ação possessória), defesa dos direitos (ex.: luibeas cor- 

 pus contra detenção ilegal), anulação de normas (ex.: declaração deinconstitucionalidade), privação da liberdade (ex.: ação penal) oudos bens dos particulares (ex. : ação de desapropriação), bem comona execução material de suas decisões. A atividade judicial é de-senvolvida sempre para aplicação de normas juríd icas superiores ,

no que se assemelha á administrativa. Sua peculiaridade está em ser sempre provocada, através da propositura de uma ação, não se exer-cendo de ofício.

Hipóteses existem em que a intervenção judicial é indispensá-vel à aplicação de certa medida de controle social, como preceituao art. 5Ü, inc. LIV da Carta da República: para privar alguém de sua

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82 F UNDAM ENTOS DE DIR EI TO P ÚB LIC O

 Na função jurisdicional, a atuação dos juizes é complementadaou propiciada pela de outros órgãos públicos, que exercem funçõesindispensáveis à administração da Justiça. É o caso dos oficiais de

 justiça, que executam materialmente as ordens judiciais; da PolíciaJudiciária, que trabalha na investigação criminal, preliminar à ação penal; e do Ministério Público, que detém a titu laridade das ações penais.

O desenvolvimento desse grupo de atividades é regido pelo di-reito processual (civil, penal ou trabalhista, conforme o caso).

16. O terceiro setor é o das atividades de administração orde- nadora , a cargo da Administração Pública, destinadas à aplicaçãodas leis reguladoras do exercício dos direitos, dos particulares. Sãoexemplos: a expedição de licença para construir ou de autorização para porte de arma, a imposição de sanções administrativas a indús-trias poluidoras, a fiscalização do trânsito de veículos etc. À seme-lhança da jurisdicional, é sempre uma atividade de aplicação de nor-mas superiores, mas, ao contrário daquela, operase de oficio, inde- pendentemente de provocação.

É regulada pelo direito administrativo.

4.2.3 Atividades de gestão administrativa

17. Visam criar utilidades em favor do corpo social por forçadireta da atuação estatal. Incluem: a) a prestação de serviços públi-cos; b) a prestação de serviços sociais; c) a emissão de moeda e aadministração cambial; d) outras atividades.

Submetemse todas ao direito administrativo.

18. a) Serviços púb licos Importam a criação de utilidades oucomodidades fruíveis direta e individualmente pelos particulares emsetores de titularidade estatal.

A Constituição os define, dividindoos rigidamente entre as pessoas políticas. Nos termos do art. 21, pertencem à União os ser-viços: postal e de correio aéreo (inc. X), de telecomunicações (inc.XI), de radiodifusão sonora e de sons e imagens, de geração e for-necimento de energia elétrica, de navegação aérea, aeroespacial ede infraestrutura aeroportuária, de transporte ferroviário e aquaviário entre portos e fronteiras nacionais ou que transponham os limi-

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ATIVIDADES DO ESTADO 83

tes estaduais, de transporte rodoviário internacional e interestadualde passageiros, de portos marítimos, fluviais e lacustres (inc. XII),nucleares (inc. XXIII). Aos Municípios cabem os serviços de inte-resse local, incluído o de transporte coletivo (art. 30, V). Aos Esta-dos tocam os serviços nào reservados à União e aos Municípios (art.25, § Ia), além da distribuição de gás canalizado (art. 25, § 2a).

Por múltiplas razões, as normas centralizam certas atividades

nas mãos do Estado, definindoas como serviços públicos: para or-denar o aproveitamento de recursos finitos (como os hidroelétricos),controlar a utilização de materiais perigosos (como os potenciaisnucleares), favorecer o rápido desenvolvimento nacional, realizar a

 justiça social, manter a unidade do país e assim por diante.

19. Apesar de pertencentes ao Estado, serviços públicos po-dem ser desenvolvidos por particulares no regime de concessão ou

 permissão, visto produzirem resultados econômicos. E o que dis- põe o art. 175 da Constituição da República, segundo o qual: “In-cumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime ile concessão ou permissão, sempre através de licitação, a pres-tação de serviços públicos”. Fundamental perceber, porém, que asáreas definidas como de “serviço público" não são franqueadas àatuação dos particulares enquanto tais, mas sempre como substitu-tos do Estado. Daí o estudo do serviço público estar sempre ligado

à figura da delegação.A delegação é o ato administrativo pelo qual a Administração

transfere transitoriamente a particular o exercício do direito à ex- ploração de serviço público. O Poder Público trespassa apenas oexercício da atividade, mantendo sua titularidade. Tal aspecto já prenuncia seu regime jurídico. O Estado nunca aliena os interesses públicos: admitese apenas que transfira, temporariamente, o exer-cício das competências voltadas à sua implementação, sem abrir 

mão delas. Por isso, a delegação instaura vínculo especial entre Ad-ministração e administrado, sujeito a rompimento na dependênciado apontado pelo interesse público. A empresa particular delegatária prestará o serviço sob regime de direito público, justamente por estar exercendo atividade estatal, não atividade privada.

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84 FUNDAM ENTOS DE DIREITO PÚBLICO

que os particulares fruem direta e individualmente. No entanto, di-

ferenciamse daqueles por não serem de titularidade estatal. Incluemos serviços de educação (CF, arts. 205 a 208, e 210 a 214), saúde(C’F, arts. 196 e ss.) e assistência social (CF. arts. 203 e 204; 227, §lü; 226, § 8Ü), aos deficientes, jurídicos, em caso de calamidade etc.

A prestação de tais serviços é dever inafastável do Estado, ten-do os indivíduos o direito subjetivo de usufruílos. O objetivo doConstituinte ao outorgar tais competências ao Poder Público nàofoi o de reserválas, mas sim o de obrigar a seu exercício.

Os particulares exploram os serviços sociais independentemen-te de qualquer delegação estatal. Tais serviços se desenvolvem, por-tanto. em setores não reservados ao Estado, mas livres aos particu-lares. Daí uma importante conseqüência: quando prestados pelo Po-der Público, submetemse ao regime de direito público; quando

 prestados pelos particulares, sujeitamse ao regime de direito priva-do. Tal dualidade se justifica, porquanto os serviços sociais são, aomesmo tempo, atividade estatal e atividade dos particulares.

21. c ) Emissão de moeda e administração cambial São ati-

vidades que não geram utilidade ou comodidade fruível diretamen-te pelos particulares, mas sim uma utilidade social, que só os bene-ficia de modo indireto e coletivo. Estão ligadas à própria existênciae unidade do Estado, que através delas disciplina a vida econômica.Daí serem de necessária prestação e não admitirem delegação emfavor de particulares.

 No Brasil, são desenvolvidos pela União Federal, como dispõeo art. 21 de nossa Carta, em seus incisos VII e VIII.

» \

22. d) Outras atividades Além das atuações mencionadas, oEstado também desenvolve outras, úteis à sociedade, mas sem cará-ter econômico.

São exemplos:

• A atividade de fomento, isto é, de concessão de benefíaos particulares, de modo a induzir seus comportamentos em certosentido. Quem não adota o comportamento pretendido pelo Poder Público deixa de usufruir do benefício ofertado, mas nào se sujeitaa qualquer sanção. Citemse: a assistência técnica ao produtor rural

e a ajuda financeira, através de bolsas de estudo, ao desenvolvimen-

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ATIVIDADES DO ESTADO 85

to da ciência e tecnologia, do ensino, da pesquisa, do esporte e dacultura.

• A realização de atividades culturais (manutenção de teatros emuseus, pesquisa histórica), a implementação de pesquisas na áreada ciência e tecnologia, a promoção de atividades desportivas.

• Os serviços estatísticos (que a União deve necessariamentemanter, por força do disposto no art. 21, XV).

• A construção de obras públicas que não sirvam de suporte a

atividades estatais (como os monumentos).

23. Dado seu caráter não econômico, é ampla a faculdade deatuação estatal, desde que prevista em lei. Não se aplica, no caso, aregra restritiva prevista no art. 173 do Texto Constitucional cujaredação (“só será permitida”) induz a pensar em uma faculdade ex-cepcional de intervenção. Não é atuação exclusiva do Estado, nemde uma pessoa política em especial, podendo ser realizada por qual-quer delas e por particulares, independentemente de delegação.

Quando desenvolvida pelo Estado, submetese a regime de direito público. Quando desenvolvida por particulares, sujeitase ao direito privado.

5. Atos e fatos jurídicos

24. O desempenho de atividades pelo Estado gera produção deatos e fatos jurídicos.

O que querem dizer essas expressões?

5.1 Fato jurídic o

25. Fato jurídico é o evento ao qual a norma atribui efeitos ju-rídicos. Exemplo: a passagem do tempo, que extingue o direito deo Estado cobrar tributo devido por particular; a venda de mercado-rias, que gera obrigação de pagamento do imposto chamado ICMS;

a morte do funcionário público, fazendo incidir a norma garantindoà viúva direito ao recebimento de pensão.

Vêse, portanto, que ao contrário do normalmente afirmado pela doutrina fato jurídico não é sinônimo de evento natural. Ohomicídio doloso (isto é, praticado intencionalmente) deriva da

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86 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

vontade de um ser humano. Apesar de não se caracterizar como

ocorrência da natureza, é fato jurídico, por corresponder ao eventodescrito pela lei penal como propiciador da aplicação, ao homicida,da pena de reclusão.

26. O fato jurídico se opõe ao fato juridicamente irrelevante,isto é, ao evento cuja ocorrência não gera a incidência de qualquer norma jurídica. Se alguém vai ao parque e adquire pipocas do am- bulante, produz fato jurídico , visto que a compra do saboroso ali-mento faz incidir a norma tributária, gerando a obrigação de pagar imposto. No entanto, quando come as pipocas ou as joga no cesto,

 pratica fatos juridicamente irrelevantes, visto inexistir norma quelhes atribua qualquer espécie de conseqüência.

27. A atuação do Estado produz, a todo momento, fatos jurídi-cos, cujos efeitos são regulados pelo direito público. Dêse comoexemplo o acidente nuclear derivado do descuido do funcionáriona operação da usina, provocando a destruição de milhares de ca-sas. Esse fato faz incidir a norma, de caráter eminentemente públi-co, contida no art. 37, § 6a, da Constituição, segundo a qual as pes-soas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus

agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros.

5.2 Ato jurídico

28. Ato jurídico é uma prescrição, uma norma. Em outras pala-vras: uma regra destinada a regular comportamentos.

 Normalmente resulta de expressa manifestação de vontade, fei-ta por certo sujeito. Exemplo: a sentença judicial, resultante da ma-nifestação do juiz; a lei, derivada da manifestação dos parlamenta-res; o ato de demissão de Antônio do serviço público, decorrente

da manifestação do Governador; o contrato, oriundo da manifesta-ção de vontade dos contratantes. Mas pode resultar também deeventos que, embora não sejam manifestações de vontade humana,transmitam um comando a outrem. Exemplo: a alteração dos sinaisluminosos do semáforo produz ato jurídico (isto é, uma norma), de-terminando que os motoristas parem ou andem com seus carros.

Portanto, o ato jurídico pode nào resultar de uma manifestaçãode vontade humana, mas significará sempre uma declaração, desti-nada a reger o comportamento de alguém.

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ATIVIDADES DO ESTADO 87

A norma não se confunde com a ação, realizada no tempo e 110

espaço, percebida pelos sentidos, com a qual o indivíduo pretendetransmitir certo comando a outrem. Norma jurídica é o significado jurídico atribuído a essa ação materialmente verificável, mas nào éela mesma. É um equívoco, por isso, dizer que ato jurídico é “ma-nifestação de vontade”, definição facilmente encontrável nos ma-nuais jurídicos. A manifestação é apenas o evento exterior; ato jurí-dico é o significado dela perante o Direito.

É Hans Kelsen quem o afirma: “Se analisarmos qualquer dosfatos que classificamos de jurídicos ou que têm qualquer conexãocom o Direito por exemplo, uma resolução parlamentar, um atoadministrativo, uma sentença judicial, um negócio jurídico, um de-lito, etc. poderemos distinguir dois elementos: primeiro, um ato quese realiza no espaço e no tempo, sensorialmente perceptível, ou umasérie de tais atos, uma manifestação externa de conduta humana;segundo, a sua significação jurídica, isto é, a significação que o ato

tem do ponto de vista do Direito. Numa sala encontramse reunidosvários indivíduos, fazemse discursos, uns levantam as mãos e ou-tros não eis o evento anterior. Significado: foi votada uma lei,criouse Direito” (Teoria Pura do Direito, p. 18).

29. A produção de atos jurídicos (isto é, de normas jurídicas) éuma das atividades estatais mais importantes e freqüentes. São atos

 jurídicos tanto a lei feita pelo Congresso Nacional quanto a senten-

ça do juiz, o decreto do Prefeito municipal ou 0 contrato firmadoentre a Administração e uma empreiteira.

Os atos estatais, para serem praticados, devem observar umasérie de princípios e regras típicas do direito público e que diferemem muito das estipuladas para a produção de atos privados.

30. Questão interessante para os profissionais do direito, emrelação aos atos jurídicos, é a de saber se são válidos. Para a valida-de do ato é necessária sua conformidade com a norma jurídica su- perior. Para ser válida a lei, deve observar a Constituição. Para ser válida a sentença condenando alguém à pena de prisão, há de ser ditada nos termos do preceituado pelo Código Penal (que define oscrimes e estabelece as respectivas penas) e do Código de ProcessoPenal (que regula o processo judicial para a imposição das penas).

lid d i i i d b l i

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88 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

Os atos jurídicos devem ser  produzidos com observância danorma superior. Isso não impede, contudo, o surgimento de atos in-válidos (leis inconstitucionais, sentenças e atos administrativos ile-gais). Embora inválidos, acabam sendo aplicados e produzindo efei-tos. Para retirálos do mundo jurídico, desfazendo os efeitos produ-zidos, o Ordenamento prevê formas adequadas para sua invalida-ção (também chamada de anulação).

31. Uma das peculiaridades mais significativas do regime jurí-dico dos atos estatais está ligada ao processo para sua produção.

E esse o tema do próximo capítulo.

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Capítulo VI 

Uma introdução ao Direito Processual 

/ . O fenôm eno proce ssual no dire i to públ ico. 2 . N oção de processo. 

 3. R elaçã o jurid ic o-processu al. 4. Esq uem a g era l d o s processos estata is : 

 4.1 Processo le gis la ti vo 4.2 Processo ju d icia l 4.3 Pro ced im ento ad

 m in is tr ativo.

1. O fen ôm en o processual no direito público1. No capítulo anterior vimos o que faz o Estado, quais suas

atividades próprias, distinguindoas das ações privadas. Interessanos, agora, descobrir como ele opera e quais as diferenças entre seumodo de agir e o dos particulares.

Essas respostas serão fornecidas a partir da visão do direito.Importa a disciplina jurídica da atuação estatal. Não sendo socioló-

gico, nosso estudo não revelará a maneira como, efetivamente, nodiaadia, as autoridades exercem suas competências, mas tãosócomo, segundo o ordenamento, devem exercêlas.

2. Ao operar, manejando o poder político, o Estado edita deci-sões, expressas em atos jurídicos: a lei, a sentença, o ato adminis-trativo. Os indivíduos também produzem atos jurídicos, como oscontratos.

A emanação de qualquer ato seja pelo Estado, seja pelos in-divíduos é regulada pelo direito. As normas determinam seu conteúdo e efeitos.

Estipula a lei civil que o contrato não terá por conteúdo a ven-da da herança de pessoa viva. Diz também, regulando os efeitos doscontratos q e estes de em ser c mpridos pelas partes en ol idas

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90 FUNDAME NTOS DE DIREITO PÚBLICO

tório de homens e mulheres (art. 5a, I). De outro lado, impede que alei penal (definidora dos crimes e das penas) gere efeitos retroati-vos (art. 5U, XL). 0 conteúdo dos atos judiciais vem disposto nalei: o da sentença em ação penal (condenando ou absolvendo o acu-sado) dependerá de a lei ter ou não definido como punível o com- portamento do acusado. Quanto aos efeitos da sentença, podese ci-tar a imutabilidade, nos termos, por exemplo, do art. 467 do Códi-go de Processo Civil: “Denominase coisa julgada material a eficá-cia que torna imutável e indiscutível a sentença nào mais sujeita a

recurso ordinário ou extraordinário”. O conteúdo dos atos administrativos também deriva da lei. Imaginese lei autorizando a Admi-nistração a impor penalidades de trânsito: o ato do guarda terá por conteúdo a aplicação de multa no valor previsto pelo legislador. Se-gundo a doutrina, um dos efeitos do ato administrativo é a presun-ção de legalidade, isto é, o presumirse sua validade até prova emcontrário, a ser feita pelo particular afetado.

Os exemplos mostram que o Direito regula o conteúdo e osefeitos dos atos tanto de direito privado (contratos) quanto de direi-

to público (leis, sentenças, atos administrativos). Claro, uns e ou-tros têm conteúdo e efeitos diversos (ex.: em geral, os atos privadosnão se presumem legítimos, como os públicos); porém, é certo queo direito disciplina, para ambos, esses dois elementos.

3. Mas o direito privado não se ocupa do procedimento a sadotado pelo indivíduo para produzir seu ato. Se quer adquirir umcarro, ele é livre para escolhêlo. Inexiste norma exigindo que, an-tes de firmar o contrato, publique anúncio em jornal, ou percorramuitas lojas, ou submeta o veículo a um mecânico, ou reúna a fa-mília para discussão do assunto. O direito privado ignora o com-

 portamento do sujeito anterior ao contrato: o itinerário, o caminho,o procedimento até a contratação é um indiferente jurídico.

 No direito privado o processo de formação da vontade dos in-divíduos não é juridicamente regulado, inexistindo o dever de cum-

 prir, como condição da prática dos atos, um procedimento prévio:cada um, ao tomar suas resoluções, segue o percurso que julgar ade-quado. A lei raramente interfere nele. Só o faz para defender o su-

 jeito, garantindo a livre formação de sua vontade. A coação exerci-da sobre o contratante, por exemplo, vicia o ato apenas por signifi-car indevida intromissão de terceiros 110 livre fluxo de formação da

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vontade. A lei respeita e faz respeitar não só a liberdade de tornar decisões, como de definir o itinerário que conduz a elas.

O poder jurídico de o indivíduo produzir atos, decorrendo dodireito à liberdade, é um valor em si mesmo; não se justifica por qualquer finalidade a atingir. Por isso, ninguém interfere na forma-ção da vontade de outrem: seria imiscuirse na intimidade alheia.Contudo, os particulares não criam obrigações uns para os outros,através de atos unilaterais. Inadmissível, por exemplo, alguém ser 

constrangido, pelo simples querer de terceiro, a alienar seu imóvel;a compra e venda depende de contrato. O acordo de vontades é oveículo da compatibilização das liberdades.

4. Com o direito público é o inverso que ocorre. No EstadoDemocrático de Direito, o exercício das diferentes funções estatais e, em conseqüência, a produção dos atos de direito público exi-ge a observância de processo perfeitamente regulado pelas normas

 jurídicas.

Lembrese que a Administração Pública, antes de adquirir veí-culo, promove licitação: publica edital convocando possíveis inte-ressados, recebe as propostas no dia marcado, abreas em sessão

 pública, e assim por diante. O juiz não pode, repentinamente, ditar uma sentença. Alguém há de ajuizar uma ação; o réu será citado,tomando conhecimento do pedido; apresentarseá contestação; emaudiência, serão ouvidas testemunhas; as partes oferecerão razõesfinais etc. O mesmo se passa com a edição da lei: inicialmente, pro

 põese um projeto; oferecemse emendas; colhemse pareceres dediversas comissões; procedese à discussão e à votação; enviase o

 projeto à sanção ou veto do Chefe do Executivo; apreciase o veto;fazse a promulgação. Em suma: os atos estatais são precedidos de

 processo, isto é, de uma série de atos e fatos encadeados em se-qüência: há o processo legislativo para as leis, o processo judic ia l 

 para as sentenças e o procedimento administrativo para os atos ad-ministrativos.

Constatamos, de conseguinte, que o processo é o modo normal

de agir do Estado.Isto é, o processo é o modo normal de agir do Estado Demo-

crático de Direito, como expõe Bobbio: ‘Afirmo preliminarmenteque o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de de-

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mocracia, entendida como contraproposta a todas as formas de go-

verno autocrático, é o de considerála caracterizada por um conjuntode regras (primárias ou fundamentais) que estabelece quem está au-torizado a tomar as decisões coletivas e com quais  procedimentos'"  ( O Futuro da Democracia - Uma Defesa das Regras do Jogo , p. 18).

5. Importante perceber a razão da exigência de que os atos es-tatais sejam fruto de processo. Os agentes públicos exercitam pode-res em nome de finalidade que lhes é estranha; desempenham fun-ção. Função é o poder outorgado a alguém para o obrigatório atingimento de bem jurídico disposto na norma. A lei, a sentença e o

ato administrativo são unilaterais, sua produção nào estando condi-cionada à concordância dos particulares atingidos. Estas duas ca-racterísticas das atividades públicas constituírem função e gera-rem atos unilaterais invasivos da esfera jurídica dos indivíduos exi-gem a regulação do processo formativo da vontade que expressam.

A atividade estatal é função, submetida a fins exteriores aoagente. O legislador, o juiz, o administrador, não dispõem de pode-res para realizar seus próprios interesses ou vontades. Seus atos va-lem na medida em que alcançam os fins que lhes correspondem.Daí dizerse que a vontade do Estado é funcional. E nula a puniçãoinfligida ao servidor por cultivar ideologia desagradável ao chefe.Inadmissível que a sentença rejeite a ação porque o juiz se desen-tendeu com o autor. Os agentes públicos são meros canais de ex-

 pressão da vontade do direito: o legislador, quando edita leis, expri-me o querer da Constituição (e do povo); o juiz e o administrador,através de seus atos, realizam a vontade da lei.

Vale a transcrição, sobre o assunto, de significativo trecho deLéon Duguit:

“Afirmamos que o poder do governo existe e não pode deixar 

de existir. Simplesmente, negamos que seja um direito. Afirmamosque os que possuem este poder governamental possuem um poder de fato e não um poder de direito; dizendo que não detêm o poder 

 público, queremos dizer que não têm o direito de formular ordens eque as manifestações da sua vontade não se impõem como tais aosgovernados.

“Deriva daí que as declarações de vontade dos governantes só possuem valor na medida em que estào conformes com a regra de

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direito, cujos fundamentos indicamos noutro ponto, e que se impõea todos os membros duma sociedade, por ser como que a armaduradessa sociedade. Na nossa concepção, a lei não tem o caráter dumaordem dada pelo Parlamento e que se imponha porque é o Parla-mento que a formula. Os 900 indivíduos que compõem o Parlamen-to não podem darme uma ordem; a lei só se imporá à obediênciados cidadãos quando seja expressão ou a execução duma regra de

direito; e é dever dos governantes organizarem o corpo legislativode maneira que sejam reunidas as maiores garantias possíveis paraque ele não ultrapasse essa missão. A decisão jurisdicional só é vá-lida na medida em que seja conforme ao direito quer aplique umaregra de direito, quer verifique a existência de uma situação subje-tiva. O ato administrativo, enfim, não se reveste de caráter próprio por emanar dos governantes e dos seus agentes; o ato administrati-

vo só terá eficiência quando as condições normais e gerais de qual-quer ato jurídico nele se encontrem reunidas, e deste modo desapa-rece o caráter regalista da administração.

“E esta uma concepção puramente objetiva do direito público,ou, se se quer, o direito público deixa de ser um direito subjetivo

 para tornarse quase exclusivamente um direito objetivo. As decla-rações de vontade dos governantes já não são o exercício dum di-reito de que fosse titular uma pessoa soberana: nem tal pessoa nem

tal direito existem. As declarações dos governantes têm valor social,com efeito, mas só na medida em que estejam de acordo com a re-gra social, com o direito objetivo” {Os Elementos do Estado, pp. 35a 37).

A formação do querer do Estado não pode ser disciplinada demodo idêntico ao dos particulares. Uma vontade submetida a fins(a do Estado) e outra livre (a dos particulares) são instrumentadas

diversamente. A livre tem seu canal de expressão: o indivíduo. Avontade funcional é canalizada no processo, do qual o agente é ape-nas um elemento. Nào houvesse processo para a formação da von-tade funcional, ela seria idêntica à da vontade livre: centrada noagente.

O processo infunde ao ato racionalidade, imparcialidade, equi-

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do. A experiência histórica mostra ser maior o risco de inconstitucionalidade na lei surgida sem processo legislativo prévio, ou deilegalidade 110 ato administrativo instantâneo. As várias etapas do

 processo propiciando melhor conhecimento e comprovação dosfatos, maior discussão, mais ampla reflexão fazem menos prová-vel a violação da ordem jurídica.

Mas o processo tem outra justificativa concorrente. Os atos pú- blicos são unilaterais, dispensando o consentimento do destinatá-rio: assim com a lei comercial em relação aos comerciantes, a sen-tença condenatória em relação ao réu, a multa administrativa em

relação à empresa desatenta aos deveres tributários. O Estado pro-duz seus atos no uso de poder extroverso. No entanto, 0 poder po-lítico seria arbitrário e despótico se os interessados não pudessem ex-

 por suas razões, opiniões, interesses, antes de serem afetados pelosatos estatais. Os comerciantes fazem seu lobby no Parlamento; autor e réu apresentam suas pretensões e provas ao juiz; a empresa se de-fende da suspeita de sonegação. São os processos legislativo e judi-cial e o procedimento administrativo que permitem essa desejável“participação” dos interessados nas decisões de autoridades públicas.

O processo é, então em perfeita coerência com a idéia cen-tral do direito público, de realizar 0 equilíbrio entre liberdade e au-toridade , a contrapartida assegurada aos particulares pelo fato deserem atingidos por atos estatais unilaterais. Sem que a decisão doEstado (a lei, a sentença, o ato administrativo) deixe de ser ato deautoridade, protegese o indivíduo a ser afetado: condicionando a produção do ato a um processo do qual ele possa participar. Sobeste ângulo, o processo cumpre papel eminentemente ligado à tute-la dos interesses e direitos dos particulares.

2. Noção de processo

6. Cumpre, agora, esclarecer 0 que entendemos por processo.

Para nós,  processo é o encadeamento necessário e ordenado de atos e fa tos destinado ã formação ou execução de atos jurídicos cujos fin s são juridicam ente regulados.

O processo não é um ato, mas a reunião, o complexo, de atos efatos que se produzem 110 tempo. No entanto, um conjunto de con-tratos nào é processo; mister que os vários atos e fatos tenham co-

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nexão entre si, coordenandose e sucedendose, de modo a corres- ponderem aos vários elos de uma cadeia. Por isso, o processo é umencadeamento. O processo judicial, por exemplo, é a sucessão deeventos como o ajuizamento da petição inicial, a citação do réu, adesignação de audiência, o transcurso do prazo de recurso, a oitivade testemunhas. Há vínculo entre eles: a citação será antecedida da petição inicial, a sentença sucedida pelo prazo recursal, e assim por 

diante.Cada etapa do processo cumpre sua própria função, mas há li-

gação entre elas: servem logicamente como antecedentes e conse-qüentes umas das outras. A seqüência de formalidades não é alea-tória: há uma ordem a ser observada, um itinerário a seguir. Ade-mais, os vários passos são necessários: não se pode dar o segundo

 passo sem que o primeiro tenha sido cumprido. Assim, o processoé o encadeamento necessário e ordenado de eventos. No processolegislativo, à iniciativa (propositura do projeto de lei) seguese a dis-cussão, depois a votação, em seguida a sanção. Não pode haver san-ção (ou veto) de projeto nào votado, não há votação de projeto não

 proposto.

O processo não se compõe apenas de atos, mas de atos e fatos.  No processo judicial, são atos o ajuizamento da petição inicial, acitação do réu, a designação de audiência, e fatos o transcurso do

 prazo para recurso, a oitiva de testemunhas.O processo pode visar à criação de ato jurídico: um ato admi-

nistrativo, uma sentença, uma lei. Mas também serve à execuçãodele, como no chamado processo de execução judicial, destinado adar cumprimento à sentença. Destarte, o processo é o encadeamen-to de eventos destinado à formação ou execução de atos jurídicos.

Por fim, o processo é técnica para a produção (ou execução)de um específico tipo de atos: aqueles cujos fins são determinados

 por normas jurídicas, que se busca aplicar. É a situação dos atos dedireito público, emanados no exercício de função.

O publicista português Alberto Xavier, detalhando esse últimoaspecto, ao cunhar seu conceito de processo, escreve:

“Se entendermos que o método seguro para a definição deste

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levância que neste desempenha e representa a tal sucessão de atos e

fatos, sem nos atermos à verificação formal da sua existência. Ora,esses atos e fatos, cuja sucessão constitui o núcleo do processo, en-tendido 110 seu significado comum, exercem, como teremos ocasiãode desenvolver, a função de formalidades: tratase de permitir, por quem há de julgar o pleito, a formação de uma vontade corretamen-te esclarecida que possa, pela apreensão exata dos fatos e das pro-vas, apurar a verdade material, fazer respeitar o Direito e, do mes-mo passo, os interesses postos em causa. A petição inicial, a con-testação, os prazos a elas referentes, são instrumentos que no pro-cesso visam obter, da autoridade judicial, uma vontade lúcida e pon-

derada.“O processo está, pois, intimamente ligado ao problema da

vontade e da sua formação. É certo que nos simples particulares aformação da vontade nào é objeto de uma disciplina processual; masesta observação só revela que aí onde essa disciplina se impõe équando se trata de adequar a vontade psicológica individual a finslegalmente determinados, ou seja, quando está em causa a manifes-tação de uma vontade funcionar (Do Procedimento Administrativo , pp. 17 e 18).

Em coerência com essa idéia, o autor define o processo, emtermos semelhantes aos nossos, como a “sucessão ordenada de for-malidades tendentes à formação ou execução de uma vontade fun-cionar’ (ob. cit., p. 21).

7. Convém não confundir, pensando especialmente no proces-so judicial,  processo com autos. Quando o advogado diz que vai“retirar o processo do cartório para elaborar recurso contra a sen-tença”, está usando a palavra em sentido impróprio. Referese aos“autos”, isto é, ao conjunto de documentos em que estão materiali-

zados os atos e fatos do processo. O processo é realidade abstrata(um encadeamento de atos e fatos) que se corporifica numa série dedocumentos, os autos.

Mencionese também, tratando ainda do problema terminoló-gico, a discussão em torno da diferença entre  processo e procedimento. Empregamos no texto as duas palavras indistintamente (daífalarmos em “processo” judicial e “procedimento” administrativo),visto estarmos formulando uma teoria geral, que se pretende aplicá-

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vel a todo o direito público, e nào a uma parcela dele. Contudo, osestudiosos do direito processual isto é, do ramo do direito públicoque estuda as normas relativas ao processo judicial costumam dar sentidos diversos às duas expressões. Não nos interessa participar da polêmica, útil apenas no campo em que travada.

3. Relação jurídico-processual<V. No processo judicial civil, o juiz decide disputa entre dois

sujeitos em tomo da aplicação da lei; diz o direito no caso concre-to; define qual é a relação jurídica existente entre autor e réu (ex.: odever de A pagar certa quantia a B). Através do processo legislati-vo, o Parlamento põe a lei. que vai regular as futuras relações entreos indivíduos (fixando, por exemplo, o direito de os consumidores

obterem produtos de primeira necessidade). No procedimento administrativo editase ato constituindo rela-ção jurídica entre a Administração e o indivíduo (ex.: impondo pe-nalidade de suspensão ao funcionário que praticou falta funcional).

Os processos estatais têm por objeto certas relações que são por meio deles definidas, reguladas ou instauradas: as relações ju rídicas materiais. Elas não se confundem com a relação jurídica processual, isto é, com o conjunto de direitos, poderes, deveres, ônus e

faculdades atribuídos aos sujeitos que participam do processo.

9. Percebemos essa distinção pelo fato de os sujeitos da rela-ção envolvida no processo legislativo (o Presidente da Repúblicaque apresenta o projeto de lei, os parlamentares que o examinam)nào serem os mesmos dos vínculos jurídicos regulados pela lei(comerciantes e consumidores, no caso da lei de defesa do consu-midor).

Também o conteúdo das relações jurídicas material e proces-sual é diverso. Tomese o processo judicial provocado por A paraobter o despejo de B. O conteúdo da relação material entre A e B éo dever, decorrente do contrato de locação por eles firmado, de Bdesocupar o imóvel.

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10. A perfeita visualização dessas diferenças permite compreen-der a existência de direitos, deveres e ônus de índole processual des-vinculados da relação jurídica material.

Assim, A pode não ser titular do direito de crédito contra B,mas possui direito à sentença do Estado em ação de cobrança que proponha. Tem o direito de ação de movimentar a máquina judi-cial para obter a sentença embora não tenha o direito de créditoque pretende ver garantido. E o indivíduo B, mesmo não havendotravado qualquer relação material com A, tem o ônus de se defen-der na ação.

O acusado em ação penal, mesmo se efetivamente culpado e,conseqüentemente, sem o direito (material) de sair livre , desfruta-rá do direito de se defender normalmente no processo.

Qualquer empreiteiro tem o direito de que a Administração,decidindo construir uma obra, inicie procedimento de licitação, noqual poderá fonnular sua proposta. Tratase do direito de participar do procedimento, que nada tem a ver com um hipotético direito deser contratado (que, no caso, inexiste em favor de qualquer pessoa).

11. De outro lado, tomase possível evidenciar aspecto de sumarelevância nos atos estatais. Sua validade, seu ajustamento ao Di-reito, nào depende apenas de seu conteúdo estar de acordo com anorma jurídica superior. É indispensável também que o ato seja fru-to de processo realizado rigorosamente de acordo com o previsto.Caso contrário, será inválido, por vício processual, ainda que seuconteúdo esteja correto.

Para constitucionalidade da lei não basta seus preceitos seremcoerentes com a Constituição (por exemplo: a lei trabalhista respei-tar os direitos dos trabalhadores previstos no art. 1-).   Fundamental

também haver sido regularmente votada (observandose, por exem- plo, o quórum de aprovação das leis ordinárias). A sentença penalcondenando o réu será nula, mesmo se este houver efetivamente praticado o crime de que é acusado, caso ele não tenha sido devida-mente citado para o processo.

4. Esquem a geral dos processos estatais

12. Os processos estatais têm certas características comuns.Uma delas é a de que a validade dos atos subseqüentes depende de

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haverem sido corretamente praticados os antecedentes. A votaçãode projeto de lei será nula se o projeto, da iniciativa exclusiva daMesa da Câmara dos Deputados, houver sido apresentado pelo Pre-sidente da República. Assim também se passa no processo judiciale no procedimento administrativo.

 No entanto, são muito distintos um processo do outro, ligadosque estão a diferentes funções estatais (a legislativa, a judicial, a

administrativa). E útil ligeira referência a cada um.

4.1 Processo legislativo

13. O processo legislativo a ser observado pelo Congresso Na-cional vem previsto nos arts. 59 e 69 da Constituição da República.

Compreende basicamente três fases: a introdutória, a constitu-tiva e a complementar (Manoel Gonçalves Ferreira Filho,  Do Processo Legislativo, p. 210).

A fase introdutória, que inicia o processo, é a da propositurado projeto (iniciativa legislativa). A constitutiva, ao fim da qual sur-ge a lei, compreende a discussão e votação do projeto pelas duasCasas do Congresso, bem como a sanção ou veto pelo Presidenteda República. Na fase complementar são praticados os atos volta-dos a certificar a existência da lei (promulgação) e a darlhe conhe-cimento público (publicação).

14. Os atos e fatos integrantes dessas várias fases são regula-dos pela Constituição, que determina quem é titulado para praticar cada um dos atos procedimentais (a iniciativa cabe aos congressis-tas, ao Presidente da República, ao povo etc.), quais os prazos aserem observados (o Chefe do Executivo tem 15 dias para sancio-nar ou vetar o projeto aprovado), e assim por diante.

O objetivo desses diversos passos é permitir a interação, quan-do da produção das normas legais, entre os Poderes do Estado (es-

 pecialmente o Legislativo e o Executivo) e entre o Legislativo e osgrupos sociais organizados (estes através dos lobbies e da iniciativa popular das leis), bem como propiciar a participação dos grupos políticos minoritários no Parlamento. Tudo isso conduz a um am- plo debate e choque de interesses, saudável para que a lei venha aobter o respeito e acatamento da sociedade.

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Assim sendo, as várias etapas do processo são juridicamentereguladas, devendo ser rigorosamente observadas na produção doato legislativo.

4.2 Processo judicial

15. Há várias espécies de processos judiciais: processo civil, processo penal, processo trabalhista destinados, respectivamente,à aplicação da lei civil, penal e trabalhista, com suas características próprias. Cada um, por sua vez, admite subespécies. Os processos

civis, por exemplo, podem ser, de acordo com o Código de Proces-so Civil: processo de conhecimento, processo de execução, proces-so cautelar.

O exame detalhado deles é objeto das disciplinas jurídicas pró- prias: os direitos processual civil, processual penal e processual tra- balhista. Não é possível, a esta altura, avançar muito no seu estudo.Entretanto, podese apresentar esquema sumário de um deles.

16. O processo civil de conhecimento, destinado por hipótese

à obtenção de sentença condenando o devedor à entrega do bemque vendeu, seguirá sucessivos passos, expostos resumidamente aseguir:

propositura da ação, com a apresentação, pelo autor, da peti-ção inicial;

exame, pelo Juiz, da petição inicial, e ordem para a citaçãodo réu;

citação do réu para oferecer sua resposta;

fluência do prazo para a resposta; apresentação da contestação pelo réu;

intimação do autor para se manifestar sobre a contestação;

realização de audiência de conciliação;

decisão sobre a pertinência das provas requeridas;

designação de audiência de instrução e julgamento;

realização da audiência;

prolação da sentença julgando improcedente a ação;

intimação das partes da sentença proferida; fluência do prazo para apresentação de recursos;

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oferecimento de recurso pelo autor; intimação do réu para apresentação das contrarazões de re-

curso;

fluência do prazo para contrarazões;

apresentação de contrarazões;

remessa dos autos ao Tribunal;

julgamento, acolhendose o recurso e, em conseqüência, jul-gandose procedente a ação;

transcurso do prazo sem apresentação de novo recurso;

trânsito em julgado da decisão.

O Código de Processo Civil regula detalhadamente cada umdesses eventos, estabelecendo a forma, o prazo, os efeitos de cadaato, e assim por diante.

17. O objetivo dessa seqüência de etapas é permitir que a deci-são judicial seja, em primeiro lugar, imparcial, por ditada após a

manifestação das partes envolvidas. De outro, que seja fruto desubstanciosa coleta de dados. Por fim, que não resulte da vontadeunipessoal do julgador, mas do concurso de juízos das várias ins-tâncias judiciais.

4.3 Procedimento administrativo

18. Na Administração Pública, como reflexo da diversidade desuas atribuições, convivem múltiplas espécies de procedimentos,destinadas a dar esteio aos diferentes atos administrativos.

A contratação de particulares para a realização de obras, pres-tação de serviços, fornecimento de bens em geral, por exemplo, de-

 pende de licitação. A admissão de servidores públicos se faz median-te concurso público. A aplicação de sanções administrativas é pre-cedida de procedimento sancionatório.

19. Variam os objetivos de cada procedimento. A licitação e o

concurso público visam permitir que muitos particulares disputem,de modo limpo e igualitário, o benefício oferecido pela Administra-ção (o contrato e a nomeação para o cargo público). O procedimen-to sancionatório pretende assegurar a ampla defesa do acusado an-tes de ser afetado pela sanção.

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Capítulo VII  

O que é  Direito Administrativo?

Sempre que me pedem uma exposição breve sobre o ramo dodireito ao qual tenho dedicado a minha vida, lembrome das des-venturas de um Prefeitoempresário que conheci em um congressosobre Municípios. Depois de ouvir minha palestra, o homem levan-touse do auditório e. com um jeito simpático mas sem qualquer pie-dade, passou a desancar o direito administrativo e os franceses. Sobas gargalhadas e aplausos entusiasmados da platéia, composta ex-clusivamente de Prefeitos, ele encerrou profeticamente seu quasedi sc urso:

“Ou a gente acaba com o tal direito administrativo ou ele aca- ba com a gente!”

 Na saída, o homem me abordou para pedir desculpas pelo ex-cesso e dizer que nada havia de pessoal em sua proposta. Estavaapenas pensando no Brasil... Daí, contou sua história.

Depois de comandar durante 28 anos a empresa de sua família,em uma cidade de porte médio, resolveu se candidatar ao cargo dePrefeito. Durante a campanha, prometeu empregar sua bemsucedi-da fórmula empresarial na administração do Município. Foi eleito.

Levou para a Prefeitura, como secretários e assessores, os mais ex- perientes empregados de sua empresa, inclusive o advogado de con-fiança, um homem inventivo e culto, responsável pela montagem

 jurídica de todos os negócios importantes que realizara na vida.

Mas ficou decepcionado com seu antigo conselheiro, já agorafeito ProcuradorGeral do Município. No cargo, este perdeu o bri-lho e o ímpeto; virou um burocrata, apaixonado por papéis, prazos,

 publicações, formalidades. Não demorou e ele se pôs a criar difi-culdades para qualquer coisa, uma enxurrada de nãos sem fim (“Não, Prefeito, iniciar a obra amanhã não é possível; o contrato com

a empreiteira precisa ser publicado antes” . “Nem pense nisso. Eu

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O QUE F. DIREITO ADM INISTR ATIVO • 103

sei que o preço parece bom, mas comprar carteiras escolares de- pende de licitação” . “Impossível, Prefeito. Nào há autorização le-gal para a Prefeitura impedir o fumo na via pública”).

Quem diria? Logo ele, que aparentava tanta cultura jurídica,acabou também perdendo a autoconfiança ( “Eu não sei responder agora. Prefeito, se é possível vender o prédio do mercado munici-

 pal para quitar dívidas do Município; parece que há umas condi-ções, muito complicadas, a atender!”).

O pior, então, foram as humilhações que o Prefeito acabou su- portando, uma em seguida à outra, sem que o advogado o impedis-se. Primeiro, foi a ordem do Juiz da Comarca quase um menino  proibindo o uso do aterro sanitário recéminaugurado, por proble-mas ambientais. Depois, a sustaçào, pela Câmara de Vereadores, docontrato envolvendo toda a publicidade da Prefeitura, que fora con-

siderado ilegal pelo Tribunal de Contas (por falta de licitação, aimeu Deus!). A gota d'água foi a divulgação de um parecer, da pró- pria Procuradoria do Município, entendendo nulo, por ilegalidade,um ato do Prefeito: como se nào bastasse a ousadia de assinar umtexto assim, o Procurador ainda deixou o interessado tirar uma có- pia, que fez a delícia dos jornais!

O ProcuradorGeral, desgostoso de tudo, pediu exoneração. Osucessor, que logo apareceu com os mesmos vícios, também não

durou no cargo. E a história foi se repetindo, até que, um tanto asério um tanto por desforra, o Prefeito anunciou pela imprensa queiria nomear um engenheiro para o posto de ProcuradorGeral. Foiimpedido por uma liminar (mais uma!).

Estressado, o Prefeito buscou conselho com um desembarga-dor aposentado, que mantinha uma chácara na cidade. Perguntoulhe se a causa de seus problemas não seria um complô. Ficou sa-

 bendo que não: a causa era mesmo o direito administrativo, coisade franceses. Por isso, tomou ódio do tal direito administrativo edos franceses.

 Nesse ponto estava, no dia em que o conheci.

Saí de lá pensando que o direito administrativo a parte doordenamento jurídico voltada à disciplina da organização funcio-

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104 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

de suas relações com terceiros talvez seja mesmo o inferno dosadministradores. Sua missão parece ser essa, aliás.

E verdade que o ordenamento confere à Administração Públi-ca uma série de poderes inexistentes em outros campos (nas rela-ções entre empresas, entre vizinhos etc.). Ela edita regras, fiscaliza,aplica multas, expede licenças, requisita bens, inicia desapropria-ções, lança impostos. Desse ponto de vista, é bem melhor ser o po-deroso Prefeito do que um diretor de empresa que, manobrandono campo do direito privado, não exerce qualquer autoridade e temde se virar na base do consenso.

Uma boa parte da especificidade do direito administrativo vemdaí: da circunstância de regular o exercício de autoridade pública,materializandose em uma série de institutos de que o direito priva-do nem cogita (como a desapropriação, o tombamento, a requisição,a servidão administrativa, a licença, a autorização, a revogação etc.).

Mas nào é só. A atividade administrativa é desenvolvida por uma máquina, uma certa estrutura (pessoas políticas, órgãos. Ad-ministração direta e indireta, autarquias, sociedades de economiamista, empresas públicas, fundações governamentais, servidores públicos...). Sua organização, relativamente complexa e bastante peculiar, baseiase em uma série de regras: normas de direito admi-nistrativo.

Inevitável que o antigo advogado de empresa, mesmo culto,sentisse insegurança quando defrontado com as questões jurídicasda Administração Municipal: elas envolvem um universo todo par-

ticular. Como qualquer outro ramo da árvore jurídica, o direito ad-ministrativo tem seus modos, suas tradições sua cultura, enfim,que as normas incorporam. A parcela da ciência jurídica dedicada aseu estudo isto é, a doutrina do direito administrativo valese determos, conceitos, classificações, lugarescomuns etc., nem semprefamiliares ao profissional do direito privado.

Tudo isso se complica porque, ao contrário de outros ramos, odireito administrativo não está codificado. Enquanto o direito civil pode ser, por assim dizer, “com prado” em uma livraria, pois suas

normas estão em grande parte reunidas e organizadas em um livro(um código), o administrativo está disperso por todo lado, inclusivena forma de princípios apenas implícitos no ordenamento.

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O Q U E É DIR EITO A D M IN IST R A TIV O ? 105

Duas classificações são indispensáveis para o iniciante locali-zar adequadamente o direito administrativo no mundo do direito e,em seguida, começar a entendêlo. A primeira é a que distingue osdois grandes ramos do direito: o privado e o público: a segunda, aque separa as funções do Estado em judicial, legislativa e adminis-trativa.

As características do direito administrativo, um ramo do direito público, afirmamse, em primeiro

 privado:

lugar, por oposição ao direito

 Direito Adm inistrativo x Direito Privado

Interesses públicos x Interesses privados

Autoridade x Igualdade

Relações jurídicas verticais x Relações jurídicas horizontais

Legalidade x Liberdade

Função x Autonomia da vontade

Formalismo x Informal ismoPublicidade x Intimidade

As normas de direito administrativo regulam a realização dointeresse público e conferem à Administração, encarregada de bus-cálo, poderes de autoridade, cujo exercício produz relações jurídi-cas verticais (em que ela tem uma posição de superioridade frenteao particular). Mas esses poderes são muito condicionados: a Ad-ministração só os tem quando previstos em lei (legalidade); seu

exercício não é mera faculdade, mas dever do administrador, e só pode ocorrer para realizar os fins previstos em lei (função). Para permitir seu registro e controle, a ação administrativa está sujeita à publicidade e ao formalismo, exigindo a realização de procedimen-tos e a observância de inúmeros requisitos formalísticos.

Justamente aqui entram os franceses. Querendo impedir que oPoder Executivo ficasse sujeito aos juizes (membros da nobrezacontrariada com a Revolução Francesa), os revolucionários france-

ses atribuíram a missão de julgar os atos da Administração a umórgão que a integrava, o Conselho de Estado. Esse órgão, perce- bendo a incompatibilidade entre as normas do Código Civil e os

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106 F UNDA M ENTO S DE DIREITO P ÚBLICO

 problemas da Administração, é que viria a afirmar a necessidadede, para resolvêlos, ser utilizado um “outro direito", o administra-tivo, construido em oposição ao então existente, o civil. A jurispru-dência do Conselho de Estado foi, a pouco e pouco, identificandoos pontos do Código Civil que não deviam aplicarse à Administra-ção e, a seguir, enunciando as normas que, estas sim, serviam aocaso. Ao conjunto dessas normas denominouse direito administrativo.

As especificidades do direito administrativo, enquanto direito

da função administrativa que é, revelamse também no confrontoentre os conceitos de função administrativa e de função legislativa:

Função Administrativa x Função Legislativa

Submissão à lei x Submissão à Constituição

Meu colega de congresso, ao tomar a imprudente decisão deempossarse como Prefeito e, malgrado seu, de sujeitarse ao di-reito administrativo , o que fez foi colocarse ao mesmo tempo de-

 baixo da Constituição e das leis. Realmente, o direito administrati-vo, tal qual nós o conhecemos, é fruto da separação de Poderes e dahierarquia normativa que dele deriva, nesta seqüência:

Constituição

 Lei

 Ato administrativo

As normas constitucionais estão no topo da pirâmide jurídica eorganizam o exercício do poder político, dividindoo em  funções 

(legislativa, judicial e administrativa), atribuídas precipuamente acada um dos Poderes (Legislativo, Judiciário, Executivo). O Legis-lativo edita a lei, que se submete diretamente à Constituição, e aAdministração Pública produz atos administrativos, submetidosimediatamente à lei e dependentes dela.

A direta dependência entre a lei e os atos do administrador estána origem das angústias de meu amigo Prefeito, que por certo é umhomem poderoso, mas nào o todo poderoso. No exercício do cargo,

ele não pode fazer o que quer, o que acha bom ou justo; deve fazer o que a lei manda e nada mais.

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O Q U E É DIR EITO A D M IN IS T R A T IV O ? 107

0 direito administrativo resultado, no campo do direito, daimplantação de certo modelo político, o do chamado Estado de Di-reito ligase a este fundamental objetivo: o da negação do poder  arbitrário. Daí o princípio da legalidade, em virtude do qual os atosadministrativos não poderão ser fruto dos caprichos das autorida-des. Daí, também, a submissão de toda a ação administrativa a dife-rentes níveis de controle, sem o que não há como impedir ó arbítrio.

A necessidade de viabilizar o amplo controle de legalidade decada ato administrativo é uma das principais responsáveis pela (por assim dizer) “burocratização” do modo de agir do Estado, expressaem exigências como as de realizar procedimentos, de motivar osatos, de publicálos etc. Flexibilidade e informalismo impediriam oindispensável controle.

Talvez a mais ardente chama do inferno dos administradoresseja a resultante da articulação das funções administrativa e judicial.

 Nenhum ato administrativo é definitivo; todos podem ser levadosao exame do Judiciário, para aferição de sua legalidade. Isso gerauma inevitável interferência dos juizes no fluxo da ação adminis-trativa, a qual, inclusive por decisões liminares e provisórias, podeser paralisada, proibida ou dirigida para rumo diverso. Em suma,um inferno!

Aceitando a provocação (“Ou a gente acaba com o tal direitoadministrativo ...” ) tentei, sem muito sucesso, convencer meu in-

terlocutor da inviabilidade de sua proposta. O direito administrati-vo é um “direito constitucionalizado”, vale dizer, um direito quedecorre necessariamente da Constituição. Sem mudar o próprio mo-delo de Estado imposto constitucionalmente, simplesmente não hácomo varrer o direito administrativo da face do País.

Ao dizer isso, passei ao Prefeito meu exemplar da Constitui-ção e lhe pedi que lesse o caput  do art. 37. Meio contrariado, eleimpostou a voz e leu:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Muni-cípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, mo-ralidade, publicidade, eficiência e, também, ao seguinte: (...)”.

Esse dispositivo enuncia algumas normas fundamentais do di-reito administrativo. Expliquei:

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108 FUNDAM ENTOS DE DIREITO PÚBLICO

 Legalidade, a Administração não desfruta de liberdade; só podendo agir na aplicação de leis;

 Impessoalidade, os atos da Administração devem tratar isonomicamente as pessoas e dirigirse a fins públicos impessoais;

 Moralidade: a moralidade administrativa é, ao lado da lei,um padrão de observância obrigatória para os agentes públicos;

Publicidade: a ação administrativa deve desenrolarse de for-ma transparente e aberta, sem segredos;

Eficiência : a Administração não pode se limitar a cumprir formalidades; seu compromisso maior é com a realização efetivados interesses públicos.

“Então vamos revogar esse artigo”, animouse o Prefeito.“Eu elegi um sobrinho deputado federal. Ele faz a proposta. Quemhá de ser contra? Ficamos livres desse direito administrativo”.

Argumentei que a supressão do artigo seria inútil:

“É possível, claro, fazer reformas nas leis de licitações, dedesapropriação, de concessão. Viável, também, alterar ou suprimir os dispositivos da Constituição que cuidam de tópicos do direitoadministrativo (aliás, a Carta brasileira de 1988, ao contrário das deoutros países, contém muitos desses dispositivos). Isso poderá alte-rar o conteúdo do direito administrativo brasileiro. Só que não com- prometerá sua existência, tampouco transformará sua substância,que se manterá enquanto o modelo de Estado permanecer”.

Desanimado, meu interlocutor despediuse. Mas pude ouviloresmungar, na saída:

“Sundfeld? O nome alemão deve ser disfarce. É um francêsinfiltrado!”

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Capitulo VIII 

 Equilíbrio entre Autoridade e Liberdade

1. A sociedade como t i tular e dest inatária do poder 2. Competência.

 3. D ir ei to s dos part ic ula re s.

 I. A sociedade como titular e destinatária do poder 

1. Em uma sociedade, os indivíduos podem ser divididos emdois grupos: o dos que exercem o poder, como agentes do Estado(os governantes), e o dos destinatários do poder (os governados).

O exercício do poder político gera relações jurídicas entre Es-tado e governados. O Fisco, ao tributar um empresário, relacionase

 juridicamente com este. Assim também o Estadojuiz quando con-dena o criminoso à prisão ou o Estadolegislador quando edita oregulamento da pesca. Em qualquer caso, Estado e indivíduos assu-mem reciprocamente direitos, poderes, deveres, faculdades. Interessanos saber quais são os termos fundamentais dessas relações, ouseja. descobrir como o direito público regula as relações entre os

exercentes do poder e os seus destinatários.

2. O primeiro dado cuja consideração é importante por re- percutir sobre toda disciplina da matéria é que, no Estado Demo-crático de Direito, os indivíduos não são meros destinatários, isto é,meros sujeitos passivos, do poder. São, vistos em conjunto, os ver-dadeiros titulares do poder político.

O art. lü. parágrafo único, de nossa Constituição Federal o evi-

dencia: “Todo poder emana do povo. que o exerce por meio de re- presentantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

O Estado não desfruta do poder, na condição de dono ou se-nhor, mas como representante do titular, que é o povo. Os particu-lares, embora sofram o poder, não são mero objeto dele. E intuiti-

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FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

vo. destarte, que as relações jurídicas entre Estado e indivíduo, con-quanto marcadas pelo signo da autoridade visto estar em causa oexercício do poder político nào se processam sob o império dasubmissão. Ainda mais porque o indivíduo, mesmo em suas rela-ções com o Estado, apresentase como sujeito livre, munido de di-reitos.

As relações jurídicas de direito público são, destarte, vínculosentre um sujeito que exerce o poder político, mas não o titulariza (oagente público), e um sujeito que titulariza o poder (em conjuntocom os demais indivíduos), mas não o exerce; ao contrário, supor-ta. Este último, porém, suporta o poder até certo limite: o dos direi-

tos que lhe são conferidos pela ordem jurídica.

3. Assim, o direito público tem a complexa missão de regular,de modo equilibrado, as relações entre o Estado que exerce a au-toridade pública e o conseqüente poder de mando e os indivíduos que devem se sujeitar a ele, sem perder sua condição de donos do poder e titulares de direitos próprios.

Gordillo, embora se referindo especificamente ao direito ad-ministrativo, expõe com propriedade esse desafio essencial do di-

reito público e as dificuldades da ciência jurídica para enfrentálo:“O direito administrativo é por excelência a parte da ciênciado direito que mais agudamente coloca o conflito permanente entrea autoridade e a liberdade. ‘Estado e indivíduo, ordem e liberdade:a tensão encerrada nestas idéias sintéticas é insolúvel’, disse um au-tor; mas ainda que nào cheguemos a crer que a tensão ou o conflitoseja insolúvel, e admitamos a possibilidade de um equilíbrio dinâ-mico entre ambos, é evidente que a obtenção de tal equilíbrio há deser uma das mais difíceis e delicadas tarefas da ciência moderna.

“A história registra primeiro o despotismo estatal sobre os in-divíduos; logo, e como reaçào, a exacerbação dos direitos do indi-víduo frente à sociedade; por fim, e como anseio, o equilíbrio dosdois elementos essenciais do mundo contemporâneo livre: indiví-duo e sociedade, indivíduo e Estado. (...)

“O equilíbrio político, a sensibilidade jurídica, não se satisfa-zem apenas com declarações sobre a liberdade; devem ser o leit  motiv de tudo o que se pensa e decide sobre direito administrativo;devem ser a preocupação constante do jurista, não só nos grandes

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E Q U I L Í B R I O E N T R E A U T O R I D A D E E L I B E R D A D E 11I

temas institucionais, como também nos pequenos e, por vezes, entediantes problemas quotidianos.

“Quantos temas interessantes ou áridos escondem esse profun-do desequilíbrio! Provavelmente muitíssimos anos se passarão an-tes que se os isole e corrija; ou talvez isto nunca aconteça; entretan-to, deve ficarnos ao menos o princípio retor, a preocupação cons-tante, de insuflar esse equilíbrio e essa justiça em toda questão queenvolva a relação indivíduoEstado, de rever com critério profun-

damente crítico, com a metódica dúvida cartesiana, os fundamentose soluções de cada instituição ou diminuta questão que nos incum- ba tratar, com a atenção alerta para descobrir e cauterizar esses des-vios e ressaibos que constituem a raiz da enfermidade social e polí-tica argentina e latinoamericana” (Teoria General dei Derecho Administrativo., pp. 35 e 3738, tradução nossa).

4. A primeira constatação a respeito do regime das relações de

direito público é a de que um dos sujeitos da relação, o Estado, exer-ce o poder de autoridade, desfrutando de prerrogativas de que nãose encontram equivalentes no direito privado. Entre elas brilham es- pecialmente os poderes de, uni lateralmente, impor deveres aos in-divíduos e de alterar as relações já constituídas. Esse é, certamente,o aspecto de percepção mais imediata.

Celso Antônio Bandeira de Mello expressa esse aspecto da re-lação de direito público enunciando o princípio da supremacia do 

interesse público sobre o privado. Segundo ele, são conseqüênciasdeste princípio, de uma parte, a “posição privilegiada do órgão en-carregado de zelar pelo interesse público e de exprimilo, nas rela-ções com os particulares” e, de outra, a “posição de supremacia doórgão nas mesmas relações”, ou seja, a verticalidade das relaçõesentre Estado e particulares (Curso de Direito Administrativo, p. 28).Exemplo da posição privilegiada é o benefício usufruído pelo Esta-do, quando integra processo judicial, de prazo em dobro para apre-

sentação de recursos. Exemplo da posição de supremacia é a possi- bilidade de desapropriar bens de particulares.

5. Fundamental, contudo, para conhecer a relação jurídica dedireito público num Estado moderno e a posição que nela ocu- pam os indivíduos é identificar os limites dos poderes de autori-dade São basicamente dois intimamente ligados:

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FUNDA MENTOS DE DIREITO PÚBLICO

a) a competência;/)) os direitos dos particulares.

2. Competência

6. Ao desempenharem o poder, os governantes exercitam com petências, não direitos subjetivos. O juiz, o legislador, o adminis-trador. nào têm o direito de, respectivamente, julgar, legislar ou ad-ministrar, mas, sim, competência para fazêlo.

A expressão competência é usada 110 Direito com intençãomuito definida. Significase, com ela, o poder conferido pelo orde-namento, cujo exercício só é lícito se realizado: a) pelo sujeito pre-visto; />) sobre 0 território sob sua jurisdição; c) em relação às ma-térias indicadas na norma; d)  110 momento adequado; e) à vista daocorrência dos fatos indicados na norma; e, especialmente/) paraatingir a finalidade que levou à outorga do poder. Em outras pala-vras, a competência é um poder intensamente condicionado.

É 0 que sublinha o ilustre Celso Antônio Bandeira de Mello:

“Em rigor, no direito público, tudo se resume a um problemade competência. Deveras: sua noçào íntegra postula que um dado poder só existe realmente quando presentes as condições de fatoautorizadoras de sua deflagração e desde que manifestado em vistada específica finalidade que lhe conforma a existência. A este pro- pósito quadra referir outra cita de Caio Tácito, em lanço excelente,ao averbar: ‘A regra de competência não é um cheque em branco'.Vale dizer, não existe 110 vazio, incondicionadamente” ( Ato Adm inistrativo e Direitos dos Administrados, p. 57).

Já com 0 termo direito subjetivo se designa a possibilidade deação, conferida pelo direito aos sujeitos, para que estes realizemseus interesses pessoais (nào para a realização de interesses alheiosou objetivos). Por isso, o direito subjetivo é um fim em si mesmo.

A competência e este é seu mais importante condicionamen-to é sempre outorgada pela norma, para que de seu exercício re-sulte atendida certa finalidade, estranha ou exterior ao sujeito. Acompetência é um meio para atingir fins determinados. Portanto, a 

competência ê um poder vinculado a certa finalidade.

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E Q U I L Í B R I O E N T R E A U T O R I D A D E E L I B E R D A D E

Paolo Biscaretti di Ruffia, um dos mais notáveis juspublicistasitalianos, trabalha essa idéia ao definir os poderes do Estado como

 funções:

“Devese, além disso, salientar como os  poderes públicos de-vem ser definidos como  funções, enquanto são exercidos não paraum interesse próprio, ou exclusivamente próprio, mas para interes-se alheio, ou pelo menos, objetivo (110 interesse da coletividade hu-

mana, que é a base do Estado, ou 110 interesse do Estado à tutelaobjetiva da lei em relação à função jurisdicional penal). E isto ex- plica como, num certo sentido, todas as funções do Estado (...) apa-recem livres e vinculadas ao mesmo tempo: livres porque, conside-radas em seu conjunto, encabeçam todo o poder  de governo sobe-rano do Estado, e vinculadas porque, concretamente, nenhum ór-gão estatal pode ultrapassar os limites que lhe foram impostos (eque constituem sua competência) e deve exercer as mesmas fun-

ções quando e com as modalidades requeridas pelos corresponden-tes interesses públicos que deverão ser tutelados” ( Direito Constitucional - Instituições de Direito Público, p. 134).

7. Disso resulta que a competência é, para o agente público, deexercício obrigatório; traduz um dever. E compreensível que sejaassim. Se as competências são outorgadas aos agentes públicos parao atingimento de certos fins, o não exercicio delas implicaria re-

núncia à sua realização.O juiz é obrigado a exercer seu poder de julgar, não podendo se

escusar de fazêlo, mesmo alegando não estar convencido ou inexistir norma a ser aplicada. Dispõe o art. 126 do Código de ProcessoCivil que ”0 juiz não se exime de sentenciar 011 despachar alegandolacuna ou obscuridade da lei”. O administrador não pode deixar decobrar tributo devido por certo contribuinte. Mesmo o legislador a quem se reconhece vasta discricionariedade na decisão quanto à

oportunidade e ao conteúdo da lei tem. em certas situações, o de-ver de legislar: quando a lei for indispensável à eficácia de normaconstitucional. Por isso, a Constituição brasileira criou ação judicialespecífica para ver declarada como ilícita a omissão do legislador.E a ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2Ü).

d i l l

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FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

imposto, a Administração, como sujeito ativo, exige o pagamento para cumprir o dever que a norma jurídica lhe imputa. O indivíduo,sujeito passivo, paga para cumprir seu dever de contribuinte.

Como tais deveres seja o do sujeito ativo, seja o do sujeito passivo decorrem da necessidade de alcançar as finalidades pre-vistas na norma, podese dizer, parafraseando Ruy Cime Lima, queo relação jurídica de direito público é aquela que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente (obrigatória).

Percebese a diferença entre tal espécie de relação jurídica e arelação típica do direito privado. Nesta, o sujeito ativo exerce umdireito e o sujeito passivo cumpre um dever. O credor comparecena relação para alcançar seus interesses pessoais, não para realizar finalidades objetivas.

 Nào obstante tais diferenças, o relacionamento entre o Estadoe o particular, regido pelo direito público, é relação jurídica, do mes-mo modo que o vínculo entre dois particulares, regido pelo direito privado. Ruy Cime Lima, em célebre trecho de sua obra, embora se

refira especificamente à Administração Pública (daí a expressão“relação de administração”), faz demonstração que pode ser ampli-ficada para todo o direito público:

“Concebese geralmente a relação jurídica como expressão deum poder do sujeito de direito sobre um objeto do mundo exterior,seja aquele uma coisa existente  per se, seja uma abstenção ou umfato, esperados de outro sujeito. Nessa concepção da relação jurídi-ca, sem dificuldade se compreendem todas as variedades de que anoção de direito subjetivo é suscetível.

“Nela, não parece possa compreenderse, porém, nenhuma es- pécie de relacionamento jurídico no qual se suponha, ao sujeito ati-vo, um dever, ao invés de um poder, sobrepondoselhe à autono-mia da vontade, o vínculo de uma finalidade cogente. Alguns mo-mentos de reílexão, entretanto, tomam para logo evidente que, en-tre essa espécie de relacionamento jurídico e a que se exprime peloconceito corrente, a diferença apurável nada tem de essencial. O quese denomina ‘poder’ na relação jurídica, tal como geralmente en-

tendida, não é senão a liberdade extrema, reconhecida ao sujeitoativo, de determinar autonomamente, pela sua vontade, a sorte doobjeto, que lhe está submetido pela dependência da relação jurídi-ca, dentro dos limites dessa mesma relação. Limitese ainda mais a

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E Q U IL ÍB R IO E N T R E A U T O R ID A D E E L IB E R D A D E

liberdade externa de determinação, reconhecida ao sujeito ativo darelação jurídica, vinculandoo, nessa determinação, a uma finalida-de cogente, e a relação se transformará imediatamente, sem altera-ção, contudo, de seus elementos essenciais.

“À relação jurídica que se estrutura ao influxo de uma finali-dade cogente, chamase relação de administração. Chamaselhe re-lação de administração segundo o mesmo critério pelo qual os atosde administração se opõem aos atos de propriedade. Na administra-

ção, o dever e a finalidade são predominantes; no domínio, a vonta-de” (Princípios de Direito Administrativo, pp. 5556).

3. Direitos dos particulares

9. O segundo limite aos poderes do Estado em suas relaçõescom os particulares é o dos direitos que a ordem jurídica assegura aestes, ou, em uma palavra, o da liberdade. O cidadão, no Estado

Democrático de Direito moderno, é livre em dois sentidos diversos.A compreensão da posição do indivíduo perante o Estado requer aidentificação desses significados da liberdade: o antigo e o moderno.

O indivíduo é livre, inicialmente, porque, sendo titular do po-der, pode participar de seu exercício. Este o sentido da liberdade

 para os antigos. Alguns dos mecanismos para tanto são: as eleições,o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular das leis.

Os indivíduos são livres, de outro lado, por terem garantida(pelo próprio Estado) a segurança nas fruições privadas. E dizer,desfrutam de espaços individuais de ação, intangíveis pelo Estado.Eis o sentido da liberdade para os modernos. São exemplos: o di-reito de propriedade, de exploração de atividade econômica, de ma-nifestação e expressão.

 No Estado Democrático de Direito somamse as liberdades nosdois sentidos, o antigo e o moderno: como garantia da participaçãono exercício do poder e como garantia da segurança nas fruições

 privadas.

A identificação das “duas liberdades” encontrase em célebretrecho de Benjamin Constant: “O objetivo dos antigos era a distri- buição do poder político entre todos os cidadãos de uma mesma pá-tria: era isso que eles chamavam de liberdade. O objetivo dos mo

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FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

demos é a segurança nas fruições privadas: eles chamam de liber-dades às garantias acordadas pelas instituições para aquelas frui-ções" (De Ia Liberte d es Anciens Comparée à celle des Modernes,apud Norberto Bobbio.  Liberalismo e Democracia, p. 8).

O professor brasileiro Celso Lafer desenvolveu o tema. De suaobra, colhemse importantes observações:

“A liberdade antiga é a liberdade do cidadão e não a do ho-mem enquanto homem. Ela só se manifesta, por isso mesmo, emcomunidades políticas que regularam adequadamente a interação da

 pluralidade. Daí a relação entre política, liberdade antiga e formasdemocráticas de governo, que criam um espaço público ensejado

 pela liberdade de participação na coisa pública, do diálogo no plu-ral, que permite a palavra viva e a ação vivida, numa unidade criati-va e criadora. (...)

“A polis (como diz Jaeger) é a soma de todos os seus cidadãose de todos os aspectos de suas vidas. Ela dá muito a cada cidadão,

 porém dele tudo pode exigir. Inexorável e poderosa, a polis impõeo seu modo de vida a cada indivíduo, marcandoo como seu.

“Esta presença avassaladora do Estado e da sociedade na vidados indivíduos é o que permite compreender a importância de umaoutra dimensão da liberdade, que Benjamin Constant chamou de liberdade moderna. Já os romanos, que diferenciavam juridicamenteo status civitatis do status libertatis, defendiam a liberdade como afaculdade natural de se fazer o que se quer com exceção daquiloque proíbe ou pela força ou pela lei.  Liberdade, neste sentido, nào é o obrigatório, nem mesmo o autonomamente consentido, mas sim o que se encontra na esfera do nào-impedimento. (...)

“Qual é, ou qual deve ser, numa sociedade, o tamanho destaesfera do permitido que enseja o exercício da liberdade moderna?Como é sabido, o liberalismo moderno surge como uma contesta-ção ao Estado Absoluto e ao abuso de poder dele decorrente. Daí oesforço do liberalismo de converter o Estado Absoluto num Estadode Direito, cuja atividade seria material e formalmente limitada atra-vés de alguns instrumentos jurídicos e políticos. Entre estes instru-mentos, cabe destacar a garantia dos direitos individuais, cuja tute-la limitaria materialmente a atividade do Estado” (Ensaios sobre a 

 Liberdade, pp. 1220).

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10. As noções até aqui expostas nos permitem perceber que ocidadão tem, em primeiro lugar, o direito de participar na constitui-ção do poder político. Os direitos políticos sobretudo os de votar e de ser votado são os instrumentos por excelência da liberdadeno sentido antigo. Seu estudo corresponde a importante parcela dodireito constitucional.

A liberdade no sentido dos antigos traduz limite aos poderes

do Estado, na medida em que o conjunto dos cidadãos controla e participa da formação dos órgãos públicos (ex.: a eleição do Parla-mento) e do exercício de suas competências (ex.: através do plebis-cito).

//. O desfrute da liberdade moderna, porém, traduz limite aoexercício do poder que cada indivíduo, singularmente considerado, pode opor ao Estado nas concretas relações jurídicas que tra-

vem. E isso por três razões.Inicialmente, porque a existência de direitos subjetivos em fa-vor do particular limita o conteúdo dos atos estatais. Assim, a ga-rantia do direito de propriedade (CF, art. 5Ü, inc. XXII) impede queo Estado confisque pura e simplesmente os bens pertencentes aJoão; a garantia da liberdade de expressão da atividade intelectual(art. 5Ü, inc. IX) obsta a que o Poder Público censure o livro de Ma-ria; a proibição da tortura (art. 5a, inc. III) evita que José a sofra nadelegacia de polícia onde está recolhido. Tratandose, nessas hipó-teses, de direitos assegurados constitucionalmente, nem a próprialei poderá desconhecêlos. Destarte, os direitos constitucionais sãoum limite ao poder do legislador. Como à Administração Pública eao Judiciário cabe a aplicação da lei, seus atos, obviamente, obser-varão os direitos garantidos constitucionalmente (eis que a lei a apli-car não poderia negálos), bem assim os direitos que, embora não previstos na Lei Maior, hajam sido conferidos por lei. Com isto, osdireitos de cada indivíduo sejam os de índole constitucional, se-

 jam os com base legal correspondem a limites em concreto do atoadministrativo e do ato jurisdicional que o Estado edite em relaçãoa esse indivíduo.

Em segundo lugar, há uma série de direitos, assegurados inclu-sive pela Constituição, que geram a faculdade de o indivíduo co-brar prestação positiva do Estado (não uma mera prestação negati

e q u i l í b r i o   e n t r e   a u t o r i d a d e E LI BE RD AD E I 17

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FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

va, como nos direitos mencionados acima). Significam a possibili-dade de o particular “conduzir” o poder político em certa direção.É exemplo o direito de o indivíduo exigir a prestação de serviços

 públicos essenciais, como o de educação, de saúde, de transportecoletivo de passageiros etc.

A terceira razão pela qual os direitos subjetivos implicam limi-tes que todo indivíduo, singularmente considerado, opõe ao exercí-cio do poder estatal está em que eles são protegidos através de ações

 judiciais (e o direito de ação, isto é, de ir a juízo contra o Estado, éum específico e autônomo direito dos indivíduos, nos termos do art.52, inc. XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciá-rio lesão ou ameaça a direito”. Portanto, o controle jurisdicional,

 provocado pelo indivíduo em defesa de seu direito, limita concretamente o exercício do poder político.

12. Assim, e em síntese, a relação jurídica de direito públicoentre o Estado e os particulares é uma relação equilibrada por dois

fatores:a) De um lado, o fator  autoridade, que confere prerrogativasao Estado, entre as quais a de impor, unilateralmente, obrigaçõesaos particulares. Com isto, realizase a supremacia do interesse pú-

 blico sobre o privado.

b) De outro lado, o fator limites da autoridade, a saber: a com- petência (definida pela finalidade a ser atingida pelo ato estatal) e orespeito dos direitos dos particulares. Assim, garantese a efetivarealização do interesse público (visto a competência não poder ser 

utilizada senão para o fim previsto pelo Direito), ao mesmo tempoem que se preserva a liberdade.

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2- Parte 

O Direito Público

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Capítulo IX  

 Direito e Ciência Jurídica

1. Introdução. 2. Norm as jur ídic as. Os mun dos do se r e do dever-ser. 

 3. S is te m a ju ríd ic o. 4. D ir eito e ciência ju r íd ic a . 5. A a tiv id ade do pm -  

 fi ssio nal do direi to . 6. D iv isão da ciência ju r íd ic a em ramos.

1. Introdução

 Na biblioteca de casa, cercado de livros, espalhados sobre amesa e pelo chão, o autor tenta iniciar mais um capítulo de seu Fundamentos de Direito Público. O trabalho não vai adiante; o compu-tador mais apaga que insere.

Desanimado, suspira:

Por que, em qualquer texto científico, as noções essenciais

são sempre as mais difíceis de expor? Como explicar as idéias dedireito e de ciência jurídica de modo ao mesmo tempo adequado,simples e compreensível? Será que este trecho está bem?

 Na dúvida, sai para a sala, em busca de alguém que leia o jáescrito. Mas as Ouatro Estações, de Vivaldi, rodando no tocadiscos, são um concorrente invencível. Ninguém quer saber de trocálas por duas páginas de norma jurídica, mundo do ser e do deverser...

Voltando ao escritório, sentese terrivelmente só. Abre um li-vro ao acaso e parece que escuta a voz de Karl Engisch:

“Quem se proponha familiarizar o principiante ou o leigocom a ciência do Direito (jurisprudência) e o pensamento jurídico,ao tentálo vêse a braços com uma série de dificuldades e dúvidas

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122 FUNDAM ENTOS DE DIREITO PÚBLICO

ros com um interesse, uma compreensão e uma confiança muitomaiores do que precisamente a sua ciência. Especialmente as ciên-cias (teorias) da linguagem, da literatura, da arte, da música e dareligião fascinam os leigos devotados a assuntos de cultura numamedida muito maior do que a ciência do Direito, se bem que esta,não só quanto à matéria mas ainda metodologicamente, tenha comaquelas estreitos laços de parentesco”.1

É. A ciência do direito não tem grande prestígio como leitura

de cabeceira...Indiferente à interrupção, Engisch continua:

“Sem grandes hesitações se depositará um livro de arqueolo-gia ou de história da literatura sobre a mesa dos presentes, mas acusto se fará o mesmo com um livro jurídico, ainda que este nãoexija da parte do leitor conhecimentos especiais. As usuais introdu-ções à ciência jurídica, com raras exceções, apenas parecem ter al-gum interesse para o jurista principiante, mas já não para o leigo”.2

Convenhamos: não fazemos grande força para interessar osleitores. No fundo, no fundo, escrevemos para nós mesmos.

“As razões deste desinteresse do leigo pelo Direito e pelaciência jurídica são fáceis de descobrir. Todavia, tratase de algomuito estranho. Com efeito, a custo qualquer outro domínio cultu-ral importará mais ao homem do que o Direito. Há na verdade pes-soas que podem viver e vivem sem uma ligação íntima com a poe-sia, com a arte, com a música. Há, também, na expressão de MaxWeber, pessoas ‘religiosamente amusicais’. Mas não há ninguém

que não viva sob o Direito e que não seja por ele constantementeafetado e dirigido. O homem nasce e cresce no meio da comunida-de e à parte casos anormais jamais se separa dela. Ora, o Direitoé um elemento essencial da comunidade. Logo, inevitavelmente,afetanos e diznos respeito. (...) Por que, pois, tão pouca aberturade espírito para o Direito e a jurisprudência?”.3

Acho que Kelsen poderia explicar a razão da falta de simpa-tia para com o direito e a ciência que o estuda. O coração do ho-mem não é capaz de bater mais forte pela ordem jurídica: apenas a

1.  In troduç ão ao pensa m ento juríd ic o , p. 5.

2. Idem, ibidem.3. Idem, pp. 5-6.

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DIREITO E CIÊNCIA JURÍDICA 123

idéia de justiç a o comove. E os tratados de ciência jurídica não cui-dam do que é justo...

Chamado, Kelsen se anima a participar:

De fato. “A afirmação: ‘Certa ordem social tem o caráter deDireito, é uma ordem jurídica’ não implica o julgamento moral dequalificar essa ordem como boa ou justa. Existem ordens jurídicasque, a partir de certo ponto de vista, são injustas. Direito e justiçasão dois conceitos diferentes”.4

Pois é. O cientista do direito vive seu dilema. Se compõe umaobra para expor suas idéias sobre o justo ou injusto, o bom e o mau.conquista simpatias mas frauda seus leitores, porque não faz ciên-cia do direito, mas filosofia da justiça. Se apenas descreve o funcio-namento dos mecanismos de que se compõe o sistema jurídico, ouse expõe certo sistema jurídico positivo (o brasileiro, o francês...),cumpre adequadamente sua função, mas seu trabalho perde charmemundano.

2. Normas jurídicas. Os mundos do ser e do dever-ser 

O diálogo reanima o autor. Os pensamentos se multiplicam; asdúvidas também. Se direito não é justiça, o que será?

Imediatamente, salta da estante a  Hipótese de Incidência Tributária, e Geraldo Ataliba, após alisar o bigode, esclarece:

“Essencialmente, em última análise, reduzido o objeto à suamais simples estrutura, o direito não é senão um conjunto de nor-mas (conjunto este a que se convencionou designar sistema jurídi-co, ordenação jurídica)”.5

O direito é um conjunto de normas... Então, para compreen-dêlo, necessário entender o que é uma norma...

Sentado na cadeira em frente, rabiscando figuras humanas emuma folha de papel, Celso Antônio Bandeira de Mello explica:

“As normas, no seu conjunto, pressupõem três elementos: hi- pótese, mandamento e sanção. A hipótese, que é a previsão abstratade uma situação ou de um comportamento; o mandamento, que é o

4. Teoria Geral do Direito e cio Estado, p. 13.

5.  H ip óte se de incidê ncia tr ibutária, p. 25.

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124 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

comando, o ditame de caráter obrigatório; e a sanção, que é a con-

seqüência jurídica desfavorável, imputada a alguém, pela violaçãodo fundamento. Esta é a estrutura das normas jurídicas”.6

Realmente, é possível visualizar, por exemplo, o art. 121 doCódigo Penal, com base neste esquema. A norma diz: “Matar al-guém. Pena: reclusão de 6 a 20 anos”. A hipótese é: “havendo al-guém (um ser humano)”. O mandamento: “é proibido matálo”. Asanção (isto é, a pena), aplicável a quem não obedece o mandamen-to, é: “reclusão de 6 a 20 anos”.

Mas tudo isso, embora correto, ainda parece pouco para com- preender as normas jurídicas. Entusiasmandose, Celso Antôniolembra da distinção entre o mundo do ser (da natureza) e o do de-verser (das normas):

“O mundo do direito difere profundamente do mundo natu-ral. O mundo normativo tem a sua existência própria, diversa domundo natural, desligada dele, com um modo de ser e de existir,

 próprio, diverso do mundo natural. Todos nós conhecemos uma de-finição de lei, segundo a qual as leis seriam as relações necessárias,que derivam da natureza das coisas. Esta definição pode servir para

qualquer coisa, menos para definição de uma lei, em sentido jurídi-co, menos para definir uma norma de direito, porque as relações dedireito não derivam da natureza das coisas, mas da vontade dos ho-mens, que as constroem com liberdade. Há uma independência pro-funda entre o mundo natural e o mundo normativo e a apreensão dosignificado dessa diferença é da mais fundamental im portância paraa interpretação, para a hermenêutica do direito”.7

E possível explicar melhor?

Celso Antônio, após tamborilar o cigarro sobre a mesa, sacaum elegante isqueiro e, enquanto o acende, responde:

“No mundo natural, se soltarmos um cigarro, ele inelutavelmente cairá, em razão da lei da gravidade, que enuncia relações quedecorrem, efetivamente, da natureza das coisas. (...) No mundo dodireito as coisas não se processam assim. Os homens constroem.livremente, certas situações hipotéticas e enlaçam a esse anteceden-

6. “Teoria Geral do Direito”, p. 4.

7. Idem, p. 7.

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D IR EITO E C IÊN C IA JURÍD ICA 125

te um certo conseqüente. Figuram uma relação entre um anteceden-te, que é livremente construído pelos homens, e um conseqüente,também livremente instituído pelos homens”.8

Tem razão. É a vontade do legislador que atribui, ao compor-tamento “matar alguém”, a conseqüência: “reclusão de 6 a 20 anos”.

“Por isso os sistemas jurídicos podem variar. Um dado siste-ma pode impor que é obrigatório o voto. O enlaçamento entre essas

duas relações é feito pela vontade do legislador. Ele relaciona ante-cedentes com conseqüentes. No mundo natural vigora a lei da cau-salidade, a relação de causa e efeito: se A for, B será. No mundo dodireito vigora a relação de imputação: se A for, B deverá ser”.9

Essas idéias são suas, não Kelsen?

Pois é. “A regra de Direito e a lei da natureza não diferemtanto pelos elementos que relacionam quanto pela maneira em queé feita a conexão. A lei da natureza estabelece que, se  A é,  B é (ou

será). A regra de Direito diz: Se A é,  B deve ser. A regra de Direitoé uma norma (no sentido descritivo do termo). O significado da co-nexão estabelecida pela lei da natureza entre dois elementos é o ‘é’,ao passo que o significado da conexão estabelecida entre dois ele-mentos pela regra de Direito é o ‘deve ser'. O princípio segundo oqual a ciência natural descreve seus objetos é o da causalidade; o princípio segundo o qual a ciência jurídica descreve seu objeto é oda nomiatividade”.10

Maria Helena Diniz, andando apressada pelo corredor, escla-rece, na passagem:

“Para formular sua teoria, Hans Kelsen introduziu em suaobra o dualismo kantiano do ‘ser’ e 'dever ser', que constituem duascategorias originárias ou ‘a priori’ do conhecimento, isto é, que nãoderivam de nenhuma outra. São duas formas mentais, primárias e básicas, correspondentes a dois domínios incomunicáveis: o dos fa-tos ou da natureza física, espiritual e social*e o das normas. Com

 base nessa distinção fundamental entre ‘ser’ e ‘deverser’, conside-rou o ‘deverser’ (sollen) como expressão da nomiatividade do Di-reito que deve ser investigado pela Ciência Jurídica. A Jurisprudên-

8. Idem, ibidem.

9. Idem, ibidem.

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126 FUNDAMENT OS DE DIREITO PÚBLICO

cia passa, então, a ser uma ciência normativa, pois seu objeto con-siste em normas que nào enunciam o que sucedeu, sucede ou suce-derá, mas tãosomente o que se deve fazer. Em contraposição, o"ser" (sein) diz respeito à natureza, que é regida pela lei da causali-dade. que enuncia que os objetos da natureza se comportam de umdeterminado modo. A substância da concepção de Kelsen está nes-sa distinção e contraposição lógicotranscendental entre ‘ser’ e ‘de-ver ser', isto é, entre o mundo físico, submetido às leis da causali-dade, e o mundo das normas, regido pela imputabilidade”.11

A explicação propicia ao autor uma conclusão importante: Essa diferenciação básica nos permite compreender por que

a norma jurídica, mesmo desrespeitada, continua existindo. A nor-ma nào descreve a realidade, nào diz como ela é, mas apenas comodeve ser.

3. Sistema jurídico

A conversa, de repente, desaba. Novamente sozinho, o autor se sente perdido. Tenta reanimar o diálogo.

Pois bem. Só que a religião e a moral também são conjuntosde normas (não matarás... não cobiçarás a mulher do próximo...).Como distinguilas do Direito?

É Kelsen quem responde:

“Como ordem coativa, o Direito distinguese de outras or-dens sociais. O momento coação, isto é, a circunstância de que oato estatuído pela ordem jurídica como conseqüência de uma situa-

ção de fato considerada socialmente prejudicial deve ser executadomesmo contra a vontade da pessoa atingida e em caso de resistên-cia mediante o emprego da força física, é o critério decisivo”.12

Quer dizer: estaremos diante de uma norma jurídica quandoseu descumprimento pelo destinatário ensejar a aplicação coativade uma sanção. O direito, portanto, é o conjunto de normas cujasanção se aplica coativamente, com o uso da lorça física, se ne-cessário.

11 . A C iê n c ia J u r íd ic a , pp. 27-28.

12. T e o ria p u r a d o D i r e i t o , pp. 61-62.

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DIREITO E CIÊNCIA JURÍDICA 127

O que você diz é certo, mas nào muito esclarecedor, inter-vém Bobbio.

Como?

“O que comumente chamamos de Direito é mais uma característica de certos ordenamentos normativos do que de certas normas. Se aceitarmos essa tese, o problema da definição do Direito setorna um problema de definição de um ordenamento normativo e,conseqüentemente, diferenciação entre este tipo de ordenamento

normativo e um outro, não o de definição de um tipo de normas. Nesse caso, para definir a norma jurídica bastará dizer que a norma jurídica é aquela que pertence a um ordenamento jurídico, transfe-rindo manifestamente o problema da determinação do significadodo ju ríd ico da norma para o ordenamento. Através dessa transfe-rência demonstrase que a dificuldade de encontrar resposta à per-gunta: “O que se entende por norma jurídica?” se resolve ampliandose o campo de pesquisa, isto é, colocando uma nova questão:

“O que se entende por ordenamento jurídico?”. Se,' como parece,só a esta segunda pergunta se consegue dar uma resposta sensata,isso quer dizer que o problema da definição do Direito encontra sualocalização apropriada na teoria do ordenamento jurídico e não nateoria da norma. (...) Só em uma teoria do ordenamento esse era o

 ponto a que importava chegar o fenômeno jurídico encontra suaadequada explicação”.13

Ataliba concorda:

Por isso mesmo eu afirmo que “o direito (em sentido objeti-vo) é um conjunto de normas que  por isso que integrando a ordem juríd ica se chamam normas jurídicas” .14

O tema parece suscitar a unanimidade. Kelsen também está deacordo:

“O Direito é uma ordem da conduta humana. Uma ‘ordem ’ éum sistema de regras. O Direito não é, como às vezes se diz, umaregra. É um conjunto de regras que possui o tipo de unidade que

entendemos por sistema. E impossível conhecermos a natureza doDireito se restringirmos nossa atenção a uma regra isolada. As rela-

13. Teoria do Ordenamento Jurídico, p. 28.

14.  Hipótese de incidência tr ibutária, p. 25 (grifo nosso).

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128 F UNDA M ENTO S DE DIREITO P ÚBLICO

ções que concatenam as regras específicas de uma ordem jurídica

também são essenciais à natureza do Direito. Apenas com basenuma compreensão clara das relações que constituem a ordem jurí-dica é que a natureza do Direito pode ser plenamente entendida”.1''

Kelsen perde o fôlego. Celso Antônio vem em seu socorro:

“A segunda característica” (do direito), “e Kelsen insiste so- bre isso, é que o direito não se compreende examinando a estruturade uma norma, ou considerando uma norma em si, mas só se com-

 preende quando consideradas as normas no seu conjunto. Por isso,diz esse mestre que o direito ‘não é uma norma, mas um sistema de

normas'. Com efeito. As sanções não constam, necessariamente,associadas ou ligadas ao coipo da norma; podem estar espalhadasao longo de um sistema. Por exemplo, diz o Código Civil: ‘Não se podem casar: as pessoas casadas’. A conseqüência jurídica desfa-vorável, a sanção a essa norma, não consta do mesmo texto, que dizque nào podem se casar as pessoas casadas. Mas nós encontramosque” (este casamento) “é um ato nulo. Em outro dispositivo estaráa sanção, que é a nãoprodução dos efeitos jurídicos próprios docasamento; e isto é que é nulidade. (...) Mas, além disso, vamos en-

contrar, no Código Penal, que é crime, sendo casada uma pessoa,casarse novamente. Verificamos que existem duas sanções espa-lhadas no sistema. Este exemplo singelíssimo já serve para demons-trar que ‘não se pode conhecer, de modo algum, o direito, levandoem conta” (apenas) “uma norma, se não um sistema’. Esse eventochama a atenção para o fato de que ninguém será nem sequer advo-gado, quanto mais especialista em qualquer coisa, se não tiver ab-soluta e clara consciência de que as normas nunca podem ser examinadas isoladamente. Não só tendo em vista este aspecto, que en-

fatizei, mas porque a compreensão dela se faz inserida num contex-to. Por isso Kelsen assevera que o direito é um sistema de nor-mas”.16

Já que estamos todos de acordo quanto ao fato de o direitoser um sistema de normas, que tal se alguém esclarecesse como umanorma se integra a esse sistema?

Sem se identificar, uma voz grita em meio à pilha de livros:

15. Teoria Geral do Direito e do Estado , p. 11.

16. “Teoria Geral do Direito”, p. 6.

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DIREITO E CIÊNCIA JURÍDICA 129

A chave é a validade!O autor tenta localizar a origem do som. Nada encontra. Mas a

idéia o faz pensar.

Validade... Será esta a idéia que permite entender a relaçãoexistente entre as normas jurídicas?

Mais uma vez, observado atentamente por todos, é Kelsenquem explica:

“O Direito regula a sua própria criação, na medida em queuma norma jurídica determina o modo em que outra norma é criadae também, até certo ponto, o conteúdo dessa norma. Como uma nor-ma jurídica é válida por ser criada de um modo determinado por outra norma jurídica, esta é o fundamento de validade daquela. Arelação entre a norma que regula a criação de outra norma e essaoutra norma pode ser apresentada como uma relação de suprainfraordenação, que é uma figura espacial de linguagem. A norma quedetermina a criação de outra norma é a norma superior, e a norma

criada segundo esta determinação é a inferior. A ordem jurídica, es- pecialmente a ordem jurídica cuja personificação é o Estado é, por-tanto, nào um sistema de normas coordenadas entre'si, que seacham, por assim dizer, lado a lado, no mesmo nível, mas uma hie-rarquia de diferentes níveis de normas”.r 

4. Direito e ciência juríd ica

Reconfortado, o autor prossegue em suas meditações.

E o Direito uma ciência?

Sentado na cadeira em frente, um homem de barba ri gostosa-mente, os dedos presos ao suspensório: Eros Grau. Acende o ca-chimbo e responde:

“A indagação assim formulada ‘é o Direito uma ciência?’ éanáloga à que nos seguintes termos se introduzisse: ‘as relações en-

tre a terra e o homem são uma ciência?’ Todos sabemos que as rela-ções entre a terra e o homem não são uma ciência, mas sim que háuma ciência a geografia humana que estuda e descreve as rela-ções entre a terra e o homem. O mesmo ocorre em relação ao Direi-

17. T e o ri a G e r a I d o D i r e it o e d o E s ta d o , p. 129.

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130 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

to. O Direito nào é unia ciência. O Direito é estudado e descrito; é,assim, tomado como objeto de uma ciência, a chamada Ciência doDireito. Essa é a primeira verificação que cumpre sublinhar: o Di-reito não é uma ciência, porém o objeto de uma ciência".18

Podese dizer que a ciência do direito é normativa?

“O Direito é normativo. O Direito não descreve; o Direito prescreve. A ciência que o estuda e descreve não é, no entanto, nor-mativa. É, como toda ciência, descritiva. Impõese distinguirmos,

assim, o Direito e a Ciência do Direito. Esta última descreve indi-cando como, porque e quando aquele. Esta distinção é de impor-tância fundamental e, inúmeras vezes, deixam de percebêla os es-tudiosos do Direito. Por isso se perdem, também inúmeras vezes,esses estudiosos, em raciocínios contraditórios e equivocados”.14

O direito, como discutimos agora há pouco, é um conjuntode normas. A ciência jurídica é composta de um conjunto de propo-sições. Qual a diferença?

“Proposições jurídicas esclarece Kelsen são juízos hipo-

téticos que enunciam ou traduzem que, de conform idade com o sen-tido de uma ordem juríd ica nacional ou internacional dada aoconhecimento jurídico, sob certas condições ou pressupostos fixa-dos por este ordenamento, devem intervir certas conseqüências pelomesmo ordenamento determinadas. As normas jurídicas, por seulado, não são juízos, isto é, enunciados sobre um objeto dado aoconhecimento. Elas são antes, de acordo com o seu sentido, manda-mentos, e como tais, comandos, imperativos. Mas não são apenascomandos, pois também são permissões e atribuições de poder ou

competência. Em todo o caso, não são como, por vezes, identifi-cando Direito com ciência jurídica, se afirma instruções (ensina-mentos). O Direito prescreve, permite, confere poder ou competên-cia não ensina nada”.20

Por isso, uma diferença fundamental entre a proposição e anorma está na circunstância de aquela ser produzida pelo cientista eesta por um órgão jurídico, não?

18.  D ir e it o , c o n c e i to s e n o rm a s j u r íd ic a s ,   p. 20.

19. Idem, pp. 20-21.20. T e o ria p u r a d o D i r e i to , p. 111.

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DIREITO E CIÊNCIA JURÍDICA 131

Exato. “A ciência jurídica tem por missão conhecer de fora, por assim dizer o Direito e descrevêlo com base no seu conheci-mento. Os órgãos jurídicos têm como autoridade jurídica antesde tudo por missão produzir o Direito para que ele possa então ser conhecido e descrito pela ciência jurídica. É certo que também osórgãos aplicadores do Direito têm de conhecer de dentro, por as-sim dizer primeiramente o Direito a aplicar. O legislador que, na

sua atividade própria, aplica a Constituição, deve conhecêla; eigualmente o juiz, que aplica as leis, deve conhecêlas. O conheci-mento, porém, não é o essencial: é apenas o estádio preparatório dasua função...21

Quer dizer, a proposição é ato de conhecimento, enquanto anorma jurídica é ato de vontade. Daí ser correto afirmar que a pro-

 posição pode ser verdadeira ou falsa quer descreva bem ou malseu objeto de estudo , ao passo que a norma jurídica nào é verda-

deira nem falsa, é válida ou inválida...

Já um pouco impaciente a esta altura, Kelsen conclui:

“A ciência jurídica, porém, apenas pode descrever o Direito;ela não pode, como o Direito produzido pela autoridade jurídica(através de normas gerais ou individuais),prescrever seja o que for.

 Nenhum jurista pode negar a distinção essencial que existe entreurna lei publicada no jornal oficial e um comentário jurídico a essa

lei, entre o código penal e um tratado de Direito penal. A distinçãorevelase no lato de as proposições normativas formuladas pela ciên-cia jurídica, que descrevem o Direito e que não atribuem a nin-guém quaisquer deveres ou direitos, poderem ser verídicas ou inverídicas, ao passo que as normas de deverser, estabelecidas pelaautoridade jurídica e que atribuem direitos e deveres aos sujei-tos jurídicos não são verídicas ou inverídicas mas válidas ou in-válidas...”22

Fazse silêncio pela sala. enquanto o autor tenta ordenar, numquadro, as diferenças entre direito e ciência do direito.

21. Idem, p. 112.

22 Id 113 114

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FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

 Direito

Composto por normas

É prescritivo

Produzido por um órgão jurídico (Legislativo,Executivo. Judiciário)

Validade/invalidade

Ciência jurídica

Composta por proposições

É descritiva

Produzida por cientistas

Verdade/falsidade

Interessante. Mas tudo isso deixa uma curiosidade. Os cientistasdo Direito trabalham na descrição do direito positivo. Portanto, todoseles têm o mesmo objeto de estudo. Por que. no entanto, analisando anorma, os juristas divergem entre si quanto a seu significado?

E Paulo de Barros Carvalho, os óculos de leitura presos à pon-ta do nariz, quem surge para esclarecer:

“A norma jurídica é a significação que colhemos da leitura dostextos do direito positivo. Tratase de algo que se produz em nossamente, como produto da percepção do mundo exterior, captado pelossentidos. Vejo os simbolos lingüísticos marcados no papel. Este atode apreensão sensorial propicia outro, no qual associo idéias ou no-

ções para formar juízo, que se apresenta, finalmente, como proposi-ção. (...) A norma jurídica é exatamente o juízo (ou pensamento) quea leitura do texto provoca em nosso espírito. Basta isso para nos ad-vertir que um único texto pode originar significações diferentes, con-soante as diversas noções que o sujeito cognoscente tenha dos ter-mos empregados pelo legislador. Ao enunciar os juízos, expedindoas respectivas proposições, ficarão registradas as discrepâncias de en-tendimento dos sujeitos, a propósito dos termos utilizados”.23

5. A atividade do profissio na l do direito

O autor caminha em suas reflexões. Seus olhos cruzam os deLourival Vilanova:

Se o direito integra o mundo do deverser (das normas) e nãoo mundo do ser (da natureza), e se existe uma distinção radical en-tre estes mundos, que atividade exerce o profissional jurídico?

23. C u r s o d c D i r e it o T r i b u t á r io . p. 6.

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DIREITO E CIÊNCIA JURÍDICA 133

“O jurisconsulto, o jurista cientista, o advogado militante, oórgão administrativo, o órgão jurisdicional, o procurador geral doEstado, têm um fim específico: verificar quais as normas em vigor que incidem sobre tal ou qual categoria de fatos. Com ajuda da ex- periência e da ciência jurídica (em sentido estrito) não procuram ascausas históricas, 011 antropológicas, ou sociológicas, ou racionais,que intervém na criação de regras de direito. Sem tais fatores reaise ideais não surgiriam, nem se modificariam, nem se desfariam, taisregras. Mas o propósito jurídicodogmático é verificar se a normaexiste. E existir a norma significa, se é válida, se tem vigência por ter sido posta por processo previsto no ordenamento".24

Quer dizer que a realidade que interessa ao jurista e deveocupar suas atenções nào é a justiça, a economia, a natureza etc.,mas o direito?

Até então quieto, os olhos observadores, anotando tudo que

ouvia, Agustín Gordillo se propõe a participar: “O conhecimento da realidade, base indispensável de toda

elaboração científica, deve, pois, iniciar pelo conhecimento da realidade normativa. E certo que ela pode às vezes resultar frustrante, por sua constante mutação, mas nem por isso deve cair 0 jurista 11atentação de elaborar seus ‘princípios’ à margem 011 com desconhe-cimento da lei positiva vigente. Esta atitude implicará sempre umaamputação da realidade, e a construção de teorias que nào têm con-

creto fundamento normativo; por sua vez, a constante modificaçãodo Direito vigente obriga a uma permanente análise das constru-ções e princípios elaborados ou correntes, para controlar se eles ain-da são válidos e vigentes à luz das novas normas, ou se, pelo con-trário, deve tomar conhecimento de uma nova realidade”.23

Celso Antônio finaliza:

“A maior parte dos erros de compreensão do sistema jurídicoadvem do fato de que todos nós, por termos recebido ao longo dos

nossos cursos jurídicos uma formação muito ligada ao substancial,à idéia de bem comum, de satisfação de objetivos de interesse pú- blico, de intenções políticas do legislador, pretendemos buscar nosistema jurídico aquilo que não é ele que nos oferece. Para conhe-

24.  As estru turas lógicas e o Sistema do Direito Posit ivo, p. 23.

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134 FU N D A M E N TO S DE DIREITO PÚBLICO

cermos o direito, enquanto juristas, temos que nos despir das nos-sas convicções próprias e pessoais a respeito de vários assuntos. Sóassim apreenderemos a lógica específica dos ramos do direito”.26

6. Divisão da ciência jur ídica em ramos

A referência aos “ramos do Direito” suscita no autor a necessi-dade de esclarecer seu significado.

Falase na existência de “ramos do direito” (direito público,

direito privado, direito penal, administrativo, tributário...). Mas o Di-reito é uno e insuscetível de divisão. Aliás, sobre isso todos concor-damos ainda agora, ao descrevermos o direito como um sistema...

“Com efeito intervém Paulo de Barros Carvalho a orde-nação jurídica é una e indecomponível. Seus elementos as unida-des normativas se acham irremediavelmente entrelaçados pelosvínculos de hierarquia e pelas relações de coordenação, de tal modoque tentar conhecer regras jurídicas isoladas, como se prescindis-sem da totalidade do conjunto, seria ignorálo, enquanto sistema de

 proposições prescritivas” .27 Então estamos de acordo. O direito não se divide. Não exis-

tem. no próprio direito positivo, um direito público e um privado,um direito civil e um administrativo. Os tais “ramos do direito” nadamais são do que uma criação da ciência jurídica, isto é, um cortemetodológico através do qual os cientistas acreditam poder visuali-zar de modo mais adequado o seu objeto de estudo. Mas, Professor Celso Antônio, como fazem os juristas para “criar” esses ramos doDireito?

“Como o direito resumese a ‘imputar certas conseqüênciasa determinados antecedentes’, o trabalho do jurista consiste em co-nhecer a disciplina aplicável às diversas situações. Ora, o procedi-mento lógico requerido para organizar tal conhecimento e tornálo

 produtivo, eficiente, supõe a identificação das situações aparenta-das entre si quanto ao regime a que se submetem. Cada bloco ougrupo de situações parifícadas pela unidade de tratamento legal re-cebe para fins de organização do pensamento um nome, que é a

26. “Teoria Geral do Direito”, p. 9.

27. Curso cie Direito Tributário, p. 10.

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DIREITO E CIÊNCIA JURÍDICA 135

rotulação de um conceito; vale dizer: o simples enunciado da pala-vra evoca no espírito uma noção complexa, formada pelos diversoselementos agregados em uma unidade, que deram margem ao con-ceito jurídico. Este, portanto, nada mais é que a sistematização, aorganização, a classificação portanto, mediante a qual foram agru- pados mentalmente, em um todo unitário, determinados aconteci-mentos qualificados pelo Direito”.28

Em outros termos: quando os juristas falam em “direito pú- blico”, estão usando uma palavra sob a qual encartam uma série denormas que, ao ver deles, têm, todas elas. alguma característica au-sente em outras normas (que, por isso mesmo, são enfeixadas emgrupo diverso, chamado de “direito privado”). Podemos dizer, en-tão, que os ramos “direito público” e “direito privado” são resulta-do de uma classificação, procedida pela ciência do direito, da tota-lidade das normas jurídicas?

Exatamente intervém Gordillo. A expressão “direito públi-co” é uma palavra de classe. Hospers pode explicálo melhor. Fala,Hospers!

“Quando empregamos palavras de classe, agrupamos muitascoisas debaixo de uma mesma denominação (colocamos o mesmorótulo impresso em muitas garrafas) sobre a base das característicasque essas coisas têm em comum. Ao usar a mesma palavra para nosreferirmos a muitas coisas, tratamolas (ao mesmo tempo) como se

fossem todas iguais e ignoramos suas diferenças. Neste fato jazemas vantagens e desvantagens das palavras de classe”.29

Portanto, as normas de direito público, apesar de reunidasnum mesmo grupo, têm, entre si, muitas diferenças.

“Possivelmente nào há duas coisas no Universo que sejamexatamente iguais em todos os aspectos. Por conseguinte, por maissemelhantes que sejam duas coisas, podemos usar as característicasem que diferem como base para colocálas em classes distintas”;“podemos eleger um critério para a integração a uma classe tão de-talhado e específico que em todo o universo não haja mais que ummembro de cada classe. Na prática não o fazemos porque a lingua-gem seria tão incômoda como seria se todas as palavras fossem no-

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136 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

mes próprios. O que fazemos é usar palavras de classe amplas (...)e a seguir, se for necessário, estabelecemos diferenças dentro daclasse como base para ulteriores distinções (...) dividindo a classe

 principal em tantas subclasses como consideremos conveniente” .“De igual modo, provavelmente, não haja duas coisas no Universotão diferentes entre si que não tenham algumas características co-muns, de maneira que constituem uma base para colocálas dentrode uma mesma classe”.30

É exatamente o que fazem os estudiosos do direito. Dividemo direito positivo em dois grandes grupos, que designam pelas ex-

 pressões “direito público” e “direito privado” . A seguir, dividemcada um desses ramos em subgrupos. O “direito público”, por exemplo, é subdividido em direito constitucional, administrativo,tributário, penal, processual, e assim por diante. É que as normasde direito público, conquanto tenham características comuns, têm,entre si, várias diferenças, que justificam sua catalogação emsubgrupos.

Após tais afirmações, o autor detém o diálogo, um pouco atur-dido com o que vem de constatar: as categorias a que acostumou

seu pensamento (direito público x direito privado, direito penal xdireito civil etc.), por resultarem de um trabalho de classificaçãocientífica, poderiam nem existir. Isto é: o Direito positivo poderia,se assim o preferissem os juristas, ser dividido em três grandes ra-mos, ou em quatro, ou cinco, que nada teriam a ver com os ramosque hoje conhecemos.

Mas seria correta uma classificação das normas jurídicas emtrês grandes conjuntos, os grupos A, B e C, por exemplo?

Hospers retoma a conversa:

“As características comuns que adotamos como critério parauso de uma palavra de classe são uma questão de conveniência.

 Nossas classificações dependem de nossos interesses e nossa ne-cessidade de reconhecer tanto as semelhanças como as diferençasentre as coisas. Muitas classificações distintas podem ser igualmen-te válidas”. “Há tantas classes possíveis no mundo como caracterís-ticas comuns ou combinações destas que podem ser tomadas como

 base de uma classificação”. “O procedimento que adotam os em

30. Idem, ibidem.

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DI REI TO E CI ÊNCI A JURÍ DI CA 137

cada caso particular depende em grande medida do que é que con-sideramos mais importante, as semelhanças ou as diferenças”. “Nàohá uma maneira correta ou incorreta de classificar as coisas, do mes-mo modo que não há uma maneira correta ou incorreta de aplicar nomes às coisas” .31

Que coisa perturbadora! Dividir o direito em normas de “di-reito público” e de “direito privado” é semelhante a classificar as

cadeiras de uma sala em dois conjuntos, o das altas e o das baixas.Do mesmo modo que nada impede dividir as mesmas cadeiras atra-vés de outra classificação (cadeiras marrons, cadeiras pretas e ca-deiras azuis, por exemplo), nada obsta a que se divida o direito demodo diverso daquele que conhecemos. Tudo depende do critério adotado (no caso das cadeiras, o critério do tamanho ou o da cor).

Esse pensamento causa ao autor certo desconforto, certa pre-guiça. É que, se as categorias “direito público” e “direito privado”

resultam de uma classificação, e se ela é feita com base em certocritério, ninguém pode conhecer o direito público se não souber qual o critério utilizado pela ciência jurídica, ao fazer essa classifi-cação. Em suma, é preciso prosseguir na pesquisa, para descobrir tal critério.

Mas as Quatro Estações, de Vivaldi, que insistem em soar aolonge, são de fato um concorrente insuperável. Nào há seriedadeque possa resistirlhes. A descoberta do critério fica para depois.

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Capítulo X 

 A Dicotomia Direito Público x Direito Privado

1. A dicotomia público x privado. 2. A dicotomia público x privado no  

 d irei to . 3. D is tinçã o en tre direi to públi co e direi to pr iv ad o co m base no   reg im e jurídic o.

1. A dicotomia público x privado

Veremos hoje o sentido e a utilidade das idéias “direito pú- blico" e “direito privado” , que permeiam todo conhecimento jurídi-co. Partimos, é óbvio, da constatação de que tais figuras pertencemantes ao mundo das idéias que das normas. O próprio ordenamento

 pode existir indiferente a elas embora, atualmente, as considerecom grande ênfase, fincadas que estão, em definitivo, em nossomundo cultural.

Não vejo por que tanto suspense. Todo mundo sabe o quequerem dizer as palavras “público” e “privado”.

Deveras? O que você entende por elas?

E mais fácil expressarme por exemplos, se o professor nàose opõe.

De pleno acordo.

Pois bem. Público é o jardim, no centro da cidade; privado éo espaço da minha casa. Pública é a novidade que todos conhecem

 já; privada é a notícia cuja ciência reservamos a nós dois. Público éo mundo da política, de que todos participam ativamente ou, quan-do nào, todos sofrem, passivos, numa sociedade; privada é a esferados negócios íntimos, que conduzo por meus sentimentos e que re-

 parto apenas com meus próximos e meus escolhidos. Pública é arua; privada é a alcova.

Em suma, meu caro: você conhece e trabalha com a grande

dicotomia público x privado, fundamental à cultura humana, lon

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A D IC O T O MIA D IR E IT O P Ú B L IC O X D IR E IT O P R IV A D O 139

gamente sedimentada. Essa dicotomia uma dentre tantas com queopera nosso pensamento (bom x mau, céu x inferno, esquerda x di-reita. opressor x oprimido) produz ceita classificação da realida-de fática. Ao olharmos para o mundo à nossa volta, com freqüênciasomos levados a visualizálo sob a ótica da distinção entre o amplo,o coletivo, o plural (o público, enfim), e o limitado, o individual, oisolado (isto é: o privado).

É exato.

2. A dicotomia público x privado no direito

Mas nosso problema específico é conhecer o direito e a cul-tura jurídica. Logo, não nos podemos limitar ou conduzir apenas

 por essas noções universais. Precisamos compreender o sentido efunção da classificação que, sob o conhecido rótulo público x pri-vado. foi implantada há séculos no pensamento jurídico. Parece boa

idéia saber como ela surgiu. De fato, assim parece.

Ulpiano, em Roma, referiu pela primeira vez à distinção, aoapontar a existência de duas perspectivas possíveis para o estudodo direito: a primeira concernente ao modo de ser do Estado roma-no (normas sobre a organização política e religiosa do Estado); asegunda, relativa aos interesses privados. Apesar de os romanos co-nhecerem, portanto, a distinção entre direito público e privado, ela

só viria a adquirir grande interesse após o advento do Estado deDireito. Até então, o direito privado evoluíra muito e constantemen-te, enquanto o direito público se mantinha como categoria de poucarelevância, seja porque este último flutuou demais (pense, por exemplo, na diferença radical entre as regras que regularam o po-der político na Idade Média e no Absolutismo), seja porque encer-rava pequeno arsenal de normas (110 período absolutista, por exem-

 plo, tudo se reduzia, em última análise, à regra de que 0 poder do

Estado era ilimitado e devia ser acatado). Tudo bem. Mas, com o Estado de Direito a noção cresceu de

importância. Como a doutrina passou a diferenciar os dois grandesramos do direito?

A doutrina propôs diversos critérios; entre eles, 0 do sujeitoe o do interesse. Pelo primeiro, direito público é aquele que tem por 

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140 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

sujeito o Estado, enquanto o privado é o que rege a vida dos parti-culares. Eu nada tenho contra esse critério, que define, com razoá-vel precisão, o campo de aplicação do direito público. Mas nào bas-ta ao jurista conhecer o campo de incidência do direito público; ne-cessita sobretudo saber das características dele. Caso contrário, deque adiantaria saber que o direito público é o que rege as relaçõesenvolvendo o Estado?

E quanto ao segundo?

De acordo com esse critério o do interesse seriam públi-cas as normas que tutelam interesses públicos, e privadas as nor-mas que regulam interesses privados. Posto desse modo, há umainsuficiência séria nesse critério: ele não resolve o problema, ape-nas o transfere. Por ele, a dificuldade deixa de ser a diferença entredireito público e direito privado e se transfere para a distinção entreinteresse público e privado. Realmente, sabendo que o direito pú-

 blico regula os interesses públicos, teremos então de descobrir comoapartálos dos interesses privados! A doutrina, a partir daí, costuma

se desviar, pondose a discutir, de acordo com a visão de cada pen-sador e se esquecendo completamente das normas jurídicas, o que éinteresse público e o que é interesse privado: um dirá que interesse

 público é o que afeta toda a sociedade e nào o indivíduo isoladamen-te, outro que o interesse público afeta preponderantemente a socieda-de, embora possa interessar indiretamente o indivíduo. Perceba, noentanto, que tais propostas de discriminação nào partem de qual-quer elemento sacado do direito positivo, mas sim de noções estra-nhas a ele; por isso, não têm serventia para a ciência do direito.

v \

3. Distinção entre direito púb lico e direito privado com base no regime juríd ico

Percebo que você é bom para criticar. Mas o que você propõe'?

Sugiro que você pense um tanto sobre o trabalho do jurista,isto é. daquele que produz discursos sobre o ordenamento jurídico.Lembre que a chamada ciência jurídica não é o único estudo que se

faz das normas. A ciência da história pode tomálas como objeto desua preocupação. O que fará o historiador ao estudar as normas?Explicará como e quando surgiram, modificaramse, extinguiramse. A sociologia pode se ocupar também do mesmo objeto, para ve-

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A DICO TOM IA DIREITO PÚB LICO X DIREITO PRIVAD O 141

rificar as causas que geraram a norma e qual seu efeito, real e pal- pável, sobre a sociedade para a qual foi editada. O jurista não faznada disso. Seu trabalho é bem outro: querse dele que, lendo ceitanorma, discurse sobre as situações às quais deve aplicarse, distinguindoas daquelas às quais não deve afetar; sobre o modo comodeve incidir (isto é: sobre as conseqüências que, diante de certa si-tuação, devem ocorrer); em suma, o jurista descreve o mundo dodever-ser das normas jurídicas.

Quanto a isso, estamos de acordo. Ora, se a cultura dos juristas utiliza a dicotom ia público x privado, por que será?

Isto é fácil: porque é útil para bem descrever a regulação con-tida nas normas jurídicas. Afinal, que mais se quer dos juristas?

Ocorre, porém, que a dicotomia público x privado é. mesmodentro da cultura jurídica e, portanto, mesmo reduzida pela pers-

 pectiva estreita que ela propicia , de uso um tanto assistemático(coisa curiosa dentro da ciência que, em princípio, baseiase na

construção de sistemas!). Por isso, é inócua a busca de um único emágico critério para, dentro da ciência jurídica, desvendar o signi-ficado de “público” e “privado”.

O que você está querendo dizer?

Que a dicotomia público x privado cumpre várias funções, aná-logas mas diversas, dentro da ciência jurídica e que, portanto, não háum critério único para diferenciar, nela, o “público” do “privado”.Isso parece um tanto perturbador, mas é verdadeiro; por isso. precisa-

mos conhecer os vários usos dessa dicotomia, dentro da ciência jurí-dica. Indicolhe alguns: as categorias bem público x bem privado, relação de direito público x relação de direito privado, norma de direi-to público x norma de direito privado,  pessoa de direito público x

 pessoa de direito privado, interesse público x interesse privado, obrigação de direito público x obrigação de direito privado.

E daí?

A única maneira de construir uma distinção entre “público”e “privado” que seja útil ao operador do direito e que. portanto,

 permitalhe trabalhar com as várias categorias que referi é adotar uma visão formalista.

O que significa isso?

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142 FU N D A M E N TO S DE DIREITO PÚBLICO

Significa que, ao invés de procurarmos critérios mágicos dediferenciação que, além de não pennitirem uma distinção perfei-ta, são pouco úteis voltemos nossos olhares para as normas jurídi-cas e para o modo como elas regulam as situações de que cuidam(isto é: para o regime jurídico por elas criado). Assim, bem públi-co, relação de direito público, pessoa de direito público, interesse público e obrigação de direito público se distinguirão de seus cor-respondentes no direito privado pelo fato de se submeterem ao re-gime jurídico de direito público.

Essa é boa: você apenas transferiu o problema. E agora, o

que é regime de direito público? Pois é, de fato fiz uma transferência. Mas quero que você ob-

serve que essa transferência foi feita para dentro das normas jurídi-cas. E importante considerar e por isso a “transferência” de quevocê ine acusa não é uma mera transferência que o regime de di-reito público é um dado extraído das normas jurídicas. A crítica quefiz ainda há pouco ao critério do interesse residia no fato de a dou-trina não fornecer dados jurídicos para distinguir interesse públicode interesse privado. De minha parte, afirmo, ao falar de regime dedireito público, que ele deve ser buscado diretamente nas normas

 jurídicas. Portanto, só poderei dizer que certos bens (os públicos)são juridicamente diferentes de outros (os privados) depois de cons-tatar que as normas jurídicas dão a eles tratamentos diferenciados.

De fato, há, aí, um caminho interessante. Insisto com você que não tenho o critério mágico para apar-

tar o público do privado, no Direito. A diferença entre ambos resul-ta do regime jurídico. Assim, distinguir o público do privado signi-fica conhecer o regime de direito público e o de direito privado.

Realmente, assim é.

O regime de direito público é um complexo, um conjunto, enào um simples dado (daí minha afirmação de que não ofereço umcritério único de distinção). Para conhecermos esse complexo, pre-cisamos identificar os princípios de direito público.

E quais são eles? Calma. Você ainda nem sabe o que são “princípios” !

Desculpe. Acho que estou ansioso. O que são princípios? Esse é um tema importante. Por isso, convém meditar atenta-

mente sobre ele. Melhor ler o texto do capítulo seguinte.

Vamos a ele.

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Capí tulo X I   

Os Princípios no Direito

 I. Pri ncíp io s e ciência do direi to . 2. Os prin cíp io s ju r íd ic o s são parte do  

 or de nam en to . Im portância dos prin cíp io s no dir eit o pú blico . 4. Util i

 dade dos prin c íp io s na a pli cação do direi to . 5. Pri ncíp io s explícitos e  

implícitos.

1. Princípios e ciência do direito

1. Os princípios são as idéias centrais de um sistema, ao qualdão sentido lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreen-são de seu modo de organizarse. Tomando como exemplo de siste-ma certa guarnição militar, composta de soldados, suboficiais e ofi-ciais, com facilidade descobrimos a idéia geral que explica seu fun-cionamento: “os subordinados devem cumprir as determinações dossuperiores”. Sem captar essa idéia é totalmente impossível entender o que se passa dentro da guarnição, a maneira como funciona. Denada adianta conhecer os nomes das várias categorias de militares

envolvidos, a atividade diária de cada um deles, os veículos queusam, seu horário de trabalho etc., se não tivermos ciência do prin-cípio que organiza todos esses elementos. Assim, podemos enunciar o “princípio da hierarquia” para descrever, de modo sintético, o sis-tema “guarnição militar”.

A enunciação dos princípios de um sistema tem, portanto, uma primeira utilidade evidente: ajudar no ato de conhecimento.

O cientista, para conhecer o sistema jurídico, precisa identifi-

car quais os princípios que o ordenam. Sem isso, jamais poderá tra- balhar com o direito.

2. Pela própria circunstância de propiciar a compreensão glo- bal de um sistema, a identificação dos princípios é o meio mais efi-caz para distinguilo de outros sistemas. Se quisermos saber a dife-

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144 FUNDAMEN TOS DE DIREITO PÚBLICO

rença entre os sistemas “guarnição militar” e “Parlamento Nacio-nal”, teremos necessariamente de conhecer os princípios que regu-lam cada um deles. A guarnição militar se rege pelo princípio dahierarquia, ao passo que o Parlamento se govema pelo princípio daindependência dos parlamentares (que votam de acordo com suasconvicções pessoais, não devendo obediência às determinações dequalquer hierarca). A propósito, é o fato de se organizarem por prin-cípios opostos que permite afirmar a distinção entre os sistemas“Parlamento Nacional” e “guarnição militar”.

Quando, dentro do direito, os cientistas afirmam a existênciade dois sistemas, o direito público e o privado, necessitam mostrar as razões pelas quais separam as normas jurídicas nesses dois gru- pos. Para fazêlo, enunciam quais são os princípios de um e de ou-tro, mostrando sua oposição. Caso não pudessem fazêlo isto é, setodos os princípios fundamentais dos dois sistemas fossem seme-lhantes , nào haveria por que estudar o direito através dessa classi-ficação. que seria inútil.

Vale relembrar noções expostas no Capítulo VI11. Toda classi-

ficação em ciência é feita sob o critério da utilidade: as classifica-ções são formuladas para servirem a algum fim. Elas não existem por si, isto é, não derivam da “natureza das coisas”. Um mesmogrupo de objetos pode ser dividido de diferentes formas, através devárias classificações. Por isso, nas palavras de Carrió, “as classifi-cações não são verdadeiras nem falsas, são úteis ou inúteis: suasvantagens estào submetidas ao interesse de quem as formula e à suafecundidade para apresentar um campo de conhecimento de manei-ra mais facilmente compreensível ou mais rica em conseqüências

 práticas desejáveis (...). Sempre há múltiplas maneiras de agrupar ou classificar um campo de relações ou de fenômenos; o critério para escolher uma delas não está circunscrito senão por considera-ções de conveniência científica, didática ou prática. Decidirse por uma classificação nào é como preferir um mapa fiel a um que não oseja... é como optar pelo sistema métrico decimal face ao sistema demedição dos ingleses” {Notas sobre Derechoy Lenguctje, pp. 7273).

A classificação do Direito em dois grandes ramos, o público eo privado, não passa, por conseguinte, de uma proposta de estudodentre tantas possíveis das normas jurídicas. Para ser útil, deveestar montada a partir de critérios que permitam demonstrar dife-

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o s  p r i n c í p i o s   n o   d i r e i t o 145

renças juridicamente fundamentais entre as normas alojadas emcada ramo.

3. Nessa conformidade, o cientista do direito público deve,como introdução a suas meditações, identificar os princípios de suaseara, comparandoos com os princípios opostos, vigorantes no di-reito privado. Assim, poderá conhecer o regime do direito público.

“O sistema de uma disciplina jurídica, seu regime, portanto,constituise do conjunto de princípios que lhe dão especificidadeem relação ao regime de outras disciplinas. Por conseguinte, todosos institutos que abarca à moda do sistema solar dentro do plane-tário articulamse, gravitam, equilibramse, em função da racio-nalidade própria deste sistema específico, segundo as peculiarida-des que delineiam o regime (...) dandolhe tipicidade em relação aoutros” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, p. 47).

2. Os princípios juríd icos são parte do ordenamento

4. As afirmações até aqui feitas mostram como, à semelhançade outras ciências, a ciência jurídica só pode ser construída a partir da enunciação dos princípios. Mas, para o profissional do direito, anecessidade de conhecer os princípios jurídicos não é só esta. Suaidentificação nào é apenas valioso auxílio do ato de conhecimento.O jurista nào se debruça sobre o direito com fins lúdicos, mas es-sencialmente práticos. O que pretende com seu trabalho é determi-

nar que normas se aplicam a que situações da vida. E os princípiossão verdadeiras normas jurídicas; logo, devem ser tomados em con-sideração para a solução de problemas jurídicos concretos.

O ordenamento jurídico contém duas espécies de normas: regras e princípios. A norma do art. 151 do Código Penal é uma re-gra: “Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fe-chada. dirigida a outrem: Pena detenção, de 1 a 6 meses, ou mul-ta”. A norma do art. 5Ü, caput , da Constituição Federal é um princí-

 pio: “Todos são iguais perante a lei”.Os princípios são, tanto quanto as regras, parte integrante do

ordenamento jurídico.

São do eminente Jesús González Pérez as seguintes palavras,no mesmo sentido: “os princípios jurídicos (...) têm em si valor 

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146 FUNDA MENTOS DE DIREITO PÚBLICO

normativo; constituem a própria realidade jurídica. Em relaçào àciência do direito, constituem seu objeto. Existem independente-mente de sua formulação; são aplicáveis ainda que a ciência os des-conheça. A missão da ciência com relaçào aos mesmos não é outrasenão a de sua apreensão. E a ciência será mais ou menos perfeita,segundo logre ou não sua determinação. Porque se o ordenamento

 jurídico constitui o objeto da ciência do direito positivo, esse co-nhecimento não será completo enquanto não se alcance a determi-nação dos princípios que o informam.

“Os princípios jurídicos constituem a base do ordenamento ju -rídico, ‘a parte permanente e eterna do direito e também a cambiante e mutável, que determina a evolução jurídica’; são as idéias fun-damentais e informadoras da organização jurídica da Nação.

“Em conseqüência, como assinalei em meu trabalho sobre O método no direito administrativo, os princípios jurídicos têm plenovalor de fonte jurídica, integram o ordenamento jurídico” {El Principio General de la Buena Fé en el Derecho Administrativo , p. 50).

5. O princípio jurídico é norma de hierarquia super ior à dasregras, pois determina o sentido e o alcance destas, que não podemcontrariálo, sob pena de pôr em risco a globalidade do ordenamen-to jurídico. Deve haver coerência entre os princípios e as regras, nosentido que vai daqueles para estas.

Celso Antônio Bandeira de Mello, em passagem notável, es-creve que o princípio é o “mandamento nuclear de um sistema, ver-dadeiro alicerce dele. disposição fundamental que se irradia sobrediferentes normas, compondolhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir alógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere atônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípiosque preside a intelecção das diferentes partes componentes do todounitário que há por nome sistema jurídico positivo” (ob. cit.. pp.545546).

Por isso, conhecer os princípios do direito é condição essencial para aplicálo corretamente. Aquele que só conhece as regras, igno-

ra a parcela mais importante do direito justamente a que faz delasum todo coerente, lógico e ordenado. Logo, aplica o Direito pelametade. Em outras palavras: aplicar as regras desconsiderando os

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o s  p r i n c í p i o s   n o   d i r e i t o 147

 princípios é como não crer em Deus mas preservar a fé em NossaSenhora!

3. Importância dos princípios no direito público

6. A necessidade de o jurista trabalhar com os princípios existetanto no direito privado quanto no direito público. Neste último, en-tretanto, é infinitamente maior.

As normas de direito privado estão contidas, em sua maioria,nos Códigos (Civil, Comercial, Trabalhista). Neles, as regras sãodispostas de modo ordenado e buscam regular exaustivamente osassuntos de que tratam. Os princípios do direito privado freqüente-mente estão concretizados em regras específicas. Daí a desnecessi-dade, muitas vezes, de se socorrer dos princípios para resolver ques-tão de direito privado: a regra inserida no Código já contém a solu-ção que resultaria da aplicação do princípio à hipótese.

Mas o direito público com as possíveis exceções dos Códi-gos Penal e Processual é formado, inclusive em virtude de sua

 juventude, por legislação totalmente esparsa, produzida sem méto-do. Disso resulta uma (aparente) desordem, solúvel apenas com aconsideração dos princípios. Eles é que permitem ao aplicador or-ganizar mentalmente as regras existentes e extrair soluções coeren-tes com o ordenamento globalmente considerado.

7. Ademais, o fato de não estar e de não poder ser integral-

mente codificado faz com que, no direito público, apresentemse.com muita freqüência as lacunas de lei, sobretudo no atinente àsgarantias indispensáveis dos indivíduos frente ao exercício do po-der político.

Em tais situações, os princípios gerais são indispensáveis parao suprimento das lacunas, é dizer, para a revelação das regras queforam omitidas pelo legislador, mas cuja existência é necessária.

4. Utilidade dos princípios na aplicação do direito

S.  Na aplicação do direito isto é, na edição das leis, na pro-dução de atos administrativos, na solução judicial dos litígios etc. os princípios cumprem duas funções: determinam a adequada inter

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148 F UNDA M ENT OS DE DIREITO P ÚBLICO

 pretaçào das regras e permitem a colmataçào de suas lacunas (inte-gração).

Quanto à função dos princípios na interpretação das regras, podese dizer que:

a) é incorreta a interpretação da regra, quando dela derivar con-tradição, explícita ou velada, com os princípios;

b) quando a regra admitir logicamente mais de uma interpreta-ção, prevalece a que melhor se afinar com os princípios;

c) quando a regra tiver sido redigida de modo tal que resultemais extensa ou mais restrita que o princípio, justificase a interpre-tação extensiva ou restritiva, respectivamente, para calibrar o alcan-ce da regra com o do princípio.

9. Na ausência de regra específica para regular dada situação(isto é, em caso de lacuna), a regra faltante deve ser construída demodo a realizar concretamente a solução indicada pelos princípios.E o que determina, em seu art. 4y, a Lei de Introdução ao CódigoCivil, verdadeira Lei de Introdução a todo o direito brasileiro:

“Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com aanalogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

Percebase que. para saber da possibilidade de aplicar analogicamente uma regra a hipótese distinta da que tem em mira, é funda-mental considerar os princípios. O cabimento da analogia dependeda similitude das situações (a tratada pela lei e a por ela olvidada) eesta só existe quando o princípio realizado pela regra é também apli-cável à situação não regulada. A integração por analogia implica aaplicação, à hipótese nào versada pela lei, do princípio embutido na

regra que se vai transpor. Assim, a utilização da analogia é um meioabreviado de preencher a lacuna através dos princípios.

5. Princípios explícitos e implícitos

10. E o conhecimento dos princípios, e a habilitação para ma-ne jálos, que distingue o jur ista do mero conhecedor de textos le-gais.

O leigo com experiência na área é capaz de reproduzir, com

grande exatidão, as palavras da lei que disciplina a cobrança do im- posto de renda. Mas nem por isso conhece o Direito; sabe. isto sim.

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OS PRINCÍPIOS NO DIREITO 149

d e uma parte dele. Mas como limita seu saber ao texto das regras,não pode aplicálas com segurança. A aplicação das regras não se fazd e modo isolado, mas em conjunto com todo o ordenamento. Nin-guém pode aplicar uma regra tem sempre de aplicar todo o Direito.

Para esse leigo se tornar um jurista, precisaria expandir seusconhecimentos. Primeiro, teria de compreender o funcionamentodos mecanismos próprios do sistema jurídico, conhecendo noções

 primárias como as de validade/invalidade, hierarquia das normas,ato/fato jurídico, pessoa jurídica etc. Mas isso ainda nào seria o bas-tante. O que teria aprendido, até então, seria o que há de constanteem qualquer sistema jurídico (o brasileiro, o francês, o sueco...). Aseguir, haveria de se familiarizar por inteiro com um determinadoordenamento jurídico: o brasileiro. Para fazêlo, teria de conhecer não só as regras, mas os princípios desse ordenamento, e esse co-nhecimento não é fácil.

11. Ocorre que os princípios nem sempre estão inscritos expli-citamente em algum texto normativo. Freqüentemente, estão ape-nas implícitos, tornandose necessário desvendálos. Exemplo de

 princípios explicitados pelo ordenamento sào os previstos no art.37 da Constituição brasileira, segundo o qual “a administração pú-

 blica direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Esta-dos, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípiosde legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiên-

cia’’. Exemplo de princípio implícito é o da função, que resulta dalógica própria do Estado de Direito, implantado pela Constituição.

Fundamental notar que todos os princípios jurídicos, inclusiveos implícitos, têm sede direta no ordenamento jurídico. Não cabeao jurista inventar os “seus princípios”, isto é, aqueles que gostariad e v e r consagrados; o que faz, em relação aos princípios jurídicosimplícitos, é sacálos do ordenamento, não inserilos nele.

Eros Grau o esclarece:

“Os princípios gerais do direito são, assim, efetivamente descobertos no interior de determinado ordenamento. E o sào justa-mente porque neste mesmo ordenamento isto é, no interior dele

 ja se encontravam, em estado de latência.

“Nào se trata, portanto, de princípios que o aplicador do direito ou o intérprete possa resgatar fora do ordenamento, em uma or-

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150 FUNDAMENTOS DF DIREITO PÚBLICO

dem suprapositiva ou no Direito Natural. Insistase: eles não sãodescobertos em um ideal de ‘direito justo' ou em uma ‘idéia de di-reito’. (...)

“Tratase, pelo contrário e neste passo desejo referir explici-tamente os princípios descobertos no seio de uma Constituição ,nào de princípios declarados (porque anteriores a ela) pela Consti-tuição. mas sim de princípios que, embora nela nào expressamenteenunciados, no seu bojo estão inseridos” (A Ordem Econômica na Constituição de 1988   Interpretação e crítica , pp. 117118).

Os princípios implícitos são tão importantes quanto os explíci-tos; constituem, como estes, verdadeiras normas jurídicas. Por isso,desconhecêlos é tão grave quanto desconsiderar quaisquer outros

 princípios.

A dificuldade de captar a gama de princípios implícitos aplicá-veis a dada situação advém do fato de exigir o conhecimento doordenamento como um todo, que só se adquire após intensa vivên-cia. Daí a impossibilidade de o leigo que conhece o ordenamentoem tiras ter acesso a eles. Muitos dos princípios decisivos do di-reito administrativo, por exemplo, são encontráveis e compreensí-veis no nível dos princípios gerais do direito público. Por isso, aliás,ninguém pode ser especialista em qualquer ramo do direito públicosem antes estudálo em sua generalidade.

12. Mas ainda nào bastará ter notícia dos princípios (que, afi-nal, um manual pode fornecer): é preciso saber operálos em con-

 junto, dimensionando o peso relativo de cada qual. Em dada situa-ção, prevalece o princípio da “autoridade pública” ou o da “sub-missão do Estado à ordem jurídica”? A pergunta revela um ponto

fundamental na operatividade dos princípios: não há como prede-terminar, para todos os casos, o peso que terá cada princípio, e qualacabará por prevalecer.

E ainda Eros Grau quem expõe o problema com propriedade:

“Isso significa que, em cada caso, armamse diversos jo gos de  pr incípios, de sorte que diversas soluções e decisões, em diversoscasos, podem ser alcançadas, umas privilegiando a decisividade decerto princípio, outras a recusando.

“Cada conjunção ou jogo de princípios será informada por de-

terminações da mais variada ordem: é necessário insistir, neste pon-

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OS PRI NCÍ PI OS NO DI REI TO 151

to, em que o fenômeno jurídico nào é uma questão científica, po-rém uma questão política e, de outra parte, a aplicação do direito éuma prudência e não uma ciência” (ob. cit., p. 101).

Entre os fatores que podem determinar a escolha entre princí- pios, o autor menciona os valores ideológicos. Embora concordan-do com a afirmação, é preciso atentar para o dever de o aplicador,antes de se valer de seus próprios valores, procurar se embeber da

“ideologia do sistema jurídico” com que está trabalhando. Casocontrário, comporia para o caso concreto, sem qualquer justificati-va, soluções conflitantes com o ordenamento tomado em sua globalidade.

13. Postas essas considerações, cumpre passar ao exame con-creto dos princípios gerais do direito público.

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Capítulo XII 

 Princípios Gerais do Direito Público

 I. In trod uç ão . 2. A ut ori dade pública. 3. Subm issã o do E stado à ordem  

 ju rídi ca . 4. Função. 5. Igua ldad e do s par tic ular es per ant e o Es tad o. 6. Devido processo. 7.  Publ ic id ad e. 8. Resp onsa bil id ade obje tiva. 9. Ig ua lda

 d e da s pess oas polí ticas.

 I. In trodução

1. Exposta a idéia de princípio jurídico, vistos os problemas desua identificação e aplicação, cumpre, agora, relacionar os princípiosgerais do direito público.

Pretendese que tais princípios sejam válidos para o direito pú- blico hoje vigente no Brasil. Como o direito público é, em suas li-nhas gerais, delineado no Texto Constitucional, nele é que se deve

 buscálos. A afirmação não nega que idênticos cânones possam es-tar consagrados em outros países, por força do intercâmbio notávelde idéias, de concepções políticas e de soluções constitucionaisexistentes entre todos eles; apenas salienta que é necessário verifi-car concretamente, em cada sistema jurídico positivo, seu acolhi-mento ou não.

Portanto, cuidamos nào dos princípios universais do direito pú-

 blico, mas, tãosó, dos princípios do direito público brasileiro atual.

2. A enunciação desses princípios cumpre dupla finalidade: deum lado, mostra a distinção entre o direito público e o privado; deoutro, desenha o regime jurídico do direito público, cuja compreen-são é essencial para se trabalhar com qualquer ramo específico. Por isso mesmo, foram selecionados apenas os princípios gerais do di-reito público, deixandose de lado aqueles cuja incidência esteja cir-cunscrita a setores dele (direito penal, administrativo, processualetc.).

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PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO PÚBLICO 153

Com isso, fechamos o ciclo para o conhecimento ju ríd ico das bases do direito público, descendo das noçòes muito gerais úteiscomo embasamento, mas ainda insuficientes para o trabalho do pro-fissional para as categorias suscetíveis de aplicação prática. Ma-nejando esses princípios, o jurista pode compreender textos norma-tivos, construir interpretações e solver problemas jurídicos.

3. O conjunto dos princípios gerais identifica e peculiariza odireito público. Portanto, o estudo do direito público com base nos princípios tem como pressuposto a inexistência de uma idéiachaveque, sozinha, possa explicálo e revelálo. Abandonamos, assim, a pretensão da primitiva doutrina francesa de direito administrativo,que buscava por razões peculiares ao sistema daquele país umaidéia motriz que bastasse para identificar a totalidade doSlireito pú-

 blico. A nós importa um conjunto de idéiaschave, que devem ser operadas sempre conjugadamente: a elas é que denominamos princípios do direito público.

4. A nosso ver, são os seguintes os princípios gerais do direito público brasileiro:

a) autoridade pública;

b) submissão do Estado à ordem jurídica;

c) função;

d) igualdade dos particulares perante o Estado;e) devido processo;

 f) publicidade;

g) responsabilidade objetiva;

h) igualdade das pessoas políticas.

O primeiro princípio (a) evidencia o fato de o direito públicoregular o exercício do poder político, gerando, portanto, a outorga

ao Estado de poderes especiais frente aos particulares. Todos os de-mais, com exceção do último (b até g ), traduzem limites à autorida-de, visando controlar o exercício do poder político e proteger seusdestinatários, de modo a realizar o equilíbrio entre autoridade e li- berdade. Por derradeiro, a igualdade das pessoas políticas (/?) é prin-cípio de organização do exercício do poder.

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154 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

A doutrina brasileira não se tem preocupado com a identifica-ção de princípios do direito público em geral. Dedicase, mais fre-qüentemente, a apontar os princípios incidentes em cada ramo des-sa seara jurídica. Muitos deles, contudo como é evidente sào

 princípios juspublicísticos gerais, também aplicáveis a tal ou qualsetor específico. Entre as obras mais interessantes, de que nos vale-mos fartamente, podem ser citadas as seguintes: a) no direito admi-nistrativo: Curso de Direito Administrativo, Celso Antônio Bandei-ra de Mello (Caps. 1 e 2); b) no direito processual: Teoria Geral do 

Processo, Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco (Cap. 4); c)  110 direito tributário:Curso de Direito Constitucional Tributário, Roque Antônio Carrazza (Título I); d) no direito constitucional: Curso de Direito Constitucional Positivo, José Afonso da Silva (Ia Parte, Título II).

2. Autoridade pública

5. A existência do Estado é justificada pela necessidadeatender a certos interesses coletivos, que os indivíduos isolados não podem alcançar. Esses interesses, cuja realização é atribuída ao Es-tado, chamamse interesses públicos, por oposição aos interesses 

 privados, titularizados pelos particulares. O direito, como seria deesperar, qualifica os primeiros como mais relevantes que os segun-dos, e o faz conferindolhes prioridade no confronto com estes.Quando se chocam, o interesse público tem preferência sobre o pri-vado. Isso nào significa que os interesses privados não tenham pro-

teção jurídica; certamente a têm, mas menos intensa que a dada aointeresse público.

Insistimos em que, para a ordem jurídica, o interesse públicotem apenas prioridade em relação ao privado; não é, porém, supre-mo frente a este. Supremacia é a qualidade do que está acima de tudo. O interesse público não está acima da ordem jurídica; ao con-trário, é esta que o define e protege como tal. Ademais, o interesse

 público não arrasa nem desconhece o privado, tanto que o Estado,

necessitando de um imóvel particular para realizar o interesse pú- blico. não o confisca simplesmente, mas o desapropria, pagando in-denização (o que significa haver proteção jurídica do interesse do

 proprietário, mesmo quando conflitante com o do Estado).

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 p r i n c í p i o s   g e r a i s   d o   d i r e i t o   p ú b l i c o 155

6. Decorre cia maior importância dos interesses públicos a au-toridade de que desfruta o Estado em suas relações jurídicas comos particulares. A autoridade pública conferida ao Estado peias nor-mas jurídicas é a conseqüência, no mundo do direito, da qualifica-ção. feita pelo constituinte ou pelo legislador, de certos interessescomo mais relevantes que outros. Em outros termos: o interesse pú- blico surge como tal. para o mundo jurídico, quando as normas atri- buem ao ente que dele cura poderes de autoridade.

O poder de autoridade manifestase, ao menos, de duas formas

distintas: a) impondo, uni lateralmente, comportamentos aos parti-culares; b) atribuindo direitos aos particulares, através de vínculonãoobrigacional.

7. A primeira e. certamente, a mais visível tradução da idéiade autoridade é a imposição unilateral de deveres aos particulares,

 por comandos imperativos.

São exemplos tanto a lei, quanto a sentença e o ato administra-tivo: a lei é produzida unilateralmente pelo Estado e, uma vez em

vigor, passa a obrigar o particular, independentemente de sua inten-ção de se submeter ou não a ela; a sentença do juiz, que decide olitígio, impõese às partes envolvidas, estejam ou não satisfeitascom seu conteúdo; o ato administrativo de lançamento de certo tri- buto vincula o contribuinte, que dele não pode se furtar. O cidadãosubmetido à nova lei, as partes atingidas pela sentença ou o contri- buinte colhido pela cobrança podem ter o legítimo interesse parti-cular de se furtarem aos comandos que lhes são dirigidos. Entretan-to, por tais comandos se justificarem como instrumentais para a rea-

lização de interesses públicos, são imperativos.Podem ser multiplicados os exemplos de poderes estatais de

imposição unilateral de deveres aos particulares, em nome dos inte-resses públicos. No âmbito administrativo, reconhecemse à Admi-nistração, entre outros, poderes para revogar e anular seus atos, paramodificar ou extinguir unilateralmente os contratos que tenha fir-mado, para provocar a desapropriação de bens privados, para apli-car sanções, e assim por diante. Na esfera judicial, dispõe o Estado

 ju iz de poderes para conduzir à audiência, com o uso da força, astestemunhas indicadas (C'PC, art. 412, caput), para seqüestrar bens(CPC, art. 822, I) ou apreender títulos (CPC, art. 885, caput ); tam-

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156 F UNDA M ENTO S DE DIREITO P ÚBLICO

 bém para ordenar a prisão ou a soltura de pessoa presa (CF. art. 5Ü.LXI e LXVIII); e por aí vai.

Está ligado à imposição unilateral de deveres aos particulareso monopólio do uso da coação, isto é. da força tísica, para obrigar os particulares ao atendimento dos comandos estatais.

S.  No entanto, nem sempre o Estado age para impor condutaaos particulares. O exercício da autoridade comporta versão maissutil.

Em certas situações, o direito condiciona a aquisição de direi-tos pelos particulares a um ato estatal. São exemplos: a autoriza-ção. ato administrativo através do qual se outorga ao particular di-reito à exploração de atividade perigosa (o comércio de fogos deartifício, por hipótese); a concessão de cidadania brasileira a estran-geiros por decreto presidencial; o reconhecimento, por sentença ju-dicial. do direito de propriedade nascido por usucapião etc. Ao atri- buir tais direitos, o Estado nada impõe unilateralmente; apenas aten-de ao requerimento voluntário do próprio interessado. Não obstan-te, exerce autoridade pública, traduzida no poder que não encontra

equivalente no direito privado de conferir direitos que os beneficia-dos vão exercer em relação a terceiros (os outros particulares).

 No direito privado, quando duas pessoas travam contrato dedoação, uma adquire o direito, outorgado pela outra, de proprietá-rio sobre o bem. A diferença entre a outorga de direito que o doa-dor faz ao donatário e a que o Estado faz ao particular está em quea primeira estabelece vínculo obrigacional (isto é, o doador limitasua própria esfera jurídica em favor do donatário, trespassandolheseu bem), enquanto a segunda, não (o Estado nada transfere de seu

ao particular quando lhe reconhece a propriedade por usucapião;apenas lhe atribui direito que este vai exercer perante terceiros).

9. Fundamental perceber que, no Estado de Direito, poder algum é uma inerência do Estado. Os poderes estatais só se justifi-cam para a realização de interesses públicos; são. por isso, mera-mente instrumentais. Mas só é “interesse público” o assim qualifi-cado pela ordem jurídica, não aquilo que o eventual ocupante do poder entenda como tal. Destarte, o Estado tem poderes, sim énatural que os tenha , mas apenas os que lhe são conferidos clara-mente pelo ordenamento.

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P R I NC Í P I OS GE R AI S DO DI R E I T O P ÚB L I C O 157

Assim, o Estado não exerce a autoridade pública sempre, emqualquer situação, ou na medida em que o quiser. Exercea se, quan-do e na proporção em que esta lhe tenha sido conferida pela ordem

 jurídica.

10. Porque o Estado exerce a autoridade pública, dizse, meta-foricamente, que as relações jurídicas entre ele e os particulares sãoverticais, ocupando aquele o pólo mais elevado, e estes o pólo infe-rior. Nisso difere o direito público do privado. Entre particulares,os interesses são de mesma estatura e, em conseqüência, protegidosde modo equivalente. Daí as relações privadas serem horizontais,sem que uma das partes exerça autoridade sobre a outra.

A verticalidade das relações jurídicas entre Estado e particula-res foi desde sempre e continua a sêlo na atualidade caracterís-tica do direito público em qualquer ordenamento. Mas o que peculiariza o direito público hoje em dia. e o brasileiro em especial, é aexistência de outros princípios que lhe servem de limite e controle.

Entre eles, o fundamental é o da submissão do Estado à ordem jurí-dica. Por isso, a construção do direito público baseada apenas no princípio da autoridade pública típica dos Estados autoritários seria claramente desviada.

11. De outro lado, nem sempre o Estado exerce poderes de au-toridade pública em relação aos particulares. Por vezes, entabulavínculos obrigacionais com estes, como no exemplo do contrato deempréstimo que faça com certa instituição financeira privada. Si-tuações do gênero levaram os doutrinadores do direito adminis-trativo a afirmar que, em dadas hipóteses, o Estado se submete aodireito privado; é que, extraída da relação qualquer característicaautoritária, parece que o Estado nela comparece à moda de qual-quer particular. Essa afirmação é um equívoco evidente, derivadada assimilação do direito público exclusivamente à noção de auto-ridade pública.

O direito público não é definível com base em uma solitária

idéiachave, mas a partir de um conjunto delas; daí a compreensãode esse ramo jurídico derivar da identificação dos princípios comoum todo (nào de um princípio isolado). Entre eles estão o da fun-ção, da igualdade etc. O fato de, em certa relaçào, o Estado nãoestar equipado de autoridade pública nào importa sua submissão ao

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158 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

direito privado, tal qual o conhecemos. Se. ao invés de desapropriar 

a casa de que necessita para instalação de escola, o Município, com- pondose com o particular, resolver adquirila, travando contrato decompra e venda, nem por isso será regido pelo direito privado. De-certo nào manejará poderes de autoridade pública, mas exerceráfunção (donde a invalidade da compra se feita com a finalidade ex-clusiva dc beneficiar o vendedor, na hipótese de o bem ser desne-cessário ao Estado), será obrigado a respeitar o princípio da igual-dade (donde o dever de fazer licitação, se diversos imóveis servi-rem indistintamente à finalidade pretendida), e assim por diante.

A ausência, na relação Estadoparticular, do exercício de au-toridade pública apenas assemelha o direito público ao privado. Tra-tase de mera semelhança, ademais tópica, nunca de identidade ab-soluta.

3. Subm issão do Estado à ordem juríd ica

12. Segundo o princípio da submissão do Estado ao Direito,todo ato ou comportamento do Poder Público, para ser válido e obri-gar os indivíduos, deve ter fundamento em norma jurídica superior.

O princípio determina nào só que o Estado está proibido de agir contra a ordem jurídica como, principalmente, que todo poder por ele exercido tem sua fonte e fundamento em uma norma jurídica.

Assim, o agente estatal, quando atua, não o faz para realizar sua vontade pessoal, mas para dar cumprimento a algum dever, quelhe é imposto pelo Direito. O Estado se coloca, então, sob a ordem 

 ju ríd ica , nos mais diferentes aspectos de sua atividade.

13. A atividade legislativa de produzir normas que inovemoriginariamente no universo jurídico se desenvolve em obediên-

cia à Constituição. Só podem exercer essa atividade os órgãos nela previstos (o Congresso Nacional, as Assembléias Legislativas dosEstados, as Câmaras Municipais, por exemplo). O surgimento danorma legal depende da observância do processo legislativo, valedizer, das várias etapas sucessivas previstas pela Carta Magna. Oconteúdo da norma legal deve obedecer aos ditames constitucionais(como os direitos individuais, por exemplo).

A lei que deixa de atender à Constituição por incompetênciado órgão emanador, por desatenção ao processo de sua elaboração

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PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO PÚBLICO 159

ou por seu conteúdo violar direitos, regras ou princípios consagra-dos no Texto Maior é inconstitucional, e por isso não obriga nin-guém, sendo, inclusive, passível de anulação pelo Supremo Tribu-nal Federal.

Assim sendo, na esfera da atividade do legislador, a submissãodo Estado à ordem jurídica se expressa no  princípio da necessária constitucionalidade das leis.

14. Além de legislar, o Estado exerce o poder de administrar (inclusive cobrando tributos) e de punir criminalmente os cidadãos. Nesse campo, sua submissão ao direito é assegurada pelo principio da legalidade, indistintamente aplicável aos direitos administrati-vo, tributário e penal. Esse princípio em verdade um subprincípiodo direito público, decorrência que é da submissão do Estado à or-dem jurídica determina que ato algum do Estado surgirá senãocomo comando complementar da lei.

15. A atividade administrativa deve ser desenvolvida nos ter-mos da lei. A Administração só pode fazer o que a lei autoriza: todoato seu há de ter base em lei, sob pena de invalidade. Resulta daíuma clara hierarquia entre a lei e o ato da Administração Pública:este se encontra em relação de subordinação necessária àquela. Inexiste poder para a Administração Pública que não seja concedido pela lei: o que a lei não lhe concede expressamente, negalhe impli-

citamente. Todo poder é da lei; apenas em nome da lei se pode im- por obediência. Por isso, os agentes administrativos não dispõemde liberdade existente somente para os indivíduos consideradoscomo tais mas de competências, hauridas e limitadas na lei.

A doutrina o afirma em uníssono. Ensina Seabra Fagundes que“administrar é aplicar a lei, de ofício” (O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, p. 3). Acentua Hely Lopes Meirellesque “a eficácia de toda a atividade administrativa está condicionadaao atendimento da lei. Na Administração Pública não há liberdadenem vontade pessoal” (Direito Administrativo Brasileiro, p. 85). Nomesmo sentido, Michel Stassinopoulos: “a lei não é apenas o limitedo ato administrativo, mas sua condição e sua base. Em um Estadode Direito, a Administração não se encontra apenas na impossibili-dade de agir contra legem ou praeter legem mas é obrigada a agir

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160 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

O princípio da legalidade administrativa não é, no direito bra-sileiro, mera decorrência lógica do dever de submissão do Estado àordem jurídica, tendo sido previsto explicitamente pela Constitui-ção. De fato, o art. 37, caput, diz que a administração direta e indi-reta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Fe-deral e dos Municípios obedecerá, entre outros, ao “princípio de le-galidade”. Ademais, o art. 5a, 11. esclarece que “ninguém será obri-gado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude delei”.

Disso decorre que os decretos regulamentares editados pelo

Chefe do Poder Executivo servem apenas para “fiel execução dasleis”, como insiste o art. 84, IV, do Texto Constitucional. Portanto,o mais elevado dos atos administrativos é, também ele, um merocomando complementar da lei.

16. Também no direito tributário parcela que é do direito ad-ministrativo, dele só se destacando para fins didáticos o princípioda legalidade se aplica. O Estado só cobra os tributos previstos emlei. E o que preceitua expressamente o art. 150. I, do Texto Consti-tucional, segundo o qual “sem prejuízo de outras garantias assegu-

radas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao DistritoFederal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que oestabeleça”. Significa isso que nenhum ato de hierarquia inferior àlei um decreto, uma resolução, uma portaria tem a virtualidadede impor aos particulares, de modo originário, obrigação de pagar tributo.

Roque Carrazza, eminente professor da Faculdade de Direitoda PUCSP, esclarece as conseqüências da aplicação, no direito tri- butário, do princípio da legalidade:

“Portanto, de acordo com a Constituição, nenhum tributo podeser criado senão com base em lei. Tal lei, além de descrever, comriqueza de pormenores, todos os aspectos da norma jurídica tributá-ria, deve conter os critérios que presidirão a prática, em cada casoconcreto, do ato administrativo do lançamento.

“Concordamos, pois, com Pietro Virga, quando leciona que atributação encontra três limites; a saber:

“I a reserva de lei: o tributo só pode ser criado por meio delei. E princípio fundamental que nenhuma exação pode ser exigida

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PRI NCÍ PI OS GERAI S DO DI REI TO PÚBLI CO 161

sem a autorização do Poder Legislativo (no taxation without repre- sentation);

‘ i l a disciplina de lei: nào basta que uma lei preveja a exi-gência de um tributo, mas. pelo contrário, deve determinar seus ele-mentos fundamentais, vinculando a atuação da Fazenda Pública ecircunscrevendo, ao máximo, o âmbito de discricionariedade doagente administrativo;

“III os direitos que a Constituição garante: a tributação, ain-da que se perfaça com supedâneo na lei, não pode contrastar comos direitos constitucionalmente assegurados” (Curso de Direito Constitucional Tributário, p. 182).

17.  No direito penal, a submissão do Estado à ordem jurídicatambém se expressa através da legalidade. A Constituição dispõe,de modo expresso, que “não há crime sem lei anterior que o defina,

nem pena sem prévia cominaçào legaF’ (art. 5-, XXXIX). Para oEstado classificar como criminoso o comportamento de alguém e,em conseqüência, imporlhe uma pena, é necessário que lei anterior tenha definido esse comportamento como crime, ligando a ele certasanção penal.

Heleno Fragoso explica a incidência do princípio no direito penal: “Nào se apresenta mais em nossos dias o direito de punir como poder absoluto do Estado sobre a pessoa do cidadão. O direi-

to de punir constitui limitação jurídica ao poder punitivo do Estado, pois no Estado moderno o exercício da soberania está subordinadoao direito. Assim, o poder político penal de punir, originariamenteabsoluto e ilimitado, sendo juridicamente disciplinado e limitado,convertese em  poder juríd ico, ou seja, em faculdade ou possibili-dade jurídica de punir conforme ao direito. Não se admite, em con-seqüência, num sistema de direito, que o Estado imponha pena aação que não tenha sido previamente incriminada” (Lições de Di

reito Penal  A Nova Parte Geral. p. 94).Sobre o tema, consultese também Aníbal Bruno: “No decurso

de sua evolução, a partir da Magna Carta, dos documentos norteamericanos e da Revolução Francesa, o princípio da legalidade foidissociando do seu contexto as várias funções de garantia que hojeapresenta: não há crime nem pena sem lei anterior, e então o princí-

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162 FUNDA MENTOS DE DIREITO PÚBLICO

do a necessária precisão e segurança ao Direito; não há crime nem pena sem lei escrita, o que importa em negar ao Direito costumeirofunção criadora ou agravante de tipos ou sanções penais; não hácrime nem pena sem lei estrita, com o que se impõe uma limitaçãoà aplicação da lei e se toma defeso, no domínio das normas incriminadoras, o emprego da analogia” ( Direito Penal, t. lü. p. 208).

18. A atividade jurisdicional é, igualmente, desempenhada nostermos da Constituição e da lei. O juiz, ao julgar conflitos, não ma-

nifesta sua vontade ou opinião pessoal sobre o caso: apenas faz odireito incidir na hipótese concreta. Ademais, o procedimento a ser adotado para se chegar à decisão final é regulado pela lei a lei

 processual civil, penal ou trabalhista que estipula prazos e opor-tunidades para as manifestações das partes, estabelece os requisitosdas sentenças, dispõe sobre os recursos cabíveis etc.

19. Deriva do princípio da submissão do Poder Público à or-dem jurídica a tipicidade dos atos estatais.

 No direito privado, os atos produzidos pelos particulares, para

serem válidos, não precisam se encaixar em algum modelo previa-mente desenhado pela lei; por isso, sempre foram perfeitamente lí-citos os contratos de leasing ou de franchising, apesar de os Códi-gos Civil e Comercial a eles não se referirem. No direito público, porém, como só são válidos os atos praticados com amparo em com- petência especificamente conferida pela Constituição ou pela lei, osatos devem, sob pena de invalidade, ser praticados dentro da tipolo-gia prevista por tais normas. Assim, os atos legislativos que o Con-gresso Nacional ou o Presidente da República, no caso extraordi-

nário da medida provisória pode editar são apenas os previstos naConstituição (emendas constitucionais, leis complementares, ordi-nárias e delegadas, decretos legislativos, resoluções e medidas pro-visórias). As decisões do juiz, no curso do processo, são apenasaquelas ditadas pela lei processual (despacho saneador, sentençaetc.). Por fim, os atos do administrador público também devem seenquadrar nos modelos desenhados pela lei (ex.: licença, dispensa,homologação, demissão ou suspensão de funcionário etc.).

20. A idéia de submissão do Estado à ordem jurídica, aplicável

ao direito público, opõese o princípio, que está na base do direito

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PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO PÚBLICO 163

 privado, da liberdade dos indivíduos. Para o particular praticar vali-damente um ato, nào necessita de autorização expressa da norma

 jurídica; basta que o ato não seja proibido pelo direito. Por isso seafirma que o particular pode fazer tudo o que a Constituição e asleis não proíbem, enquanto o Estado só pode fazer aquilo que taisnormas autorizam expressamente. Em outras palavras: a validadedos atos privados depende apenas de sua nàocontrariedade com o

direito, enquanto a dos atos de direito público depende não só dis-so, mas também de seu amparo em norma (constitucional ou legal)autorizadora específica.

4. Função

21. A atividade pública cujo exercício é regulado pelo direi-to público constitui função. Função, para o Direito, é o poder de

agir, cujo exercício traduz verdadeiro dever jurídico, e que só selegitima quando dirigido ao atingimento da específica jincdidade que gerou sua atribuição ao agente. O legislador, o administrador, o

 juiz, desempenham função: os poderes que receberam da ordem ju-rídica são de exercício obrigatório e devem necessariamente alcan-çar o bem jurídico que a norma tem em mira.

Analisemos estes dois aspectos: a) o exercício de poder estatalé um dever, não uma faculdade do agente; b) o ato de direito públi-

co praticado com base em poder atribuído por certa norma só seráválido se alcançar a finalidade por ela mirada.

22. A idéia de que o agente estatal está juridicamente obrigadoa exercer seus poderes encontra exemplos nos diversos setores dodireito público:

a) O juiz é obrigado a julgar o processo que dirige, nào se exi-mindo de fazêlo por estar em dúvida quanto à melhor solução a ser 

dada à lide ou por faltar norma expressa que a regule (CPC, art.126). Por isso, aliás, os juizes integrantes dos tribunais não podemse abster de votar no julgamento de um recurso.

b) No âmbito da Administração, os serviços estatais devem ser  prestados continuamente (princípio da continuidade do serviço pú- blico), as infrações são necessariamente punidas, os tributos hão de

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164 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

c) Mesmo o legislador ao qual sempre se reconheceu maior 

liberdade de opção entre editar ou nào uma lei. ou quanto ao mo-mento em que o fará é obrigado, em dadas hipóteses, a legislar:quando se trata de tornar efetivas as normas constitucionais, espe-cialmente as que conferem direitos aos indivíduos. Bem por isso, aConstituição brasileira de 1988 criou a ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2Ü).

23. O segundo aspecto diz respeito à íntima vinculação entre o poder manejado pelo agente e a finalidade para a qual ele foi con-cebido. Constitui desvio de finalidade (também conhecido, sobre-

tudo entre os administrativistas, como desvio de poder) a edição deum ato para alcançar fim diverso daquele ao qual está preordenado.Os exemplos são múltiplos:

a) No direito administrativo, a jurisprudência já reconheceu anulidade da remoção de funcionário de uma cidade para outra coma finalidade de punilo. O problema está em que o ato de remoçãonão tem, de acordo com a lei, objetivo sancionador, destinandoseapenas ao melhor arranjo da máquina burocrática. Sào também ca-sos de atos administrativos viciados por desvio de poder: a declara-

ção de utilidade pública, visando sua desapropriação, de imóvel per-tencente a inimigo pessoal do Prefeito (tal ato só pode ser produzi-do se o imóvel for realmente necessário à Administração); o rompi-mento. pelo Poder Público, de contrato que mantém com banco par-ticular como represália contra o ajuizamento, por este, de ação con-tra aquele; o uso, pelo Governador, de verba de representação degabinete para presentear amigos ou correligionários.

b) Caso de desvio de poder no exercício de atividade judicanteocorre quando o juiz de tribunal muda, antes do final do julgamen-to, o voto vencido que proferiu, apenas para evitar que o interessa-

do possa interpor o recurso denominado “embargos infringentes”(cabível apenas quando a decisão do tribunal nào é unânime).

c) O ato legislativo também pode estar maculado por desvio de poder. Na realidade brasileira, o exemplo mais flagrante foi a edi-ção, pelo Presidente da República, de medida provisória (que temforça de lei ) limitando a concessão de liminares em ações judiciais

 propostas pelos particulares contra seus próprios atos. Afora outros problemas, tal medida é inválida porquanto, embora seja lícito le-gislar sobre a concessão de liminares, esse poder nào pode ser usa-

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PRI NCÍ PI OS GERAI S DO DI REI TO PÚBLI CO 165

do com a finalidade de livrar do controle judicial certos atos do Po-der Executivo. Outro caso de desvio de poder legislativo é a altera-ção, por lei municipal, das restrições de construção existentes emcerta região da cidade com a finalidade de prejudicar certa empre-sa. que pretende erigir construções nos termos da norma vigente.

24. Descendem do princípio segundo o qual as competênciasdos agentes estatais se ligam às finalidades públicas a exigência de

razoabilidade, proporcionalidade, moralidade e boafé na atuaçàoestatal, especialmente relevante quando a norma jurídica concedecerta margem de liberdade para o agente decidir quanto ao modocomo vai exercer sua competência.

A competência do agente estatal está. por definição, ligada auma finalidade pública; quando, porém, a norma jurídica, tomadaisoladamente, não forneça elementos suficientes para se precisar,de modo objetivo, o fim a ser perseguido, nem por isso este será

indiferente. O direito, mesmo nos casos da maior discricionariedade, fornece sempre os elementos para a identificação, por via nega-tiva (isto é. dizendo o que ela não pode ser), da finalidade do ato. Eo faz através de idéias como as da razoabilidade, proporcionalida-de, moralidade e boafé, das quais deriva a interdição dos atos cu-

 jos fins sejam irracionais, imorais ou consagradores da máfé.

A razoabilidade proscreve a irracionalidade, o absurdo ou aincongruência na aplicação (e, sobretudo, na interpretação) das nor-

mas jurídicas. E inválido o ato desajustado dos padrões lógicos. Sãoexemplos: o ato administrativo que concede a indivíduo desprovidode bens pessoais, mas filho de família abastada, ajuda financeirareservada aos pobres; a medida liminar concedida em ação movida

 por alunos de escola particular, para suspender a cobrança das men-salidades enquanto não se resolve a discussão em torno do valor efetivamente devido. Tais medidas, fugindo de qualquer padrão derazoabilidade, são inidôneas para alcançar as finalidades a elas im-

 postas pela ordem jurídica.A proporcionalidade é expressão quantitativa da razoabilida-

de. E inválido o ato desproporcional em relação à situação que ogerou ou à finalidade que pretende atingir. São os casos da ação detropa de choque armada de metralhadoras e carros blindados paradesimpedir o tráfego de via secundária de circulação obstruída por

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166 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

 passeata promovida por meia dúzia de crianças; da ordem, expedi-da pelo juiz da execução, de que seja removido para o depósito pú- blico todo o maquinário da indústria executada, que, com isso, ficaimpedida de funcionar; da lei que proíba a produção de qualquer espécie de ruído, ainda que ínfimo, em todas as vias públicas dacidade, para preservar o sossego dos doentes.

A idéia de moralidade interdita comportamentos estatais que.apesar de hipoteticamente legítimos em decorrência da flexibilida-de da norma jurídica, contrariem os padrões éticos vigentes na so-

ciedade. A moralidade foi. pela ConstiUiição brasileira de 1988, ele-vada ao grau de princípio jurídico expresso, de observância obriga-tória pela Administração Pública (art. 37, caput), sendo cabível ação popular para anular atos a ela lesivos (art. 5U, LXXII1).

Por fim, o Poder Público deve agir de boa-fé, sendo inválidosos atos que produza fora das pautas de lealdade que os particularesdele poderiam esperar. E irregular, por trair a confiança do cidadão gerando por isso a responsabilidade do Estado a decretação, pela autoridade monetária, de gigantesca desvalorização da moedanacional em relação ao dólar, produzida logo após a implantaçãode programa estatal de incentivo ao endividamento externo das em- presas (com efeito, é desleal lançar alguém na insolvência pelo fa to  de haver confiado na recomendação das autoridades públicas).

25. Ao princípio da função, próprio do direito público, opõese o da autonomia da vontade, vigente no direito privado. Enquantonaquele os atos se vinculam a certo fim, que deve ser necessaria-mente atingido, neste os atos são produzidos nos termos da vontade

livre dos particulares.

Celso Antônio Bandeira de Mello, distinguindo o ato de direi-to privado do ato administrativo, explica que o primeiro decorre daautonomia da vontade, enquanto o segundo deriva da função. Suaslições podem ser aplicadas à distinção entre o ato privado e o ato dedireito público em geral:

“O ato de direito civil está marcadamente sob o influxo da idéiade autonomia da vontade. Governase sob o pálio da ampla liberda-

de. No Direito privado a regra é a de que ko que não está proibido é permitido’.

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PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO PÚBLICO 167

‘*0 ato administrativo, pelo contrário, submetese a preceitooposto. Em administração, não há liberdade de querer. Só se podequerer o que sirva para cumprir uma finalidade antecipadamente es-tabelecida em lei.

“No ato administrativo, portanto, a regra é a ausência de auto-nomia de vontade. No ato administrativo o fim, o interesse, já está estabelecida de antemão e o sujeito não pode eximir-se de baseá-

lo. Em contraposição ao ato privado, em que rege a liberdade, noato administrativo vige a idéia de dever, de função. Daí que, ao in-vés do ‘o que não é proibido é permitido’, vigora o ‘só é permitidoo que a lei autoriza’. Esta situação especifica sua mais plena sub-missão à ‘regra de direito’”. ( Ato Administrativo e Direitos dos Administrados, pp. 1314).

5. Igualdade dos particulares perante o Estado

26. Dispõe o art. 5U, caput, da Constituição Federal que “todossão iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Tratase da consagração do princípio da igualdade (ou isonomia).

Esse princípio está na base de inúmeras outras normas, tam- bém dispostas no Texto Constitucional: a) do art. 5a. 1, segundo oqual “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”; b) doart. 5Ü, XLI, segundo o qual “a lei punirá qualquer discriminaçãoatentatória dos direitos e liberdades fundamentais”; c) do art. 37,caput, que consagra a “impessoalidade” como princípio da Admi-nistração.

27. Do conjunto das normas constitucionais, bem assim de seusentido, extraise que os particulares são iguais perante o Estadocomo um todo. São iguais perante o legislador, assim devendo ser  por ele tratados. São iguais  perante a lei, donde a necessidade de,em sua aplicação, o juiz como a Administração, trataremnos demodo parificado.

Disso resulta que o princípio da isonomia é essencial a tododireito público.

Geraldo Ataliba o esclarece:

“Princípio constitucional fundamental, imediatamente decor-rente do republicano, é o da isonomia ou igualdade diante da lei,

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I6S f UNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

diante dos atos infralegais, diante de todas as manifestações do po-der. quer traduzidas em normas, quer expressas em atos concretos.Firmouse a isonomia. no direito constitucional moderno, como di-reito público subjetivo a tratamento igual, de todos os cidadãos, peloEstado.

“Como, essencialmente, a ação do Estado reduzse a editar alei ou darlhe aplicação, o fulcro da questão jurídica postulada pelaisonomia substanciase na necessidade de que as leis sejam isônomas e que sua interpretação (pelo Executivo ou pelo Judiciário) le-

vem tais postulados até suas últimas conseqüências, no plano con-creto da aplicação (...)

“Igualdade diante do Estado, em todas as suas manifestações.Igualdade perante a Constituição, perante a lei e perante todos osdemais atos estatais. A isonomia, como quase todos os princípiosconstitucionais, é implicação lógica do magno princípio republica-no. que a fecunda e lhe dá substância. Embora tenha larguíssimafundamentação histórica e provectas raízes culturais, o princípio daisonomia só pode ser compreendido em toda sua dimensão e signi-ficado, juntamente com o princípio da legalidade. É que a teleolo

gia do direito constitucional tal como plasmado ao longo da evo-lução do mundo ocidental foi expressandose por esses princípios,guardando, porém, essencialmente a mesma substância. Esta teminúmeras dimensões, as quais, por isso que partícipes da mesmaraiz, são harmônicas, coerentes entre si e solidárias. ‘Todos os di-reitos que as Constituições declaram irrenunciáveis, intangíveis einalienáveis se associam e coexistem num feixe’ (Ruy Barbosa, Comentários à Constituição, coligidos por Homero Pires, v. 1/51)”[República e Constituição, pp. 159160).

28. A compreensão do conteúdo, sentido e alcance do princí- pio não é, entretanto, simples. Que significa ele, em concreto? Ob-viamente, não importa que o Estado deva tratar a todos de modoidêntico. E conhecido o preceito segundo o qual a isonomia implicaa necessidade de os iguais serem tratados igualmente e os desiguais,desigualmente, na medida de sua desigualdade. Em suma, o Estado pode tratar desigualmente os particulares, desde que o faça justif icadamente. Porém, isso ainda diz pouco; resta saber quando a desequiparação é injustificada.

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PRI NCÍ PI OS GERAI S DO DI REI TO PÚBLI CO 169

Como as funções de administrar e julgar podem ser vistas comoatividade de aplicação da lei, parece adequado desvendar a aplica-ção da igualdade a partir da criação da lei. Quais discriminações

 podem e quais nào podem, sem violação da isonomia, ser feitas pelolegislador?

29. Em primeiro lugar, a lei agride a isonomia quando nào re-

vestida de generalidade ou abstração, isto é, quando beneficia ou prejudica sujeito determinado e perfeitamente individualizado no presente. Seria o caso da lei concedendo isenção de impostos àsmontadoras de automóveis constituídas no Brasil antes de 1960. enegandoa às demais.

De outro lado, violenta a igualdade a lei que trate desigualmen-te pessoas, coisas ou situações com base em fatores estranhos a es-sas mesmas pessoas, coisas ou situações. E a hipótese da lei fixan-

do em 25% o imposto de renda dos indivíduos nascidos nos meses pares e em 30% o dos nascidos nos meses ímpares; de fato, o mêsdo nascimento é estranho e externo aos contribuintes, é neutro emrelação a eles. É possível, porém, a lei conceder isenção do impostode renda apenas aos nascidos há mais de 65 anos; na hipótese, esta-rá sendo levada em consideração, para o tratamento diferenciado, aidade do contribuinte (e as conseqüências dela derivadas: dificul-dade de ampliação da renda, necessidade de tratamentos médicos

mais freqüentes etc.).O tratamento diferenciado estabelecido pela lei é agressivo àisonomia quando não houver correlação lógica entre a diversidadedo regime estabelecido e o fator que tenha determinado o enqua-dramento, num ou noutro regime, das pessoas, coisas ou situaçõesreguladas. É que, assim sendo, a discriminação será gratuita, desarrazoada, sem sustento racional. É exemplo a distinção de vencimen-tos entre servidores públicos determinada pelo sexo (o sexo, con-

quanto seja um fator diferencial entre servidores, nenhuma ligaçãológica pode ter com uma maior ou menor remuneração). No entan-to, é perfeitamente ajustada ao princípio da igualdade a concessãode licença a servidores, quando do nascimento de seus filhos, com

 prazos distintos para homens (5 dias) e mulheres (120 dias); o be-neficio em favor da mulher se justifica por ser ela quem dá à luz e

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170 FUNDAM ENTOS DE DIREITO PÚBLICO

Entretanto, necessário lembrar que nem sempre basta, para va-

lidar a discriminação, o basearse logicamente em distinção real-mente existente entre as pessoas. Em certas hipóteses, a discrimina-ção, conquanto racionalmente amparada, frustraria a realização devalores constitucionais. Assim, por exemplo, seria logicamente pos-sível vedar aos cegos o acesso ao cargo de juiz de direito; o trata-mento diferenciado é consentâneo com a diferença de capacidadefísica entre eles e os dotados de visão perfeita. Porém, a discrimina-ção é juridicamente impossível, por violar as normas constitucio-nais que buscam promover a integração dos deficientes à vida co-munitária (art. 203, IV) e facilitarlhes o acesso aos cargos públicos

(art. 37, VIII).Esses aclaramentos ao princípio da igualdade são devidos a

Celso Antônio Bandeira de Mello, de cujas lições se pode colher uma síntese a respeito:

“Má ofensa ao preceito constitucional da isonomia quando:

“I A norma singulariza atual e definitivamente um destinatá-rio determinado, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, ouuma pessoa futura e indeterminada.

“II A norma adota como critério discriminador, para fins de

diferenciação de regimes, elemento não residente nos fatos, situa-ções ou pessoas por tal modo desequiparadas. É o que ocorre quan-do pretende tomar o fator ‘tempo’ que não descansa no objeto como critério diferencial.

“III A norma atribui tratamentos jurídicos diferentes em aten-ção a fator de discrímen adotado que. entretanto, nào guarda rela-ção de pertinência lógica com a disparidade de regimes outorgados.

“IV A norma supõe relação de pertinência lógica existenteem abstrato, mas o discrímen estabelecido conduz a efeitos contra-

 postos ou de qualquer modo dissonantes dos interesses prestigiadosconstitucionalmente.

“V A interpretação da norma extrai dela distinções, discrímens, desequiparações que nào foram professadamente assumidos

 por ela de modo claro, ainda que por via implícita” (O Conteúdo  Jurídico do Principio da Igualdade, pp. 4748).

30. Além de, como se viu, o princípio da isonomia interditar ao legislador a enunciaçào de discriminações especificas, está na

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P R IN C ÍP IO S G E R A IS D O D IR E IT O P Ú B L IC O 171

 base de inúmeros institutos e regras de direito público. São exem- plos a exigência de licitação para contratação, pelo Estado, de par-ticulares (CF, art. 37, XXI); a obrigatoriedade do concurso público para admissão de servidores (CF, art. 37, II); a igualdade dos liti-gantes no processo judicial, traduzida em idênticas possibilidadesde manifestação, de produção de provas, de recorrer, bem assim naidentidade dos prazos para fazêlo.

O princípio se aplica, em múltiplas derivações, tanto no direito processual quanto no administrativo, tributário e penal.

Sobre a incidência do princípio da igualdade no direito proces-sual, expõem Araújo Cintra. Ada Grinover e Cândido Dinamarco:

“A igualdade perante a lei é premissa para a afirmação daigualdade perante o juiz: da norma inscrita no art. 5Ü, caput , daConstituição, brota o princípio da igualdade processual. As partes eos procuradores devem merecer tratamento igualitário, para que te-

nham as mesmas oportunidades de fazer valer em juízo as suas ra-zões.

“Assim, o art. 125, inc. I. do Código de Processo Civil procla-ma que compete ao juiz ‘assegurar às partes igualdade de tratamen-to’; e o art. 9Udetermina que se dê curador especial ao incapaz quenào o tenha (ou cujos interesses colidam com os do representante)e ao réu preso, bem como ao revel citado por edital ou com horacerta. No processo penal, ao réu revel é dado defensor dativo e ne-nhum advogado pode recusar a defesa criminal. Diversos outros dis-

 positivos, nos códigos processuais, consagram o princípio da igual-dade” (Teoria Geral cio Processo, p. 53).

Celso Antônio Bandeira de Mello, explicando a impessoalidade, prevista constitucionalmente como princípio da AdministraçãoPública (portanto, do direito administrativo), demonstra ser ela umadas facetas do princípio da isonomia:

“Nele se traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismos nem perseguições sào toleráveis. Sim-

 patias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não po-dem interferir na atuação administrativa e muito menos interessessectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio emcausa nào é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia.Está consagrado explicitamente no art 37 caput da Constituição

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172 FUNDAME NTOS DE DIREITO PÚBLICO

Além disso, assim como ‘todos sào iguais perante a lei’ (art. 5Ü, ca-  pu t), afortiori teriam de sêlo perante a Administração.

“No texto constitucional há, ainda, algumas referências a apli-cações concretas deste princípio, como ocorre no art. 37, II. ao exi-gir que o ingresso em cargo, função ou emprego público dependade concurso público, exatamente para que todos possam disputarlhes o acesso em plena igualdade. Idem. 110 art. 37. XXI. ao esta-

 belecer que os contratos com a Administração direta e indireta de- penderão de licitação pública que assegure igualdade de todos os con-correntes. ü mesmo bem jurídico também está especificamente res-

guardado 11a exigência de licitação para permissões e concessões deserviço público (art. 175)” (Curso de Direito Administrativo, p. 68).

Roque Carrazza. após analisar o princípio republicano, explicasuas conexões com o da igualdade, bem assim sua aplicação emmatéria tributária:

“Do exposto, é intuitiva a inferência de que o princípio repu- blicano leva à igualdade da tributação. Os dois princípios interli-gamse e completamse.

“De fato, o princípio republicano exige que os contribuintes

(pessoas físicas ou jurídicas) recebam tratamento isonômico.“A lei tributária deve ser igual para todos e a todos deve ser 

aplicada com igualdade. Melhor expondo, quem está na mesma si-tuação jurídica deve receber o mesmo tratamento tributário. Seráinconstitucional por burla ao princípio republicano e ao da isono-mia a lei tributária que selecione pessoas, para submetêlas a re-gras peculiares, que não alcançam outras, ocupantes de idênticas

 posições jurídicas.

“O tributo, ainda que instituído por meio de lei, editada pela pessoa política competente, não pode atingir apenas um ou alguns

contribuintes, deixando a salvo outros que, comprovadamente, seachem nas mesmas condições.

“Tais idéias valem, também, para as isenções tributarias', évedado, ás pessoas políticas, concedêlas, levando em conta, arbitra-riamente, a profissão, o sexo, o credo religioso, as convicções polí-ticas etc., dos contribuintes. São os princípios republicano e daigualdade que. conjugados, proscrevem tais práticas” (Curso de Direito Constitucional Tributário, pp. 5960).

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P R I NC Í P I OS GE R AI S DO DI R E I T O P ÚB L I C O 173

E completa: “Reforça o princípio republicano, o da capacidadecontributiva, agora expresso na primeira parte do § lü, do art. 145,da Constituição Federal: 'Sempre que possível, os impostos terãocaráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômicado contribuinte(.

“O princípio da capacidade contributiva hospedase nas dobrasdo principio da igualdade e ajuda a realizar, no campo tributário, os

ideais republicanos. Realmente, é justo e jurídico que quem, em ter-mos econômicos, tem muito pague, proporcionalmente, mais impos-to do que quem tem pouco. Quem tem maior riqueza deve, em ter-mos proporcionais, pagar mais imposto do que quem tem menor ri-queza" (Curso de Direito Constitucional Tributário, pp. 6465).

31. Nào obstante seja próprio do direito público, seria exage-rado afirmar que o princípio da igualdade nào encontra aplicaçãonas relações privadas. Um empresário não pode, por exemplo, quan-

do da contratação de empregados, discriminar pessoas em razão dacor ou do sexo; a tanto veda a lei, que pune severamente tais discri-minações. Porém, é certo inexistir um direito genérico dos particu-lares à igualdade nas relações privadas. Por isso. o empreendedor 

 privado, desde que nào incida nas discriminações interditadas pelalei, pode escolher livremente seus empregados (ao contrário do Es-tado, que deve escolhêlos em concurso público) e seus fornecedo-res (à diferença da Administração, obrigada a licitar).

6. Devido processo

32. Em Capítulo anterior deixamos assentado que processo é oencadeamento necessário e ordenado de atos e fatos destinado à for-mação ou execução de atos jurídicos cujos fins são juridicamenteregulados. Como a “vontade” manifestada pelo Estado, na produ-ção de seus atos (sejam legislativos, administrativos ou jurisdicionais), traduz sempre o exercício de função, seguese que o processo

é o modo normal de agir do Estado. Em outras palavras: a realiza-ção do processo é indispensável à produção ou execução dos atosestatais.

Porém, não é qualquer processo que serve à produção de atosestatais, mas unicamente o que se convencionou chamar de devido 

 processo, dotado de um complexo de características fundamentais.

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174 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

Ada Grinover, embora se referindo ao princípio exclusivamen-te em sua projeção no direito processual (ou direito judiciário), de-monstra adequadamente que o devido processo é o que legitima aatividade estatal:

“A expressão ‘devido processo legal’, oriunda da Magna Car-ta de 1215, indica o conjunto de garantias processuais a serem asse-guradas à parte, para a tutela das situações que acabam legitimandoo próprio processo.

“Do ponto de vista do autor, que pede, e do réu, que se defen-de, o ‘devido processo legal' tutela a posição dos litigantes perante

os órgãos jurisdicionais. Mas do ponto de vista do Estado, obrigadoà prestação jurisdicional e sujeito passivo do direito de ação, essemesmo conjunto de garantia vai legitimar toda a atividade jurisdicional” (O Processo em sua Unidade, II, p. 60).

O devido processo é garantia dos particulares frente ao Estado.Garantia ao mesmo tempo passiva, isto é, dirigida à pessoa enquan-to sofre o poder estatal, e ativa, destinada a propiciar o acionamen-to da máquina estatal pelos membros da sociedade e a obtenção dedecisões.

33. Pelo ângulo da garantia dos particulares enquanto sujeitos passivos da atuação estatal, o devido processo determina certas ca-racterísticas inafastáveis dos processos legislativo e judicial e do

 procedimento administrativo.

O processo legislativo vem detalhadamente regulado pelaConstituição. A produção de atos legislativos é conferida (salvo si-tuações excepcionais) ao Poder Legislativo, formado por represen-tantes eleitos do povo, com alguma dose de colaboração do Execu-tivo. A garantia do devido processo na esfera legislativa está liga-da, em primeiro lugar, à determinação da autoridade competente para editar leis; o devido processo legislativo é o realizado, em maior  parte, pelo Poder Legislativo (o que assegura a participação dos des-tinatários da norma, através de seus representantes, na sua produ-ção). Em segundo lugar, a garantia do devido processo legislativoimplica a necessidade de se observar trâmites, prazos e quóruns es-

 pecificados para a emanação da lei.

 Na esfera judicial o devido processo se concretiza, em primei-ro lugar, pela garantia do juiz natural: “nào haverá juízo ou tribunal

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PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO PÚBLICO 175

de exceção” (CF, art. 5Ü, XXXVII), sendo que “ninguém será pro-cessado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (art.5U, LI 11). De outro lado, pela garantia do contraditório e da ampladefesa (com os meios e recursos a ela inerentes) aos litigantes e acu-sados em geral (art. 5a, LV). Paralelamente, pela exigência de moti-vação das decisões e de publicidade dos julgamentos (art. 93, IX).Por fim. pelo asseguramento ao particular do direito de nào ser pri-vado de sua liberdade física (ex.: através da prisão) ou de seus bens

(ex.: através da desapropriação) sem o devido processo ju dic ia l (art.5Ü, LIV, que fala em “devido processo legal" no sentido de proces-so realizado perante o Judiciário, com as garantias que lhe são ine-rentes).

A garantia do juiz natural está ligada á idéia de que o juiz deveser imparcial:

“Aos tribunais de exceção instituídos para contingências par-ticulares contrapòese o juiz natural, préconstituído pela Consti-

tuição e por lei.“Nessa primeira acepção, o princípio do juiz natural apresenta

um duplo significado', no primeiro consagra a norma de que só é ju iz o órgão investido de jurisdição (afastandose, desse modo, a possibilidade de o legislador julgar, impondo sanções penais sem processo prévio, através das leis votadas pelo Parlamento, muito emvoga no antigo direito inglês, através do bill o f attainder); no se-gundo impede a criação de tribunais ad hoc e de exceção, para o

 julgamento das causas penais ou civis.“Mas as modernas tendências sobre o princípio do juiz natural

nele englobam a proibição de subtrair o juiz constitucionalmentecompetente. Desse modo, a garantia desdobrase em três conceitos:a) só são órgãos jurisdicionais os instituídos pela Constituição; b)ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrênciado fato; c) entre os juizes préconstituídos vigora uma ordem taxativade competências que exclui qualquer alternativa deferida à discricio

nariedade de quem quer que seja. A Constituição brasileira de 1988reintroduziu a garantia do juiz competente no art. 52, inc. LI II.

“A imparcialidade do juiz é uma garantia de justiça para as par-tes. Por isso, têm elas o direito de exigir um juiz imparcial; e o Es-tado. que reservou para si o exercício da função jurisdicional, tem ocorrespondente dever de agir com imparcialidade na solução das

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176 FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

causas que lhe são submetidas” (Araújo Cintra, Ada Grinover e

Cândido Dinamarco, Teoria Geral do Processo, p. 52).

 Na esfera administrativa o princípio do devido processo tam- bém se realiza, nos termos do citado art. 5U, LIV, da Constituição,através da garantia do contraditório e da ampla defesa aos litigantese acusados em geral. Em decorrência dela, a aplicação de sançõesadministrativas deve ser precedida de procedimento onde se asse-gure a oportunidade para manifestação do interessado e para produ-ção das provas por ele requeridas, bem como o direito ao recurso etc.

34. Porém, o conteúdo significativo do princípio do devido processo é mais amplo, visto englobar também o direito de ação, vale dizer, o direito de provocar o Poder Judiciário para defesa con-tra lesões ou ameaças a direitos ou interesses, ou ainda, para o con-trole objetivo da validade dos atos estatais. Nesse sentido, dispõe oart. 5U, XXXV, da Constituição brasileira: “a lei não excluirá daapreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Em con-seqüência, nenhum ato do Poder Público, seja ele legislativo, sejaadministrativo, seja político, pode se subtrair ao controle judicial, provocado por ação adequada; com isso, o Judiciário é elevado à

condição de controlador da constitucionalidade e da legalidade dosatos estatais, ao mesmo tempo em que se apresenta como instru-mento de proteção do indivíduo frente a estes.

Escusado dizer que o direito de ação não se resume à possibilida-de de provocar o Judiciário e de receber dele uma decisão, mas tam- bém de ver instaurado um processo cercado de garantias mínimas,acima referidas (como a do juiz competente e a do contraditório).

De outro lado, a possibilidade de os particulares acionarem amáquina estatal para a obtenção de decisões em defesa de seus di-

reitos e interesses nào se resume ao direito de ação, exercitado pe-rante o Judiciário. A Constituição garante, também, “o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilega-lidade ou abuso de poder” (art. 5L\ XXXIV, “a”). Correlato dessedireito é, obviamente, o dever de a Administração Pública exami-nar a petição, darlhe processamento adequado e decidir acerca doque nela se contém.

35. Ao princípio do devido processo, típico do direito público,contrapõese, no direito privado, a faculdade de os sujeitos deter-

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minarem livremente o iter  formativo de suas vontades, sem vinculação a qualquer processo juridicamente regulado.

7. Publicidade

36. A razão de ser do Estado é toda externa. Tudo que nele se passa, tudo que faz, tudo que possui, tem uma direção exterior. Afinalidade de sua ação não reside jamais em algum beneficio ínti-

mo: está sempre voltado ao interesse público. E o que é interesse público? 0 que o ordenamento entende valioso para a coletividade (nào para a pessoa estatal) e que, por isso, protege e prestigia. As-sim, os beneficiários de sua atividade são sempre os particulares.Os recursos que manipula nào sào seus: vêm dos particulares indi-vidualmente considerados e passam a pertencer à coletividade de-les. Os atos que produz estão sempre voltados aos particulares: mes-mo os atos internos são mero estágio intermediário para que, a fi-nal, algo se produza em relação a eles. Em uma figura: falta ao Es-tado vida interior , faltamlhe interesses pessoais íntimos.

Com os indivíduos é o inverso o que ocorre. Sua atividade dizcom a liberdade, com a realização de valores íntimos. Por isso, pro-tegese sua privacidade, sua correspondência é sigilosa, sua casa éinviolável (CF, art. 5U, incs. X, XI e XII). Como o Estado jamaismaneja interesses, poderes ou direitos íntimos, tem o dever da maisabsoluta transparência. “Todo o poder emana do povo” (CF, art. lü,§ lü). E óbvio, então, que o povo, titular do poder, tem o direito de

conhecer tudo o que concerne ao Estado, de controlar passo a passoo exercício do poder. A margem disso, qualquer pessoa atingida pelo Poder Público isto é, que de qualquer modo seja destinatária, prejudicada ou atendida por ato estatal tem o direito individual deconhecer esse ato, suas razões, sua base fática e jurídica. Em conse-qüência, seja em nome da limpidez da atividade estatal, seja para ga-rantia de direitos individuais, o Estado tem o dever da publicidade.

37. A publicidade, no sentido de que estamos tratando, nào se

resume à divulgação dos atos. que atina à existência e eficácia de-les. Decerto que qualquer ato, em direito, para existir, tem de pos-suir uma forma, é dizer, deve se exteriorizar de algum modo. Nessamedida, qualquer ato, mesmo em direito privado, só existe se lhefor dada alguma publicidade; antes dela, pode se falar de intenção

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do sujeito, de vontade psicológica, não de ato jurídico. Quando adoutrina e a jurisprudência falam da publicidade dos atos estatais,normalmente fazem referência a esse sentido examinam como oato deve ser notificado a seus destinatários: se através de publica-ção, se por intimação etc. No entanto convém insistir essa pu- blicidade não é algo exclusivo do direito público, mas se esparrama por todo o Direito. O que há de especial em relação ao Estado é aabrangência e a forma dessa divulgação. Nada mais.

 Não obstante, estamos a falar em publicidade em sentido mais

largo. Evidente que o Estado deve divulgar seus atos. como condi-ção de existência e validade deles, mas não se resumem nisso seusdeveres para com a publicidade. Em paralelo, tem o dever de agir demodo diáfano, de se franquear ao conhecimento público, de se des-nudar, mesmo quando nào esteja em pauta a notificação de seus atos.

Importa, então, deixar estabelecido que a ampla publicidade noaparelho estatal é princípio básico e essencial ao Estado Democrá-tico de Direito, que favorece o indispensável controle, seja em fa-vor de direito individual, seja para a tutela impessoal dos interesses

 públicos.

38. Esse princípio não carecia de expressa previsão normativ para incidir, eis que decorre do sistem a constitucional adotado. Noentanto, de tão importante, mereceu sucessivas referências da Cons-tituição brasileira, não só para se tomar induvidoso, e, com isso.ficar a salvo de eventual amesquinhamento, como para garantirsesua real incidência em todos os campos do direito público.

Assim, ficou assegurado a todos o direito à informação e à cer-tidão, nos seguintes termos: “todos têm o direito a receber dos ór-gãos públicos informações de seu interesse particular, ou de inte-resse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob penade responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescin-dível à segurança da sociedade e do Estado” (art. 5a, XXXIII); e é“a todos assegurada, independentemente do pagamento de taxas, aobtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitose esclarecimento de situações de interesse pessoal” (art. 52, XXXIV).

Com referência à Administração Pública, o art. 37, caput , preceituou expressamente seu dever de obediência ao princípio da publi-cidade.

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PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO PÚBLICO 179

O sigilo, a autorizar a denegaçào da informação ou da certi-dão, só se justif ica em duas situações, de caráter excepcional: quan-do for imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (ex.:sigilo com relação aos planos militares, em tempo de guerra) ouquando a publicidade violar a intimidade de algum particular (ex.:sigilo, em relação a terceiros, dos dados clínicos de paciente inter-nado em hospital público). Afora esses casos, quem solicita infor-mação ao Estado tem o direito de obtêla. o que é mera decorrênciada cidadania.

Ademais, especificamente para a obtenção de informações decaráter pessoal (e para retificação de dados falsos ou incompletos),a Constituição criou ação judicial própria: o habeas data (C'F, art.5Ü. LXXII1).

39. Para o direito processual, a Constituição estabeleceu ex- pressamente que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social oexigirem" (art. 5L>, LX). Não satisfeita, dispôs, em seu art. 93, IX.

que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão pú- blicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, emdeterminados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou so-mente a estes”.

“O principio da publicidade do processo constitui uma precio-sa garantia do indivíduo no tocante ao exercício da jurisdição. A

 presença do público nas audiências e a possibilidade do exam e dosautos por qualquer pessoa representam o mais seguro instrumentode fiscalização popular sobre a obra dos magistrados, promotores

 públicos e advogados. Em última análise, o povo é o juiz dos jui-zes. E a responsabilidade das decisões judiciais assume outra di-mensão, quando tais decisões hão de ser tomadas em audiência pú-

 blica, na presença do povo.

“Foi pela Revolução Francesa que se reagiu contra os juízossecretos e de caráter inquisitivo do periodo anterior. Famosas as pa-lavras de Mirabeau perante a Assembléia Constituinte: ‘donnezmoi

le juge que vous voudrez: partial, corrupt. mon ennemi même, sivous voulez, peu nfimporte pourvu qifil ne puisse rien faire qifàla face du public’. Realmente, o sistema da publicidade dos atos

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FUNDAMENTOS DE DIREITO PÚBLICO

 processuais situase entre as maiores garantias de independência,imparcialidade, autoridade e responsabilidade do juiz” (Araújo Cin-tra. Ada Grinover e Cândido Dinamarco, Teoria Geral do Processo . p. 69).

S. Responsabilidade objetiva

40. A responsabilidade do Estado pelos prejuízos que. atravésde seus comportamentos, cause a terceiros tem sido, por razões his-tóricas, estudada preferencialmente pela doutrina do direito admi-

nistrativo. Em rigor, contudo, é tema do direito público geral; comefeito, o Poder Público nào responde apenas por seus atos adminis-trativos, mas também por seus atos legislativos e jurisdicionais.

41. Dispõe o art. 37, $ 6U, do Texto Constitucional que, “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado presta-doras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agen-tes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito deregresso contra o responsável nos casos de culpa e dolo”.

O dispositivo preceitua expressamente que o Estado nào é ir-responsável. devendo, obrigatoriamente, arcar com os prejuízos pro-vocados por sua ação ou inação. Tratase de exigência do Estado deDireito; seria contraditório o Poder Público submeterse ao Direitoe, ao mesmo tempo, ficar imune ao dever de indenizar toda vez queseus comportamentos atinjam a esfera jurídica dos particulares. As-sim, o versículo transcrito nada mais contém que a consagração ex- pressa de princípio implícito no próprio sistema do Estado de Di-reito.

É a opinião de Celso Antônio Bandeira de Mello, cujas lições

inspiram integralmente o presente tópico:“Segundo entendemos, a idéia de responsabilidade do Estado

é uma conseqüência lógica inevitável da noção de Estado de Direi-to. A trabalharse com categorias puramente racionais, dedutivas, aresponsabilidade estatal é simples corolário da submissão do Poder Público ao Direito.

“Deveras, a partir do instante em que se reconheceu que todasas pessoas, sejam elas de direito privado, sejam de direito público,encontramse, por igual, assujeitadas à ordenação jurídica, terseia

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que aceitar, a bem da coerência lógica, o dever de umas e outras sem distinção responderem pelos comportamentos violadores dodireito alheio em que incorressem.

“Ademais, como o Estado moderno acolhe, outrossim, o prin-cípio da igualdade de todos perante a lei, forçosamente haverseáde aceitar que é injurídico o comportamento estatal que agrave de-sigualmente a alguém, ao exercer atividades 110 interesse de todos,sem ressarcir ao lesado” (Curso de Direito Administrativo, pp. 573574).

42.  Nada obstante, a responsabilidade estatal não é igual à res- ponsabilidade comum dos particulares. Governase por regras pró- prias do direito público, que a fazem mais ampla.

 No direito privado a responsabilidade se liga, em geral, à idéiade culpa. O particular é obrigado a indenizar os danos que cause aoutrem quando tenha agido com culpa em sentido amplo, isto é,

quando, por ação ou omissão voluntária, violar as normas jurídicas(com a intenção de fazêlo, ou mesmo por imperícia, imprudênciaou negligência). Daí se dizer que a responsabilidade típica do direi-to privado é a subjetiva.

Já no direito público, a responsabilidade é objetiva, indepen-dente de culpa. O Estado é obrigado a reparar os danos que cause,quer tenha agido contra o Direito, quer tenha observado rigorosa-mente as normas jurídicas; em outras palavras: responde por atos

lícitos e ilícitos. A responsabilidade por atos ilícitos deriva de seudever de submissão á ordem jurídica. Já a responsabilidade por comportamentos lícitos decorre do princípio da igualdade. Poucoimporta que o Estado tenha agido rigorosamente dentro dos parâ-metros constitucionais e legais. Se causa um prejuízo a alguém, aoaplicar o direito, é porque este é indispensável ao atendimento decerto interesse público; seria contrário à isonomia um indivíduo su- portar sozinho o prejuízo gerado no interesse de todos.

A notável administrativista Weida Zancaner explica com pro- priedade 0 duplo fundamento da responsabilidade estatal: “toda vezque o administrado sofrer qualquer dano originário de ato ilícito ehouver um nexo de causalidade entre a atividade da administraçãoe 0 evento danoso, 0 Estado responde, qualquer que seja 0 dano. O

 princípio que fundamenta esse ressarcimento é o princípio da lega

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182 f u n d a m f  -:n t o s   d e  d i r e i t o   p ú b l i c o

Iidade, mesmo porque a administração regese sob a égide da lega-lidade. não devendo dela apartarse, sendo que, toda vez que o faça.deve arcar com as conseqüências; e toda vez que um administradosofrer dano anormal e especial, decorrente de atividade lícita da ad-ministração, e houver um nexo de causalidade entre a atividade ad-ministrativa e o evento danoso, o Estado responde, mas é precisoque, realmente, o dano seja anormal e especial, pois, neste caso, oque fundamenta o ressarcimento é o princípio da igualdade dos ad-ministrados perante os encargos públicos” (Da Responsabilidade Extracontratual da Administração Pública, pp. 5556).

43. Para, diante de um evento lesivo, configurarse a responsa- bilidade estatal, necessária a existência de relação de causa e efeitoentre o comportamento do Estado (positivo ou negativo, isto é, umaação ou uma omissão) e o dano provocado. A responsabilidade ob-

 jetiva não faz do Estado um segurador universal, mas apenas o obri-ga a suportar os prejuízos que gere, direta ou indiretamente (por isso, o Poder Público não é responsável, p. ex., pelos prejuízos cau-sados à safra agrícola em virtude de chuvas anormais).

Quando se tratar de danos derivados de comportamento positi-vo (por ação), pouco importa a juridicidade ou ilegitimidade da con-duta estatal: havendo nexo de causalidade entre esta e o dano, sur-ge a vinculaçào do Estado (hipótese de responsabilidade por ato ilí-cito é a do dano causado em acidente com veículo oficial; por atolícito, é a do prejuízo originado aos comerciantes pelo fechamentoda via pública para a realização de obras). Quadra atentar que a res- ponsabilidade estatal por atos positivos existe mesmo que o danonão derive imediatamente da ação do Estado; basta que o ato esta-tal seja causa mediata do dano. ao expor o particular a situação de

risco (ex.: o assassinato de um presidiário por outro gera a respon-sabilidade estatal, porque o Estado, ao encarcerar o indivíduo, submeteuo a situação de risco).

Entretanto, quando em pauta a responsabilidade por comporta-mento negativo, o Estado só responderá se houver omitido dever que lhe tenha sido prescrito pelas normas; não se sua inação for lí-cita. É que o conceito de omissão, em direito, está ligado ao de ilicitude. Sob o ponto de vista jurídico, a mera inação não configu-ra omissão; esta só se apresenta quando, tendo o dever de agir, o

sujeito fica inerte. Assim, o Estado não é obrigado a indenizar pelo

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PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO PÚBLICO 183

homicídio praticado pela mulher contra o marido, dentro de casa,embora seja certo que a presença da polícia no local, antes do even-to, impediria sua consumação. É que inexiste um dever jurídico deo Poder Público policiar o interior das residências; logo. não ocor-reu omissão. No entanto, o Estado responde pelo acidente automo-

 bilístico causado pela falta de conservação de uma estrada; no caso,terá deixado de cumprir o dever de conservar a via pública.

44. Não é qualquer dano econômico que gera a responsabili-dade do Estado. Necessária sempre a lesão a direito da vítima. As-sim, não é indenizável a desvalorização do imóvel de particular cau-sada pela instalação, em terreno vizinho, outrora desocupado, de

 prédio para repartição pública; realmente, os proprietários não têmo direito de que o Estado deixe vagos seus imóveis.

Além disso, quando em pauta a responsabilidade estatal por 

comportamentos lícitos, mister que o dano sofrido seja anormal (isto é, excedente das inconveniências comuns da vida em socieda-de) e especial (ou seja, atinja sujeitos determinados, não as pessoasem geral). É normal o prejuízo causado ao comerciante pela insta-lação de feira pública na via onde se situa seu estabelecimento; noentanto, é anormal e por isso suscita a responsabilidade do Esta-do o fechamento definitivo da via pública, que inutilize o ediflciogaragem nela situado. Genérico e, por isso, não indenizável

é o dano produzido aos proprietários pela lei que reduza a possibili-dade de construção de edifícios de 10 andares; mas é especial odano causado pela proibição, imposta por ato administrativo, da de-molição de determinado prédio histórico.

45. A ampla responsabilidade do Estado por comportamentosadministrativos é, no Brasil, reconhecida sem divergências peladoutrina e jurisprudência. Contudo, o mesmo não se passa com re-lação aos atos jurisdicionais.

Os principais argumentos levantados contra a responsabiliza-ção estatal no caso são, de um lado. a idéia de que o Judiciário, emsuas decisões, expressaria a soberania do Estado e, de outro, a cir-cunstância de que tais decisões se beneficiam dos efeitos da coisa

 julgada. O primeiro argumento traduz mero preconceito, desafina-d E t d d Di it O d té d d

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ça de verdade legal, definitiva e imutável, inexistirá fundamento ló-gico para outorgar indenização àquele que se sentir por ele prejudi-cado. Porém, nem todas as decisões judiciais gozam da característi-ca da imutabilidade. Sào exemplos: o despacho que concede ounega liminar em mandado de segurança, a decretação de prisão pre-ventiva. a sentença condenatória no crime, a sentença ainda susce-tível de ser atacada por ação rescisória. Em todos esses casos, a pro-vidência determinada pelo ato judicial pode, posteriormente, ter seufundamento infirmado por outro, abrindo campo à responsabiliza-

ção do Estado. Assim, por exemplo, há responsabilidade estatalquando o juiz, presentes as condições previstas em lei, decreta a prisão preventiva do acusado de crime mas, na sentença, vem a re-conhecer sua inocência; a responsabilização não deriva da ilegali-dade da prisão, que estava autorizada por lei. mas de ato jurisdicional lícito. De outra parte, a responsabilização do Estado pode deri-var justamente da omissão de seu dever de julgar (caso do retarda-mento excessivo na prolação da sentença); na hipótese, nem se põeo problema da coisa julgada. Devese invocar, por fim, em abono

da tese da responsab ilidade pelos atos jurisdicionais , o art. 5Ü,LXXV, da Constituição brasileira, segundo o qual “o Estado inde-nizará o condenado por erro judiciário”.

46. Quanto à responsabilidade por atos legislativos, tambétem encontrado opositores.

Inicialmente porque a lei seria fruto da soberania do Estado,que deve se impor a todos, sem compensação. O argumento é falso.De um lado, porque a soberania quem expressa é o constituinte, nãoo legislador o que é fundamento para a anulação das leis inconsti-tucionais e, em conseqüência, para a responsabilização do Estado

 pelos prejuízos por elas gerados. De outro, porque o poder de auto-ridade. que o legislador exerce ao editar a lei, nào tem a virtualidade de, simplesmente, apagar os direitos individuais constitucional-mente assegurados donde a lei, mesmo constitucional, que impor-te lesão de direito gerar o dever estatal de reparação do dano.

Outro argumento é ainda mais equivocado. Baseiase na supo-sição de que a lei, geral, impessoal e abstrata, não atinge, de modo

especial, situações individuais, aplicandose genericamente a todos.A tese desconhece, em primeiro lugar, a existência, cada vez maiscomum, de leis concretas; em segundo, que a generalidade da lei

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P R I N C Í P IO S G ER A I S D O D I R EI TO P Ú B LI C O 185

nem sempre impede a especialidade de sua incidência; em terceiro,que o dano gerado por lei inconstitucional, mesmo se genérico, devenecessariamente ser indenizado, em virtude do princípio da submis-são do Estado à ordem jurídica.

 Não pode haver dúvidas, portanto, quanto à responsabilidadeestatal pelos danos causados por atos legislativos. No caso das leisinconstitucionais, todos os prejuízos que causem diretamente aos particulares serão ressarcidos. Na hipótese das leis constitucionais,

o dano indenizável é apenas o especial e o anormal, como já referi-mos anteriormente. Por fim, havendo omissão legislativa caracte-rizada pela não edição de lei indispensável á eficácia de normaconstitucional assecuratória de direito o Estado também será res- ponsável pelos danos daí derivados.

9. Igualdade das pessoas, políticas

47. Por fim, cumpre arrolar um princípio atinente à organiza-

ção espacial da estrutura de poder. O Estado brasileiro não é unitá-rio. Suas atribuições, tanto legislativas como administrativas, sãodescentralizadas entre as várias pessoas políticas: União, Estadosmembros, Distrito Federal e Municípios. Sob o ponto de vista jurí-dico, as pessoas políticas são absolutamente iguais entre si; todassão criaturas da Constituição, que outorgou a cada qual uma esferairredutível e impenetrável de competências, exercidas com toda in-dependência.

A União não é mais importante ou hierarquicamente superior aos Estados e Municípios, nem os Estados o são em relação aosMunicípios. Todos estão no mesmo nível. A relação entre eles é deigualdade, de isonomia.

48. Decorre disso conseqüência muito importante: não há qual-quer hierarquia entre leis federais, estaduais ou municipais, feitas,respectivamente, pela União, pelos Estados e pelos Municípios. Na pirâmide jurídica (que representa graficamente o direito) tais leis

estão todas no mesmo patamar, uma ao lado das outras e todas sesituam abaixo da Constituição.

 Nada melhor do que, finalizando, invocar as palavras de ummestre como Souto Maior Borges: “Concluise, pois, que não há,

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em princípio, supremacia da União sobre os Estadosmembros eMunicípios, em face dos rígidos critérios constitucionais de reparti-ção de competências. As pessoas políticoconstitucionais são todasisônomas, porque são todas entidades, criaturas da Constituição. Asrelações entre as pessoas constitucionais são relações de coordena-ção e não de subordinação; de justaposição e não de superposição.

“O princípio de isonomia entre as pessoas políticoconstitucio-nais, na federação brasileira, é um princípio implícito que decorre

do sistema federal de governo e do mecanismo constitucional derepartição de competências legislativas. Deflui, portanto, do princí-

 pio expresso da competência dessas entidades constitucionais. (...)

“Todas as pessoas constitucionais são por igual e unicamentesubordinadas à Constituição. As leis ordinárias da União, Estadosmembros e Municípios retiram a sua validade da conformação com aConstituição Federal” (Lei Complementar Tributária, pp. 12 e 17).

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OUTRAS OBRAS DESTA EDITORA

 Apontam entos de Direi to Tributár io (3a ed., 2009) Valéria Furlan

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Manual Didático de Direito Processual do Trabalho (5aed., 2012) Adalberto Martins

Teoria Geral do Estado (9a ed., 2012) Paulo Bonavides

Teoria Geral do Processo (28a ed., 2012) Cintra, Grinover & Dinamarco

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fUNDAMCNICS CE I I I I 1 1 4   PÍJI3I ICC

4 A l I < S A l I \ l M 1111

No “Prefácio” desta obra diz o Prof. Geraldo Ataliba, constatandoque o Brasil está muitos anos defasado em relação ao ensino e aplica-ção do Direito Público: “Como se vivêssemos em 1910, dáse ao estu-dante a impressão de que o mundo do direito é formado pelo direito civil,comercial e penal. Mais grave fica o problema quando se verifica que amaioria dos estudantes e mesmo já graduados supõe que a lei geral

de aplicação de normas jurídicas (entre nós impropriamente designadacomo Lei de Introdução ao Código Civil) é de direito privado, levando aoequívoco de pensar que o direito civil é a matriz do direito. Tal perspec-tiva privatista é deformante e tem gravíssimas repercussões na própria