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SIDIO ROSA DE MESQUITA JNIOR
ANLISE CRTICA DO
DIREITO CRIMINAL
(teoria do crime)
Volume 1
BRASLIA
2012
A disponibilizao do texto ser feita aos alunos, mas vedada a sua divulgao por qualquer meio, podendo seradotada qualquer providncia (civil ou criminal) contraaluno que o autor entender ter feito difuso no autorizadado mesmo.
Obs.: caso queira imprimir, faa isso em frente e verso.
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Dados da editora
SIDIO ROSA DE MESQUITA JNIOR
ANLISE CRTICA DO
DIREITO CRIMINAL
(teoria do crime)
Volume 1
BRASLIA
2012
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minha mulher (pessoa com quem esperoviver uma eternidade) e aos meus maravilhosos
filhos. Tambm, aos doutrinadores que foram
citados com expresses de respeito e admirao,
uma vez que me incentivaram (direta ou
indiretamente) e tornaram possvel a elaborao
deste. Dentre eles, destaco Joo Maurcio
Adeodato, mas estendo aos outros que, conhecendo
pessoalmente ou no -, muito contriburam para
meu desenvolvimento jurdico. Finalmente, aos
meus alunos atuais e de outrora pessoas s
quais muito devo e que constituem o motivo ltimo
de estar publicando este livro.
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NDICE
____________________
Abreviaturas e siglas
Nota do autor
Introduo
1. Introduo,
1.1 Diviso da obra em volumes,
1.2 O cdigo penal vigente,1.3 Como o assunto ser tratado,
1.4 Motivao do autor,
2. Noes preliminares
2.1 Proposta de estudo
2.2 O porqu do estudo filosfico
2.2.1 Objeto de estudo da jusfilosofia2.2.2 Graus do conhecimento, conceito e autonomia do DCrim
2.2.3 A localizao de topoie o problema das classificaes
2.3 Relaes do DCrim
2.4 Denominao
2.5 Histria do DCrim e a sua relao com a filosofia
2.5.1 Generalidades
2.5.2 Ideias e instituies criminais
2.5.2.1 Significado de ideias e instituies criminais
2.5.2.2 Fase da vingana
2.5.2.3 Lei de talio e a pena de morte
2.5.2.4 Composio
2.5.2.5 Cdigos escritos
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2.5.2.6 Povos antigos
2.5.2.6 Direito da igreja
2.5.2.7 Perodo humanitrio
2.5.2.8 Perodo criminolgico
2.5.3 Escolas criminais
2.5.3.1 Escola clssica
2.5.3.2 Escola positiva
2.5.3.3 Funcionalismo
2.5.3.4 Formao multidisciplinar do direito e o funcionalismo
criminal: teorias do discurso2.5.4 DCrim no Brasil
2.5.4.1 Das ordenaes do reino ao cdigo penal vigente
2.5.4.2 Lei das contravenes penais e distino entre crime e
contraveno
2.6 Sano criminal e outras sanes
2.7 Fontes do direito criminal2.7.1 Fontes materiais
2.7.2 Fontes formais
2.7.2.1 Imediatas
2.7.2.2 Mediatas
2.8 Posio enciclopdica
2.9 Outras classificaes
2.10 Caracteres do dcrim
2.11 DCrim, Penalogia, Poltica Criminal, Vitimologia e Criminologia
2.11.1 Objeto de estudo de cada cincia
2.11.2 Conceituando a criminologia
2.11.3 Autonomia da criminologia
2.11.4 Mtodo de estudo da criminologia
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2.11.5 Criminologia clssica (ou positiva?)
2.11.6 Vertentes hodiernas
2.11.6.1 Contextualizando a criminologia e dentre os movimentos
que tendem ao combate da criminalidade
2.11.3.2 As denominadas escolas criminolgicas
2.11.3.3 Criminologia crtica e abolicionismo, minimalismo e
maximizao do DCrim
3. Lei criminal e outras regras gerais
3.1 Objetivos deste captulo
3.2 Conceito e espcies de normas criminais3.2.1 Conceito e elementos mnimos
3.2.2 Classificao
3.4 Hermenutica e interpretao da norma criminal
3.4.1 Distino entre hermenutica e interpretao
3.4.2 Escola da exegese
3.4.2 Escola histrico-evolutiva e direito livre3.4.3 Mtodos de interpretao
3.5 Lei criminal no tempo
3.5.1 Princpios da legalidade e da reserva legal
3.5.2 O garantismo e o direito criminal funcionalista
2.5.3 Bases do garantismo
2.5.4 Congruncia das teorias: funcionalismo e garantismo
3.5.5 Princpio da anterioridade
3.5.6 Princpio da irretroatividade
3.5.7 Retroatividade benfica da lei criminal
3.5.8 Ultra-atividade da lei criminal
3.5.9 O fenmeno da ultra-atividade e retroatividade da lei ao mesmo
tempo
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3.6 Lei criminal no espao
3.6.1 Princpio da territorialidade
3.6.1.1 Sentido do princpio
3.6.1.2 O princpio da territorialidade ante a corte internacional
criminal
3.6.3 Da extraterritorialidade
3.6.4 Lugar do crime
3.7 a norma criminal quanto s pessoas
3.7.1. Distino entre imunidade e prerrogativa de foro
3.7.2 imunidades3.7.2.1 Espcies bsicas
3.6.2.2 Imunidade absoluta
3.6.2.3 Imunidade relativa
3.7 Pena cumprida no estrangeiro
3.8 Sentena estrangeira
3.9 Contagem do prazoReferncias
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ABREVIATURAS E SIGLAS
_________________________________
CADEConselho Administrativo de Defesa Econmica
CCCdigo Civil
CFConstituio Federal
CPCdigo Penal
CPPCdigo de Processo Penal
DCrimDireito Criminal
DProcDireito Processual
DAdmDireito Administrativo
DConstDireito Constitucional
DCivDireito Civil
DExecCrimDireito de Execuo Criminal
ECEmenda Constituio
LICPCPPLei de Introd. ao Cdigo Penal e ao Cdigo de Processo Penal
LEPLei de Execuo Penal
PG/CPParte Geral do Cdigo Penal
SINICSistema Nacional de Identificao Criminal
STJSuperior Tribunal de Justia
STFSupremo Tribunal Federal
TACrimTribunal de Alada Criminal
TJDFTTribunal de Justia do Distrito Federal e Territrios
v.g.verbi gratia
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NOTA DO AUTOR
_________________________
O presente livro volta-se ao pblico acadmico em geral. uma obra
que pretende merecer ostatusde anlise propedutica e doutrinria do Direito
Criminal ptrio, mas sem esgotar todos os assuntos que o Direito Criminal
aborda, uma vez que, at em um tratado, impossvel enfrentar todos os
temas que o exame cientfico da norma criminal viabiliza. No obstante isso,
o objetivo desenvolver uma anlise mais aprofundada e crtica do DCrim.
O livro ir alm do Cdigo Penal (CP), no sendo apenas uma
abordagem momentnea da legislao vigente. Apresenta um contedo
atualizado e crtico das posies consolidadas e que esto emergindo acerca
do Direito Criminal (DCrim), mas com razovel enfoque jusfilosfico, base
do discurso jurdico na atualidade.
Restringir o DCrim s normas que constituem seu objeto de estudo
equivocado. Pior seria restringi-lo legislao criminal, uma vez que o
conceito de norma jurdica mais amplo que o conceito de lei. por essa
razo que o estudo estar permeado de anlises que induziro o leitor a
perceber que o cientista do Direito no pode resolver todas as questes que
lhe so apresentadas. A maioria dos problemas jurdico-criminais ensejamdiscusses que tem solues metajurdicas.
Este livro conter anlises mais aprofundadas no primeiro volume, que
versar inicialmente sobre a propedutica processual, onde a preocupao
maior ser a de apresentar o conceito e a evoluo histrica do DCrim.
Outrossim, uma das maiores preocupaes dos 2 primeiros captulos ser
contextualizar o DCrim, esclarecendo trs pontos principais:
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necessrio empregar terminologias adequadas e se esclarecer o
conceito de cada palavra utilizada, evitando-se cair discusses vazias,
pois, conforme Heidegger nos ensinou, necessrio que se tenha
definies claras do ente, do ser e do fenmeno, a fim de evitar
confuses que tornam equivocados os estudos e, consequentemente as
concluses.1 Ele dizia que o pensamento e o discurso residem e se
movem na linguagem.2 Assim, mister o rigor terminolgico e o
emprego de palavras adequadas ao estudo cientfico que se desenvolve;
a questo da legitimidade, para parte da jusfilosofia, anterior ao
Direito. Todavia, ningum duvida que melhor que a norma seja
legtima, o que enseja a anlise, j no Cap. 1, de questes relativas
evoluo da jusfilosofia e sua posio atual, com profundos reflexos na
teoria do crime e da pena.
a norma jurdica precisa ser definida, uma vez que constitui pressuposto
do crime e da pena. Esclarecer o alcance da norma, em relao ao
tempo, ao espao e s pessoas, fundamental, a fim de possibilitar sua
correta aplicao aos casos concretizados;
A teoria do crime ser desenvolvida a partir do 3 captulo, sendo que
este volume corresponder ao previsto na maioria das faculdades de Direito,
visando a atender ao programa de Direito Penal I.
Os demais volumes visaro a atender respectivamente aos seguintes
contedos programticos: (a) Direito Penal II: vol. 2 teoria da pena; (b)
Direito Penal III: vol. 3 Parte Especial: dos crimes contra a pessoa aos
crimes contra a dignidade sexual; (c) Direito Penal IV: vol. 4Parte Especial:
1 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 12. ed. (Parte I) e 10. ed. (Parte II). Petrpolis:Vozes, 2.002.passim.2Idem. Que isto a filosofia? STEIN, Ernildo. Os pensadores: Heidegger. So Paulo:
Nova Cultural, 1996. p. 24.
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dos crimes contra a famlia aos crimes contra a administrao pblica; (d)
Direito Penal Vvol. 5Legislao criminal especial.
O estudo procurar ser profundo, mas com apresentao sucinta,
evitando-se repeties de conceitos e teorias expostos nos 2 primeiros
volumes. Com isso, a compreenso do exposto nos volumes que trataro da
parte especial e da legislao criminal especial exigir conhecimento prvio
do objeto de estudo dos 2 primeiros volumes.
A crtica, aqui utilizada no sentido de indagao, acompanhar todo
livro. O objetivo ser propiciar concluses racionais acerca de casos concretos
e tornar possvel a construo do saber jurdico-criminal do estudante da
graduao em Direito, bem como contribuir para a evoluo terica daqueles
que j trilham esse fascinante caminho.
O autor.
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INTRODUO
____________________
1.1 DIVISO DA OBRA EM VOLUMES
O DCrim vem sofrendo muitas transformaes nos ltimos anos. No
h acordo na doutrina sobre muitos aspectos. Assim, por responsabilidade, oestudo no pode apresentar uma nica posio doutrinria.
Procurarei ser o mais abrangente possvel, isso no tocante
apresentao, mesmo que de forma sucinta, das posies doutrinrias
divergentes e das vrias teorias incidentes sobre os assuntos que sero
examinados, ganhando prestgio especial as teorias da norma e do crime,
calcadas na moderna corrente jusfilosfica denominada funcionalismo. Paratanto, ser necessrio reservar este volume propedutica, na qual se estudar
a teoria geral do DCrim, a partir da sua histria, relaes e fontes, at chegar
s teorias da norma jurdico-criminal e do crime.
1.2 O CDIGO PENAL VIGENTE
O Cdigo Penal (Decreto-lei n. 2.848, de 7.12.1940) dividido em duaspartes principais, uma geral e outra especial, o qual foi institudo em 1940,
com incio de vigncia em 1941. A Parte Geral (PG) foi completamente
modificada em 1984 (Lei n. 7.209, de 11.7.1984).
Na impossibilidade concreta de se criar um novo Cdigo Penal, foram
inseridas vrias as modificaes no texto da PE. Por outro lado, a PG no
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restou ilesa, ou seja, vrias leis posteriores Lei n. 7.209/1984 modificaram
substancialmente o contedo desta.
A PG, como o prprio nome sugere, traz normas gerais aplicveis aos
crimes em espcie, dando a orientao sobre a aplicao da lei, definindo o
crime, as condies de aplicao das sanes criminais, a iniciativa da ao e
a punibilidade. A PE descreve os crimes em espcie, cominando a pena
aplicvel a cada um deles. Excepcionalmente, a PE e traz algumas disposies
gerais que incidiro sobre determinados delitos. De qualquer modo, em
relao s constantes da PG sero especiais, visto que se destinaro aos
crimes que especialmente sero disciplinados por ela, em desprestgio das
disposies da PG.
O estudo da PE exige a constante aplicao dos conhecimentos
relativos PG. impossvel dissociar as duas partes, visto que a PG quem
oferece as orientaes para hermenutica e aplicao da PE. Destarte, sero
frequentes, nos comentrios aos dispositivos da PE, as referncias aos
preceitos da PG. Por outro lado, apresentarei preceitos constantes da
legislao criminal extravagante, mormente quando houver semelhana entre
o preceito CP e o da lei especial que ser mencionada.
1.3 COMO O ASSUNTO SER TRATADO
A apresentao dos assuntos acompanhar a distribuio do CP, sendo
que, por opo didtica, serei razoavelmente fiel sequncia da lei, pois
assim o leitor conhecer mais facilmente cada um dos temas expostos. No
entanto, os artigos sero reunidos em captulos, podendo ocorrer algumas
inverses nas sequncias das disposies legais, tudo visando a facilitar a
compreenso de cada norma expressa no CP.
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Devo esclarecer que adotei uma postura que procura atender ao
acadmico e candidato a concurso pblico. No obstante isso, esta obra pode
trazer elucidaes e contribuies rpidas, at mesmo para profissionais mais
experientes, no sendo, portanto, uma obra destinada unicamente aos nefitos
no estudo das teorias do crime e da pena.
Na esteira dessa linguagem didtica, evitarei tornar a obra
exageradamente extensa, expondo os assuntos de maneira que, segundo
minha viso, so mais facilmente compreendidos. Dessa forma, procurarei
facilitar a leitura deste livro.
O objetivo apresentar seriamente o DCrim. O discurso no ser o
utilizado pelos meios de comunicao de massa nem o corrente nos manuais
tendentes exclusivamente aos concursos pblicos. O objetivo consolidar
uma posio doutrinria, evitando uma prtica despida da teoria que possa
sustent-la. Por isso, alerto desde j, h a possibilidade da prtica decorrer de
certas paixes populares e outros motivos metajurdicos, nem sempre os mais
salutares para o desenvolvimento do conhecimento jurdico-criminal.
Pretender discutir profundamente todos os fatos relativos aos crimes e
criminalidade impossvel ao jurista. Sendo o conhecimento cientfico
fragmentrio, o jurista verificar suas limitaes ao encontrar vrias questes
que dependero do conhecimento de outras cincias. Refutarei, portanto,
algumas previses legais que tm a pretenso de reunir na figura do jurista
todos os conhecimentos das diversas cincias que circundam o fenmeno
criminal. Da a impossibilidade terica de se admitir certas determinaes
legais, v.g., relativas personalidade do agente, conforme ser exposto no
presente livro.
1.4 MOTIVAO DO AUTOR
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O que motiva o autor a busca por uma estrutura razovel de aplicao
do DCrim. Este denominado Direito de ltima instncia, dizendo-se que
ele deve se afastar daqueles campos em que os outros ramos da cincia
jurdica forem capazes de resolverem os conflitos por meio de suas prprias
coercibilidades. Mais ainda, a soluo de muitos problemas deve encontrar
solues pacficas, no por meio de batalhas judiciais e sanes jurdicas, o
que permite concluir pela total inviabilidade de se tentar ver no Direito
Criminal a panaceia para todos os males da sociedade complexa.
A viso crtica, a concordncia ou a discordncia em relao s
posies consolidadas na doutrina e nos tribunais permear todo livro. No
entanto, o farei de maneira fundamentada, haja vista que no adequado
concordar ou discordar com a afirmao de outrem sem a necessria
racionalidade que possibilita o conhecimento cientfico.
Heidegger ser citado neste curso por vrias vezes. Ele acreditava:
A vida cotidiana faz do homem um ser preguioso e cansado de si
prprio, que, acovardado diante das presses sociais, acaba preferindovegetar na banalidade e no anonimato, pensando e vivendo por meio deideias e sentimentos acabados e inalterveis, como ente exilado de si mesmoe do ser.3
O que se espera ver um leitor atento, disposto a analisar cada posio
que ser apresentada neste curso e que se procure conhecer melhor cada uma
das teorias e disposies legais que sero mencionadas. Assim, ele estar
produzindo os efeitos desejados.
Weber enfrentou a questo relativa neutralidade axiolgica que se
imagina necessria para exposio de concluses sobre as experincias
3Conf. CHAU, Marilena de Souza. Vida e obra. HEIDEGGER, Martin. Os pensadores:
Heidegger. So Paulo: Nova Cultural, 1.995. p. 8.
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cientficas realizadas, concluindo que necessria a serenidade, mas, se
necessrio, deve-se nadar contra a corrente.4
Discordo daqueles que dizem ser melhor no enfrentar questes
polmicas, bastando a simples referncia s construes j consolidadas.
Como dizem os religiosos, se houvesse apenas uma pessoa a ser salva, Deus
mandaria Seu Filho para sofrer tudo o que sofreu, pois o seu sacrifcio no
teria ocorrido em vo. Este um livro pretende ser cientfico, razo de colher
o exemplo bblico apenas para demonstrar o quanto considero importante a
imaginao capaz de analisar criticamente o sistema jurdico e, qui,
desconstruir vrios equvocos de tal sistema.
Espera-se que cada leitor deste livro tenha a vontade de aprender um
pouco mais do DCrim, sendo necessria, portanto, a dvida. Desse modo,
pede-se que, antes de iniciar o estudo deste livro, cada leitor se livre das
convices e supostas certezas tendentes a prejudicar a evoluo intelectual.
Este no um curso que versa sobre conhecimentos que nos so dados. Ele
visa a possibilitar a evoluo cientfica do sistema jurdico-criminal.
Assim como a guerra, s vezes, o instrumento para a construo de
um ambiente de paz, o conflito intelectual que possibilitar o surgimento de
algo melhor que DCrim e permitir a presena de algum coisa mais humana,
eficaz e til do que a pena. Qui algum consiga criar um novo Direito,
melhor que o DCrim consolidado, sendo que melhor ser se este livro vier a
contribuir de alguma maneira para tal evoluo.
Concordo com Weber e entendo que as palavras de Nietzsche so aqui
oportunas: Eu sou algum e, sobretudo, no confundais com os outros.5
4WEBER, Max.Ensaios sobre as teorias das cincias sociais. So Paulo: Moraes, 1.991.p. 75-132.
5NIETZSCHE, Friedrich.Ecce Homo. So Paulo: Martin Claret, 2.003. p. 31.
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Essa viso permitir a construo de uma anlise crtica com a adoo de
teses, em alguns momentos, destoantes das posies consolidadas sobre
determinadas matrias, mas sem deixar de explicar as posies dominantes.
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2
NOES PRELIMINARES
________________________________
2.1 PROPOSTA DE ESTUDO
Neste captulo, procurarei definir o DCrim, situando-o dentro do
sistema jurdico. Tambm, apresentarei uma sntese da sua evoluo histrica,sempre visando a possibilitar a completa noo das razes pelas quais o
Direito se encontra no atual estgio de desenvolvimento, bem como as lies
que o inspiram. Esse estudo estar permeado de filosofia, uma vez que a
histria da filosofia e a do pensamento jurdico-criminal tendem a se
aproximar desde a antiguidade.
O estudo preliminar do conceito do DCrimincluindo nele os aspectosque possibilitam conhecer sua denominao e as regras de interpretao das
normas criminais fundamental para o entendimento dos preceitos do CP,
razo pela qual este captulo se dedicar s matrias propeduticas, s vezes,
no expressas nas leis criminais.
Observe-se, no entanto, que a conceituao de uma cincia no
preocupao do cientista. Enquanto cientista do Direito, o jurista devepreocupar-se em delimitar e conceituar seu objeto de estudo, no a prpria
cincia, o conceito desta preocupao da Filosofia, mais especificamente da
jusfilosofia, que a parte da Filosofia que se ocupa do Direito.
O objeto bsico deste captulo situar o estudante do Direito acerca de
aspectos histricos e filosficos, bem como apresentar conceitos
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propeduticos necessrios, a fim de permitir a compreenso de estudos
concernentes norma, ao crime e pena, que dependero de tais noes.
2.2 O PORQU DO ESTUDO FILOSFICO
2.2.1 Objeto de estudo da jusfilosofia
H uma parte da filosofia geral que se ocupa de assuntos jurdicos, a
qual denominada jusfilosofia. A sua anlise fundamental porque
importantes pensadores j disseram que o Direito, antes de ser uma cincia
uma parte da filosofia.
O estudo do jusfilsofo tende discusso em torno da justia,
procurando defini-la ou saber se ela unicamente um fim do Direito, mas essa
uma rdua tarefa. Da mesma forma, a jusfilosofia procura explicar as bases
que do sustentao ao Direito, o que tambm extremamente complicado.
Na verdade, so muitas as metas e tarefas da jusfilosofia, a saber:
proceder crtica das prticas, das atitudes e atividades dos operadores do
direito;
avaliar e questionar a atividade legiferante, bem como oferecer suporte
reflexivo ao legislador;
proceder avaliao do papel desempenhado pela cincia jurdica e o
prprio comportamento do jurista ante ela;
investigar as causas da desestruturao, do enfraquecimento ou da runa de
um sistema jurdico;
depurar a linguagem jurdica, os conceitos filosficos e cientficos do
Direito;
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investigar a eficcia dos institutos jurdicos, sua atuao social e seu
compromisso com as questes sociais, seja no que tange a indivduos, seja
no que tange a grupos, seja no que tange a coletividades, seja no que tange
a preocupaes humanas universais;
esclarecer e definir a teleologia do Direito, seu aspecto valorativo e suas
relaes com a sociedade e os anseios culturais;
resgatar origens e valores fundantes dos processos e institutos jurdicos;
por meio da crtica conceitual institucional, valorativa, poltica e
procedimental, auxiliar o juiz no processo decisrio.
6
A fragmentariedade do conhecimento cientfico exige uma rpida
incurso na filosofia, a fim de construir bases razoveis para a perspectiva
mais genrica e abstrata. Tambm, questes concernentes legitimao do
direito no uma tarefa do cientista do Direito, mas do jusfilsofo.
Prepararei caminho para a compreenso da utilidade dos estudos
jusfilficos tendentes a explicar o que efetivamente o cerne do Direito, seufundamento de validade, como instrumento para tornar possvel a coexistncia
social. sabido que ubi societas ibi ius, sendo que ele s se justifica na
medida em que tenha alguma utilidade social. No entanto, muitos problemas
emergem, a partir da coercibilidade das normas jurdicas, visto que sempre
restaro indagaes sobre o que d ao mais forte o direito de oprimir o mais
fraco, ou ainda, nem sempre a vontade da maioria representar sabedoria,cabendo, ento, discutir sobre o porqu de no fazer a vontade da minoria.
A busca incansvel do homem por justia reflete no Direito,
provocando-lhe inmeras transformaes. Destarte, as consideraes
preliminares procuram apenas demonstrar que o enfoque do jusfilsofo mais
6BITTAR, Eduardo C. B, ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito.
So Paulo: Atlas, 2001. p. 44/45.
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amplo que o do cientista do Direito, definindo, ento, o objeto do presente
curso.
No se tratando de um livro de jusfilosofia, o assunto ter apresentao
sucinta, mas pretendendo afastar a superficialidade exagerada. Em alguns
pontos o enfoque ser apenas informativo, como meras noes propeduticas,
suficientes ao estudo do objeto maior deste trabalho que procurar dizer se
depois de muitos sculos de histria da humanidade conseguimos explicar
coerentemente a existncia de normas jurdicas e, fundamentalmente, sua
coercibilidade. Assim, noes introdutrias, como as do presente topoi, no
sero mais significativamente aprofundadas, pois procuram unicamente
contribuir para o delineamento adequado da exposio que se seguir.
2.2.2 Graus do conhecimento, conceito e autonomia do DCrim
O Direito uma cincia. Seu conceito razoavelmente complicado,
exigindo o conhecimento dos graus deste. Paulo Nader apresenta trs nveis
de conhecimento: o vulgar, o cientficoe ofilosfico. Delimitar os nveis dos
conhecimentos que sero objetos do presente curso importante para evitar
confuses na interpretao das posies que constaro de todo texto.
O conhecimento vulgar superficial, decorrendo da experincia, das
assimilaes assistemticas e fragmentrias.7 Ele contm uma srie de
imprecises, visto que superficial.
O conhecimento cientficoconsiste na apreenso mental das coisas por
suas causas ou razes, atravs de mtodos especiais de investigao.8Com
efeito, a cincia o processo pelo qual o homem se relaciona com a natureza,
visando domin-la. Este processo se configura na determinao segundo um
7NADER, Paulo.Filosofia do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 4/5.
8Ibidem. p. 5.
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mtodo e na expresso em linguagem matemtica de leis em que se podem
ordenar os fenmenos naturais, do que resulta a possibilidade de, com rigor,
classific-los e control-los. No tocante s cincias humanas, a racionalidade
no estar em critrios matemticos, mas em discursos e mtodos indutivos
ou dedutivos, decorrentes da experincia social ou de cada indivduo.
O conhecimento filosfico, por sua vez, mais amplo, apresentando
maior grau de abstrao e generalidade. por meio da Filosofia que se
procura conjugar os vrios conhecimentos parciais das diversas cincias
isoladas.9No obstante isso, no se deve entender que a Filosofia a soma
dos conhecimentos das diversas cincias, pois, se assim fosse, o filsofo teria
que conhecer tudo de cada uma delas, o que seria humanamente impossvel.
Aos trs nveis do conhecimento, apresentados neste topoi, pode-se
acrescer o conhecimento teolgico, que aquele que obtido pela f. Alis,
dessa espcie de conhecimento, conforme se expor adiante, tratou Augusto
Comte. inegvel que h um conhecimento que dado pela f, sendo
plenamente cabvel a posio de Eduardo Bittar e de Eduardo de Almeida, in
verbis:
... Contudo, por se pensar que a f pura crena (ato de confiana eentrega em si), pensa-se, normalmente que est dissociada de qualquer
preocupao racional. Ao contrrio, a verdadeira e inabalvel crenasolidifica-se por instrumentos racionais, por expedientes comprobatrios,lgicos e lcidos, distanciando-se, dessa forma, do fanatismo e da cegueirasectria.10
Em face da proximidade dos enfoques filosfico e cientfico, so os
conhecimentos que nos interessam. Porm, Filosofia uma palavra de
origem grega que decorre de philos (amizade, amor) e sophia (cincia,
9NADER, Paulo.Filosofia do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 6.10BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Asis de. Curso de filosofia do
direito. So Paulo: Atlas, 2001. p. 27.
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sabedoria). Atribuem sua origem a Pitgoras que recusava o ttulo de sbio,
ou seja, preferia dizer que no era o senhor de todas as verdades, mas um fiel
amigo do saber.11Destarte, pode-se concluir que conhecimento filosficono
pode estar vinculado a qualquer escopo prtico ou utilitrio, sendo, portanto,
uma dedicao desinteressada ao conhecimento.
A Filosofia, nos dias atuais, o mtodo de reflexo pelo qual o
homem se empenha em interpretar a universalidade das coisas.12O filsofo
atua espontaneamente e instintivamente procurando captar a realidade como
um todo e o profundo significado dos objetos. Essa atividade, segundo Miguel
Reale, d maior importncia teoria do ser, mas, na atualidade, pe em
relevo a teoria do conhecimento.13 No obstante tal afirmao, no se pode
olvidar que Martin Heiddegger, no sculo passado restaurou a importncia da
teoria do ser, dizendo que este a essncia do fundamento, a partir de sua
constituio ontolgica.14Corroborando, Habermas afirma que Kant caiu no
descrdito porque, valendo-se dos fundamentos transcendentais, criou uma
nova disciplina: a teoria do conhecimento.15
Esse estudo filosfico encontra setores de observao. Desse modo, a
jusfilosofia um captulo da Filosofia Geral, sendo que aquela se destina ao
conhecimento mais genrico do Direito, dizendo qual o seu conceito, seus
fundamentos e sua razo de ser.
11REALE, Miguel.Lies preliminares do direito. 16. ed. So Paulo: Saraiva, 1988. p. 14.12NADER, Paulo.Filosofia do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 9.13REALE, Miguel.Filosofia do direito. 8. ed. So Paulo: Saraiva, 1978. v. 1, p. 45-49,.14HEIDEGGER, Martin.A essncia do fundamento. Lisboa: Edies 70, 1988.passim.15HABERMAS, Jrgen. Conscincia moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989. p. 18.
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A Filosofia do Direito se ocupa da teoria do conhecimento,16podendo
ser concebida como o estudo crtico-sistemtico dos pressupostos lgicos,
axiolgicos e histricos da experincia jurdica.17Se fssemos nos prender
teoria pura do direito, de Kelsen, diramos que a cincia do Direito se ocupa
somente das normas, dizendo o que ele e como ele , no se
preocupando sobre como ele deve ser, ou como deve ser feito. Kelsen,
dizia que o cientista deve se preocupar com seu objeto de estudo, que o
sistema dinmico de normas. O jurista deve buscar o conhecimento cientfico,
fazer cincia e no poltica do Direito.18 Isso que Kelsen denominou de
poltica do Direito objeto de estudo da filosofia do Direito.
Gustav Radbruch j dizia que o problema do conceito do Direito, s
primeira vista, parece pertencer ao Direito.19 Assim, quando Kelsen
conceituava o Direito, fazia Filosofia e no cincia do Direito. Nesse sentido,
preleciona Miguel Reale: A definio do Direito s pode ser obra da
Filosofia do Direito. A nenhuma Cincia Jurdica particular dado definir o
Direito, pois evidente que a espcie no pode abranger o gnero.20
Este curso dir qual a concepo filosfica do Direito, tentando tratar
de suas tarefas primordiais de seu carter lgico, que cabe ao filsofo do
Direito resolver, quais sejam: seu fundamento ou legitimidade; sua fora
coercitiva; e sua utilidade.
16ADEODATO, Joo Maurcio. Filosofia do direito: Uma crtica verdade na tica e nacincia. So Paulo: Saraiva, 1996. p. 15.17REALE, Miguel.Filosofia do direito. 8. ed. So Paulo: Saraiva, 1978. v. 2, p. 285.18KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 1.19RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. 6. ed. Coimbra: Armenio Amado, 1979. p.86.
20REALE, Miguel.Lies preliminares do direito. 16. ed. So Paulo: Saraiva, 1988. p. 15.
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Incumbe ainda lembrar que a Filosofia do Direito uma parte da
Filosofia, que faz a contemplao valorativa do Direito.21Essa concepo no
corresponde com o conceito de cincia jurdica, eis que esta se ocupa da
ordem jurdica, ou seja, das normas jurdicas, sendo, assim, a cincia do
direito positivo vigente, no do direito justo.
Afirmou-se que a Filosofia do Direito ocupa-se do direito justo, no
interessando o ser, mas o dever-ser. Entretanto, tal proposta foi contestada,
fazendo-se oportuna a lio de Radbruch:
A Filosofia de Kant j nos ensinou que era impossvel extrair daquilo
que aquilo que deve ser, o valor, a legitimidade. Jamais alguma coisa serjusta s porque ou foi, ou mesmo s porque ser. Daqui se conclui que sode rejeitar o positivismo, o historicismo e o evolucionismo; o primeiro
porque infere o dever-ser do ser; o segundo, porque infere o dever-serdaquilo que j foi; e finalmente o terceiro, porque infere o dever-ser daquiloque ser ou tende a ser.22
Deve-se destacar que os autores de Filosofia do Direito tendem ao
Direito Criminal. Hoje, conforme sustenta Habermas, a tarefa da Filosofia no
exclusiva dos filsofos. Tambm, ele considera equivocada a limitao a
uma filosofia do direito especializada juridicamente, que tem seu ponto forte
na discusso dos fundamentos do Direito Penal.23
21RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. 6. ed. Coimbra: Armnio Amado, 1979. p.
47.22Ibidem.23HABERMAS, Jrgen.Direito e democracia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v.1, p. 9. Pode-se imaginar que h alguma inverdade contida na afirmao, visto que grandesfilsofos no se dedicaram ao estudo dos institutos do DCrim, v.g., Savigny, Ihering e, noBrasil, Miguel Reale e Trcio Sampaio. Desse modo, parece que seria mais adequadoafirmar: os autores de DCrim tendem Filosofia. Concordamos com essa proposio, masela no anula a primeira, da termos mantido a nossa afirmao. Com efeito, o livro citado nesta obra A moderna teoria do fato punvel uma tese de ps-doutorado emFilosofia do Direito. Da a nossa concordncia com Habermas, no sentido de que os
jusfilsofos tendem aos institutos do DCrim.
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A jusfilosofia importante para o conhecimento do DCrim, eis que,
conforme exposto, preocupa-se com as razes para a existncia de certas
normas, bem como sobre a justia (ou injustia) delas decorrente. Neste curso,
a importncia da jusfilosofia mais acentuada, tendo em vista os fundamentos
da imputao objetiva decorrem exatamente das novas vertentes
jusfilosficas.
Defende-se, h muitos anos, o estudo da Filosofia, pelo criminalista.
Basileu Garcia, por exemplo, dizia:
No poderia o jus-penalista isolar-se na sua torre de marfim, cerrando
os ouvidos aos debates filosficos concernentes ao objeto de sua prpriacincia. Ao contrrio, ele deve manter-se alerta s discusses e conclusesque se apresentam, no terreno filosfico, a respeito dos temas penais. Mesmo
porque as normas legais refletem, grande nmero de vezes, um princpiofilosfico, o qual, por obra dos juristas, se encarnou em determinado preceitoda lei positiva.24
Alis, no mesmo sentido, Maggiore j dizia que a doutrina do Direito
sem Filosofia assemelha-se a uma daquelas esttuas antigas, que tinham belos
olhos, mas sem pupilas. Segundo referido autor, ela adentra no Direito,
mesmo sem ser convidada.25 Portanto, a jusfilosofia inarredvel de todo
aquele que pretende estudar DCrim.
Ver o Direito como cincia importa dizer que o jurista um cientista,
algum que tem determinado objeto de estudo. Em uma viso kelsiana, seu
objeto a norma, que traduz a ideia de regra, de medida etc.. No entanto, o
conceito de norma jurdica zettico,26tornando-se necessrio conhecer algo
24GARCIA, Basileu.Instituies de direito penal. So Paulo: Max Limonad, 1956. v. 1, t.1, p. 11.25 MAGGIORI, Giuseppe. Princip di diritto penale parte generale. 2. ed. Bolonha:
Nicola Zanichelli, 1937. vol. 1. p. 48/49.26FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio.Introduo ao estudo do direito. 2. ed. So Paulo:
Atlas, 1994. p. 102.
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mais que leis escritas, eis que a zettica representa uma abertura constante
para questionamento dos objetos em todas as direes.27
Poderamos de maneira simplista e dizer que o DCrim a cincia que
estuda o conjunto de normas que instituem crimes e as medidas aplicveis a
quem os pratica. Da se infere que o DCrim tem por objetos de estudo a
norma e os fatos.
No poderamos, no entanto, dizer que ele o conjunto de normas
relativas aos crimes e s medidas aplicveis a quem os pratica porque sendo
cincia, seu fim o estudo. Assim, no constitui conjunto de normas, mas o
estudo desse conjunto. Alis, convm, ressaltar que no so raras as
proposies no sentido de ser o DCrim um conjunto de normas que definem
crimes e medidas aplicveis a quem os pratica. Todavia, no se pode
confundir o conceito de uma cincia com o do seu objeto de estudo. No caso,
o DCrim a cincia e o conjunto de normas seu objeto de estudo.
Ocorre que o DCrim, na maioria das vezes, protege objetos jurdicos
provindos de outros ramos do Direito, fazendo que ele se relacione com os
demais. Tambm, se relacionar com outras cincias, com a filosofia e com a
teologia.
O Direito , portanto, a cincia que estuda o conjunto de normas
jurdicas, bem como as consequncias decorrentes da violao de cada uma
delas. Ocorre que, sendo o conhecimento cientfico fragmentrio, no resta
outra alternativa seno dar autonomia relativa a cada um dos ramos do
Direito, a fim de tornar possvel o conhecimento de todo o seu objeto.
27A palavra Zettica assim explicada por Aurlio Buarque de Holanda Ferreira: [Dogrego zetetik (subtende-se techne) a arte de procurar] 1. Mtodo de investigao, ouconjunto de preceitos, para a resoluo de um problema filosfico ou matemtico. 2.
Filosofia. A doutrina de Pirro em sua posio metodolgica inicial, que consiste noincentivo busca incessante de novos conhecimentos (in Novo dicionrio Aurlio. 4. tir.
Rio de Janeiro: Nova Fonteira, 1975. p. 1501).
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Direito cincia, sendo que a autonomia de cada um dos seus ramos
apenas relativa. Cada ramo do Direito uma parte especializada da cincia.
Por isso, gosto do conceito ofertado por Juarez Cirino: O Direito Penal o
setor do ordenamento jurdico que define crimes, comina penas e prev
medidas de segurana aplicveis aos autores das condutas incriminadas.28
Diz-se que o Direito se assemelha a uma rvore, pois tem um tronco e
vrios galhos (ramos). Dessa forma, os vrios ramos do Direito se interligam
por meio desse tronco.29Em sentido oposto, existem vrios autores que tratam
da autonomia das cincias jurdicas, para os quais no mais existem ramos do
Direito, mas cincias jurdicas autnomas.
inegvel, no entanto, mesmo admitida a autonomia, que os ramos do
Direito so interdependentes. no DCrim que a caracterstica unitria do
Direito melhor se reflete, visto que as violaes s leis criminais representam,
antes de ser uma violao propriamente criminal, o descumprimento de um
dever anterior, normalmente contido em outro ramo do Direito.
O Direito, numa abordagem genrica aqui tratado como uma cincia
que se divide em ramos com autonomias meramente relativassurgiu de uma
necessidade do homem estabelecer normas para as suas relaes. Da a
mxima ubi societas, ibi ius (onde est a sociedade, est o direito). Dessa
noo podemos deduzir que o direito uma cincia social, que existir onde
houver vida em sociedade, sem esta no haver Direito.30Nesse sentido, Joo
28SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris,2006. p. 3.29SOUZA, Daniel Coelho de.Introduo cincia do direito. So Paulo: Saraiva, 1988. p.286.
30REALE, Miguel.Lies preliminares do direito. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 1977. p. 2.
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Maurcio Adeodato ensina que pode at existir sociedade sem Direito, mas
impossvel pensar em Direito sem sociedade.31
A vetusta origem do Direito Criminal transcende em antiguidade a
origem dos demais ramos do Direito, pois, desde os primrdios, emergiu a
necessidade de se coibir a prtica dos fatos que mais profundamente
atingissem as pessoas do grupo social e, consequentemente, o prprio grupo.
Tais normas referiam-se s mais graves violaes aos direitos individuais ou
coletivos, visto que a soluo de pequenos problemas no era disciplinada,
cabendo aos particulares resolverem suas pendengas.32
Como cincia, tem necessariamente um objetivo, haja vista que no se
justifica estudar certo objeto sem ter em vista determinado fim.33 O
conhecimento cientfico tem estado em crise porque se tem afirmado muitas
coisas sobre ele, mormente sobre a sua insuficincia. Porm, falo como
Bertrant Russell, afirmando: A cincia, em nenhum momento, est
inteiramente certa, mas raro estar inteiramente errada e, normalmente, tem
maior chance de estar certa do que as teorias no-cientficas. Portanto,
racional aceit-la hipoteticamente.34No mesmo sentido, Carl Sagan afirma:
"A cincia est longe de ser um instrumento perfeito de conhecimento.
apenas o melhor que temos".35
31ADEODATO, Joo Maurcio. tica e retrica: para uma teoria da dogmtica jurdica.So Paulo: Saraiva, 2.002. p. 287.32COSTA, lvaro Mayrink da.Direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. v. 1, t.1, p. 95-114.33WEBER, Max.Ensaios sobre a teoria das cincias sociais. So Paulo: Moraes, 1991. p.1-74.34RUSSELL, Bertrand. Meu desenvolvimento filosfico. Rio de Janeiro: Zahar, 1.980. p.12.35SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demnios: a cincia vista como uma vela no
escuro. So Paulo: Companhia de Letras, 1.996. p. 38.
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2.2.3 A localizao de topoie o problema das classificaes
O cientista, mais do que qualquer outro estudioso, dever localizar
topoi, ou seja, um plano comum em que possa delimitar o seu objeto deestudo e se aprofundar at encontrar a sua essncia, a sua natureza. Da resulta
a fragmentariedade do conhecimento jurdico e o excesso de classificaes.
Um alerta que fao aos meus alunos: as classificaes, em diversas
oportunidades, carecem de critrio. Ratifico que cada observador arbitra seu
prprio critrio, segundo sua tica, o que torna, s vezes, pouco
compreensveis certas classificaes. Mas, para se conhecer qualquer coisa nasua essncia, mister delimitar o objeto de estudo, razo pela qual as
classificaes so fundamentais. Ao deixar de delimitar o objeto do estudo,
incorre-se, normalmente, em confuses que induzem os leitores a equvocos.36
Entende-se por neologismo (palavra formada por neonovoe logos
palavra), toda palavra ou vocbulo novo introduzido na linguagem, formado
ou derivado de outras.37
Ele importante em linguagem tcnica, a fim depermitir a comunicao clara, mas devem ser evitados os abusos, uma vez que
36Paulo Jos da Costa Jnior, tratando das caractersticas do Direito Criminal, afirma: ODireito Penal se inclui entre os ramos do direito pblico. Sua atuao independe davontade do ofendido, constituindo funo e dever do Estado. Pblica igualmente aimposio e aplicao de sano, que no pode ser confiada a quem sofreu a ofensa, masao magistrado estatal. Sendo pblico o direito penal, porque os valores que tutelainteressam toda a coletividade, indisponvel. O ofendido no poder dele dispor,desistindo da ao penal proposta, ou perdoando o autor do delito (Curso de direito penal.So Paulo: Saraiva, 1991. p.3). No texto, h efetiva mistura de topois concretamentedistintos, uma vez dizer que o Direito Criminal pblico, refere-se a uma espcie relativa diviso da Cincia Jurdica e autonomia relativa de seus ramos. De outro modo, a atuaodo magistrado afeta ao Direito Processual, por meio da ao, que ser estudada no finaldeste volume. Tambm, a possibilidade de disposio da ao matria que precisa serestudada no momento prprio.37SILVA, De Plcido e. Vocabulrio jurdico. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2.002. p.
554.
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o excesso poder, ao contrrio de auxiliar, tornar a linguagem confusa e
pouco compreensvel. Nesse sentido, Ferri exps:
Depois destas noes elementares, julgo intil estorvo referir as
prolixas indagaes e as diversas classificaes... Estas divagaesescolsticas e mais ou menos criptogrficas sobre as normas penais e sobreos seus destinatrios, grosseiramente copiadas das noes gerais do direito,no trazem nenhuma contribuio til nem ao conhecimento cientfico nem aplicao prtica da justia penal, pois esta, em vez de volatizar-se nasabstraes lgicas e distines escolsticas, tem necessidade de ser estudadasobre o terreno da realidade humana.38
Tentaremos no nos prender a uma suposta realidade ditada pelo ser-
em-si. Tentaremos ir um pouco adiante, mas sem perder de vista o Direitocomo cincia, a fim de estabelecermos um modelo com segurana mnima e
necessria estabilizao social.
2.3 RELAES DO DCrim
A grande influncia do Direito Internacional em determinado Estado
crescente, falando-se, hoje, em DCrim Internacional. Muitos crimes se
relacionam com a proteo da ordem internacional, aproximando o DCrim do
Direito Internacional. Outrossim, em muitos outros aspectos sero percebidas
relaes entre esses ramos do Direito, principalmente no que tange s
imunidades e outros limites de aplicao da lei. Hoje, ante a ratificao do
Brasil ao Estatuto de Roma, que instituiu o a Corte Internacional Criminal,
impossvel deixar de tratar de aspectos relevantes do Direito Internacional,mais especificamente de sua parte que cuida da matria criminal, em um
curso como este. Por isso, faremos alguma aluso CIC em vrios momentos
deste livro.
38FERRI, Enrico. Princpios do direito criminal. 2. ed. Campinas: Bookseller, l.998. p.
141.
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O Direito Constitucional muito importante, mas a Constituio
Federal no traz em si todos os objetos jurdicos do Direito Interno. Ela traz
rol exemplificativo dos direitos fundamentais, aos quais podem ser acrescidos
outros (CF, art. 5, 2). No obstante isso, muitos aspectos relevantes, de
natureza criminal, constam do seu rol, traando limites e programas a serem
respeitados pelo legislador infraconstitucional, bem como pelo aplicador da
lei, o que evidencia a relao do DCrim com o Direito Constitucional).
O Direito Civil talvez seja o que tenha maior amplitude numa
determinada ordem jurdica, uma vez que disciplina a maioria das relaes
das pessoas do Estado. Modificar um Cdigo Civil, como ocorreu em 2002,
em que o velho CC de 1916 foi revogado, cedendo lugar a um novo, altera
toda uma ordem jurdica, intervindo diretamente na vida das pessoas. No
entanto, como a mudana era extremamente necessria, havendo muitas leis
que j consagravam a nova ideologia, o povo no se arrefeceu tanto com a
nova lei. Porm, no se olvide, o DCrim trata da famlia, do casamento, da
fraude contratual, do patrimnio etc., todos objetos do Direito Civil, o que fazcom que se tenha plena certeza da relao de referidos ramos do Direito.
O DCrim se relaciona, em sntese, com todos os ramos do Direito, uma
vez que trata de crimes contra a ordem administrativa, tributria, financeira,
econmica, organizao do trabalho etc. Outrossim, o DCrim no fica alheio
s demais cincias, haja vista que ele se relaciona com a Matemtica (na
medida em que adota critrios exatos para dosimetria da pena e requisitos
para certos benefcios), a Medicina (a Psiquiatria Forense fundamental para
o estabelecimento da culpabilidade de algumas pessoas, bem como os
diversos ramos de referida cincia auxiliaro na constatao de ilcitos e
respectivas gravidades, v.g., leso corporal), a Psicologia (fundamental para
anlise de algumas perturbaes mentais e suas influncias sobre a pessoa
envolvida no delito), a Fsica (importante na anlise dos locais de crime) etc.
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Finalmente, cumpre observar que Enrique Ordeig sustenta que a
distino entre o DCrim e os outros ramos da cincia do Direito est na
consequncia. Ocorrendo um suposto fato hipottico ilcito, as consequncias
podero ser diversas nos outros ramos do Direito, mas no DCrim ela ser a
pena (eventualmente a medida de segurana).39
A proposta de Ordeig est parcialmente correta. O crime composto
por duas partes: uma objetiva e outra subjetiva. Como a pessoa que no pode
entender o carter ilcito do fato no preenche a parte subjetiva do delito,
entendemos que sua conduta resta fora do DCrim, sendo a pena a nica
consequncia possvel em tal ramo do Direito (salvo nos casos de absolvio,
nos quais no incidir a coero criminal).
Assim como o Estado intervm nas liberdades individuais para proteo
da sociedade, retendo veculos automotores sem condies de segurana para
transitarem na via pblica, veda a autorizao para que pessoa sem adequada
coordenao motora possa ter habilitao para conduo de veculo automotor
etc., determina o tratamento de doentes mentais que evidenciam
periculosidade potencial, manifestada pela concretizao de conduta definida
como crime.
2.4 DENOMINAO
Quatro denominaes se destacam, a saber: a) Direito Criminal; b)
Direito Repressivo; c) Direito Penal; d) Nova Defesa Social. Nova defesa
social tem sido a preferida pelo legislador, desde o final do sculo XIX, mas
no a melhor para este ramo do Direito por duas razes: a) ele no comina
somentepenacomo aplicveis ao infrator da lei. Prev, tambm, a aplicao
39 ORDEIG, Enrique Gimbernat. Conceito e mtodo da cincia do direito penal. So
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 20.
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de medida de segurana; b) estuda as condutas proibidas, cominando penas
aos que as praticarem. Pelo que se v, a denominao Direito Penalexprime
somente os efeitos da infrao da norma, desprestigiando a conduta capaz de
gerar a pena.
Denomin-lo de Direito Repressivo tambm inadequado, pois o
DCrim, no atual estgio da civilizao uma garantia individual de liberdade
um Direito cooperativo, no um Direito que intervm inoportunamente na
regularidade da vida socialpois a pessoa s poder ser acusada de um crime
e sofrer uma sano se estas estiverem previamente previstas na lei. Dessa
forma, a melhor denominao, para a doutrina, a primeira,DCrim, tendo em
vista que parte da essncia da matria, que o crime. Embora usemos com
maior frequncia a denominao que preferimos, devemos ratificar que
generalizada a preferncia pela designao Direito Penal, no s no Brasil
como em outros pases.40
Nova Defesa Social o DCrim contemporneo e a tendncia do futuro,
isso segundo Mirabete (posio mantida pelo seu filho).41Digo, no entanto,
que o Direito um dos instrumentos de defesa social desenvolvidos pelo
homem. Todo Direito instrumento de defesa social, sendo incabvel falar
unicamente no DCrim como tal, o que permite repudiar a denominao.
2.5 HISTRIA DO DCrim E SUA RELAO COM A
FILOSOFIA
2.5.1 Generalidades
40GARCIA, Basileu.Instituies de direito penal. 3. ed. So Paulo: Max Limonad, 1956.v. 1, t. 1, p. 7.41MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato Nascimento. Manual de direito penal.
26 ed. So Paulo: Atlas, 2010. v. 1, p. 22.
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Desde a Grcia antiga que se busca dizer o que justia, bem como
explicar a coercibilidade das normas. Passamos por diversas fases, sendo que
no podemos chegar ao funcionalismo, sem um estudo prvio da histria da
jusfilosofia. Desse modo, a apresentao de um escoro histrico visa a
conduzir o leitor compreenso das posies jusfilosficas hodiernas.
Demonstrarei a evoluo das posies que procuraram explicar a
legitimao do Direito. Destarte, o enfoque inicial histrico, apenas
procurando estabelecer o cerne de cada uma das grandes fases que
antecederam o conhecimento multidisciplinar que predomina hodiernamente
no meio jusfilosfico. Dessa forma, a longa fase do jusnaturalismo, que se
caracteriza, no campo da busca da legitimao do Direito, pelo
transcendentalismo, apresentada muito rapidamente, preocupando-se,
basicamente, em demonstrar a inarredvel ideia de que toda coercibilidade do
Direito est em algo superior ao homem.
A partir do positivismo, emergiram vrias ideias sistmicas, pelas quais
a legitimao do Direito dada normalmente por um conjunto de normas.
Com efeito, Kelsen apresenta o Direito como sendo um sistema dinmico de
normas. De outro modo, Hegel procurou empreender maior dinamismo ao
pensamento kantiano. Augusto Comte, por sua vez, embora positivista,
props a observao do fato social. Este ltimo, no empreendeu estudos de
Sociologia Jurdica, mas no ficou completamente alheio ao seu objeto, o que
vem a demonstrar que o Direito, com ele, comeou a abrir espao para
discusses multisciplinares, que o cerne da discusso hodierna em torno da
validade e utilidade do DCrim.
A Sociologia Jurdica, que se desenvolveu nos ltimos anos do sculo
XIX, iniciou uma nova vertente filosfica, sendo que o conhecimento do
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Direito passou a um discurso multidisciplinar, que encontrou seu pice em
Habermas.
Ao longo deste estudo, demonstrarei o pensamento apresentado por
Luhmanniano, que aquele em que a norma emerge do prprio sistema
jurdico, no de outros (sub)sistemas da sociedade. Assumo duvidar de que
exista alguma proposta filosfica adequada coercibilidade do DCrim, razo
pela entendo que este livro deve ficar sem uma concluso peremptria, visto
que a nica soluo cabvel neste momento continuar perseguindo uma
proposta razovel no que concerne a um DCrim efetivamente justo.
Este captulo partir de uma rpida e sucinta viso da evoluo histrica
do pensamento filosfico e jurdico, at chegar aos tempos atuais,
interessando principalmente a evoluo a partir de Augusto Comte, visto que
partir dele que os fatos sociais passaram a influenciar mais fortemente a
Filosofia do Direito e todo Direito Criminal.
2.5.2 Ideias e instituies criminais
2.5.2.1 Significado de ideias e instituies criminais
Ideias so trabalhos mentais desenvolvidos para combater o mal, o
pecado, a ofensa, o direito subjetivo etc. (mal este que hoje denominado
delito). A exteriorizao de tais ideias leva tradio, ao costume, s fases de
combate aos males por meio de comportamentos padronizados, ou seja,
instituies criminais.
O desenvolvimento da vida em sociedade trouxe a necessidade de
imposio de normas. Da, aquele que as infringisse poderia sofrer uma
sano, a qual tinha o aspecto de retribuio do mal praticado, era uma
vingana praticada pelo particular, pelo grupo, em nome de Deus, visando
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aplacar a ira da Divindade, ou em nome do prncipe, para evitar que este
punisse o grupo. Assim, a pena decorria de uma ideiaque se desenvolvia para
combater a violao das normas consuetudinrias existentes.42Tais ideias se
padronizavam, passando a constituir instituies criminais.
2.5.2.2 Fase da vingana
Na antiguidade, a pena era um meio de se aplacar a ira de Deus, do
homem ou do prncipe, sendo que este representava a vontade coletiva. Da,
falar-se, respectivamente, em vingana divina, privada e pblica.
No possvel dizer qual foi a primeira delas, dependendo obviamente
do ponto de vista do cientista. Para um criacionista, a vingana divina foi a
primeira, enquanto para o evolucionista a primeira fase foi a da vingana
privada. Finalmente, para quem entende que o Direito surgiu por meio da
fora, em que os mais fortes oprimiam os mais fracos, a vingana pblica
seria a primeira. O fato que as trs fases da vingana coexistiram no tempo,
no sendo possvel determinar, com certeza, qual foi a primeira delas, at
porque todas foram anteriores escrita e as primeiras leis escritas j
consagravam as trs fases.
Na fase da vingana privada, o ilcito representava a violao de um
direito privado que assegurava ao particular resolver (ou superar) sua ira. O
prprio particular, ou seu grupo, aplicava a punio.
A vingana divina era exercida em nome de deus, castigava-se em
nome dele, para aplacar sua ira, seno ele puniria todo povo por meio de
pragas. Os registros histricos esto a indicar que o Direito no se estabeleceu
42No incio, as normas eram dadas segundo os costumes (consuetudinrias). Denominadas
normas ticas, porque a tica a cincia dos costumes.
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com base na dominao do mais forte sobre o mais fraco, mas, na
antiguidade, se fundamentou precipuamente na religio.43
Na fase da vingana pblica, punia-se em nome da coletividade para
que ela ficasse satisfeita. Os marxistas diriam que o Direito instrumento de
dominao. Assim, a primeira vingana seria a pblica. Essa a posio dos
autores que se dizem alternativistas.44
A fase da vingana se caracterizava pela desproporcionalidade entre o
mal praticado e a sano que se aplicava ao infrator. Nem mesmo na bblia, de
onde retiramos a mxima no sentido de que deus amor, encontraremos
proporcionalidade. Assim, em nome de deus, do princpio ou do prprio
ofendido, grupos inteiros eram dizimados, o que exigia providncias para
limitao do castigo.
2.5.2.3 Lei de talio e a pena de morte
Estabelecia a proporcionalidade exata entre a infrao e a sano, o quese verifica pelo brocardo olho por olho, dente por dente. A origem da
palavra est no vocbulo talio, que significa mesma medida, assim o castigo
devia ser imposto na mesma medida do mal praticado pelo agente.
No se pode precisar exatamente o perodo em que surgiu a lei de
talio, mas se pode afirmar que foi importante para trazer a idia da necessria
proporcionalidade entre o mal praticado e a retribuio a quem o praticou por
43COULANGES, Fustel de.Acidade antiga. 4. ed. 2. tir. So Paulo: Martins Fontes, 2.000.p. 36.44O Direito Alternativo ganhou grande espao no Brasil, mormente em sua Regio Sul.Talvez seja por isso que Joo Jos Leal, jurista catarinense, chegou a afirmar que equivocado pensar na vingana privada como sendo a primeira, eis que a vingana pblicaa teria precedido, j que o Direito se manifesta como instrumento de dominao (inDireito
penal geral. So Paulo: Atlas, 1.998. p.59).
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meio. Segundo lvaro Mayrink, a origem do talio nasceu provavelmente no
perodo neoltico (da pedra polida).45
Acerca da lei de talio, boa a sntese de Csar Dario Mariano:
Como o revide [da vingana privada] no guardava proporo com aofensa, surgiam guerras entre os grupos, que podiam chegar aoaniquilamento. Surgiu, da, a ideia do talio, como primeira conquista nombito do Direito Penal. Por meio do talio, delimitava-se o castigo, e avingana teria uma ideia de proporcionalidade.46
Segundo a lei de talio, vindo Tcio a matar o filho de Caio, este tem o
direito de matar o filho daquele no ele. Tal perspectiva, segundo a viso
hodierna que temos de justia, equivocada, mas temos que reconhecer, para
o perodo em que surgiu, momento em que predominava a
desproporcionalidade, representou grande avano.
Tratarei diretamente da teoria da penasomente no segundo volume. Ali
restar claro que existe uma corrente que agrupa vrias teorias da pena,
denominadas absolutas, que desencadeiam na ideia de que a pena a
retribuio do mal ao infrator da lei, uma vez que a infrao constitui um mal.
Referidas teorias, com motivaes distintas, concluem que a maior expresso
de justia est na lei de talio, eis que respeitada a proporcionalidade.
A pena de morte encontra apoio, principalmente, entre pessoas menos
cultas. Nem mesmo a lei de talio a justifica e a possibilidade de erro do
Estado, sem a possibilidade de reparao de tal erro, dentre outros aspectos,
est a recomendar a rejeio da sua previso legal.
No direi que a vida bem jurdico (bem do Direito, objeto do Direito,
objeto jurdico: aquilo que o Direito protege) absoluto porque no se
45COSTA, lvaro Mayrink da. Direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. v. 1. t.1, p. 101.46 SILVA, Csar Dario Mariano da. Manual de direito penal. 4. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2.006. v. 1, p. 2.
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concebem mais bens absolutos, pois at mesmos os direitos fundamentais da
Constituio Federal precisam ser ponderados.47 Porm, a pena de morte,
passvel de aplicao, no Brasil, queles que praticarem crimes militares em
tempo de guerra (ainda que o julgamento se d em tempo de paz), no se
justificar luz da lei de talionem mesmo para os delitos mais graves.
Imaginemos algumas hipteses para imposio de pena de morte: 1)
Tcio matou Caio e ocultou o cadver para assegurar a impunidade.
Descobriu-se que Tcio agiu por motivo pouco relevante porque foi ofendido
durante discusso banal de trnsito. Ele desferiu um tiro contra a vtima,
matando-a instantaneamente; 2) Mvio matou vinte crianas e retalhou os
corpos das vtimas, preparando-os para o consumo. Aps devorar metade da
carne, foi localizado e descobriu-se que ele era um religioso fantico que
pregava a purificao da espcie humana por meio do consumo de carne
proveniente de pessoas puras; 4) Semprnio, planejando roubar um banco,
nele adentrou e matou seis vigilantes. Foi preso dois anos depois, momento
em que morava em suntuosa casa, adquirida com o produto do crime.
Segundo a lei de talio, em nenhum dos casos, haveria justia porque
Tcio ser morto mediante tortura mental, haja vista que suportar o processo
e aguardar execuo premeditada, maior, portanto, que o mal por ele
praticado. Em outros casos, a pena seria desproporcional por ser menor que o
mal praticado pelo infrator da lei.
No haveria proporo na morte de Mvio porque ele poderia ser um
doente e, assim, ao contrrio de pena, mereceria tratamento. Tambm, caso
fosse Mvio efetivamente o monstro que se imagina, ante to cruel hiptese,
47 SILVA, Virglio Afonso da. Direitos fundamentais: contedo essencial, restries e
eficcia. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2.010. p. 254.
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sua pena deveria ocorrer por vrias vezes, mas isso apenas nos reduziria ao
perodo brbaro, j experimentado e sem sucesso no combate criminalidade.
No caso de Semprnio, estar o agente se usufruindo do produto do
crime no torna as mortes das vtimas mais dolorosas, no havendo a menor
condio de se afirmar que h proporcionalidade entre a conduta de
Semprnio e a pena de morte que lhe foi imposta e executada.
Minha indagao, neste momento, reside no tocante
proporcionalidade. No havendo proporcionalidade, no se pode falar em
pena justa. Tambm, no me parece razovel a posio simplista exposta no
sentido de que foi pouco. Ora, se pouco, desproporcional, portanto, a
pena injusta, ou seja, a pena de morte, ao contrrio de justificar a lei de
talio e as teorias absolutas, deixa-a desmascarada.
2.5.2.4 Composio
Para conter a desproporcionalidade da fase da vingana, emergiu acomposio, que era a expiao da pena pelo pagamento em pecnia,
mercadorias, reses, etc. A origem da composio to remota quanto a da lei
de talio, com o diferenciador de que a composio representou avano
significativamente maior. Considero inadequado deixar de mencionar tal fase,
como fez Csar Roberto Bitencourt.48
A composio merece ser incentivada nos dias de hoje estendendo suaaplicao a vrios delitos, mormente aos patrimoniais e praticados com fim de
lucro em geral v.g., peculato, corrupo etc. -, no entanto, s tem sido
admitida com efeitos criminais relevantes nos crimes de menor potencial
ofensivo (Leis n. 9.099/1995 e 10.259/2.001), uma vez que a conciliao civil
48BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 10. ed. So Paulo: Saraiva,
2006. v. 1, p. 35-38.
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causa extintiva da punibilidade em certos crimes (Lei n. 9.099/1995, art. 74,
pargrafo nico). Nos demais crimes, a composio pode at intervir na
punibilidade dos crimes de ao de iniciativa exclusivamente privada e
pblica condicionada representao, mas se a iniciativa da ao for pblica
incondicionada, ela apenas interferir na dosimetria da pena, sendo levada em
considerao no momento de se verificar as consequncias do delito.
2.5.2.5 Cdigos escritos
Os primeiros cdigos escritos (de Hamurabi, institudo na Babilnia,
aproximadamente 1.700 a.C.; Bblia, cujos cinco primeiros livros Gnesis,
xodo, Levtico, Nmeros e Deuteronmio foram escritos, provavelmente,
entre 1.600 a.C e 1.500 a.C.; Lei das XII Tbuas, dos Romanos, instituda
entre 453 a.C e 451 a.C.; e de Manu, institudo na ndia em data incerta, entre
200 a.C. e 200 d.C) consagravam idias das instituies criminais
mencionadas, sem se preocupar em ser fiis a qualquer delas.
Outros escritos com matria criminal foram encontrados, possivelmente
anteriores aos dois ltimos. lvaro Mayrink faz referncia aos escritos
assrios que se referem composio, datados de aproximadamente sculos
XV e XIV a.C.49Observe-se, no entanto, que os quatro mencionados so os
que mais encontramos na literatura criminal ptria.
Prova de que as fases mencionadas (vingana privada, vingana divina,
vingana pblica, lei de talio e composio) antecederam as primeiras leis
escritas, est no fato de os primeiros cdigos antigos, sem exceo, terem
consagrado, em maior ou menor escala, um pouco de todas elas.
49BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 10. ed. So Paulo: Saraiva,
2006. v. 1, p. 103.
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Ao longo do tempo, as ideias criminais que se transformaram em
efetivas instituies,50 contriburam para o desenvolvimento do DCrim,
trazendo maior humanizao pena, bem como a laicizao do Direito. Para
melhor anlise, observe-se o DCrim consolidado em algumas civilizaes
antigas.
2.5.2.6 Povos antigos
A. Gregos
Os gregos muito se desenvolveram na Filosofia, mas eles poucocontriburam para a evoluo do Direito.51Dividiram os crimes em pblicos e
privados, sendo que estes eram resolvidos segundo a vingana, enquanto que
aqueles iam aos Conselhos de Cidados, mas poucos eram cidados. Na
verdade, no conseguiram fazer uma adequada distino entre crimes pblicos
e privados e no desenvolveram grandes tcnicas para a anlise de fatos tidos
como graves violaes ordem grega. De qualquer forma, pelo avanofilosfico, trouxe uma contribuio importante, que a laicizao do Direito.
O grande problema dos gregos estava em sua cultura. Seu Direito,
assim como o Romano, calcou suas bases na religio. No entanto, a xenofobia
do grego foi significativamente mais acentuada que a do romano, por isso este
povo evoluiu mais significativamente.
50A palavra instituio decorre do latim institutio, que significa: I Sentido prprio: 1)Disposio, plano, arranjo. II Sentido figurado: 2) Instruo, ensino, educao, formao.Por extenso: 3) Mtodo, sistema, doutrina, escola, seita. Observe-se que de referida
palavra decorre institutum, que significa: I Sentido prprio: 1) Plano estabelecido, fim,objeto, desgnio. II Da: 2) Hbito, modo de viver, maneira de proceder. No plural: 3)Princpios estabelecidos, instituies, usos, costumes. 4) Idias pr-estabelecidas,ensinamentos, disciplina (conf. AMENDOLA, Joo.Dicionrio italiano-portugus. 2. ed.So Paulo: Hemus, 1.976. p. 491).51GILISSEN, John. Introduo histrica ao Direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
2001. p. 73.
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Por no ver a mulher, nem o estrangeiro, como pessoas, o grego gerou
uma situao inaceitvel. Apenas o homem era gente, portanto, s ele era
suscetvel de amor, o que generalizou o homossexualismo. Tambm,
generalizou o tratamento de pessoas como se fossem coisas. Vejo como
sectria a cultura grega, concluindo que da que decorre sua pequena
evoluo, embora reconhecendo sua importncia na filosofia.
Os gregos contribuindo significativamente para a laicizao do Direito,
mas no conseguiram se afastar do transcendentalismo. Aristteles, por
exemplo, via a justia como sendo metafsica, eis que, conforme expe Paulo
Cssio M. Fonseca, no tocante justia, sempre tentou conjugar os conceitos
de beleza e bondade.52No obstante isso, at mesmo em Aristteles podemos
encontrar as razes da imputao objetiva(moderna teoria do crime) haja vista
que ele ensinava:
O justo total a observncia do que regra social de cartervinculativo. O hbito humano de conformar aes ao contedo da lei a
prpria realizao da justia nesta acepo do termo. Esse tipo de prtica
causa efeitos altrustas, de acordo com a virtude total.53
Os trs maiores nomes da Filosofia grega antiga talvez tenham sido
Scrates (470 ou 469 a.C. a 399 a.C.), Plato (428 ou 427 a.C. a 348 ou 347
a.C), e Aristteles (384 a.C. a 322 a.C.). O primeiro no deixou registros,
tendo advindo todo conhecimento de seu pensamento por meio de Plato, que
ovacionou aquele e diz-se que ele fez os melhores registros de sua histria.54
52FONSECA, Paulo Cssio M. Fonseca. Apresentao. ARISTTELES. A tica. Bauru:Edipro, 1995. p. 15.53 Cf. BITTAR, Eduardo C. B; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia dodireito. So Paulo: Atlas, 2001. p. 91.54 PESSANHA, Jos Amrico Motta. Scrates. 4. ed. So Paulo: Nova Cultural, Os
pensadores, 1987: em um nico livro, reuniu-se trechos das seguintes obras de Plato:Defesa de Scrates; Xenofonte; Ditos e feitos memorveis de Scrates; Apologia de
Scrates; Aristfanes; e As nuvens. Todas elas versam sobre Scrates.
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No estou convencido da existncia de Scrates, parecendo que foi
Plato quem criou o Scrates de nossa imaginao, e at hoje impossvel
determinar at que ponto essa imagem corresponde ao Scrates histrico e at
que ponto produto do gnio criativo de Plato.55No se olvide, no entanto,
que h um grande nmero de autores que tratam do registro fsico de Scrates,
o qual teria atuado como soldado em 3 batalhas.56
O ponto central da discusso de Plato est em Scrates. O idealismo
platnico evidenciou especial preocupao com o papel que a retrica pode
desempenhar na tica e na educao, o que tem merecido destaque na
jusfilosofia moderna, sendo a base de todo DCrim, que tende s teorias do
discurso.57
A preocupao com a linguagem no foi exclusiva de Plato.
Aristteles fez pesquisas sobre as palavras, procurando evitar equvocos que
resultariam da designao de coisas diferentes atravs do mesmo nome
(homnimo) ou da mesma coisa por meio de palavras diferentes (sinnimo). 58
E, a filosofia aristotlica foi alm, uma vez que defendeu o consenso e o
acordo baseadas primordialmente na persuaso e na convico, 59 o que
compatvel com as modernas teorias jusfilosficas, desenvolvidas no sentido
de que Direito comunicao e esta s possvel na sociedade complexa.
O exposto est a evidenciar que os gregos contriburam
significativamente para a laicizao do Direito, inclusive, trazendo bases
tericas para muitas doutrinas contemporneas.
55STONE, I. F. O julgamento de Scrates. So Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 21.56MUOZ, Alberto Afonso. O paradigma platnico. In MACEDOR JR., Ronaldo Porto(Coord.). Curso de filosofia jurdica. So Paulo: Atlas, 2008. p. 92.57TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2.000. p. 79-86.58GRFICA CRCULO. Aristteles. So Paulo: Nova Cultural, Os pensadores, 1.996. p.14.
59MORRAL, John B.Aristteles. Braslia: UnB, 2.000. p. 8.
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B. Hebreus
A histria do povo hebreu est contada na Bblia, o que demonstra a
adoo da vingana divina como regra. Eles foram regidos pelo pentateuco,ou Thora (cinco primeiros livros da Bblia Gnesis, xodo, Levticos,
Nmeros e Deuteronmio -, cuja autoria atribuda a deus por intermdio de
Moiss).
Embora o pentateuco seja rigoroso, os hebreus contriburam para a
humanizao do DCrim, reduzindo significativamente os casos em que a pena
seria a de morte. Alis, a esse respeito, oportuno o alerta de Thomas More,no sentido de que a prpria lei de Moiss, lei dura e vingativa, feita para
escravos, gente obstinada e embrutecida, apenas punia o roubo com uma
indenizao e nunca uma morte.60
Para os hebreus, a justia podia ser encontrada na religio. O
pentateuco, primeiros cinco livros da Bblia, traduz o que pensavam os
hebreus, ou seja, a justia provm de Deus. Esse pensamento religioso doshebreus de extrema importncia para o Direito, inclusive na atualidade.
Kant, por exemplo, negou Deus em sua Crtica da razo pura, O aceitou em
sua Crtica da razo prticae O encontrou na Crtica do Juzo.61 certo que
Kant se dedicou filosofia, no teologia. Por isso sua concepo no
propriamente teolgica, mas certo que, embora no concebido propriamente
um pensamento religioso tradicional, ele nos remete investigao sobreDeus e crtica (indagao) da metafsica.
C. Romanos
60MORE, Thomas.A utopia. So Paulo: Martin Claret, 2000. p. 33.61 THOMAS, Henry. Perfil biogrfico. In KANT, Immanuel. Fundamentao da
metafsica dos costumes e outros escritos. So Paulo: Martin Claret, 2.003. p. 137.
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Os romanos se caracterizaram como militares e conquistadores. A
origem lendria de Roma data de aproximadamente 753 a.C. Diz-se que eles
evoluram mais no DC, tendo pequeno destaque no DCrim. Na verdade,
perderam para os gregos na fundamentao filosfica da pena, mas ganharam
em aplicao prtica. O Direito era pragmtico, dado por homens prudentes
(da a palavra jurisprudncia) que, ante os casos concretizados, emitiam leis
particularizadas, aplicveis aos casos especificados. Sem dvida alguma, pelo
seu longo perodo histrico, constituiu o povo que mais contribuiu para a
evoluo do DCrim, haja vista o enfoque prtico de seu Direito.
Inicialmente, tanto em Roma como na Grcia, o Direito se baseou na
religio. Era uma religio domstica em que cada pater familia transmitia o
seu poder ao filho primognito, em face da sucesso mortis causa, a qual no
podia ser transmitida a mais de uma famlia porque cada famlia s podia ter
um deus. Essa realidade, com o tempo, se modificou em Roma e a plebe, que
antes no podia estar perante qualquer sistema de justia, ganhou espao,
inclusive, instituiu-se tribunos da plebe.62
Os romanos dividiam os crimes em pblicos e privados, sendo os
primeiros resolvidos pelo Estado, por meio de seus tribunos (at as plebes
podiam escolher os tribunos das plebes), mas os segundos pelo prprio
ofendido, s que este no podia exagerar na reprimenda, a ponto de cometer
um crime pblico seno sofreria a interveno estatal.
O que interessante perceber que, na verdade, gregos e romanos no
se instituram de forma muito diferente. A base de ambos estava na religio,
mormente uma determinada religio domstica, pela qual cada famlia tinha
62COULANGES, Fustel de.Acidade antiga. 4. ed. 2. tir. So Paulo: Martins Fontes, 2.000.
passim.
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um deus para si. De qualquer modo, foi o menor rigor romano quem conduziu
maior evoluo desse Direito, isso em relao ao grego.63
D. Germnicos
Os germnicos constituam um povo de origem tnica diversificada,
pouco existindo sobre ele antes das invases do Sculo V a.D. Alis, ele no
registrou sua histria arcaica por meio de escritos.64 Seu direito era
consuetudinrio e baseado na vingana, mas consagrou outras instituies
penais antigas. Os germnicos, com as ordlias (Juzos de Deus) utilizaram
largamente as provas de ferro e fogo, os duelos e a tortura com ferro quente.
A pessoa seria considerada inocente se no confessasse e no morresse, mas
seria culpada se confessasse ou morresse.
Antes de Cristo no existia um povo denominado germnico. Os
denominados brbaros que vieram a constituir o povo tudesco, mas isso j
em nossa era. Assim, antes de cristo, no poderiam contribuir para a evoluo
do Direito, at porque no existiam. Outrossim, no conheciam a escrita,
sendo, conforme o prprio nome (brbaro) indica um povo rude e, portanto,
de Direito rudimentar. S mais tarde eles muito passaram contribuir
expressivamente para o DCrim, eis que sistematizaram os Pandectas
(conjunto de leis romanas, reunidas por determinao de Justiniano).65
63COULANGES, Fustel de.Acidade antiga. 4. ed. 2. tir. So Paulo: Martins Fontes, 2.000.passim.64GILISSEN, John. Introduo histrica ao Direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,2001. p. 162/163.65 interessante notar que Franz von Liszt sustenta que os atrasados foram os romanos,
prestigiando, sem razo, o Direito germnico (LISZT, Franz von. Tratado de direito penal.Campinas: Russel, 2.003. p. 84-91). Note-se, no entanto, que ele germnico e que, naesteira do que se expe neste curso, o ser humano age principalmente por interesse, o que
evidencia o porqu da sua postura.
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2.5.2.6 Direito da Igreja
Em uma viso restrita, a expresso Direito Cannico se refere quele
que rege a Igreja Catlica Apostlica Romana, Formado pelo Corpus IurisCanonici, constante do Decretum Gratiani (1.140), dos Pontfices Romanos
(sc. XII), de Gregrio IX (1.234), de Bonifcio VIII (1.298), de Clemente V
(1.313) e de Joo Paulo II (25.1.1983).66 Prefiro no falar unicamente do
Direito que nos foi dado pelos canonsda Igreja Catlica, preferindo falar em
Direito da Igreja como sendo todo aquele que adveio por influncia do
Cristianismo, consagrado como religio nica em Roma por ato do Imperador
Teodsio I (379 d.C.).
O direito da igreja, exprime um perodo de trevas, no trouxe muitos
avanos ao DCrim, sem embargo das opinies em sentido contrrio. Com
efeito, a igreja consagra, basicamente, a vingana divina, em que tudo
constitui heresia. Foi um perodo de um machismo extremo em que se
procurou diminuir as liberdades que as mulheres haviam conquistado eimpossibilitar novos avanos do sexo feminino.67Ela no condenava morte,
tinha ento um discurso falacioso, pois classificava o homem como herege e a
consequncia natural era a expiao no fogo. Mais tarde, com o iluminismo, o
enfraquecimento da igreja permitiu o surgimento de pensamentos
humanitrios, o que, efetivamente, trouxe evoluo ao DCrim.
Na idade mdia,
68
outra no era a concepo,
69
tanto que se ampliou aparticipao da igreja na sociedade, emergindo, inclusive, a santa
66BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 10. ed. So Paulo: Saraiva,2006. v. 1, p. 43.67KRAMER, Heinrich; SPRINGER, J. O martelo das Feiticeiras. Rio de Janeiro: Rosados Tempos, 1.991.68 Os grandes nomes da Filosofia do Direito da Igreja so: Santo Agostinho (AurlioAgostinho), que viveu de 354-430; e So Toms de Aquino, que viveu de 1225-1272. Este
ltimo viveu quando nascia o renascimento.
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inquisio, que era comandada pelo poder religioso da poca. A priso como
pena, a ser cumprida em uma penitenciria, surgiu nesse perodo, a qual
tornou imperioso o surgimento da individualizao da pena, talvez a maior
contribuio dessa instituio para o DCrim.
O conhecimento filosfico pouco evoluiu na idade mdia, esta foi
seguida do renascimento, repleto de nomes importantes para o
desenvolvimento da Filosofia. Desse perodo, importante destacar o mtodo
cartesiano, de Ren Descartes, visto que, mais tarde, influenciou Kant.
2.5.2.7 Perodo humanitrio
O DCrim sempre se desenvolveu de forma seletiva, sendo que os
escravos e os pobres sempre foram os que sofreram as penas mais graves. No
entanto, na segunda metade do sculo XVIII, comearam a se desenvolver os
sentimentos humanitrios dos burgueses, sendo que um jovem marqus
escreveu uma clebre obra,Dos delitos e das penas, criticando todo o sistema
punitivo da poca. O Marqus de Beccaria, de quem falvamos, um dos
maiores nomes do perodo humanitrio, trouxe os mais nobres ensinamentos
sobre a humanidade da pena.
O perodo humanitrio marcado pela influncia das profundas
transformaes havidas na Filosofia. Descartes entendia que era necessrio se
colocar em dvida, a fim de obter o conhecimento. Assim, rechaava todas as
verdades que lhe eram transmitidas, sempre duvidando delas. Mas para que
isso acontecesse, tinha se colocar diante de uma certeza, por ele conhecida.
69 A Filosofia do Direito, na idade mdia, foi dominada pelo pensamento religioso doscristos, s se afastando dele no incio do sculo XVII, quando Hugo Grcio proclamou a
existncia de um Direito Natural independente de Deus (NADER, Paulo. Op. cit. p. 118).
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Ento, estabeleceu uma verdade para si mesmo penso logo existo, que se
tornou o primeiro princpio da Filosofia que buscava.70
Rosseau, j na metade do Sculo XVIII, sofreu influncia da postura
metafsica dos seus antecessores, conforme se v no Contrato Social,
publicado em 1757, visto que deixou claro que as leis sbias e justas s
poderiam ser redigidas por verdadeiros deuses.71No entanto, ele se afasta um
pouco das ideias transcendentais, quando entende que se a vontade de Deus s
nos chegar por homens escolhidos, a verdade se apresenta deturpada. Assim,
melhor que os homens procurem conhecer a justia pelos seus prprios
sentimentos, pela razo. Com efeito, na obra nupercitada, consta a proposta de
uma religio civil, que formada pela vontade humana, afastando-se das
questes meramente sentimentais.72 O momento era propcio para a
evoluo do pensamento filosfico. Muito havia sido descoberto na Fsica e
na Astronomia, criando ambiente propcio para o surgimento de uma nova
Filosofia, o positivismo.
Immanuel Kant (1.724 a 1.804) inaugurou uma grande transformao
no pensamento filosfico, dedicando-se, tambm, aos estudos jusfilosficos
voltados matria criminal. Ele, por exemplo, analisou a pena de morte,
instalando-se uma polmica entre ele e Beccaria, uma vez que este refutava a
possibilidade de aplic-la, por violao ao contrato social, j que este teria que
ser geral. De outro modo, Kant entendia que a confluncia de todas as
vontades para o contrato, formando uma nica e geral, no era real. Para
70DESCARTES, Ren. O discurso do mtodo. 2. ed. 2. tir. So Paulo: Martins Fontes,1999. p. 38.71ROUSSEAU, Jean-Jacques.Do contrato social. So Paulo: Martins Claret, 2000. p. 50.
72Ibidem. p. 117-125.
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Kant, posio de Beccaria, no passa de sofisma e falsa concepo do
Direito.73
Observe-se, no entanto, Beccaria e Kant concordavam no ponto em que
afirmavam que as normas deveriam se inspirar no princpio de que o homem
deve ser sempre tratado como pessoa e nunca como coisa, isto , sempre
como fim e no como meio.74, assim, oportuno o estudo da Filosofia de
Kant, at porque, mesmo que ele no se ocupasse especificamente do direito
de punir, o Direito se dirige a homens, que s existiro enquanto pensantes,
sendo a Filosofia importante caminho para a compreenso dos fins e da
legitimao da cincia jurdica. Tambm, o que se espera hoje, com pouca
chance de se alcanar, a cultura judicial de que o homem sujeito do DCrim
no objeto deste.
Em geral, o acadmico durante o curso de graduao no tem a noo
do quanto importante o estudo da Filosofia do Direito. Depois de graduado,
o profissional poder desenvolver suas atividades como um operador do
Direito, ou seja, um tcnico preso aos dogmas e s doutrinas trazidas por
autoridades na matria, ou poder procurar conhecer um pouco mais da
cincia do Direito, tornando-se, ento, imperiosa a necessidade de se estudar
Filosofia, mais especificamente, jusfilosofia. Ora, como se pde ver, as fases
ou instituies criminais consolidadas at o sc. XVIII da nossa era estavam
impregnadas das vises filosficas de cada perodo.
2.5.2.8 Perodo criminolgico
73KANT, Immanuel.Doutrina do direito. 2. ed. So Paulo: cone, 1993. p. 181.74MONDOLFO, Rodolfo. Cesare Beccaria y sua obra. Buenos Aires: Depalma, 1956. p.46-47; apud CAMPA. Ricardo. Prefacio. BONESANA, Cesare (Marqus de Beccaria).
Dos delitos e das penas. So Paulo: Marins Fontes, 1991. p. 20-23.
7/26/2019 Cur Sod Crim
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No final do sculo XIX emergiram alguns pensadores, sendo que um
mdico legista, Cesare Lombroso (1835-1909), atribuiu a causa do crime a
anomalias biolgicas do agente, tendo institudo a biologia criminal. Dos seus
estudos nasceu uma cincia, a Criminologia.
Enrico Ferri (1856-1929), outro grande nome da poca, se insurgiu
contra a ideia de que havia um delinquente natural (criminoso nato). Para
Ferri, o homem produto do meio, sendo que a anomalia do agente seria
sociolgica, no biolgica.
Finalmente, emergiu Raffaele Garofalo (1851-1934), que atribuiu a
causa do crime a uma anomalia moral do agente, a qual poderia decorrer de
problemas antropolgicos ou sociolgicos, tendo defendido a pena de morte
porque, segundo ele, algumas pessoas tm o carter to deturpado que no
mais podem ser recuperadas. Dessa forma, a pena passou a ser um meio de
defesa social e de cura do delinquente.
Essa viso reducionista do DCrim decorre da evoluo de concepes
positivistas da Filosofia. Afirmei que conhecer o pensamento de Kant
fundamental, isso porque s depois que ele conseguiu desenvolver um
conhecimento fundado na razo, e conseguiu afastar as concepes de espao
e tempo de concepes transcendentais que houve grande evoluo na
Filosofia.75 Hegel (1770-1831), com seu subjetivismo foi um neokantiano,
assim como foram praticamente todos os outros jusfilsofos da modernidade.
A influncia do pensamento Kantiano, conforme ensina Cludio de
Cicco, na apresentao do livro D