Barata-Equidade e Saúde. Contribuições Da Epidemiologia

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    BARATA, RB., et al., orgs. Equidade e sade: contribuies da epidemiologia [online]. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1997. 260 p. EpidemioLgica series, n1. ISBN: 85-85676-34-5. Available from SciELO Books .

    All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.

    Todo o contedo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, publicado sob a licena Creative Commons Atribuio - Uso No Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No adaptada.

    Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, est bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

    Equidade e sade contribuies da epidemiologia

    Rita Barradas Barata Maurcio Lima Barreto

    Naomar de Almeida Filho Renato Peixoto Veras

    (orgs.)

  • EQIDADE SADE Contribuies da Epidemiologia

  • F U N D A O O S W A L D O C R U Z Pres idente

    Eloi de Souza Garcia

    Vice-Pres idente de Ambien te , Comun icao e Informao Maria Ceclia de Souza Minayo

    E D I T O R A F I O C R U Z

    Coordenado ra Maria Ceclia de Souza Minayo

    Conse lho Editorial Carlos E. A. Coimbra Jr. Carolina . Bori Charles Pessanha Hooman Momen Jaime L. Benchimol Jos da Rocha Carvalheiro Luis David Castiel Luiz Fernando Ferreira Miriam Struchiner Paulo Amarante Paulo Gadelha Paulo Marchiori Buss Vanize Macdo Zigman Brener

    Coordenador Execu t ivo

    Joo Carlos Canossa P. Mendes

  • EQIDADE SADE Contribuies da Epidemiologia

    Organizadores

    Rita Barradas Barata Maurcio Lima Barreto

    Naomar de Almeida Filho Renato Peixoto Veras

    Srie EpidemioLgica 1

    1a Reimpresso

  • Copyright 1997 dos autores Todos os direitos desta edio reservados FUNDAO OSWALDO CRUZ / EDITORA

    ISBN: 85-85676-34-5

    1a Reimpresso: 2000

    Capa, projeto grfico e editorao eletrnica: Guilherme Ashton Copidesque e reviso final: M. Ceclia G. B. Moreira Reviso: Eliana Granja Preparao dos originais: Marciontio Cavalcanti de Paiva

    ESTA PUBLICAO FOI PARCIALMENTE PRODUZIDA COM RECURSOS PROVENIENTES DO CONVNIO 173/94 - ABRASCO/FUNDAO NACIONAL DE SADE DO MINISTRIO DA SADE - COM O OBJETIVO DO DESENVOLVIMENTO DA EPIDEMIOLOGIA EM APOIO S ESTRATGIAS DO SUS.

    Catalogao-na-fonte Centro de Informao Cientfica e Tecnolgica Biblioteca Lincoln de Freitas Filho

    B226c Barata, Rita Barradas (Org.) Equidade e sade: contribuies da epidemiologia/Organizado por Rita

    Barradas Barata, Maurcio Lima Barreto, Naomar de Almeida Filho e Renato Peixoto Veras. Rio de Janeiro: Fiocruz/Abrasco, 1997.

    260p., tab., graf. (Srie EpidemioLgica, 1)

    1. Epidemiologia. 2. Poltica social. 3. Mortalidade. I. Barata, Rita Barradas (Org.). II. Barreto, Maurcio Lima (Org.). . Almeida Filho, Naomar de (Org.). IV. Veras, Renato Peixoto (Org.).

    CDD - 20.ed. - 614.49

    2000 EDITORA FIOCRUZ Rua Leopoldo Bulhes, 1480, trreo - Manguinhos 21041-210 - Rio de Janeiro - RJ Tels.: (21) 598-2701 / 598-2702 Telefax: (21)598-2509 Internet: http//www.fiocruz.br/editora e-mail: [email protected]

  • Autores Alberto . Torres

    Departamento de Sade Internacional/Escola Nacional de Sade - Madri, Espanha

    Antonio Alberto Lopes Departamento de Medicina/Universidade Federal da Bahia (UFBA)

    Asa Cristina Laurell Universidade Autnoma Metropolitana - Xochimilco, Mxico

    Elza Berqu Ncleo de Estudos da Populao/Universidade de Campinas (UNICAMP) e Centro

    Brasileiro de Anlise e Planejamento (CEBRAP)

    Estela M. G. de Pinto da Cunha Ncleo de Estudos da Populao/Universidade de Campinas (UNICAMP)

    Jaime Breilh

    Centro de Estudos e Assessoria em Sade (CF.AS) - Equador

    Joaquim Pereira Departamento de Sade Internacional/Escola Nacional de Sade - Madri, Espanha

    Juan Fernandez Departamento de Sade Internacional/Escola Nacional de Sade - Madri, Espanha

    Marco Akerman Centro de Estudos de Cultura Comtempornea (Q-DEC) - So Paulo

    Marilisa Berti de Azevedo Barros Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Cincias

    Mdicas/Universidade de Campinas (UNICAMP)

    Mrio Monteiro Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UlZRJ) e

    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE)

    Moiss Goldbaum Departamento de Medicina da Faculdade de Medicina da USP e Secretaria de Estado da

    Sade de So Paulo

  • Neil Pearce Escola de Medicina de Wellington - Nova Zelndia

    Pedro Luis Castellanos Programa de Anlise da Situao da Sade - Organizao Pan-Americana da

    Sade/Organizao Mundial da Sade (OPS/OMS)

    Sal Franco Agudelo Universidade de Antiquia - Colmbia

    Richard Wilkinson University of Sussex, Brighton e University College - Londres, Inglaterra

    Organizadores Rita Barradas Barata

    Departamento de Medicina Social/Faculdade de Cincias Mdicas - Santa Casa de So Paulo

    Maurcio Lima Barreto Instituto de Sade Coletiva da Universidade Federal da Bahia ( U F B A )

    Naomar de Almeida Filho Instituto de Sade Coletiva da Universidade Federal da Bahia ( U F B A )

    Renato Peixoto Veras Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro ( I M S / U F R J )

  • Sumrio

    APRESENTAO 9

    INTRODUO 11

    PARTE I: ABORDAGENS DA QUESTO EQIDADE EM EPIDEMIOLOGIA

    1. A Epidemiologia na Humanizao da Vida: convergncias e desencontros das correntes Jaime Breilh 23

    2. Violncia, Cidadania e Sade Pblica Sal Franco Agudelo 39

    3. A Epidemiologia em Busca da Eqidade em Sade Moiss Goldbaum 63

    PARTE II: SADE, ECONOMIA SOCIEDADE

    4. Impacto das Polticas Sociais e Econmicas nos Perfis Epidemiolgicos Asa Cristina Laurell 83

    5. Relao Internacional entre Eqidade de Renda e Expectativa de Vida Richard Wilkinson 103

    6. Classe Social e Cncer Neil Pearce 121

    PARTE III: DESIGUALDADES SOCIAIS DIFERENCIAIS DE MORTALIDADE

    7. Perfis de Mortalidade, Nvel de Desenvolvimento e Iniqidades Sociais na Regio das Amricas

    Pedro Luis Castellanos 137

    8. Epidemiologia e Superao das Iniqidades em Sade Marilisia Berti de Azevedo Barros 163

    9. Diferenciais Intra-Urbanos em So Paulo: estudo de caso de macrolocalizao de problemas de sade

    Marco Akerman 177

  • PARTE IV: TRANSIO DEMOGRFICA EPIDEMIOLGICA

    10. Transio Demogrfica e seus Efeitos sobre a Sade da Populao Mrio F. Giani Monteiro 189

    11. Anlise da Transio Epidemioigica na Espanha Alberto M. Torres, Joaquim Pereira e Juan Fernandez 205

    PARTE V: HETEROGENEIDADE DE RAA GNERO EM EPIDEMIOLOGIA

    12. Raa: aspecto esquecido na iniqidade em sade no Brasil? Esteia M. G. de Pinto da Cunha 219

    13. Esterilizao e Raa em So Paulo Elza Berqu 235

    14. Significado de Raa em Pesquisas Mdicas e Epidemiolgicas Antonio Alberto Lopes 245

  • A P R E S E N T A O

    Em abril de 1995, a Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva (ABRASCO) - atravs de sua Comisso de Epidemiologia, juntamente com a Sociedade Ibero-Americana de Epidemiologia (SlAE) e a Associao La-tino-Americana de Medicina Social (ALAMES) - realizou os III Congresso Bra-sileiro, II Congresso Ibero-Americano e I Congresso Latino-Americano de Epi-demiologia, reunidos em torno do mesmo lema: A Epidemiologia na busca da eqidade em Sade. O Departamento de Medicina Preventiva e Social - atual Instituto de Sade Coletiva - da Universidade Federal da Bahia contribuiu de maneira decisiva para a organizao dos eventos ocorridos em Salvador.

    A presente coletnea, estruturada a partir de textos apresentados naqueles Congressos, significa uma amostra do que tem sido a produo em Epidemiolo-gia acerca das desigualdades em geral.

    Por afinidades temticas, optamos por dividi-la em cinco partes:

    a primeira rene textos de Jaime Breilh. Sal Franco Agudelo e Moiss Goldbaum que tratam da questo da eqidade e de sua abordagem pela Epi-demiologia. A questo enfocada tanto do ponto de vista do desenvolvi-mento cientfico quanto em seus aspectos polticos;

  • a segunda - com trabalhos de Asa Cristina Laurell, Richard Wilkinson e Neil Pearce - aborda aspectos predominantemente econmicos das desigual-dades em sade, situando o momento atual de globalizao e seus impactos para a sade, inclusive para a prpria produo de conhecimentos;

    a terceira - formada por artigos de Pedro Luis Castellanos, Marilisa Berti de Azevedo Barros e Marco Akerman - discute os diferenciais de mortalidade na perspectiva da iniqidade social. Ou seja, traz contribuies e reflexes que tomam por base estudos empricos no mbito de cidades ou pases do continente americano;

    a quarta apresenta dois textos relativos transio demogrfica e epidemio lgica, um deles de autoria de Mrio F. Giani Monteiro e o outro de Alberto Torres, Joaquim Pereira e Juan Fernndez;

    e, finalmente, a quinta discute as heterogeneidades de raa e gnero e suas implicaes para a sade, atravs das anlises de Esteia M. G. de Pinto da-Cunha, Elza Berqu e Antonio Alberto Lopes.

    Optamos pela traduo dos textos cujos originais encontravam-se em in-gls ou espanhol, considerando que desta forma um espectro maior de profissio-nais e pesquisadores da rea de Sade Coletiva no Pas poderiam usufruir dessas contribuies.

    H que ressaltar que no compart i lhamos, necessariamente, das vises aqui apresentadas, porm, mantendo o esprito de abertura cientfica que tem ca-racterizado a atuao da Comisso de Epidemiologia da ABRASCO, considera-mos que cabe ao ju lgamento interpares decidir sobre a adequao ou no de cor-rentes explicativas.

    Esperamos que este primeiro volume - assim como os que se seguiro -da Srie EpidemioLgica inaugure uma nova perspectiva no pensar a Epidemio-logia e suas lgicas, nos anseios de efetivamente colaborar no redesenho dos atuais cenrios de sade de nossos povos.

    Os Organizadores

  • I N T R O D U O

    A Consti tuio brasileira promulgada em 1988 consagra, na seo reser-vada Sade, o seguinte princpio geral:

    A sade direito de todos e dever do Estado, garantido mediante polticas sociais e econmicas que visem reduo do risco de doena e de outros agravos e o acesso universal e igualitrio s aes e servios para sua promoo, proteo e recuperao. (Constituio, 1988)

    De cer ta mane i ra , por tan to , a t emt ica ' E q i d a d e e Sade' es tapre-sente no p rpr io tex to cons t i tuc iona l , t o rnando necessr ia sua comple t a e lu-c idao a fim de que a in teno possa to rnar - se a to conc re to , isto , que os p r inc p ios e s t abe lec idos na esfera ju r d i co -po l t i ca sejam capazes de or ien-tar de fato as pr t icas soc ia is .

    Na lngua portuguesa, o termo ' iguali trio ' utilizado para designar o "s is tema que preconiza a igualdade de condies para todos os membros da so-c iedade" . ' Igua ldade ' , por sua vez, sinnimo de eqidade, just ia e, no campo da tica, nos remete "relao entre os indivduos, em virtude da qual todos eles so portadores dos mesmos direitos fundamentais que provm da humanidade e definem a dignidade da pessoa h u m a n a " (Ferreira, 1986).

  • A in terpre tao do pr incpio cons t i tuc ional do d i re i to sade deve ser feita levando-se em conta tais s ignif icados . N o se trata s imp le smen te de oferecer um "mnimo de cu idados a todos os indiv duos , mas , an tes , de atender as necessidades humanas segundo o princpio da eqidade, vale dizer, a "disposio de reconhecer igualmente o direito de cada um", o "sentimento de justia avesso a um critrio rigoroso e estritamente legal" (Ferreira, 1986).

    Qual a contribuio possvel da Epidemiologia no cumprimento desses princpios?

    Desde sua origem como disciplina cientfica, no cerne do pensamento epi demiolgico tem estado a avaliao do risco de adquirir e desenvolver doenas e agravos sade e o estabelecimento de ' comparaes ' para a identificao dos determinantes desses riscos. Comparaes essas realizadas entre subconjuntos de sujeitos identificados por possurem alguma caracterstica capaz de distingui-los e individualiz-los, como grupo, no conjunto maior da populao humana; portanto, comparaes entre desiguais.ou diferentes (Almeida Filho, 1992).

    O fato de a Epidemiologia tomar o processo sade-doena, em sua dimenso coletiva, como seu objeto de estudo e interveno, confere-lhe particular instrumen-tal idade na etapa de constituio do Estado Moderno, visto que a preservao da sade da fora de trabalho urbana e rural coloca-se como uma das principais neces-sidades sociais nessa poca (Mendes-Gonalves, 1994). Entretanto, ao trabalhar com os diferenciais de sade-doena nos variados grupos sociais, a Epidemiologia v-se imediatamente confrontada com os aspectos sociais, econmicos e polticos da prpria organizao social e com o potencial de denncia que os conhecimentos por ela produzidos trazem para o espao pblico (Barata, 1990).

    Nesse processo de constituio da Epidemiologia, enquanto disciplina cientfica do campo da Sade Coletiva e conjunto de prticas sociais voltadas para o controle de doenas e agravos sade, as diferenas entre os grupos de sujeitos - cujas comparaes esto na base da construo do pensamento epide miolgico - vo ganhando a conotao e o significado de desigualdades. Desi-gualdades que remetem desproporcionalidade, parcialidade e injustia.

    Esses sentidos da desigualdade tero desdobramentos diversos no interior da disciplina, dando origem a, pelo menos, duas correntes de pensamento: uma delas, mais 'natural izada ' , na qual os diferenciais sero tratados, na medida do possvel, despidos de qualquer conotao social, cultural e poltica, como sim-ples caractersticas biolgicas e demogrficas de conjuntos de organismos mais ou menos destacados de seu ambiente; outra, mais 'politizada', na qual os diferenciais

  • assumem a condio de desigualdades ou injustias produzidas na estrutura so-cial e refletidas no processo de adoecimento e morte dos sujeitos.

    Na verdade, mesmo a primeira das correntes acima mencionadas incorpora, em alguma medida, as questes sociais na explicao do processo sade-doena. Ela o faz, principalmente, a partir do referencial da Sociologia funcionalista, valen-do-se do conceito de estratificao social, enquanto a outra vertente baseia-se no materialismo histrico em suas diferentes formas de elaborao (Barreto, 1990).

    Aparentemente no h como a Epidemiologia eludir a questo da desigualda-de, pois ela se encontra instalada no prprio cerne do objeto e do pensamento; entre-tanto, o que ir distinguir as diferentes correntes de produo ser a forma de en frentamento que essa questo ter no s no nvel terico e metodolgico, mas tam-bm em relao praxis.

    Cabe perguntar de onde vem o potencial poltico da denncia da desigual-dade, isto , o carter ideolgico que tal denncia adquire em nossa sociedade. Por que a polmica em torno da desigualdade? No perfeitamente esperado e natural a observao de que os sujeitos se diferenciam por uma srie de caracte-rsticas? De onde vem o espanto em face do desigual? Por que a demonstrao da desigualdade assume ares de denncia poltica?

    N a histria da humanidade, todas as formas de organizao social foram marcadas, com maior ou menor intensidade, pelas posies desiguais que os su-jei tos ocuparam na estrutura social. Sejam castas, classes ou estratos demogrfi-cos, todas as formas de organizao social contaram com grupos distintos em sua estrutura. Todas elas, porm, tinham justificativas no plano jur dico e polti-co para as desigualdades existentes, fossem elas baseadas na condio de nasci-mento, na autoridade da Igreja ou em outro critrio qualquer.

    Apenas as sociedades capitalistas ocidentais afirmaram, como princpio no plano poltico e jurdico, a igualdade de todos os cidados, independentemente das condies de nascimento ou da posio efetivamente ocupada na estrutura social. O lema da Revoluo Francesa, adotado como paradigma das revolues burguesas, afirma os valores 'Liberdade, Igualdade e Fraternidade' como aqueles capazes de garantir o predomnio da Razo e a libertao da humanidade de todos os precon-ceitos, crenas e mitos que impediram o desenvolvimento pleno das potencialidades humanas at o advento do Sculo das Luzes.

    Dado que a organizao social capitalista no possibilita a concretizao dessa igualdade apregoada, surge a brecha para que a questo da desigualdade aparea revestida de forte potencial de denncia. No fosse a contradio entre a realidade concreta dos sujeitos e a ideologia, no haveria motivos para o 'espan

  • to' nem para todas as tentativas que so feitas no sentido de esvaziar a desigual-dade do seu contedo poltico.

    Diante da existncia concreta das desigualdades presentes no processo sade-doena e dada a politizao inerente a toda explicitao desse fato, resta Epidemiologia enfrentar a questo, quer seja do ponto de vista da produo do conhecimento, quer na elaborao e implementao das propostas de interven-o decorrentes.

    Considerando que a parcela dos que optam por tratar a desigualdade de maneira 'naturalizada' - portanto, esvaziada de seu contedo poltico - no lo-gra resolver ou superar a questo, devemos colocar o foco de ateno nas alter-nativas que se apresentam, do ponto de vista terico, para aqueles que preten-dem tomar a existncia de desigualdades sociais como ponto de partida da refle-xo sobre a sade e a doena.

    Podemos identificar duas correntes de pensamento majoritrias no que se refere ao tratamento terico da desigualdade no mbito das investigaes epide miolgicas. H uma parcela importante dessa produo na qual a desigualdade enfocada atravs da teoria da estratificao social, enquanto outra parcela adota a perspectiva da estrutura de classes. As teorias de estratificao social tratam a desigualdade de um ponto de vista predominantemente quanti tat ivo, ou seja, es tabelecendo pontos de cortes em variveis cujas gradaes representam um cont nuo de situaes possveis, resultando assim na classificao de indivduos e grupos sociais em estratos altos, intermedirios e baixos. Os estratos so cate-gorias eminentemente descritivas, que permitem a comparao entre posies re-lativas - do tipo mais ou menos (S t avenhagen , 1 9 7 4 ) . Sua construo est ba-seada na utilizao de variveis individuais tomadas como indicadoras de condi-o social, tais como renda, escolaridade, reas residenciais, escalas de prestgio etc.; ou na elaborao de ndices compostos, nos quais diversas variveis podem es-tar includas apenas de maneira agregada ou sob a forma de esquema hierrquico ( S E A D E , 1992) .

    A categoria classe social, por sua vez, analtica e histrica, isto , mos-tra-se com capacidade explicativa e como portadora de contedo concreto espe-cfico para cada momento histrico. Est baseada em critrios estruturais-fun cionais relativos posio que os grupos ocupam na organizao social. Tal po-sio definida a partir do lugar na produo social, das relaes com os meios de produo, papel na organizao social e relaes de dominao/subordinao (Stavenhagen, 1 9 7 4 ) .

  • Portanto, a adoo de modelo fundado na estratificao social ou de ou-tro baseado na estrutura de classes sociais no indiferente para a mensurao e compreenso da desigualdade social em pesquisas epidemiolgicas , visto que ambos apresentam diferentes potencialidades de explicao da produo do pro-cesso sade-doena no mbito coletivo.

    Do ponto de vista metodolgico, a opo pela estratificao social apre-senta certas facilidades no plano operacional, mas traz a lgumas dificuldades na reconstruo da realidade anteriormente fragmentada em inmeras variveis, to-madas cada uma delas como indicadores individualizados. comum observar-mos, principalmente em estudos transversais, uma lista extensa de variveis s cio-econmicas analisadas atravs de modelos multivariados, sem que os autores realizem esforos, no momento da interpretao, para explicar de que maneira os processos sociais, indicados mais ou menos grosseiramente por aquelas vari-veis, interferem, contribuem ou colaboram para o processo sade-doena.

    N a Europa, em geral, e no Reino Unido, em particular, a ocupao tem sido utilizada como base das classificaes em estratos scio-econmicos, en-quanto nos Estados Unidos mais freqente o uso de indicadores de renda e es-colaridade (Alvarez-Dardet et al., 1995).

    De modo inverso, a opo pelo modelo de estrutura de classes sociais traz muitas dificuldades operacionais no sentido da traduo de uma categoria analtica em indicadores, variveis e valores aplicveis a indivduos, porm representa algu-mas facilidades no momento da explicao, na medida em que a categoria classe so-cial representa, em si, situaes qualitativamente diversas, com sentido preciso em cada uma das formaes sociais, o que torna mais simples a interpretao das desi-gualdades estudadas. Do mesmo modo, porm, h uma srie de processos de media-o entre a estrutura de classes e os processos sade-doena, cujo conhecimento e compreenso apresentam grande complexidade.

    Os modelos de operacionalizao do conceito de classe social tm sido objeto de reflexo, elaborao e avaliao em pesquisas epidemiolgicas que procuram tomar a questo da desigualdade como problema relevante de investi-gao. Barros (1986) adaptou o esquema elaborado por Singer para medir o ta-manho das classes sociais no Brasil, a partir de dados censitrios, ao estudo dos perfis de morbidade e consumo de medicamentos da populao de Ribeiro Pre-to, suscitando a discusso dos limites e possibilidades dessa abordagem. Lom-bard! (1988) adaptou ao estudo do crescimento e desenvolvimento de crianas de Pelotas, no Rio Grande do Sul, o esquema utilizado no Mxico por Bronfman & Tuirn (1984) para o estudo da mortalidade infantil. Ambos os trabalhos in-troduziram elementos conceituais, metodolgicos e operacionais discusso re

  • ferente utilizao da categoria classe social como categoria analtica em inves-tigaes epidemiolgicas, nas quais as unidades de informao eram indivduos pertencentes a amostras populacionais.

    Solla (1996a, b), em reviso crtica da utilizao do conceito de classe so-cial em estudos epidemiolgicos, destaca uma srie de problemas e limitaes que merecem maior ateno dos pesquisadores. Dentre eles, o problema mais re-ferido, principalmente por parte dos profissionais das Cincias Sociais, a perda do dinamismo inerente ao conceito quando este aplicado classificao emp-rica de sujeitos. Os argumentos apresentados apontam o papel central que o con-ceito de classe social exerce nas teorias do materialismo histrico como propul-sor das transformaes sociais, aspecto este freqentemente deixado de lado no processo de operacionalizao em pesquisas empricas.

    Do ponto de vista metodolgico, as maiores dificuldades parecem estar na necessidade de ajuste dos modelos de operacionalizao propostos s peculiari-dades de cada formao social, dificultando assim a comparao entre diferentes investigaes; no estabelecimento de pontos de corte arbitrrios para, por exem-plo, nmero de empregados ou nvel de renda que permitam separar os indiv-duos nas diferentes classes; na utilizao de grandes amostras populacionais ca-pazes de incluir a diversidade das fraes de classe existentes e na inexistncia de dados secundrios necessrios construo das classes e correta classifica-o dos indivduos que se encontram fora do mercado de trabalho no momento da investigao.

    Alm dessas dificuldades no mbito metodolgico e das tcnicas de in-vestigao, h uma questo que diz respeito prpria compreenso do significa-do correto da determinao social do processo sade-doena e, portanto, das de-sigualdades sociais em sade. A classe social, por ser categoria de anlise com-plexa, deve ocupar a posio mais distal entre situao social e doena na "ca-deia de causal idade", tendo sua ao mediada - vale dizer, especificada - por um conjunto de outros determinantes com atuao em diferentes dimenses da realidade. Ou seja, a rigor no se pode falar em determinao causal estrito sen-so (Laurell, 1983).

    Desconhecer a diferena existente entre as diversas maneiras de determi-nao e tom-las todas pelo princpio da determinao causai tem levado muitos epidemiologistas a no encontrar relaes significantes entre estratos ou classes sociais e doenas.

    O aprofundamento terico e metodolgico no estudo das desigualdades sociais tem levado elaborao de propostas de compreenso e explicao do

  • processo sade-doena baseadas em modelos mais complexos de abordagem, tais como os desenvolvidos por Laurell & Noriega (1989) e Breilh et al. (1990), nos quais o processo de produo e reproduo social, com seus diversos com-ponentes, so utilizados para melhor aproximao no estudo da determinao social da doena e da sade.

    A proposta de Laurell & Noriega (1989) utiliza a categoria nexo biopsquico, sua subsuno aos 'modos de andar a vida' e destes ao processo de trabalho e de va-lorizao desenvolvidos no mbito do processo de produo. Esta vertente de anli-se, pelo papel central que concede ao processo de trabalho na explicao da sade e do adoecer, tem sido mais utilizada em estudos relativos sade e trabalho. Entre-tanto, sua potencialidade terica no se esgota nesse campo em particular, podendo ter suas contribuies aplicadas compreenso de processos mais amplos de trans-formao social e suas repercusses sobre a sade.

    O elemento nuclear para o estabelecimento dos perfis epidemiolgicos na proposta de Breilh (1990) e dos demais pesquisadores do CEAS (Centro de Estu dios y Asesora en Salud) centra-se no relacionamento entre as formas de vida ou de reproduo social e o comportamento dos organismos, includo a o apare-cimento das doenas. A utilizao desse marco conceituai em investigaes em-pricas tem demonstrado todo seu potencial explicativo, alm de possibilitar a insero de diferentes processos mediadores, conduzindo maior especificao dos nexos entre estrutura social e estrutura epidemiolgica.

    Possas (1989) prope uma abordagem na qual. partindo do perfil epide miolgico da populao, sejam identificadas as situaes de risco mais direta-mente relacionadas com o surgimento das doenas, e da, recursivamente, pas-sa-se a reconstruir as mediaes at atingir a insero na produo, ou seja, as classes sociais. A partir das situaes de risco, a autora coloca o estilo de vida -hbitos e compor tamentos - , as condies de vida - consumo - e as condies de trabalho como principais mediadores. N o nvel seguinte destacam-se o modo de vida - conjuno das condies e estilos de vida - e a insero na estrutura ocupacional - mercado de trabalho, renda etc. Finalmente, ambos os constituin-tes fundem-se nas classes sociais e estas subordinam-se insero scio-econ mica em uma formao social concreta. Desta forma, a autora pretende identifi-car uma linha de determinao causal e outra de determinao social, as quais partem de um ponto comum na insero das classes sociais e convergem para outro ponto comum no perfil epidemiolgico populacional.

    Cas te l lanos (1990) elabora a categoria s i tuao de sade c o m o um con-jun to de problemas descr i tos e expl icados a partir da perspect iva de a tores so

  • ciais de te rminados , isto , c o m o necess idades organizadas por atores dispostos a mobilizarem-se para satisfaz-las. A situao de sade expresso das condies de vida de cada um dos grupos sociais, e estas, por sua vez, dependem da forma como tais grupos se inserem no processo geral de reproduo social, em dado momento histrico e sob determinadas condies naturais. Desta maneira, o autor traz para a questo da determinao social os aspectos culturais e polticos rela-cionados aos significados construdos por diferentes atores em sociedade.

    Existe, portanto, uma produo terica e metodolgica considervel a respeito das desigualdades sociais e sade na Epidemiologia latino-americana. Esta produo, a despeito de todas as dificuldades que encerra, tem permitido particularizar o traba-lho desenvolvido com criatividade e crtica no mbito da Epidemiologia.

    Os Organizadores

    R E F E R N C I A S B I B L I O G R F I C A S

    A L M E I D A FILHO, . A Clinica e a Epidemiologia. Rio de Janeiro-Salvador: Abras co/Apce, 1992.

    A L V A R E Z - D A R D E T , C. et al. La Medicin de Ia Clase Social en Cincias de Ia Salud. Grupo de trabajo de Ia Sociedad Espahola de Epidemiologia. Barcelona: SG Editores S.A., 1995.

    B A R A T A , R. B. Epidemiologia: teoria e mtodo. In: I C O N G R E S S O BRASILEIRO DL EPIDE-

    MIOLOGIA. Anais. Campinas: Abrasco, 1990.

    B A R R E T O , M. L. A epidemiologia, sua histria e crises: notas para pensar o futuro. In: C O S T A , D . C. Epidemiologia: teoria e objeto. So Paulo: Hucitec/Abrasco, 1990. B A R R O S , . . A. A utilizao do conceito de classe social nos estudos dos perfis epide-miolgicos: uma proposta. Revista de Sade Pblica, 20(4):269-273, 1986. BREILH, J. et al. Deterioro de la Vida. Quito: Corporacin Editora Nacional, 1990. B R O N F M A N , . & T U I R N , R. La desigualdad ante la muerte: clases sociales y mortali dad en la ninez. Cuadernos Mdico Sociales, (29/30):53-75, 1984. C A S T E L L A N O S , P. L. Avances metodolgicos en Epidemiologia. In: I C O N G R E S S O B R A SILEIRO DE EPIDEMIOLOGIA. Anais. Campinas: Abrasco, 1990.

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  • PARTE I

    A B O R D A G E N S G E R A I S D A Q U E S T O E Q I D A D E E M

    E P I D E M I O L O G I A

  • A E P I D E M I O L O G I A N A H U M A N I Z A O

    D A V I D A : C O N V E R G N C I A S D E S E N C O N T R O S

    D A S C O R R E N T E S

    Jaime Breilh

    I N T R O D U O

    Ante a desorganizao mundial da vida humana e a prol iferao de processos tanto antigos quanto atuais de destruio da sade, a Epidemiologia vem-se consolidando como ferramenta importante para a monitorizao dessa deteriorao massiva e para o planejamento de aes coletivas que visem defe-sa da sade e humanizao das sociedades.

    Nesse cenrio adverso e pleno de desafios, coexistem vrias correntes do pensamento epidemiolgico de vanguarda que comparti lham o anseio comum de proteger a sade e obter diversos avanos tcnicos que poderiam ser comple mentares. Entretanto, na prtica, se desenvolvem de modo mutuamente desvin-culado, como campos paralelos, ou at mesmo conflitantes, isolados pelo julga-mento prvio, por uma arrogncia defensiva e por uma incapacidade de encon-trar a sua unidade na necessidade social.

    Traduo: Eliana Granja

  • URGNCIA DE UM PROJETO HUMANO

    Este foro 1 que nos rene com tan to x i to o resu l t ado da conf lunc ia de mu i t a s v o n t a d e s p rogress i s t a s , co locadas a se rv io do h u m a n o e d i spos -tas a conve r t e r es tas j o r n a d a s de t r aba lho em u m a g rande 'o f ic ina pe la v i -d a ' . reconfor tan te que t e n h a m o s s ido c o n v o c a d o s com mani fes ta in ten-c iona l idade : a cons t ruo de u m a ' E p i d e m i o l o g i a na busca da eqidade*. Es foro cuja pe r t innc ia d i r e t amen te p roporc iona l ao e n o r m e grau de des -t ru i o da sade dos nossos povos nas horas dif ceis , em que es to s endo s u b m e t i d o s consp i r ao pe rve r sa de um ' m o d e l o ' s c i o - e c o n m i c o desu -m a n o e p ro fundamen te no-eq i t a t ivo .

    Referncia aos Congressos que originaram esta coletnea.

    O r e s u l t a d o m a i s p r e o c u p a n t e de s sa s t e n s e s o e n f r a q u e c i m e n t o g loba l d a s n o v a s p e r s p e c t i v a s do p e n s a m e n t o , da p r t i ca e da inves t iga o e p i d e m i o l g i c a , p o r q u e t e m o s c o n s t r u d o o b s t c u l o s d e s n e c e s s r i o s f e r t i l i zao e n t r e l a a d a de suas t rs e x p r e s s e s p r i nc ipa i s : a c o r r e n t e m a i s l igada ao c o n h e c i m e n t o dos s i s t e m a s d i n m i c o s l inea res e n o - l i n e a res ( m o d e l o m a t e m t i c o ou model fitting); a co r r en t e m a i s a s s o c i a d a ao c o n h e c i m e n t o dos p r o c e s s o s m i c r o s s o c i a i s (a A n t r o p o l o g i a , as t c n i c a s q u a l i t a t i v a s de A n l i s e do D i s c u r s o ) ; e a c o r r e n t e m a i s r e l a c i o n a d a ao e m p r e g o de c a t e g o r i a s pa ra o e s t u d o dos p r o c e s s o s e s t ru tu r a i s e s u p e r e s t r u t u r a i s a m p l o s ( E c o n o m i a Po l t i ca e S o c i o l o g i a ) .

    A i n v e s t i g a o das ca r ac t e r s t i c a s e p o t e n c i a l i d a d e s de cada u m a d e s t a s c o r r e n t e s , b e m c o m o a a b e r t u r a de e s p a o s pa ra um d e b a t e p lu ra l , d e v e r e l u c i d a r em que m e d i d a e s ses conf l i tos so fruto de p o s i c i o n a m e n -tos f r a n c a m e n t e c o n t r a d i t r i o s . A i n d a : se , pe lo c o n t r r i o , as r u p t u r a s q u e a p a r e c e m , ao m e n o s nos e s p a o s m a i s d e m o c r t i c o s , c o m o c o n f r o n t a e s t e r i c a s e t c n i c a s i r r econc i l i ve i s , r e su l t am , na v e r d a d e , do t r a b a l h o d e -f i c i en te na c o n s t r u o do ob je to e p i d e m i o l g i c o , da i n c a p a c i d a d e pa ra d o m i n a r e in tegra r t c n i c a s de d i f e ren tes c a m p o s e, s u b j a z e n d o ao a n t e -r ior , da d e s a r t i c u l a o da p r t i ca po l t i ca , q u e a t o m i z a o t r a b a l h o das for-as p r o g r e s s i v a s e b loque i a a d i s c u s s o de p r o p o s t a s un i t r i a s de a o c o -le t iva i n t e g r a d a s a um pro je to h u m a n o e p o p u l a r pa ra a s o c i e d a d e .

  • Se tenho razo no fato de que esta no principalmente uma comisso de tcnicos interessados pelo social, mas fundamentalmente uma reunio de mili-tantes da vida, necessitados, isso sim, de sustentao tcnica para seu trabalho, ento perfeitamente pertinente formular, como outra premissa da anlise, que os critrios que aceitamos como pontos de partida para refletir sobre o papel ante o desenvolvimento da nossa disciplina, a Epidemiologia, so muito mais que simples frmulas tecnocrticas. Ao contrrio, constituem um enfoque vital e compromet ido a respeito da dimenso humana desse desenvolvimento gerador de propostas para a preveno profunda dos processos que destroem ou amea-am a vida humana, assim como de promoo real de sustentaes e de proces-sos protetores sociais, familiares e individuais.

    Uma leitura epidemiolgica da histria contempornea mostra-nos como a vida humana se constri 'entre fogo cruzado ' . A qualidade da vida e a sade se fabricam, em termos globais, em meio a uma luta permanente entre o interesse privado e a necessidade coletiva ou, para colocar em termos mais atuais, entre as urgncias de expanso econmica e poltica dos grandes empresrios e as neces-sidades da gente comum de construir um mundo solidrio e protetor.

    Em concordncia com as necessidades desse dois plos da humanidade surgiram padres culturais e ideolgicos contrapostos e, porque no dizer tam-bm, escolas de pensamento cientfico e tcnico que procuram explicar o mundo e imprimir uma direo conveniente aos projetos da sociedade.

    Em tais circunstncias, ns, os epidemiologistas, tomamos partido. Creio re-conhecer, nas posies que aqui se escutam, uma vontade de nos isolarmos no sub-mundo tecnocrtico e de abrir nossa mente e ferramentas aos movimentos e organi-zaes sociais para a construo de sociedades humanas mais humanas e eqitati vas. Queremos oferecer nosso contingente para que o progresso no continue sendo definido de acordo com parmetros de produtividade empresarial e competitividade monopolista nem com um avano tecnolgico de encrave, os quais subscreveram o paradigma dominante, que podemos caracterizar como: 'empresarial, monocultural e patriarcal'. Um modelo que levou ao extremo as vantagens da voracidade privada dos grandes, enquanto a necessidade coletiva e os valores humanos foram pratica-mente deslocados para a clandestinidade - parafraseando Benedetti (1995).

    Vivemos e realizamos um trabalho epidemiolgico encurralados em um mundo fundado na iniqidade e na agresso, na lei implacvel dos poderosos e observamos, alm disso, com calafrios, o avano avassalador de uma 'narcobur guesia ' que domina os espaos por meio da violncia, enquanto a solidariedade, o amor, a esperana de paz, as promessas de justia, bem-estar e sade foram

  • obrigados a refugiar-se como sonhos evanescentes nesses maravilhosos espaos, quase subterrneos, da cano do povo, da atemorizada cotidianidade familiar e da religio popular.

    Temos que perguntar mais uma vez, ao refletir sobre nossa ocupao: tam-bm no h refugio no trabalho epidemiolgico para essas promessas de eqidade que se reproduzem na memria coletiva de nossos povos? Devemos conformar-nos com vnculos indiretos ou puramente profissionais no que diz respeito s urgncias coletivas? H alguma contradio substancial entre a qualidade de um bom desem-penho tcnico e uma prtica crtica e participativa? Ser que o cultivo laborioso e disciplinado da vocao cientfica entra em conflito de alguma maneira com a pro-jeo militante de uma ocupao de humanizao?

    D E S A F I O S D A EPIDEMIOLOGIA

    Em um Congresso da importncia deste , nossa aspirao seria a de que todos os recursos ter icos e tcnicos convergissem para que a Epidemio log ia se consol idasse no s c o m o ferramenta de moni tor izao permanente da de -ter iorao humana , mas t ambm c o m o instrumento de consol idao de uma consc incia sanitria e a rma para o p lanejamento de aes colet ivas tendentes defesa da sade e humanizao da sociedade.

    Acontece que a Epidemiologia, como qualquer outra disciplina, encontra o desafio do avano de suas projees ' ex ternas ' e de sua construo ' in terna ' . Para constituir-se como disciplina da Sade a servio da vida, a Epidemiologia tem que assumir sem titubear um lugar jun to ao povo: criativa, como fonte de apoio aos projetos de defesa e avanos coletivos; totalmente livre, no que diz respeito a qualquer dogma; prudente e seletiva ante as polticas que se oferecem no acordo hegemnico, bem como ante as mercadorias tecnolgicas que flores-cem na atualidade.

    As circunstncias atuais determinam quatro projees sociais prioritrias que a tarefa epidemiolgica deveria cumprir , seja dentro ou fora da mquina es-tatal, segundo o que impem as demandas estratgicas e os espaos de poder conquis tados pelos movimentos e organizaes sociais. Isto significa ser ' tes te-munha por obr igao ' dos processos destrutivos da vida impostos a nossa gen-te; consolidar-se como ferramenta de monitorizao crtica permanente da qua-lidade de vida e dos determinantes da sade; afirmar-se como instrumento de construo de poder democrt ico popular mediante seu apoio s tarefas urgen-tes de uma co-gesto tripartida descentralizada e eficiente - representantes dos

  • movimentos -o rgan izaes sociais , funcionrios democr t icos do Es tado e inte-lectuais orgnicos da populao - e por meio do seu respaldo formao de nova subjetividade popular. Alm disso, a Epidemiologia deveria constituir-se em arma para o planejamento estratgico de projetos inovadores do desenvolvi-mento humano.

    N o entanto, ser muito difcil levar frente esse tipo de ao se no se transformar simultaneamente a configurao ' interna ' da Epidemiologia, seus fundamentos conceituais, modos de interpretao e formas instrumentais. Mais adiante desenvolveremos este aspecto.

    O desafio central do Congresso - " a busca da e q i d a d e " - exige de ns, afinal, que concretizemos os mbitos onde se deve lutar pela eqidade. Os obje-tos de transformao em tomo dos quais devemos tecer a unidade dos nossos es-foros poderiam ser: humanizao do t rabalho, defesa e p romoo da sade das populaes

    t raba lhadoras ;

    defesa de condies estveis e benficas de consumo, segurana humana in-tegral, a garantia de alimentos e a segurana social - direitos humanos que no devem ser dependentes da capacidade econmica - e tambm a humani-zao e elevao da qualidade dos servios e dos programas de sade;

    desenvolvimento e proteo ecolgica, incluindo o aprofundamento de estu-dos toxicolgicos e de biomarcadores dos efeitos da poluio em relao com os padres de reproduo social e a suscetibilidade genofenotpica das populaes urbanas e rurais;

    proteo e promoo de populaes sobrecarregadas - Epidemiologia dos problemas de gnero - ou das especialmente desprotegidas em nosso siste-ma social - terceira idade, juventude, infncia.

    Na realidade, temos que criar condies propcias convergncia dos ' a tores ' da Epidemiologia ao redor de problemas prioritrios, o que, de a lguma maneira, requer que se progrida quanto aos elementos conceituais e tcnicos in-dispensveis e que se consiga a 'fertilizao cruzada" da experincia acumulada por diferentes setores.

    A rica diversidade de produo e de realizaes mostrada em foros como o presente, evidencia o potencial epidemiolgico disponvel. necessrio, entretanto, dar unidade a esse trabalho, o que somente poder ser conseguido se estreitarmos, nacional e internacionalmente, os laos de cooperao e incentivarmos o debate construtivo, tendo como referncia um projeto de sociedade humano e democrtico e programas concretos de interveno.

  • verdade que junto com nossas identidades bsicas coexistem, no entan-to, diversas correntes no movimento epidemiolgico de vanguarda. Essa diversi-dade no causa preocupao; ao contrrio, uma vantagem. O que deve inquie-tar-nos sua incoerncia. Embora se compartilhe o anseio comum de proteger a sade e se obtenham avanos tcnicos especficos que poderiam ser complemen tares, na prtica se desenvolvem de forma mutuamente desvinculada, como cam-pos paralelos, e at mesmo conflitantes, como assinalamos anteriormente.

    O resultado mais perturbador dessas tenses o enfraquecimento global das novas perspectivas do pensamento, da prtica e da investigao epidemiol-gicas, porque construmos obstculos desnecessrios para essa fertilizao entre-laada qual j aludimos.

    A R E L A O S U L - N O R T E N A EPIDEMIOLOGIA

    Se. por um lado, nossa gente do Sul luta desesperadamente para sobrevi-ver em mundo 'ultratnonopolizado' por outro, as populaes do mundo chama-do desenvolvido tambm ostentam ndices de sofrimento humano e de iniqida-de muito srios em contraste com a opulncia.

    margem do nimo solidrio que move grande parte do setor da intelec-tualidade progressista anglo-saxnica e europia com relao Amrica Latina, no se pode negar que existe um clima de desprezo da comunidade cientfica do mundo 'desenvolvido ' no que se refere a seus congneres do Sul.

    O problema se agrava na atualidade em um cenrio onde recrudesceram as expresses xenofbicas por razes histricas, fenmeno que no cabe analisar aqui. Essa tendncia afeta o pensamento cientfico e cria condies para um comportamento segregacionista de determinado setor da academia, o qual incre-menta obstculos para a necessria colaborao Norte-Sul.

    Sinal claro deste problema o ressurgimento de velhas teses cientficas racistas a respeito da iniqidade. Teses que j no so apenas patrimnio de sei-tas ultranacionalistas. Desdobram-se em recentes obras cientficas, como a con-trovertida The Bell Curve de Herrnstein e Murray, em que a explicao da desi-gualdade reduz-se, sob modelos matemticos formais, presena de condies genticas supostamente estveis e pouco modificadas pelos processos do contex-to. Esse material gentico explicaria per se a desigualdade entre um segmento da sociedade branca opulenta, inteligente e empreendedora, e esse outro segmento de grupos de hispnicos e negros, radicados no fundo da sociedade, substancial-mente menos inteligentes, drogados e delinqentes (Herrnstein & Murray,

  • 1994). Tais professores eminentes de Harvard e do Massachusets Institute of Technology (MIT) , fortemente armados do arsenal das provas de correlao li-near e logstica, introduzem suas propostas contra a proteo dos grupos etno nacionais hispnicos e proclamam a necessidade do desaparecimento dos esqu-lidos programas sociais que ainda assistem essa populao.

    O que preocupa mais da ampla acolhida que a sociedade oferece a obras como essa, convertidas em best sellers na Amrica do Norte, no a solidez de seus argumentos cientficos xenofbicos e anti-humanos - que podem ser rebati-dos ainda dentro do mesmo terreno matemtico, sem falar na argumentao epi demiolgica integral - mas que esse tipo de posio cientfica encontre meio cultural propcio.

    Dessa viso geral e intolerante sobre as diferenas podemos passar a ou-tras iniqidades mais sutis que afetam o desenvolvimento cientfico e, em parti-cular, o da Epidemiologia.

    Nossa disciplina tem sua prpria lgica e problemas, mas no deixa de re-produzir a lgumas condies de iniqidade que operam no pensamento cientfico como verdadeiro "obstculo epis temolgico" , usando um termo bachelardiano (Bachelard, 1981).

    Refiro-me desconexo efetiva Norte-Sul ou dificuldade para uma co-laborao cientfica eqitativa produzida pelo desprezo sistemtico do pensa-mento epidemiolgico latino-americano por parte dos nossos colegas do Norte . Tomando emprestada uma expresso cunhada pelo movimento feminino, os produtores lat ino-americanos somos quase ' invis veis ' nos espaos de supe-rioridade do Norte e da Europa. No me refiro aos casos tambm no muito fre-qentes de talentos latino-americanos que se descontextualizam para operar mi metizados nos ncleos do chamado primeiro mundo. Aludo ao desconhecimen-to quase ol mpico dos livros, trabalhos e criaes instrumentais gerados no pr-prio seio da Amrica Latina. Refiro-me ausncia de esforo srio para tam-bm aprender das nossas modalidades e experincias.

    Podemos encontrar exemplo prximo de tal desconexo e assimetria no fato recente de um brilhante estudo crtico da norte-americana Nancy Krieger, animador para os que trabalhamos em uma margem diferente da Epidemiologia, onde se analisa a falta de fundamento terico da famosa "rede mul t icausal" (Krieger, 1994) e da produo epidemiolgica do Norte. Artigo penetrante e co-rajoso que apareceu h pouco tempo, em fins de 1994, quer dizer, duas dcadas depois de trabalhos similares produzidos por pesquisadores do Brasil, Equador e Mxico, aos quais somente faz meno marginal.

  • N o interessa tanto compara r esta expos io mais recente com o que foi publ icado em nossos livros e ar t igos mui tos anos antes e que ter iam aju-dado a Epidemiologia do Nor te a enr iquecer-se conceituai e t eor icamente . O fato ep is temolgico que interessa resgatar a efetiva exis tncia de descone-xo, para a qual preciso encontrar soluo. Para isso crucial comea r a fa-zer nas duas di rees , Nor te-Sul e Sul-Nor te , o t ipo de t rabalho ta lentoso que real izam colegas c o m o Howard Waitzkin, da Univers idade de Berkeley , em uma procura respei tosa e isenta de deprec iao, em uma invest igao sria das fer ramentas cientficas e tcnicas da Sade Colet iva la t ino-americana.

    Dessa maneira, vamos construindo uma relao simtrica, desterramos a dependncia e os confortos do colonialismo intelectual e criamos condies para uma colaborao em termos de eqidade. Porque as diferenas entre nossos mundos de produo no so de talento nem de disciplina de trabalho, porm obedecem mais a um fato j descoberto pela cientologia, ou seja, o de que em contextos diferentes ocorrem mltiplos graus de desenvolvimento dos objetos de investigao e diversificadas condies histricas que facilitam ou dificultam a visibilidade dos problemas. Est claro que, alm disso, outro fenmeno de dife-renciao muito importante a disponibilidade financeira para a cincia, to de-sigual entre as instituies do Norte abastado e as do Sul espoliado, aspecto que melhor compreendido pela economia poltica.

    Se unirmos nossas foras, poderemos dar maior profundidade e eficcia construo de uma Epidemiologia da eqidade. Necessi tamos de uma colabora-o com o Norte, temos que continuar a nos nutrir de seu imenso conhecimento acumulado e, sobretudo, da sua experincia tecnolgica. Mas tambm temos muito a oferecer para encontrar o spider of the web, quanto para comparti lhar a rica experincia de modelos participativos de gesto e um instrumental epide-miolgico validado.

    A globalizao econmica implica a expanso de uma hegemonia que su-pe a el iminao paulatina dos diferentes 'olhares ' ou modos de ver o inundo na cultura popular e nas ocupaes culturais e cientficas.

    A era da eletrnica, da anlise virtual, das auto-estradas da informao, dos recursos multimediadores, por estar submetida aos desgnios monopolistas no con-duz a essa "aldeia planetria' ' que profetizou McLuhan. conectada, mais rica e di-versificada. , na verdade, mais um "planeta supermercado", nas palavras de Rgis Debray, onde cada passo adiante na unificao econmica implica retrocesso cultu-ral defensivo, uma espiral de polarizao onde a tcnica obriga a padronizar os ve-tores e contedos da comunicao. Uma tendncia uniformizadora que destri a di

  • versidade cultural, a possibilidade de que circulem diversas verses; um mundo no qual as expresses culturais dos ' sem poder ' so foradas a entrincheirar-se em posies fundamentalistas ou so relegadas a guetos de consumo marginal (Debray, 1995).

    Na Epidemiologia pode acontecer algo semelhante. Preocupa que a pro-duo epidemiolgica dos pases mais fracos e das populaes subalternas sejam esmagadas por essa expanso tecnolgica, que se anule a promessa das contri-buies que outras culturas podem oferecer Epidemiologia, bem como outras combinaes tcnicas que elas proponham.

    decisivo que no se aniquile a riqueza das contribuies, possvel de ser obtida pela cooperao das novas modalidades participativas. Devemos estar aten-tos para que a expanso tecnolgica no mande para o espao o trabalho destes anos de aperfeioamento, por exemplo, o do momento latino-americano, que no subju-gue as possibilidades de uma construo epidemiolgica democrtica, diversificada e plural, centrada na edificao de um mundo humano, livre de subordinaes, mas, ao mesmo tempo, disposta a lutar criativa e intensamente pela convergncia das possibilidades e recursos das diferentes correntes.

    P R O B L E M A S P O S S I B I L I D A D E S DA C O N V E R G N C I A

    C o m o assinalado anteriormente, o pensamento epidemiolgico se desen-volve, sob o ponto de vista metodolgico, por trs vias principais: a corrente mais ligada ao conhecimento dos sistemas dinmicos lineares e no-lineares (modelo matemtico ou model fitting); a corrente mais assemelhada com o co-nhecimento dos processos microssociais (a Antropologia, as tcnicas qualitati-vas de Anlise do Discurso); e a corrente mais relacionada ao emprego de cate-gorias para o estudo dos processos estruturais e superestruturais mais amplos (Economia Poltica e Sociologia).

    nossa responsabilidade ponderar as caractersticas e potencialidades das contribuies e produtos de cada uma destas correntes e garantir espaos para um debate plural. Debate esse que dever elucidar em que medida esses confli-tos so fruto de posicionamentos francamente contraditrios, ou se, ao contrrio, as rupturas que aparecem como confrontaes tericas e tcnicas irreconcili veis, ao menos nos espaos mais democrticos, so na verdade conseqncia de

  • um trabalho ainda incompleto de construo do objeto epidemiolgico. Ainda: se resultam da incapacidade para dominar e integrar ou triangular as tcnicas de diferentes campos e, subjazendo ao anterior, so o produto da desarticulao da prtica poltica que atomiza e bloqueia a discusso de propostas unitrias de ao coletiva integradas a um projeto humano e popular da sociedade.

    No possvel tratar aqui os pormenores dessa discusso metodolgica, aspecto que abordamos com maior profundidade no livro Novos Conceitos e Tcnicos de Investigao (Breilh, 1995), mas cabe aqui tornar claras algumas idias principais.

    necessrio esclarecer que no se podem levar em considerao, em nos-sos esforos progressistas, os posicionamentos fechados que insistem nos enqua-dramentos filosficos de uma teoria conservadora. Refiro-me. em especial, vertente que poderamos denominar emprico-analtica e neopositivista que per severa em uma linha de investigao obcecadamente indutiva e centrada no redu cionismo matemtico formal, em uma causalidade esttica e no hierrquica. Trata-se de uma escola que no relaciona o movimento da vida social e dos processos da sade com as expresses formais analisveis por um modelo matemtico, mas que convertem esses modelos no nico e predominante recurso do conhecimento, com o qual se introduz rgido e emprico cartesianismo, que, como questiona o talentoso epidemilogo baiano Naomar Almeida Filho em recente comunicao eletrnica, nos condena a uma "viso demasiado restritiva de uma realidade complexa, como se somente a no-linearidade ou a fragmentao fossem as nicas expresses da complexidade epidemiolgica" (Almeida Filho, 1994).

    O crculo de enganos fecha-se nesta corrente quando estabelece uma viso heurstica do saber, em que no interessa explicar e compreender, mas sim predizer para atuar com sentido pragmtico sobre os fenmenos isolados do modelo. O epis-temlogo Oquist explica muito bem as conseqncias desse pragmatismo ahistri co, amorfo c desligado dos processos orgnicos da coletividade (Oquist, 1976).

    Tambm no podemos incorporar como fonte promissora os trabalhos en-quadrados em um anti-real ismo purificado, cujo eixo o subjetivismo que recai em um reducionismo 'psico-culturalista ' , o qual substitui a objetividade dos pro-cessos e introduz uma hermenutica singulanzada, a pautar sua compreenso da realidade em intuies e construes subjetivas, sem procurar transformar o mundo, mas reconstru-lo na mente dos construtores (Breilh, 1995).

    H. cm troca, um filo importante de colaborao interdisciplinar que po-deria realizar-se entre grupos que operam na linha de trabalho radicada seja na investigao "quantitativa" de sistemas dinmicos, ou na investigao 'qualitati

  • v a ' de processos microssociais, ou no conhecimento de processos estruturais, sob a condio de que mantenham, para a triangulao, a lgumas premissas fun-damentais ou afinidades nos trs planos da problemtica: o ontolgico, o episte molgico e o metodolgico.

    Em re lao ao ontolgico , preciso que as par tes reconheam a ex is -tnc ia da v ida social e da sade c o m o real idade objet iva, a i r redut ibi l idade dos processos sociais - dentre os quais , uma das formas par t iculares so os processos ep idemio lg icos - s esferas mais s imples da real idade (o b io lgi -co e o individual) e o carter mul t id imens ional e complexo da rea l idade. neste contexto mult i facetado que se desenvolvem, em inter-relao essencial e dialtica, os processos do mbito coletivo e individual, assim como os sociais e bio-lgicos, no por vnculos causais lineares e mecnicos, mas sob a forma de movi-mentos hierarquizados que obedecem a diferentes determinaes (o automovimento contraditrio, a causao, a ao recproca de sistemas de retroalimentao, a deter-minao probabilista e a determinao catica).

    U m a linha de contribuies especficas que se pode integrar para melhor compreenso da realidade biossocial ou sociolgica do nosso objeto, para me-lhor compreenso do genofentipo, abrange desde as contribuies-chave da Biologia dialtica de Levins & Lewotin (1995), at contribuies mais pontuais e norteadoras que foram efetuadas por pesquisadores latino-americanos em as-pectos concretos da determinao histrica do biolgico, como so as reflexes do uruguaio Penchaszandeh na Gentica (Penchaszandeh, 1994), os estudos dos cubanos do Instituto do Trabalho sobre fisiologia, estresse e condio social, contribuies como as da brasileira Elizabeth Tunes (1992) para o restabeleci-mento da determinao social do crescimento infantil. Recentemente, inclusive, apareceu uma publicao da psicloga Thomas, da Universidade Nacional da Colmbia (1994), na qual ela formula uma viso inovadora da participao da ordem scio-afetiva (semntico-simblico) na configurao do fentipo, assunto que poder ter relevo na Psico-Epidemiologia.

    A expresso metodolgica do que foi dito radica em dois pontos centrais: a unidade essencial, movimento e carter contraditrio do mtodo em relao a essas mesmas caractersticas do objeto; a diversidade de tcnicas de tr iangulao em correspondncia com os domnios particulares do objeto.

    Quanto a este ltimo ponto, tm sido importantes os debates concebidos em torno do t ema da complexidade entre os epidemiologistas matemt icos e os inte-grais. Parte desses materiais foram reunidos pela listagem eletrnica especializa-da EPIDEMIOL, tendo sido particularmente teis as contribuies de Almeida Filho

  • em seu tratamento a respeito da complexidade, com quem tenho muitas concor-dncias neste terreno. Parece-me especialmente interessante a discusso porque se vo s i tuando melhor os l imites e possibi l idades do model fitting e demons-trando, alm disso, sua limitao ao campo da confirmao de compor tamentos formais e de predio.

    Como sustentei em trabalhos anteriores, no creio somente nos clssicos instrumentos estatsticos ligados aos sistemas dinmicos regulares (como a an-lise da contingncia, da varincia, de correlao - como a regresso linear e lo-gstica, como a anlise fatorial), mas tambm nos recursos matemticos mais 'mode rnos ' , como os modelos de nveis mltiplos ou lineares hierarquizados (que permitem observar as estruturas de dados aninhadas - nested - ou padres grupais em lugar de fatores individuais) e a anlise catica (para examinar o comportamento fragmentado de alguns processos de sade).

    N o terreno das contr ibuies das tcnicas intensivo-par t ic ipat ivas h eno rme te r reno a escavar . N o somente para ques t ionar as l imitaes dos pro-ced imentos extens ivos ou de enqute a Thiol lent , mas para recuperar a r ique-za das cont r ibuies da Antropologia e das propostas par t ic ipat ivas para a Epidemiologia . Nessa d i reo, e mais p rx imo de t rabalhos ' c l s s i cos ' c o m o os de Pcheux (1969) , Ber taux (1981) e Ferrarotti (1980) , est a vasta contr i -buio de u m a pl iade de cientis tas sociais la t ino-americanos que resgataram as inadequadamente denominadas ' t cn icas qua l i ta t ivas ' . N o c a m p o da Sade h t raba lhos de enorme importncia tanto na ordem expl icat iva e pedaggica geral , c o m o os de Cec l ia Minayo (1992) , quanto apl icaes especf icas e mui to lcidas destas tcnicas no conhec imento ep idemio lg ico especf ico, dentre os quais um exemplo recente est na obra da co lombiana Gabr ie la Arango sobre operr ias txteis (1991) .

    As contribuies instrumentais tm sido muitas . A necessidade de resta-belecimento mostra-se tambm na inovao de instrumentos epidemiolgicos para pesquisa e interveno. No factvel transmitir um inventrio delas e se-quer medianamente adequado a este trabalho. Diversos centros efetuaram con-tr ibuies de valor, demonstrando que se compreende serem os instrumentos ' teoria em a to ' e t ambm merecerem ser renovados. So exemplos : a produo de Laurell , Noriega e dos pesquisadores de centros brasileiros como Paulo Sa brosa, da Escola Nacional de Sade Pblica da FlOCRUZ, da Universidade do Rio, os estudos de Naomar Almeida Filho em Salvador, as contribuies da Uni-versidade Federal de Belo Horizonte nos sistemas RAP participativos e de geo-codificao, em colaborao com o programa de Castilho na OPS , a participao

  • das Faculdades de Sade Pblica e Enfermagem da Universidade de Antioquia, as ferramentas para a planificao epidemiolgica regional realizadas por Cas-tellanos, da Venezuela, os instrumentos de investigao relativos ao trabalho in-centivado por Kohen, em Rosario, as contribuies para a planificao da produ-o de Granda, Campana, Betancourt e Ypez, no CEAS, e a Escola de Sade Pblica do Equador. Tais exemplos so apenas uma pequena mostra da diversi-dade de centros que se encontram trabalhando na implementao de novos re-cursos tcnicos para a prtica epidemiolgica.

    Esta rpida incurso acerca das possveis linhas que podem ser integradas na consolidao da Epidemiologia no ficaria completa sem mencionar que tam-bm os grupos latino-americanos fizeram incurses na pesquisa participativa e no planejamento estratgico. Aqui se poderiam ressaltar como exemplos as con-tribuies indiretas para a Epidemiologia efetuadas por Mario Testa e Mario Ro vere, assim como as propostas de Edmundo Granda para a organizao dos do-mnios epidemiolgicos ligados ao estratgica. Casos de exemplificao que se complementam com o de Victor Valla, do Rio de Janeiro, e sua proposta de monitorizao participativa.

    Evidencia-se, assim, enorme acmulo de trabalho, experincia e sistemati zao que a Amrica Latina pode oferecer ao mundo e para cujo avano e cres-cimento necessita tambm manter laos de colaborao com pesquisadores de outras latitudes.

    A C O R R E N T E L A T I N O - A M E R I C A N A :

    PROBLEMA DE OBJETIVIDADE OU DE EFICCIA SIMBLICA

    J se disse que so os problemas do povo os que outorgam sentido pro-fundamente humano e verdadeira racionalidade cientfica s categorias e tcni-cas que empregamos , bem como aos nossos debates e propostas. So esses pro-blemas que consti tuem o referencial para medir quanto se aproximam as disci-plinas cientficas de sua maior perfeio.

    Quando avaliamos nosso trabalho cotidiano e a capacidade conseguida no servio de humanizao da vida, devemos reconhecer que ainda falta muito a percorrer. Entretanto, o maior problema no reside tanto na falta de objetividade do nosso trabalho, mas na falta daquilo que Debray (1995) denominou "eficcia

  • s imbl ica" ou do que Bertrand (1989) reivindicou como a necessidade de ser subjetivamente eficiente para poder ser socialmente eficiente.

    N e s s a medida , torna-se indispensvel fortalecer nossa cr ia t ividade, or-gan izao e redes de comunicao com a finalidade de aprox imar o d iscurso da Sade Cole t iva quot id ianidade e prt ica social e pol t ica das colet ivi-dades , bem c o m o prt ica do pessoal da sade em geral e aos espaos d e m o -crt icos do poder .

    Diante dos vrios e chocantes acontecimentos recentes, acreditei ser ne-cessrio enfocar aqui no tanto os pormenores metodolgicos tcnicos do nosso avano, mas priorizar os desafios da construo conjunta. Hoje, a urgncia de pensar em voz alta sobre como colaborar, evitando esse academicismo light que nos reduz queles que Benedetti denuncia por sua falta de paixo, que "enten-dem o que est acontecendo, mas se limitam a lament- lo" , denunciando, dessa maneira, " o globo democrtico em que nos convertemos (...) tendo sido (...) se-renos, objetivos, mas com uma objetividade que inofensiva" (Benedetti , 1985).

    R E F E R N C I A S B I B L I O G R F I C A S

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  • Sal Franco Agudelo

    INTRODUO

    Tudo parece indicar que a violncia est cumprindo seus objetivos em nossas sociedades. Consegue imobilizar pelo terror e emudecer pela fora. Legi-t ima o recurso just ia por conta prpria e pelas prprias mos. Sua ao acaba por deteriorar Estados j debilitados pela corrupo, devido a falhas histricas e pela sobrecarga dos recortes e imposies neoliberais. Demonstra a eficcia que no exibem outras formas de resposta e resoluo sociais. Tem penetrado todos os meandros da vida cotidiana, disciplinando indivduos, famlias, instituies e pases. N e m o mercado - o grande ordenador do velho e do novo capital ismo -escapa aos seus di tames. Existem mercados - o dos narcticos e o das armas, por exemplo - que atualmente no so conquistados ou perdidos somente em funo dos saldos em tales de cheques, mas tambm mediante saldos em san-gue, torturas e morte.

    Traduo: Cludia Bastos

    VIOLNCIA, CIDADANIA SADE PBLICA*

  • A v io lnc ia no um fato marg ina l ou u m a respos ta ocas iona l nas re-laes i n t e r -humanas e soc ia is nes te final de mi l n io . Cons t i tu i - se m e s m o na l i nguagem do m o m e n t o , na forma de re lao d o m i n a n t e . T e m - s e reves t i -d o de um pode r quase abso lu to , que p reenche de forma igual os v c u o s do pode r es ta ta l e as incons i s tnc ias dos pac tos da c idadan ia . Po l imor fa e ub -qua , c resce na i m p u n i d a d e , ao m e s m o t e m p o em que a refora . incomuni cao e no aco rdo : n o opo para a v t ima . I m p o s i o ass imt r i ca , seus sa ldos so ml t ip los , feitos de dor, morte, medo, impotncia, ausncias e de-sesperanas individuais e grupais, que j h tempos demandam anlises, interpre-taes e aes de maior alcance e significado.

    Considerando como j conhecidos os elementos conceituais bsicos, as li-nhas gerais e o perfil factual e quantitativo da violncia, este texto prope-se a refletir, em primeiro lugar, sobre a lgumas das dimenses e particularidades mais significativas do problema na atualidade e, ainda, a arriscar a lgumas considera-es que possam estimular a investigao e as aes cabveis.

    Se a Sade Pblica consiste em certa situao de bem-estar colet ivo e a conseqente sensao de desenvolvimento e usufruto da vida por parte das pes-soas e de seus diferentes coletivos, a violncia fora de sinal contrrio. Esta dificulta ou impede o adequado funcionamento orgnico, decompe a estrutura individual e social, alm de amargar e impossibilitar a vida. Contudo, como a Sade Pblica t ambm o conjunto de aes e saberes acerca dos acontecimen-tos que potencializam, dificultam, expressam, explicam e avaliam o bem-estar colet ivo, ela possui , diante da violncia, um enorme conjunto de possibi l idades e tarefas. A lgumas vm sendo adequadamente bem cumpridas , outras mal ou insuficientemente, e muitas outras nem as imaginamos ainda. Similarmente ao que acontece em outros campos da vida social, a violncia - no mbi to da Sa-de Pblica - se de um lado a destri, por outro demanda sua atuao, e essa rea do conhecimento pode colaborar para a reconsti tuio daquela e para a busca de novas fundamentaes valorativas, novas prticas cientficas e novos campos de ao.

    C o m o saber e arma de vigilncia, diagnstico e proposio de alternativas para a Sade Pblica, a Epidemiologia encontra tambm grandes desafios na violncia. Contribuir para o reconhecimento do campo e construo de uma agenda para a Sade Pblica e para a Epidemiologia frente violncia t ambm objetivo deste trabalho.

    Quando se prope esta temtica para discusso - Violncia, Cidadania e Sade Pblica - h que pensar positivamente nas potencialidades que a catego

  • ria 'c idadania ' - como sistema e mecanismo de relaes dos indivduos com o Estado e dos indivduos entre si em um marco de direitos e deveres comparti lha-dos - oferece para o trabalho no campo da Sade Pblica e no enfrentamento so-cial da violncia. Reconhecendo o carter ainda embrionrio do esforo de ex-plorar, relacionar e trabalhar em conjunto essas trs categorias, que expressam rea-lidades diversas e complexas, considero vlida e promissora tal proposta temtica e de ao.

    Nesta negao sistemtica de direitos, includo o elementar vida, que a violncia, e neste clima privilegiado para sua expanso, que o sistemtico des cumprimento de deveres por parte do Estado, das instituies e dos indivduos, evocar a partir da Sade Pblica o conceito e a prtica da cidadania no somente tem lgica, mas tambm fora, capacidade convocatria e tintas de esperana. Mas preciso ir com cuidado! A categoria cidadania no virgem nem rf; possui histria longa e complexa. Existem regies em que pouco significa e gru-pos aos quais induz produo de anticorpos. Por isso, no h que mitific-la nem arquiv-la. Torna-se necessrio desenvolv-la e precisar seus alcances e li-mitaes. Trazer discusso a categoria 'c idadania ' no campo da Sade Pblica e suas potencialidade na rede de reaes sociais frente violncia o terceiro objetivo deste texto.

    Transcender os fatos, a denncia e a rejeio, para facilitar a aproximao a uma linha mestra de anlise da mensagem e dos desafios da violncia; olhar da forma menos mdico-convencional possvel os campos do conhecimento e a ao da Sade Pblica e seus desafios e possibilidades perante o problema da violncia; e, ainda, explorar as possibilidades do cidado e da prtica cidad frente violncia a partir da Sade Pblica: so estes os eixos deste trabalho e um convite para muitos outros o sigam.

    D O S F A T O S S M E N S A G E N S DA V I O L N C I A A T U A L

    Qualquer das modalidades da violncia significativa e, por assim ser, pode-se prestar busca da compreenso de algum aspecto da sua estrutura e di-nmica. Tanto que ao analisarmos a violncia intrafamiliar - como as torturas, o maltrato aos idosos, as desaparies ou as violncias sexuais - divisamos os ele-mentos constitutivos da violncia e se podem aventar hipteses e propor planos de ao. Dado o objeto da presente reflexo e assumindo a ' intransfervel ' mar

  • gem de subjetividade, destaco a seguir alguns aspectos da violncia atual, por consider-los de especial relevncia em sua magnitude e significado e em sua capacidade premonitria. Eles expressam com clareza at onde chegamos na es-piral de violncia de que padecemos. E, para o tema aqui enfocado, evidenciam o grau de insanidade pblica e insegurana social em que vivemos, a gravidade da deslegitimao estatal e a ruptura ou a deteriorao das relaes entre os cidados. Por contraste, colocam-nos tambm ante as enormes possibilidades que tm para contribuir no sentido do enfrentamento do problema global da violncia, tanto me-diante o exerccio de uma cidadania enriquecida e atualizada em contextos de de-mocracia real quanto dos conhecimentos e das aes da Sade Pblica exercida por cidados participativos.

    A S S A S S I N O S DE A L U G U E L OU P R O F I S S I O N A L I Z A O DA M O R T E

    O dicionrio da lngua espanhola define sicrio como assassino pago. O termo justiceiro, utilizado no Brasil, tem adquirido significado similar ao de si-crio, ainda que et imologicamente just iceiro seja exatamente o oposto: quem ob-serva e faz observar estritamente a justia. O conceito de sicrio destaca duas di-menses especficas no ato de matar: a da profissionalizao e, em conseqn-cia, a da remunerao. Em razo de matar por dinheiro - e to somente - estru-tura-se a afetividade, molda-se o carter, reorganizam-se os valores, temperam-se os nervos e exercita-se a pontaria para matar qualquer pessoa que o patro de-signe, o alvo do exerccio de tiro, o diferente. A tarefa, a razo social, a fonte de renda do assassino pago, a morte. Vive-se para matar.

    Para o assassino de aluguel, o justiceiro ou o membro de grupos de exterm-nio, segundo as diferentes denominaes, mais que para nenhum outro, vale a con-verso da mxima cartesiana do "penso, logo exis to" para "mato , logo existo", for-mulada por reconhecido estudioso da violncia na Colmbia (Restrepo, 1993). Mata-se por dinheiro, e, como diz o autor de A Guerra dos Meninos, "quem mata por dinheiro faz tudo por dinheiro" (Dimenstein, 1990). A quantidade de dinheiro determinada em cada caso em funo da riqueza do patro, da importncia da vti-ma e da hierarquia do matador valento. Avalia-se a vida. Paga-se por proporcionar a morte. Por dar morte e por arriscar a prpria vida. O assassino pago sabe que cada trabalho importa tambm em risco sua prpria vida.

    Essa profissionalizao demanda processo pedaggico, disciplina e esco-la; e elas existem. Existem escolas de assassinos pagos e justiceiros, com instru

  • tores, guias, nveis, provas, avaliaes. A escola de assassino ensina o que ensi-nam as escolas: transmitem valores, criam e difundem cultura - no caso, a de matar por dinheiro - forjam e assimilam cdigos, desenvolvem habilidades e afetos. Ao terminar seu ciclo de formao, o assassino deve saber matar, deve ter assimilado seu ofcio e seus riscos e deve ter transformado seu sentido da vida. No ela o essencial para o assassino. Por isso, o 'c l dos assassinos ' tem sua linguagem, suas maneiras, seus rituais, sua cultura, seus instrumentos (Sala zar, 1990; Oakley & Salazar, 1993; Vallejo, 1994).

    A maioria dos assassinos de aluguel so adolescentes, de estratos scio-econmicos mdio-baixo e baixo. At o momento , so raras as adolescentes mu-lheres assassinas e justiceiras, mas sua participao nos trabalhos de apoio cada vez maior e de supor que no tardaremos a registrar o assassino de alu-guel feminino. O adolescente marginal convertido em assassino no atua auto-nomamente nem seleciona sua vtima. Por trs dele esto os autores, os idelo-gos, os financiadores e organizadores do cl. Esses no so geralmente margi-nais, nem adolescentes ou de estratos baixos. A esto os que fazem a ponte com os trficos de drogas ou de armas, os contatos de grupos econmicos poderosos que se sentem ameaados e, com freqncia inocultvel, os intermedirios das organizaes de segurana do Estado. Isto , o cl dos assassinos no questo marginal. So marginais os assassinos de aluguel e boa parte das vt imas. Mas o cl dirigido e patrocinado valendo-se de diferentes centros do poder, sem que dentre eles se possa excluir os do poder estatal.

    O assassinato e a ao dos grupos de extermnio no so universais, mas so formas de violncia altamente expressivas onde j existem, consti tuindo s-ria advertncia para os que ainda delas no padecem. Sua reedio e modernizao evidenciam o cume no processo que poderamos chamar de 'v iolentao ' da socie-dade. Isto , a exaltao da eliminao do contrrio e a elevao da fora cate-goria de pauta de ao, norma de comportamento e mecanismo de soluo de conflitos. Configura o que mais adiante enunciarei como ordem violenta.

    O cl dos assassinos tambm a negao prtica do monopl io da fora e da aplicao da just ia por parte do Estado. Evidencia que o Estado tem perdido sua capacidade e sua autoridade para pautar e mediar os conflitos sociais e que, conseqentemente, no somente o uso da fora, mas tambm a deciso sobre a vida das pessoas, foram deixadas ao arbtrio de outros poderes e esquemas valo rativos. Mais ainda, o cl dos assassinos a negao de toda ordem jurdica e sua superao por uma nica pauta: o contrrio, o diferente, o devedor, o rival tm somente uma alternativa: morrer.

  • A subvalorizao da vida humana, a definio de valor em dinheiro relati-vo sua el iminao, a profissionalizao da el iminao do contrrio e o desco-nhecimento prtico de toda pauta de convivncia e ordenamento jurdico-legal arbitrado pelo Estado constituem os ncleos explicativos do cl dos assassinos. ordem valorativa que expressa em nvel particular uma das mensagens globais da violncia hoje: uma defasagem tica, um desajuste nos valores que funda-mentam a possibilidade das interaes humanas e sociais.

    A subordinao do valor da vida humana no somente ao valor do traba-lho do assassino, mas - notadamente - aos valores, ordenamentos e interesses dos autores e financiadores do assassinato um dos indicadores da ruptura de qualquer pacto social, de qualquer ordenamento cidado e, se fosse possvel for-mular a questo de modo positivo, um dos alvos para empreender ou reforar os processos de confrontao da violncia.

    Ante o cl dos assassinos no basta, em conseqncia, catequiz-los, de-fender em abstrato o valor absoluto da vida humana e criar novas fontes de em-prego. O desemprego uma das faixas nas quais o cl dos assassinos encontra seus atores, mas no a causa. Temos que buscar mais fundo na deslegit imao e impotncia ou corrupo do Estado e seus aparelhos de justia, na confronta-o de poderes, na banalizao da vida, na absolutizao do dinheiro e na inca-pacidade da sociedade e dos Estados para pautar a convivncia e garantir os di-reitos, isto , para estabelecer uma ordem cidad.

    EXCLUDOS

    Excludo categoria do mundo do mercado. Identifica aqueles produtos que podem e devem ser descartados e retirados de circulao porque nunca ser-viram ou j cumpriram seu papel. Somente recentemente temos chegado ao limi-te de aplicar a um segmento de seres humanos a mesma categoria: excludos, "v idas sem va lo r " (Enzensberger, 1993).

    Quem so? No so sempre, nem em toda parte, os mesmos . N a s cidades do Brasil so sobretudo as crianas de rua e os adolescentes pobres, negros, de sexo masculino, habitantes das ruas ou das favelas (Minayo, 1990. C B I A / C L A V E S , 1991). N o s Estados Unidos, ser negro, homem e jovem implica correr gran

  • de risco de homicdio (McAllister, 1989). Mas ser, alm disso, pobre, o insere no grupo de mais alto risco de ser assassinado (Navarro, 1991).

    Este padro classista, racial e etrio dos excludos c o m u m e quase constante em vrios pases . Mas h outros grupos que t ambm chegam a s-lo em de te rminados contextos pol t icos, culturais ou de confli to. So os mendi -gos , os d rogados , as prosti tutas, os t ravest is , os homossexua is , os oponentes pol t icos, os loucos que perambulam pelas ruas. Mais recentemente , em al-guns pases europeus , nos quais a xenofobia vem ressurgindo, o es t rangeiro est t ambm ent rando na categoria de excludo.

    Mais grave que a difuso e aceitao social da categoria e que a extenso e diversidade dos excludos a deciso de certos grupos sociais em elimin-los. Pior ainda: deciso nascida da convico de fazer o que correto socialmente, conveniente e til. Assume-se como misso, como postulado darwinista, como ' l impeza social ' (Camacho, 1994; Gonzalez, 1995). Os encarregados da limpeza tambm variam. Em certas ocasies so grupos de ' l impeza social ' e 'milcias populares ' , criadas para tal sombra de interesses particulares ou locais e em conseqncia da inoperncia do Estado; em outras situaes so grupos parami litares. N o mbito dos oponentes polticos, so os mesmos grupos paramilitares e, inclusive, o prprio Estado por meio de seu aparato militar e de segurana. Os casos do Chile e da Argentina ilustram bem tal caso (CONADEP, 1985). Neste l-t imo pas, as recentes declaraes do capito de fragata Adolfo Scilingo eviden-ciam uma vez mais a implicao do Estado e seu aparato militar, com a colabo-rao direta de mdicos e igalmente, parece, com a tolerncia cmplice de seto-res da hierarquia catlica.

    Segundo uma lgica darwiniana, a implantao social da categoria exclu-dos conduz na prtica afirmao do direito vida para uns e condenao desapario e morte para outros. a 'discricionalidade' da vida. diferena do condenado morte - mecanismo que tambm rejeito - , a quem se cobra o delito e com quem se pretende ensinar ao coletivo dentro de procedimento legalizado, muito embora sua legitimidade seja objeto de discusso, ao excludo se cobra sumariamente a diferena, a desfuncionalidade, a suposta inferioridade e poten-cialidade delituosa.

    Ademais , ao aceitar esta lgica, a sociedade reconhece sua impotncia para recuperar parte de seus membros e tecidos enfermos e opta, ativa ou passi-vamente, por autorizar, tolerar ou coonestar sua eliminao. Com o agravante, j enunciado, da diversidade e indefinio com que a categoria interpretada e uti

  • lizada, bem como a focalizao que pode tornar idnticos grupos de mendigos, opositores polticos ou rivais do mercado.

    Do ponto de vista da cidadania, o excludo despojado de todos os seus direitos, ator impotente e insignificante. Como se ver mais adiante, em sua origem liberal, cidadania era postulado igualitrio. O excludo est fora de qual-quer igualdade, de qualquer margem de direitos, de qualquer participao no or-ganismo social. A o consider-lo como tal, nega-se-lhe sua entidade cidad; e rompe-se todo o ordenamento cidado ao elimin-lo.

    L I N C H A M E N T O S J U S T I A PELAS P R P R I A S M O S

    Na primeira semana de maro de 1995, o cabo Flvio Ferreira, da polcia militar do Rio de Janeiro, protagonizou um fato j corrente, mas que a televiso converteu em paradigmtico. Aps imobilizar, desarmar e ter pisado um jovem que havia tentado assaltar uma drogaria na zona sul da cidade, fuzilou-o a san-gue frio, sem saber que estava sendo filmado pela televiso. O fato em si sufi-cientemente significativo. Mas a reao da populao ainda mais significativa. Entre os entrevistados por um canal de televiso, 8 5 % aprovaram a execuo su-mria. tambm significativa a explicao de uma organizao como Americas Watch para este tipo de evento: " a Polcia Militar no Brasil acredita que tem permisso para matar quando o sujeito pobre, negro e l adro" (La Rota, 1995).

    N o somente a polcia pune com a morte . Anua lmente , no Estado da Bahia, que no exceo no Brasil , so comet idos em mdia cem l inchamen-tos . Esta prt ica de execuo imediata de de l inqentes ou suspei tos de s-lo, sem j u l g a m e n t o e pelas mos da mul t ido , remonta ao sculo XVIII e herdou seu nome do j u i z do es tado de Virginia, Char les Lynch. Os chamados Estados de Direi to tm procurado evi t- los, mas sem xito, tal c o m o t e s t emunhamos hoje em vr ios pases la t ino-americanos .

    N a Venezuela, que em 1994 teve a mdia de 14 homicdios dirios, a prtica do linchamento tem-se intensificado (Ugalde, 1994). Uma dessas vtimas, Jos Fi-gueira, foi espancado, enforcado e pendurado em uma ponte por cerca de cem pessoas durante o segundo fim de semana de maro de 1995, no setor de La V e g a , em C a r a c a s , c i d a d e que - s e g u n d o a Pol c ia T c n i c a Jud ic ia l - re -g i s t r a na a t u a l i d a d e a md ia de 35 a s s a s s i n a t o s a cada f inal de s e m a n a . A

  • opinio dos habitantes de Caracas entrevistados tambm instrutiva: 57 ,2% aprovam esta prtica de autodefesa.

    Na Colmbia, pas com as taxas de homicdio mais altas do mundo e com indicadores preocupantes com relao a quase todas as formas de violncia, lin-chamentos praticamente no existem. Ali no so as multides que ocasional-mente respondem excitadas violncia e aos delitos. O horror e o temor se inter-nalizaram de tal forma, assim como a impunidade tem alcanado tais nveis, que j implicam na organizao de outros para-estados, outra legalidade e outros aparatos: os 'paramilitares". Nascidos no incio da dcada de oitenta, estes gru-pos, originariamente relacionados com as assim denominadas 'autodefesas cam-ponesas ' e similares s ' rondas camponesas ' do Peru, transformaram-se em or-ganizaes privadas anti-guerrilheiras, em agentes a servio dos interesses e da proteo dos narcotraficantes e em brao secreto e impune dos prprios organis-mos de segurana do Estado (Americas Watch, 1994; Amnistia Internacional, 1994; Palacio, 1990).

    So mltiplas as formas de ao dos paramilitares, mas h uma em cuja implantao eles tm tido papel preponderante: os massacres. So assassinatos coletivos em que morrem trs ou mais pessoas durante uma nica ao. Somente nos dez primeiros meses de 1994, no vale em que se situa a cidade de Medelln, ocorreram 43 massacres, com saldo de 179 vtimas; ou seja: um massacre por semana e quatro vtimas por massacre (El Colombiano, 1994). A ao do cl dos assassinos, do paramilitarismo e dos grupos de limpeza social tem sido to efi-caz que em um setor perifrico de Medelln, convertido em local de descarte de suas vtimas, apareceu no final dos anos 80 um letreiro que dizia: "proibido j o -gar cadveres'".

    O paramilitarismo hoje uma das grandes dificuldades para o estabeleci-mento ou restabelecimento do assim denominado Estado de Direito para a con-cretizao dos processos de negociao de conflitos. Sua fora e presena so de tal ordem que, tanto diretamente como por intermdio de jornalistas e porta-vo-zes autorizados em pases como a Colmbia, tem sido demandado seu reconhe-cimento como fora beligerante e como interlocutor de qualquer interno de ne-gociao poltica. A proposta do ministro da Defesa da Colmbia de criar o que ele tem denominado "cooperat ivas privadas de segurana" parece constituir a institucionalizao do paramilitarismo.

    Convm assinalar uma ltima modalidade da privatizao c personaliza-o da justia, que a exercida diretamente pela vtima. O caso recente dos ha-bitantes da cidade de Corpus Christi nos Estados Unidos a ilustra tragicamente:

  • um trabalhador demitido de uma empresa regressa armado, assassina seis fun-cionrios e logo aps se suicida.

    Duas realidades inter-relacionadas esto na base das distintas modalidades de fazer justia por conta prpria, individual ou grupai: 'saturao e impunidade ' . A saturao se refere tanto s formas como s intensidades alcanadas pela violncia que ultrapassam os nveis mximos de tolerncia. Estamos quase tornando rotinei-ras formas de violncia que constituem crimes de lesa-humanidade. no existe, na prtica - como veremos no a seguir - nenhum espao da vida pessoal ou social em que no se tenha infiltrado a violncia com grande intensidade.

    Tenho cada vez menos dvidas de que, ao lado da persis tncia e inten-sif icao das ' i n iq idades ' e das 'defasagens t icas ' que v ivemos , a impuni-dade consti tui na a tual idade, ao m e s m o tempo, um indicador e um determi-nante essencial da persistncia e incremento da violncia. Ainda que e t imolo g icamente a impunidade se refira falta de cast igo, gostar ia de aqui ressal tar tanto a falta deste - isto , a no-justia - como, no que se refere ao conhec i -mento , a no-verdade . Ambas tm efeito letal sobre a conscincia e sent imen-to de segurana individual e coletiva e sobre a credibi l idade das inst i tuies s quais a sociedade dest