42
Ary dos Santos 1937 ~ 1984 “E ei-lo poeta todo mãos abertas para apanhar tudo o que a vida dá.” Natália Correia foto: net

Ary dos Santos

  • Upload
    eli

  • View
    2.438

  • Download
    7

Embed Size (px)

DESCRIPTION

"Cadernos Digitais ~ A.A." ~ C.R. ~ E.S.A. António Arroio~José Carlos Ary dos Santos

Citation preview

Ary dos Santos

1937 ~ 1984

“E ei-lo poeta todo mãos abertas para apanhar tudo o que a

vida dá.” Natália Correia

foto: net

Poeta português, natural de Lisboa. Saiu de casa aos 16 anos,

exercendo várias actividades como meio de subsistência.

Revelando-se como poeta com a obra Asas (1953), publicou, em

1963, o livro Liturgia de Sangue, a que se seguiram Azul Existe,

Tempo de Lenda das Amendoeiras e Adereços, Endereços (todos de

1965). Em 1969, colaborou na campanha da Comissão Democrática

Eleitoral e, mais tarde, filiou-se no Partido Comunista Português,

tendo tido uma intervenção politizada, mas muito pessoal.

Ficou sobretudo conhecido como autor de poemas para canções do

Concurso da Canção da RTP. Os seus temas «Desfolhada» e

«Tourada» saíram ambos vencedores. Em 1971, foi atribuído a

«Meu Amor, Meu Amor», também da sua autoria, o grande prémio

da Canção Discográfica. Declamador, gravou os discos «Ary Por Si

Próprio» (1970), «Poesia Política» (1974), «Bandeira Comunista»

(1977) e «Ary por Ary» (1979), entre outros. Publicou ainda os

volumes Insofrimento In Sofrimento (1969), Fotos-Grafias (1971),

Resumo (1973), As Portas que Abril Abriu (1975), O Sangue das

Palavras (1979) e 20 Anos de Poesia (1983). Em 1994, foi editada

Obra Poética, uma colectânea das suas obras.

Personalidade entusiasta e irreverente, muitos dos seus textos

têm um forte tom satírico e até panfletário, anticonvencional,

contribuindo decisivamente para a abertura de novas possibilidades

para a música popular portuguesa. Deixou cerca de 600 textos

destinados a canções.

Auto-Retrato

Poeta é certo mas de cetineta

fulgurante de mais para alguns olhos

bom artesão na arte da proveta

narciso de lombardas e repolhos.

Cozido à portuguesa mais as carnes

suculentas da auto-importância

com toicinho e talento ambas partes

do meu caldo entornado na infância.

Nos olhos uma folha de hortelã

Que é verde como a esperança que amanhã

amanheça de vez a desventura.

Poeta de combate disparate

palavrão de machão no escaparate

porém morrendo aos poucos de ternura.

José Carlos Ary dos Santos, Fotos-Grafias,

1970. Obra Poética

foto: net

No dizer de José Jorge Letria, Ary dos Santos

foi um homem do excesso e da transgressão

foi um poeta que esteve presente nas canções, na

publicidade, na política, que escrevia para revista,

mas acima de tudo um grande poeta que usou as

palavras de modo único e inimitável

foi um homem que teve sempre uma atitude

desmedida, de coragem, força, generosidade e

solidariedade, cuja obra poética é muitas vezes

abafada pelas letras de canções que escreveu.

Nos 25 anos da morte de Ary dos Santos, galeria da

Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), em Lisboa, na

exposição "Ary dos Santos - A força da poesia".

imagem: net

Hoje, à distância de décadas, poderíamos reservar para ele as palavras

de todos aqueles que, durante 50 anos, lutaram contra o obscurantismo

em nome da liberdade.

Maria Barroso em “Rua da Saudade – Livreto – Testemunhos”

imagem: net

Original é o poeta

expulso do paraíso

por saber compreender

o que é o choro e o riso;

aquele que desce à rua

bebe copos quebra nozes

e ferra em quem tem juízo

versos brancos e ferozes.

Original é o poeta

que é gato de sete vozes.

Original é o poeta

que chegar ao despudor

de escrever todos os dias

como se fizesse amor.

Esse que despe a poesia

como se fosse uma mulher

e nela emprenha a alegria

de ser um homem qualquer.

Original é o poeta

que se origina a si mesmo

que numa sílaba é seta

noutro pasmo ou cataclismo

o que se atira ao poema

como se fosse um abismo

e faz um filho às palavras

na cama do romantismo.

Original é o poeta

capaz de escrever um sismo.

Original é o poeta

de origem clara e comum

que sendo de toda a parte

não é de lugar algum.

O que gera a própria arte

na força de ser só um

por todos a quem a sorte faz

devorar um jejum.

Original é o poeta

que de todos for só um.

José Carlos Ary dos Santos, Resumo. Obra Poética

O POEMA ORIGINAL

CANTIGA DE AMIGO

Nem um poema nem um verso nem um canto

tudo raso de ausência tudo liso de espanto

e nem Camões Virgílio Shelley Dante

o meu amigo está longe

e a distância é bastante.

Nem um som nem um grito nem um ai

tudo calado todos sem mãe nem pai

Ah não Camões Virgílio Shelley Dante!

o meu amigo está longe

e a tristeza é bastante.

Nada a não ser este silêncio tenso

que faz do amor sozinho o amor imenso.

Calai Camões Virgílio Shelley Dante:

o meu amigo está longe

e a saudade é bastante!

Ary dos Santos, Resumo. Obra Poética

imagem: net

[Ary dos Santos] morava na Rua da Saudade, na encosta do Castelo de

São Jorge, rés-do-chão de um prédio onde, em épocas distintas, havia

sido residência de José Rodrigues Miguéis, o imenso romancista

deploravelmente esquecido; de Alexandre O‟Neill e de Fernando Tordo.

Eu habitava mais abaixo, na Rua Norberto de Araújo, húmida e estreita,

encostada à antiga muralha fernandina.

Baptista Bastos, Jornal de Negócios

imagem: net

Vista da casa onde morou Ary dos Santos. Imagens – aqui.

ESTRELA DA TARDE

Era a tarde mais longa de todas as tardes

Que me acontecia

Eu esperava por ti, tu não vinhas

Tardavas e eu entardecia

Era tarde, tão tarde, que a boca,

Tardando-lhe o beijo, mordia

Quando à boca da noite surgiste

Na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhamos tardamos no beijo

Que a boca pedia

E na tarde ficámos unidos ardendo na luz

Que morria

Em nós dois nessa tarde em que tanto

Tardaste o sol amanhecia

Era tarde de mais para haver outra noite

Para haver outro dia.

Meu amor, meu amor

Minha estrela da tarde

Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde

Meu amor, meu amor

Eu não tenho a certeza

Se tu és a alegria ou se és a tristeza.

Meu amor, meu amor

Eu não tenho a certeza.

Foi a mais bela de todas as noites

Que me aconteceram

Dos nocturnos silêncios que à noite

De aromas e beijos se encheram

Foi a noite em que os nossos dois

Corpos cansados não adormeceram

E da estrada mais linda da noite uma festa

De fogo fizeram.

Foram noites e noites que numa só noite

Nos aconteceram

Era o dia da noite de todas as noites

Que nos precederam

Era a noite mais clara daqueles

Que à noite amando se deram

E entre os braços da noite de tanto

Se amarem, vivendo morreram.

Eu não sei, meu amor, se o que digo

É ternura, se é riso, se é pranto

É por ti que adormeço e acordo

E acordado recordo no canto

Essa tarde em que tarde surgiste

Dum triste e profundo recanto

Essa noite em que cedo nasceste despida

De mágoa e de espanto.

Meu amor, nunca é tarde nem cedo

Para quem se quer tanto.

José Carlos Ary dos Santos

Voz de Carlos do Carmo - RTP – Festival da Canção 1976

As Portas que Abril abriu

Era uma vez um país

onde entre o mar e a guerra

vivia o mais infeliz

dos povos à beira-terra.

[…]

Foi então que Abril abriu

as portas da claridade

e a nossa gente invadiu

a sua própria cidade.

Disse a primeira palavra

na madrugada serena

um poeta que cantava

o povo é quem mais ordena.

[…]

Foi esta força viril

de antes de quebrar que torcer

que em vinte e cinco de Abril

fez Portugal renascer.

E em Lisboa capital

dos novos mestres de Aviz

o povo de Portugal

deu o poder a quem quis.

[…]

Lisboa, Julho-Agosto de 1975

José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética

foto: net

Voz de Ary dos Santos

Texto integral

É por dentro de um homem que se ouve

o tom mais alto que tiver a vida

a glória de cantar que tudo move

a força de viver enraivecida.

Num palácio de sons erguem-se as traves

que seguram o tecto da alegria

pedras que são ao mesmo tempo as aves

mais livres que voaram na poesia.

Para o alto se voltam as volutas

hieráticas sagradas impolutas

dos sons que surgem rangem e se somem.

Mas de baixo é que irrompem absolutas

as humanas palavras resolutas.

Por deus não basta. É mais preciso o Homem.

Ary dos Santos, Sonetos de Amor e Luta. Obra Poética.

NONA SINFONIA

Luís Costa, da turma D, do 11.º ano, respondendo a um repto lançado na aula de português, seleccionou “Nona Sinfonia”, de Ary dos Santos, porque o Poeta “Enaltece nestes versos o valor do interior do Homem, o sentimento e a palavra como fluxos de uma revolução, força interior. Algo monumental é salientado, o fulgor da vida associado à alegria e ao prazer de ser-se. É uma revolução, forte e vivida, é a sinfonia do Homem.”

E esta foi a génese do presente caderno digital.

CAVALO À SOLTA

Minha laranja amarga e doce

meu poema

feito de gomos de saudade

minha pena

pesada e leve

secreta e pura

minha passagem para o breve breve

instante da loucura.

Minha ousadia

meu galope

minha rédea

meu potro doido

minha chama

minha réstia

de luz intensa

de voz aberta

minha denúncia do que pensa

do que sente a gente certa.

Em ti respiro

em ti eu provo

por ti consigo

esta força que de novo

em ti persigo

em ti percorro

cavalo à solta

pela margem do teu corpo.

Minha alegria

minha amargura

minha coragem de correr contra a ternura.

Por isso digo

canção castigo

amêndoa travo corpo alma amante amigo

por isso canto

por isso digo

alpendre casa cama arca do meu trigo.

Meu desafio

minha aventura

minha coragem de correr contra a ternura.

José Carlos Ary dos Santos

Franz Marc, Cheval Bleu II, 1911

Voz de Fernando Tordo – Festival RTP - 1971

Paul Klee, Sauteur, 1930

Na voz de Carlos do Carmo

Na voz de Adélia Pedrosa

OS PUTOS

Uma bola de pano, num charco

Um sorriso traquina, um chuto

Na ladeira a correr, um arco

O céu no olhar, dum puto.

Uma fisga que atira a esperança

Um pardal de calções, astuto

E a força de ser criança

Contra a força dum chui, que é bruto.

Parecem bandos de pardais à solta

Os putos, os putos

São como índios, capitães da malta

Os putos, os putos

Mas quando a tarde cai

Vai-se a revolta

Sentam-se ao colo do pai

É a ternura que volta

E ouvem-no a falar do homem novo

São os putos deste povo

A aprenderem a ser homens.

As caricas brilhando na mão

A vontade que salta ao eixo

Um puto que diz que não

Se a porrada vier não deixo

Um berlinde abafado na escola

Um pião na algibeira sem cor

Um puto que pede esmola

Porque a fome lhe abafa a dor.

José Carlos Ary dos Santos

Dali, Cristo de São João da Cruz, 1951

KYRIE

Em nome dos que choram,

Dos que sofrem,

Dos que acendem na noite o facho da revolta

E que de noite morrem,

Com a esperança nos olhos e arames em volta.

Em nome dos que sonham com palavras

De amor e paz que nunca foram ditas,

Em nome dos que rezam em silêncio

E falam em silêncio

E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.

Em nome dos que pedem em segredo

A esmola que os humilha e os destrói

E devoram as lágrimas e e o medo

Quando a fome lhes dói. Em nome dos que dormem ao relento

Numa cama de chuva com lençóis de vento

O sono da miséria, terrível e profundo.

Em nome dos teus filhos que esqueceste.

Filho de Deus que nunca mais nasceste,

Volta outra vez ao mundo!

Ary dos Santos, Kyrie, Obra Poética

E sonham com palavras

De amor e paz que nunca foram ditas,

Em nome dos que rezam em silêncio

E falam em silêncio

E estendem em silêncio as duas mãos

aflitas.

Chagall ~ mère et enfant au bouquet

À saudade de minha Mãe,

os meus primeiros versos,

que nasceram da infinita

dor de a ter perdido

Dedicatória de José Carlos Ary dos Santos em Asas, publicado em

1952, tendo o Poeta 15 anos.

INFÂNCIA

Não minha mãe. Não era ali que estava.

Talvez noutra gaveta. Noutro quarto.

Talvez dentro de mim que me apertava

contra as paredes do teu sexo-parto.

A porta que entretanto atravessava

talhada no teu ventre de alabastro

abria-se fechava dilatava.

Agora sei: dali nunca mais parto.

Não minha mãe. Também não era a sala

nem nenhum dos retratos de família

nem a brisa que a vida já não tem.

Talvez a tua voz que ainda me fala…

… o meu berço enfeitado a buganvília…

Tenho tantas saudades, minha mãe!

José Carlos Ary dos Santos, em Obra Poética

Serei tudo o que disserem

por inveja ou negação:

cabeçudo dromedário

fogueira de exibição

teorema corolário

poema de mão em mão

lãzudo publicitário

malabarista cabrão.

Serei tudo o que disserem:

Poeta castrado não!

Os que entendem como eu

as linhas com que me escrevo

reconhecem o que é meu

em tudo quanto lhes devo:

ternura como já disse

sempre que faço um poema;

saudade que se partisse

me alagaria de pena;

e também uma alegria

uma coragem serena

em renegada poesia

quando ela nos envenena.

Poeta Castrado, Não!

foto: net

Os que entendem como eu

a força que tem um verso

reconhecem o que é seu

quando lhes mostro o reverso:

De fome já não se fala

- é tão vulgar que nos cansa -

mas que dizer de uma bala

num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história

- a morte é branda e letal -

mas que dizer da memória

de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser

o poema dia a dia?

- um bisturi a crescer

nas coxas de uma judia;

um filho que vai nascer

parido por asfixia?!

- Ah não me venham dizer

que é fonética a poesia !

Serei tudo o que disserem

por temor ou negação:

Demagogo mau profeta

falso médico ladrão

prostituta proxeneta

espoleta televisão.

Poeta castrado, não!

José Carlos Ary dos Santos, Resumo. Obra Poética

POETA CASTRADO

Pode-se dizer terem sido poucos os poetas a se auto-definirem tão bem como o fez aqui Ary dos

Santos. Esse poema é não só uma declaração do que para o poeta representava ser poeta, mas

também quase que uma auto-confissão de como ele era e do que dele poder-se-ia esperar

enquanto ser humano. Na primeira estrofe, Ary dos Santos começa já de forma direta – uma das

suas características pessoais mais marcantes – e por vezes mesmo agressiva – a relatar que para

ele pouco importa o que os outros dele venham a dizer, desde que isso não afete a sua

liberdade de dizer o que pensa. Reconhecendo mesmo alguns dos aspectos que o caracterizavam

e que muitos criticavam nele (“cabeçudo”, exibido e outros), e até mesmo reconhecendo-se

como publicitário de profissão, Ary dos Santos proclama que tudo isso pode-se dele afirmar, mas

não o fato de que por alguma razão tenha visto a sua liberdade de expressão

“castrada”.Continua compactuando com os que o “entendem” e “reconhecem”, aqueles que

sabem ver nele tanto o lado terno, o lado sentimental com que expressa saudade e alegria, mas

também a necessidade de ser e negar tudo isso para se cumprir uma função enquanto poeta

revolucionário, a de expôr a verdade, por mais dura que seja. Passa, então, o poeta, a listar o

que deveria estar num poema que expusesse a verdade, mas que se encontrava ausente na

grande maioria da poesia que se fazia então. E Ary dos Santos faz suas afirmações de uma forma

direta, procurando a um só tempo chocar e motivar a procura da verdade em seus leitores, em

essência um poeta revolucionário. Assim sendo, afirma que se esquece da fome, mas será que se

pode esquecer “de uma bala num esqueleto de criança”? Procura-se não falar da dureza da

morte, mesmo quando há tanto horror em volta – lembremos que este poema foi escrito não só

ainda em meio das guerras coloniais na África, mas também da Guerra do Vietnã. O poeta passa

das guerras ao seu redor para os horrores do holocausto na Segunda Guerra Mundial, convergindo

para uma crítica aos que procuram apagar da memória o acontecido e acabam por entrar em

novos conflitos do mesmo gênero.

Antes de voltar a reiterar-se como um poeta de livre expressão, Ary dos Santos termina sua

descrição do que deve relatar um poeta revolucionário, criticando aos poetas puristas com um

verso a um só tempo coloquial e acadêmico: “– Ah não me venham dizer que é fonética a

poesia!”.

Para concluir sua auto-definição como poeta, Ary dos Santos volta a reconhecer as críticas que

fazem a ele, seja enquanto homossexual (“prostituta”, “proxeneta”), quer seja pelo fato da sua

popularidade adquirida sobretudo graças às inúmeras participações nos Festivais RTP

(“demagogo”, “televisão”). E por fim, novamente reforça sua posição de ser um pouco

de tudo o que dizem, mas nunca um poeta longe da verdade que lhe cabe dizer como

poeta revolucionário.

Mauro Neves Jr., Bulletin of the Faculty of Foreign Studies, Sophia University, No.40�2005, Ary

dos Santos: Poeta da Revolução, Poeta do Fado

Meu amor meu amor

meu corpo em movimento

minha voz à procura

do seu próprio lamento.

Meu limão de amargura meu punhal a escrever

nós parámos o tempo não sabemos morrer

e nascemos nascemos

do nosso entristecer.

Meu amor meu amor

meu nó e sofrimento

minha mó de ternura

minha nau de tormento

este mar não tem cura este céu não tem ar

nós parámos o vento não sabemos nadar

e morremos morremos

devagar devagar.

Ary dos Santos, As Palavras das Cantigas (organização,

coordenação e notas de Ruben de Carvalho)

Voz de Amália

Meu amor, meu amor

A cidade é um chão de palavras pisadas

foto: eli

1.

A cidade é um chão de palavras pisadas

a palavra criança a palavra segredo.

A cidade é um céu de palavras paradas

a palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco um pulmão que respira

pela palavra água pela palavra brisa

A cidade é um poro um corpo que transpira

pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas

como estátuas mandadas apear.

A cidade tem ruas de palavras desertas

como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.

A palavra silêncio é uma rosa chá.

Não há céu de palavras que a cidade não cubra

não há rua de sons que a palavra não corra

à procura da sombra duma luz que não há.

José Carlos Ary dos Santos, In Sofrimento. Obra Poética

Adriano ~ caricatura de Roberto Machado

MEMÓRIA DE ADRIANO

Nas tuas mãos tomaste uma guitarra

copo de vinho de alegria sã

sangria do suor e de cigarra

que à noite canta a festa da manhã.

Foste sempre o cantor que não se agarra

o que à terra chamou amante e irmã

mas também português que investe e marra

voz de alaúde e rosto de maçã.

O teu coração de ouro veio do Douro

num barco de vindimas de cantigas

tão generosas como a liberdade.

Resta de ti a ilha dum tesouro

a jóia com as pedras mais antigas

não é saudade, não! É amizade.

José Carlos Ary dos Santos, em Obra Poética

Camille Claudel, Les Bavardes ou Les Causeuses ou La Confidence, 1893-1905

RETRATO DE AMIGO

Por ti falo. E ninguém sabe. Mas eu digo

meu irmão minha amêndoa meu amigo

meu tropel de ternura minha casa

meu jardim de carência minha asa.

Por ti morro e ninguém pensa. Mas eu sigo

um caminho de nardos empestados

uma intensa e terrífica ternura

rodeada de cardos por muitíssimos lados.

Meu perfume de tudo minha essência

meu lume minha lava meu labéu

como é possível não chegar ao cume

de tão lavado céu?

Jpsé Carlos Ary dos Santos, Foto-Grafias. Obra Poética.

José Carlos Ary dos Santos ~ 1937-1984

Poeta. Oriundo de uma família tradicional da alta-burguesia, com

a qual rompeu, frequentou as Faculdades de Direito e de Letras

de Lisboa, mas depressa trocou os hipotéticos cursos pelo

universo da publicidade (ramo em que foi um criativo notável),

como aconteceu com tantos dos seus pares. As duas primeiras

colectâneas, Asas (1952) e Nós, os Loucos (1953), passaram

despercebidas. Teriam de passar dez anos até o seu nome

chamar a atenção do público e da crítica especializada, o que

veio a acontecer com a publicação de A Liturgia do Sangue

(1963). António Ramos Rosa destacou então a "agilidade da sua

linguagem, a irreverência e irrequietude vital que nela pulsam".

Popularizado como letrista (devem-se-lhe alguns dos maiores

êxitos da música ligeira portuguesa, para cuja renovação deu o

empurrão decisivo),tornou-se rapidamente um poeta best-seller.

É um dos autores seleccionados por Natália Correia para a

Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1966),

tristemente celebrizada pelo veredicto do Tribunal Plenário.

Declamador passional de mérito indiscutível, frequentes vezes

comparado a Villaret, gravou vários discos de poesia e participou

de inúmeros recitais.

Escritor engagé, autor de uma poesia violentamente sarcástica,

personalidade "fulgurante de mais para alguns olhos" (palavras do

seu "Auto-Retrato"), acabou por ser uma vítima da normalização

democrática. Com efeito, a militância no PCP (a despeito do

indisfarçável "embaraço" que a sua assumida homossexualidade

provocava no aparelho partidário) contribuiu para obnubilar o

fulgor de uma obra injustamente subestimada pelas gerações

mais novas. David Mourão-Ferreira nunca confundiu as coisas:

"mesmo quando francamente ao serviço de um ideário e de uma

praxis cívica que não recusam assumir-se como tais,

rarissimamente renuncia, no entanto, àqueles pendores da

invenção metafórica e da recriação vocabular que constituem

outra vertente da modernidade". Terá sido certa propensão

iconoclasta (mesmo ao nível dos formalismos literários) o óbice

maior de uma poesia desde sempre vocacionada para o "tumulto"

e a desobediência normativa, apostada como poucas na denúncia

das múltiplas hipocrisias de regra. Pouco antes da sua morte

prematura (aos 46 anos), reuniu a obra canónica em 20 Anos de

Poesia (1983). Em 1989,Ruben de Carvalho organizou o volume

que colige o essencial da sua produção de letrista, As Palavras

das Cantigas. Está representado em diversas antologias de

poesia.

in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. VI,

Lisboa, 1999

A MÁQUINA DE COSTURA

Para o Mendes de Carvalho

Talhem-se as palavras justas

ao corpo do sofrimento

as imagens serão curtas

amplos os ombros do tempo

soltos os panos dos olhos

bordados os do talento

cosidos os dos ouvidos

ao forro do pensamento.

Tome-se o têxtil do tema

e corte-se o que é preciso

com a tesoura do riso.

Mas na orla do poema

depois da obra acabada

deixe-se ao menos um dedo

da tristeza embainhada.

José Carlos Ary dos Santos, Adereços. Obra Poética

foto: eli

José Carlos Ary dos Santos morreu […] de desespero e de solidão. Tudo isso foi

por ele procurado em êxtase, em euforia, em excesso. Tinha 46 anos e uma

existência que, de certo modo, correspondeu às exigências e às lutas da época

que lhe coube viver. E Ary nunca desistiu, nunca contornou obstáculos, cara a

cara, frente a frente, pegou o toiro pelos cornos, como escreveu numa canção

célebre. De facto, a "Tourada", mais do que uma metáfora, era a grande

analogia da sua vida.

Baptista Bastos, “Ary dos Santos ou a voz indomada e indomável”, in Jornal de Negócios

TOURADA – 1973 – Fernando Tordo

DESFOLHADA - 1969 - Simone de Oliveira

foto: net

[Carlos Castro conta]

como foi: Ary dos Santos

A sua genialidade ultrapassou toda a forma de dizer, de cantar as palavras. Foi o

poeta grandioso que partiu há 25 anos...

José Carlos Ary dos Santos. Assumiu-se sempre como 'nascido na alta burguesia'. De

vasta cultura, era um perfeccionista em tudo que sabia fazer. Ele driblava as

palavras. Como que as reinventava. Do corpo de linho trazia Agosto. Da menina do

alto da serra com cheiro a feno pela manhã. Do cavalo à solta com poema e gomos

de saudade.

E na tourada daquele tempo como no tempo que hoje passa. Que toureamos ombro a

ombro as feras. E não se pegou no mundo, depois de tanto tempo, pelos cornos da

desgraça. Foi cantado maravilhosamente por Simone, Tonicha, Fernando Tordo,

Paulo de Carvalho, Carlos do Carmo e Amália.

Com 16 anos de idade publica poemas e é aclamado como a revelação. E sai de casa

como todos os inconformados. Faz de tudo. Vendedor de pastilhas elásticas. Até

publicitário, onde cria os melhores anúncios da época. O seu livro A Liturgia do

Sangue é uma pedrada no charco.

É em 1969 que se torna membro do PCP, e os seus poemas galvanizantes fazem a

ditadura temer a sua voz. Quando participa no Festival da Canção RTP vence em

absoluto com „Desfolhada‟ (um dos seus mais belos poemas) que Simone

cantou/arrebatou.

E foi Tonicha com „Menina‟, uma outra jóia da canção portuguesa. Ainda Fernando

Tordo tem a vitória com „Tourada‟, numa crítica social tremenda. É Nuno Nazareth

Fernandes o compositor que ao lado de Ary cria as canções de sucesso.

Escreveu centenas de poemas. Publicou livros. Gravou discos onde declamava com

paixão as suas palavras. Aos 47 anos de idade (18 Janeiro 1984), o poeta de „As

portas que Abril abriu‟ continua vivo.

ARY E A SUA REVOLTA COM O PAÍS

Ary (conheci-o bem) não era uma pessoa fácil. Difícil até no trato. Mas um coração do

tamanho do mundo quando era preciso. E como era vaidoso. Fazia gala disso. As palavras

dos seus poemas podem dizer tudo. Da sua forte personalidade. Dos seus erros e das suas

ARY E A SUA REVOLTA COM O PAÍS

Ary (conheci-o bem) não era uma pessoa fácil. Difícil até no trato. Mas um coração do

tamanho do mundo quando era preciso. E como era vaidoso. Fazia gala disso. As

palavras dos seus poemas podem dizer tudo. Da sua forte personalidade. Dos seus

erros e das suas grandes virtudes. Da revolta que sentia porque não compreendia o

seu país tantas e tantas vezes. Ary dos Santos era um lutador.

INESQUECÍVEL EM TUDO

Estive várias vezes em sua casa na rua da Saudade. Ouvi-o muitas vezes ralhar. Tentar

ajudar. E perceber naquele grande homem uma solidão tremenda. As recordações de

sua querida mãe, de seu irmão, que se suicidou aos 21 anos de idade. Uma outra dor.

Teve amigos. Grandes nomes da cultura. Como era de Amália. Idolatrava-a. Fez teatro

no seu tempo de juventude. No teatro de revista, assinou peças inesquecíveis. E o

que foi que ele não fez?

Carlos Castro, “Vidas”, Correio da Manhã, em 24-1-2010

Ary dos Santos – Poemas - Música

Retrato de Amália - José Carlos Ary dos Santos

foto: net

Poema de Ary sobre foto (pormenor) de eli

Poema de Ary sobre pintura (pormenor) de carlos peres feio

ESQUECIMENTO

Quando eu morrer,

Sem o cansaço inútil da jornada

- Porque nunca senti –

Sem o manto sublime da amargura

- Porque nunca chorei –

Sem a réstia de fogo da alegria

- Porque nunca me ri –

Aqueles que me odiaram,

Os poucos que me acolheram

E os muitos que nunca vi,

Hão-de chorar por convenção

Ou sorrir por teimosia.

Mas nunca mais ninguém se lembrará

Do pobre que nunca riu

Nem chorou

Nem sentiu.

José Carlos Ary dos Santos, Infância. Obra Poética

foto: eli

RETALHOS - Luanda Cozetti

ESTRELA DA TARDE – Mafalda Arnnauth

CANÇÃO DE MADRUGAR – Susana Félix

CAVALO À SOLTA – Viviane

foto: eli