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– LUTO – (2011 – 2016)
poemas de Renan Nuernberger
2
ÍNDICE
As coisas claras .............................................................................................................. 04
Sobre os nômades .......................................................................................................... 05
Voo ................................................................................................................................ 07
Sem título nº 2 ............................................................................................................... 08
Poema da impaciência ................................................................................................... 09
A trapezista .................................................................................................................... 10
Como se um barco ......................................................................................................... 11
Isso aquilo outro ............................................................................................................ 12
Três clichês .................................................................................................................... 13
Elegia ............................................................................................................................. 14
O silêncio ....................................................................................................................... 15
Farsa ............................................................................................................................... 16
Narcisos são os outros ................................................................................................... 18
Nós ................................................................................................................................. 19
Último adeus (take 4) .................................................................................................... 23
Encarnações ................................................................................................................... 24
Torquato revisited .......................................................................................................... 26
As voltas do vinil ........................................................................................................... 27
Letra morta .................................................................................................................... 28
Peão em obra ................................................................................................................. 30
Uma volta a mais ........................................................................................................... 31
No deserto ...................................................................................................................... 33
Tristeza de sexta-feira .................................................................................................... 35
O poeta escolhe sua clínica ............................................................................................ 36
Lavar o rosto .................................................................................................................. 37
Um quarto e sala ............................................................................................................ 38
Sextilhas malignas ......................................................................................................... 40
Vila operária .................................................................................................................. 41
Pensando em Mário de Andrade .................................................................................... 42
Canção do imigrante ilegal ............................................................................................ 43
Sol, slogan ..................................................................................................................... 44
O automóvel como um mito moderno ........................................................................... 45
Frequência modulada ..................................................................................................... 46
Projeto Novo Recife ...................................................................................................... 48
Fantasmagorias .............................................................................................................. 50
Garatujas ........................................................................................................................ 52
No futuro ........................................................................................................................ 55
Fabulação ....................................................................................................................... 57
Último anúncio .............................................................................................................. 59
Oração (Sagrado Coração de Todo Mundo) .................................................................. 60
Notícias de Kobani ........................................................................................................ 61
Luto ................................................................................................................................ 62
Poema a dois .................................................................................................................. 63
Um movimento .............................................................................................................. 64
Três momentos na noite ................................................................................................. 65
O inexplicável acidente ................................................................................................. 68
Reconsideração .............................................................................................................. 71
Às entidades ................................................................................................................... 72
3
O que será ...................................................................................................................... 74
Epigrama ........................................................................................................................ 75
Mínima cantada ............................................................................................................. 76
Signo Lua ...................................................................................................................... 77
Vida ............................................................................................................................... 78
Ora (direis) .................................................................................................................... 79
Mesmo poemas .............................................................................................................. 80
Dois (um mesmo) retratos ............................................................................................. 82
Esboço de figura ............................................................................................................ 84
Morre Ferreira Gullar .................................................................................................... 85
4
AS COISAS CLARAS para Vinicius Marques Pastorelli
1.
suponha um copo de água
numa sala repleta de luz.
sobre o tampo de uma mesa
o copo translúcido atua,
suando tranquilo
sua mancha na madeira
teca opaca. os bichos
ciscando lá fora. janelas
enormes que ocupam quase
toda a extensão das
paredes da sala. o Sol
emanando seus raios
ao pulmão de vidro
em que estou contido
– escrevo à prova de balas.
2.
o mar egeu não se ergue
(nunca depois navegado)
sob o abismo desta manhã.
escrevo. mastigo alguns
nacos de fruta (suponha
ser manga ou caju).
poema: os bichos ciscando.
a engenharia é o mal
necessário a quem
pensa o poema e se
esgota ao pensar(-se),
máquina d’emocionar.
o copo de água, as frutas,
a madeira teca, o iMac, o .doc
– todas as coisas bem claras.
5
SOBRE OS NÔMADES
não é só a neve
nem os olhares
(nessa penumbra
desgastes são
pardos)
não é o prenúncio
nem tudo são flores
tampouco
o excesso
de zelo ou silêncio
não é a aurora
não é a savana
(talvez um café
em camberra
ou estocolmo)
não é o futuro
nem são os ciganos
não é maiakóvski
nem elixir mágico
não são as palavras
band-aid
sondagem
não são as ideias
ou cópias piratas
não eram raposas
nem são cogumelos
não é a américa
negócios à parte
não é um cachimbo
nem tudo é só
sexo
ou fruta madura
abaixo-assinado
não é mais segredo
um grama de rádio
amor desbragado
não tem mais remédio
não é pela rima
(oh não obrigado)
6
apego aos signos
um gole de água
o óbvio / o vário
(o sim
contra
o sim)
não é um cristal
nem um origami
não é um deserto
nem fórmula
química
nenhum papelote
cigarros na cama
não é suicídio
ou quase uma arte
a crise
econômica
ou a eurocopa
nada essa espuma
nadica de nada
é o x do problema
ou a chave de ouro
não são torres gêmeas
não é kardecismo
talvez reticências
de inenarráveis
jardins impossíveis
num caleidoscópio
ou neandertais
sem nervos de aço
(nunca mais nevermore)
: o apocalipse
não é uma hipótese
7
VOO
se um pássaro nascesse (súbito) no céu,
seu voo, então, seria
inédito? ou seria a ação mimética
de tudo quanto é asa
, apenas? nenhuma
mudança anatômica que gerasse,
em ciência, outra classe? um milagre?
ou uma réplica do que já existe
naquilo que chamamos pássaro?
e se uma asa, autônoma, desprendida do
corpo-pássaro,
formatasse em ato (músculo)
um voo de mecânica clara, com tudo
o que há de exato
e belo em sua dança sinuosa? seria uma
novidade? ou somente um protótipo,
cópia imperfeita, daquilo
que chamamos asa na natureza?
e se esse voo, sozinho, se fizesse
puro gesto
(módulo) de vento? seria, assim,
algo raro ou, em sua
invisível forma,
uma coisa qualquer, cotidiana?
um mistério transparente entre
nuvens ou, quem sabe, um vácuo,
tão óbvio, sob a luz do Sol?
e se o voo fosse seu avesso? um anti-
voo, parado em pleno
ar? seria, enfim, (nítido) um
assombro, confundido com um eclipse ou
com um ovni? negaria
as leis da física, ser concreto? ou
seria o que chamamos de helicóptero?
e se fosse, tão somente, a ideia voo –
sem (máquina) gesto algum, sonho
de ícaro? seria, agora,
matéria de poesia para o século XXI?
ou pastiche, frame
a frame, de uma imagem datada? que
atributo haveria nesse, se possível,
verso, preciso, que brotasse, original?
8
SEM TÍTULO Nº 2
cessado o tempo, não haverá
mais tinta nos papéis.
os corpos
– mutilados
– , após os rituais,
nunca mais serão expostos
em inquéritos, em programas
de tevê. os corpos
para sempre
– mutilados
– , no acúmulo
dos séculos, repousarão como
a secura de um caroço que,
sendo oco, perdura
em sua latência de fruta (açú-
car, ácido, cárie);
não a imagem vida / fruta
– mutilada
(no poema) –
, cujo sumo se esgota
num só gole, tosca,
mas o sinistro fruta / outra
senda na palavra
que, num só golpe, revele
o travo ardil de nossos
dias
ao negá-lo.
9
POEMA DA IMPACIÊNCIA
1.
meu desequilíbrio
rega flores mortas num chão calcinado.
a memória instaura
outra flor
mais pálida
(signo de assombro).
contra a luz da tela
eu persigo – à noite –
este vulto amorfo.
mas são tantos posts
(como vai, amigo?)
que as palavras somem.
só existe a imagem:
meu desequilíbrio
rega flores mortas num chão calcinado.
2.
aceitar a urgência como uma poética,
apesar de estreita.
o poema instala
um registro
tátil
(forma que apodrece).
em sua epiderme
eu inscrevo – um texto –
esta cifra amarga.
mas seu núcleo-duro
(como vai, amigo?)
talvez permaneça.
sem maior alarde:
aceitar a urgência como uma poética,
apesar de estreita.
10
A TRAPEZISTA
seu corpo não destaca as horas
solitárias
de exercícios,
as noites mal dormidas,
o inexplicável
acidente
(que ocorrerá adiante).
seu corpo é só o voo
por completo.
uma alegria no futuro
para todos,
que a amamos (ao menos
neste instante), em si mesma, concreta.
seu corpo, sua poética, pulsando prática
no coração do mundo
é o que interessa:
seu corpo, sua poética, ultrapassa
a cena do filme,
a lona do circo,
o guichê dos cartórios,
a falta de verba.
seu corpo, sua poética, ultrapassa
as estrelas visíveis,
a partícula bárion,
o genoma humano,
este rude poema.
sua poética, assim, destaca as horas
(inexprimíveis
para os ávidos
relógios)
de outro tempo, pleno,
quando coexistem
todas as potências
do que nossos entes são.
que eu me funda (cada poro)
em sua poética
e que um dia eu possa sê-la,
minha irmã.
11
COMO SE UM BARCO para André Goldfeder
como se um barco fosse (um serrote)
cortado ao meio como
se um corte (ainda) doesse
como se um homem
fosse
enterrado (vivo)
na areia como se houvesse
(barco homem areia)
alguém que atravessa o atlântico
a nado
como se (um
pássaro) fosse um peixe
costurando o azul
como se um corte
(fosse) profundo (e) ainda
sangrasse como um guepardo
(casaco de pele) corre
como se o tiro
não o acertasse
como uma âncora que ainda
pesasse apesar da ferrugem
como se (a gente) fosse
a própria ferrugem como
se um bêbado fosse (enterrado)
uma cigana que (ainda) sangrasse
como um serrote que nunca
cortasse a areia (ou um
pássaro) como
se a vida não fosse (casaco
de pele) como uma âncora:
barra-pesada
como num sonho
que nunca ocorresse
– um homem que fosse cortado ao meio –
como um guepardo
que fosse (a História)
incapturável
em sua beleza azul e cigana como
se um peixe fosse (o atlântico)
a gente e ainda sangrasse
como se um barco (metáforas náufragas)
valesse por si: tiros na água
12
ISSO AQUILO OUTRO
a pantera o penteado
a gaiola o delírio
a farofa o girassol
a semente o soldado
a tortura o canino
a verdade o benflogin
a flocagem o vibracall
a vitrola o itororó
a aids o hades
a semântica o miasma
as farc os bons drink
a demanda o drummond
a bigorna o abacaxi
a erva-doce o varicell
a celeuma o governo
a máxima o oximoro
a encosta o catador
a enchente o milagre
a linhaça o louva-deus
a estrela-guia o bon vivant
a vingança o corcovado
a pátria amada o impeachment
a barganha o bisturi
a sacanagem o sofá-cama
a loucura o mallarmé
a piscina o infortúnio
a sondagem o rompante
a goela abaixo o enxuga gelo
a a.r.-15 o xbox
a ciabatta o bissexto
a bandalheira o platibanda
a playboy o boi-zebu
a letra a o ó com copo
a grana fácil o guaraná
a atriz o terrorista
a linha dura o vernissage
a casa-cor o acaso
a picanha o canhestro
a fofoca o facebook
a gelatina o anacreonte
a cidadela o cd-rom
a mesma tecla o matadouro
a mãe-terra o misto-quente
a mão no fogo o cataclismo
a azeitona o antídoto
a antiode o poetastro
etc.
13
TRÊS CLICHÊS
1.
um retrato em tons de sépia
(isso seria um poema
antigo, ou pior, transado
uma página atrás
– há, pelo menos,
dois séculos. um poema
em tons de pétalas
ou pálpebras
que convém chamar de
farsa). um piano,
em outra sala, que talvez
só seja a chuva
: uma dor que dói doída
pelo coração dos outros.
2.
riscar com um carvão
(sendo o caos do diamante)
diuturnamente. riscar e,
tão somente, torcer
(isso é um mantra, ou
seja, um modo de vida)
cada palavra – dizendo
SIM a todos os ruídos
– em suas vicissitudes.
torcer, com cuidado
e covardia, as ligas
da linguagem comum,
sujando as próprias mãos
enquanto espana parafusos.
3.
entrego-me a toda gente
com vaidade, nas vitrines.
eles querem o reflexo (
às vezes me encharco
no lixo) das curvas
dos corpos ou do brilho
dos cabelos: tudo aquilo
que existe para acabar
num link. eles querem,
sobretudo, o delírio
de uma imagem (uma flor
azul que explode num
campo – azul? – minado
em formas, às vezes, óbvias).
14
ELEGIA
dessa fome insaciável, desde antes
das privações concretas do existirmos,
não há na natureza um só desgosto
que justifique humanamente a chuva
da tarde carregada de sentidos
aéreos. (com suas nuvens cor-de-chumbo)
um coração pateta, o canto seco
no qual nos abrigamos
, ressentidos,
com o gesto que falhou no exato instante
da mais profunda dor ou da alegria
mais banal.
dessa fome insaciável que persiste
além do açúcar, que tanto fabricamos
(feito abelhas), por todos os volumes
que leremos ou em todos os amores
que negamos, não há na natureza
uma só cifra de comunhão rompida
– como a nossa.
em tudo que ressalta essa fome
encontro um traço ácido
de mágoa e eu
aqui parado já sabia
que nunca mais estreitaria o laço
tão frouxo do futuro do pretérito
– espécie de arremedo de poema –
cuja promessa alimentara os séculos
e o cão cérbero que os mantivera intactos
nas solas dos sapatos louboutin.
não há na natureza uma só máquina
que em si remeta a nós naturalmente
(o boi que expia a culpa, a carne, o couro
somos nós mesmos nus com outra máscara)
e a fome desta tarde, assim sabemos,
engana-se com dois ou três prozacs.
meu coração pateta e o canto seco
calados pela tempestade elétrica
que reverenciamos mas tememos
em sua vida eterna e mineral
neste universo, que prescinde da gente,
insuportavelmente permanente.
15
O SILÊNCIO
grave esta manhã
cujo silêncio antecipa
(sem maiores notícias)
outro golpe
outro grande
negócio
entre os homens
de bem
a vida
prossegue:
máquinas constroem
máquinas
(carros, tablets,
projéteis,
fogões)
o dólar cai para R$ 3,70
o mercado reage (ninguém
está acima da lei
nem eu
aqui sozinho
– grave esta manhã –
cujo silêncio antecipo)
nuvens enormes
invadem
o céu da cidade
alguém desliza
de-li-ca-da-men-te
os dedos sobre botões:
grave esta manhã,
amigo,
o que ela tem de
sinistro: o silêncio
antecipado
16
FARSA
1.
no lugar do amor, espelhos.
uma sala repleta.
atrás dos vidros,
(quem as assiste?) ruínas
de todos os tempos
, como restos de uma festa adiada.
os líquidos espessos do banheiro
escorrem pela noite
e me impregno
com asco, mas coragem,
desse leite amargo
que nada nutre além de sua semente:
um corpo amorfo e volátil
cuja fome ruim me devora
(e pretende devorar
tudo) por dentro.
2.
quem não sentiu a languidez
no vômito
dos tristes dias de uma longa febre
marcada pelos calafrios do medo?
e a sensação de gozo tão secreta
de sentir-se mal mesmo dormindo?
(no sonho, são as cartas de baralho
se dispersando, como se fossem vivas,
na festa que não houve. ele guarda
entre os dedos
uma última jogada) quem não tolera
sua própria apatia ou falta de charme?
3.
meu nome é legião porque somos
muitos e entre nós nada mais há
(só as máscaras
e atrás das máscaras
o vazio dos dias).
lavo o rosto, mecânico. e cada
marca na pele é um sintoma
– estilhaço – do fim. recolho as cartas
e encaro (corte
17
cego de navalha) essa mancha opaca
(entre gordura
e músculo)
que impede minha almejada ausência
, quer dizer, descanso.
18
NARCISOS SÃO OS OUTROS
ele
uma espécie de libelo
e que coisa estranha
sinto no momento
(ou finjo)
que o inscrevo
no coração dos outros
– no oco de meu peito –
eu
que tanto o invejo
em frente ao espelho
enquanto ele cala
(e consinto)
o quanto doem os calos
o câncer que mascaro
– sob a carne que carrego –
ele
já sabe o quanto vale
além do eu e sendo
o mesmo que me amo
(confundo)
odeio um com o outro
afinco sem esforço
– uma bomba sem pavio –
eu
19
NÓS para Andréa Catrópa
1.
que criatura, perguntam-me, numa manhã qualquer decifra um novo membro preso ao
seu próprio corpo? uma aresta que recorta outro formato de sombra (antes oblonga) mais
áspera com pelos grossos em torno e mais massa muito mais massa (músculo e osso) e
sangue e uma evidente vontade de devorar quem (se) ama?
2.
/ as escadas existem/ porque são precisas/ (emblema geométrico / de nosso raciocínio) /
nas pedras polidas / pra subir na vida / andamos pareados / degrau a degrau / até quando?
escuto / um eco inconfundível / sem quedas no cenário / do círculo infernal /
3.
o amor, a água forte, aquele açúcar: as coisas ácidas que corroem o bronze, a carne viva
(mais que nudez) exposta ao sensível do ser em si. agir. um lapso de segundo, um beijo
ou nada mais. estamos, meu bem, com os dias contados. talvez eu esteja enganado mas
nada existe assim, sempre com tamanha fúria. entre um e outro orgasmo há o hiato,
momentos monótonos. roído e condoído eu, a esfinge gorda, penso no vexame de nosso
último encontro. não rolou, não bateu, não sei bem o que foi. todas as respostas na ponta
da língua: o movimento de pernas, os fantasmas da História, a lógica do poema. 0x0.
podia pedir desculpas mas não serviria de nada. no lugar, esta mensagem e a promessa de
mais cuidado na próxima.
4.
somos, apesar do convívio,
seres radicalmente distintos
: ela é um vidro blindado,
eu sou apenas
uma boneca.
mas nos meus sonhos
de cabeça oca
sinto que, às vezes,
poderia atravessá-la,
sendo uma imagem
holográfica
dentro de seu cubo
translúcido
(vitrine sem comércio
que não transmite
nenhum sentido oculto:
plasma e prisma
, ambos expostos,
nos quais me dissolvo
para sorvê-los, gozosa)
20
5.
gosto dele como que de graça.
o gozo estúpido da paixão
repuxa-se
na pura exterioridade
dos corpos
(que se entendem mais que as almas),
das almofadas do sofá da sala.
6.
devoro (s.m.) | diz-se daquilo que mais quero, amor. que engulo, de súbito, e engasgo pelo
esforço. não mastigo: deixo intacto no meu âmago, o ouro do seu nariz, o imã de nossas
bocas. o gosto. olho no olho no olho no ângulo de seu corpo – reto – prolongadamente
teso – preamar de Lua nova –
7.
ela acende um cigarro:
será que sua caixa torácica
ressoa as mesmas notas
que meus lábios, sozinhos,
ensaiam?
(o amor é
um quarto
estreito
com imensos
espelhos
côncavos)
somos tão belas e jovens
mas, apesar das reentrâncias
que (em ângulo aberto)
alegremente concatenamos,
sinto em minha saliva
que nunca seremos um
único e íntegro
corpo.
8.
um corpo só que se
desdobra
com desejo re-
dobrado sem
assombro (estou assim
acostumado) a
cada transa nova
21
quando flácido
não imagina
o espaço que ocupa nas
fissuras onde mergulha
como agulha no palheiro
mas de repente o sangue recupera
sua memória de lava e o que estava
em ponto-morto se revela além
dos panos e erguendo-se (as veias
todas óbvias) torna nítido o seu arco
– aspirado reencontro
9.
saberei o corpo dela
nos menores
detalhes de suas
pintas (capitais
dos estados
da nação)?
de suas manchas (signos
que assinam a rubrica
vida)?
do calor e da textura
de sua carne (dentro
e fora) cujas variações
encontram-
se entre os ombros,
coxas, lábios (e tantos
outros pares) e os mais
diversos toques
possíveis, no veludo
quase líquido de
nós dois entrecruzados?
traçarei todas as
curvas, a penugem de
sua nuca e cada canto
de sua pele
leve ou torneada
por um simples arrepio?
ficarei extático
pelo tato
adocicado, sendo eu
mesmo um mapa
assim inexato
que se abre total-
mente ante os mares
22
tão bravios
dessa mulher que amo
tanto, de corpo
e de palavra (que
é um corpo de outra
ordem), e na qual
posso centrar-me
por páginas e páginas
sem nunca encerrar
-me?
formarei enfim esse poema
numa língua toda
nossa (imprópria na sua
fala que nada
comunica
e apenas se remete
a si mesma) pelo ato
que doravante ressoa
noite adentro
enquanto ela repousa?
10.
decifra (s.f.) |
23
ÚLTIMO ADEUS (TAKE 4) pensando em Ana Cristina Cesar
não te reconheço, darling,
na lógica do chá
das cinco
já não constam
os detalhes biográficos
(jornalismo
a dois) do início
aqui não há mais cofres,
nem teus olhos, fundos
falsos – tudo é poro,
azulejos,
banho quente
(o meio é a mensagem)
e o vapor que embaça os vidros
sem espelhos, porém,
e provisório
meu corpo e o teu agora
são um mesmo
(exagero, eu sei,
na afetação) e cada
gesto é um signo do espanto
à nossa intimidade
assim forjada
compete uma linguagem
inexprimível
mas sinto que você
(esfinge, outra)
entende longamente
porque, parco enigma,
eu também, bem, tenho escrito
24
ENCARNAÇÕES
desejo às vezes
um corpo
de rocha
que caça as pegadas
da presa mais próxima
fincadas no asfalto
e (não sabe da missa
a metade mas) guia seu gado
como quem conta
dólares
desejo às vezes
um corpo
de bicha
cigana dos brincos
de ouro que sente
na língua a vida agitada de todas as coisas como quem mergulha no azul profundo entre almofadas
desejo às vezes
um corpo
de bruxa
que queima
entre brasas
absoluta-
mente e se alastra
(equilíbrio astrológico) invadindo a História como quem exala um perfume de murta
desejo às vezes
um corpo
de flecha
(antena da raça)
que funda
o signo
enquanto o
projeta
como quem
(mantendo
sempre teso
25
o arco
da promessa)
tão somente
pensa
26
TORQUATO REVISITED
não é o meu país
é um poema
que então ficou
por ser notado
na medida do improvável
sem se quer um gesto nítido
: ai quem me
dera esse sor
riso velhas tardes
de dom
ingo ou mel
hor o dom
da voz pra cantar
em seu ou
vido (sem em
bargos nem vibrato
nem as faces do hor
ror diário) bem
no meio do carinho
como é grande o meu
amor
, mas adeus
27
AS VOLTAS DO VINIL para Fabiano Calixto
lado a
sábado à noite, muito prazer a tacapau. ácidos e luzes até ontem, sem dj, sem dó. sem
sapato eu danço, você dança comigo: festa e comício de tudo. antes do Sol não saio.
nascer. do seu lado. com que roupa, noel? transamba? alcaloides à vontade (me segura,
baby, na secura) nos salvam nos aproximam do kaos. RC e as canções do rádio. violões
de rua e as canções, do rádio. se a música para, se a banana doesn’t boot (nevermore,
carmen… I don’t make jokes), o coração não cabe em sua contraluz. sem guitarras, sem
arpejos, sem cinemas, sem bondes, sem luar, as agulhas mudas arranham os sulcos, as
cavidades, o long-play: se os dentes rangem (acompanhando o compasso sem som) e as
palavras continuam partindo do mel para o mata-borrão (mel do melhor, geleia geral,
gigolô, bibelôs, brasil, paupéria) a entrada da bala crispada nos cornos (compacta-se o
crânio) faz-se mais que necessária. senão, como suportar o incômodo daquilo que gira
gira e do que há de vir?
lado b
domingo imenso, amor de praia. penetrar as dunas do barato, entender as dunas: um
barato! eu brasileiro confesso que pequei: o pecado da soberba – yes, yes, we can! açaí
era raro. tantos pescados vivos (nosferatu passeava sob o calor do rio) – yes, yes, we
could! as dunas do barato (bunda rija, seio firme) sob o Sol do posto nove, do amor, bater
tambores (coração, aorta, pau). a poesia da ana cristina, o destino da leila diniz, o apê da
nara leão. solar da fossa, forçar a sola (could a be being). você dança comigo? ontem
dançou? te convidei prum samba, café e mallarmé. a vida inteira que poderia ter sido
(cujo could é tipo gold). luxúria (yes, yes, yes). ah! o branco da página maculado por
guimbas, carimbos, rabiscos: deu zebra (o jornal do brasil não entende o do glauco).
esperando o download do remake, observo uma foto em p/b que valoriza a mais angulosa
das facetas da arte (a obra fagulha nas frestas) e renovo o brilho, repetindo em mantra o
estribilho: como superar o inexorável daquilo que vira vira e do que há de gir?
28
LETRA MORTA
escreveu não leu,
não era a lei,
o pau comeu,
a alegria
– ficou ao léu.
emperrada a mente,
a letra morta,
o sangue quente,
a carne viva
– logo se foi.
a exatidão do corte
sob a luz
do apartamento,
coisa fina
– a afiação.
e era não
de nada além
de nunca mais
um acordo com o dia
– e por que não?
quebrar todo perigo
de cara
nos vidros da
enfermaria
– se liga aí.
tratar o ferimento
em álcool em gel,
emagrecer com
gelatina
– tudo de bom!
a praça está
deserta, caroço
de estrelas desta
noite fria
29
– não tá legal…
não vá embora agora,
aqui tá tão mais caro
que na outra
esquina
– como é que vai?
são quatro da manhã
e ouço o mar
lutando contra
a avenida
– só quero ver.
escreveu NO WAY
no coração
vermelho daquela
camisa
– não chora, não.
a menina dança
sobre o arame
farpado em
letargia
– é pra brilhar.
nem mesmo disse adeus
ao telefone,
tomo um porre,
perco a linha
– ela conduz.
rasgou o documento
que comprova
a (lassidão)
cidadania
– tou nem aí!
se tudo dorme mudo
conspirando
a favor
da melodia
30
– me diz, então.
PEÃO EM OBRA
dessa vez não vai ser
diferente,
(dificilmente)
haverá um guindaste
mais moderno
e a odebrecht
erguerá o maior
monumento
pro movimento
do mercado de ações
da bovespa.
ele então amará
sua amante
(um pouco antes
de tomar seu café
na cozinha,
às três da matina,
e pegar seu busão
sem sentido
– centro expandido
que para o infinito
se desloca)
falará nordestino
um coqueiro
(e o pé direito)
da maior construção
sobre a Terra.
na sexta-feira
o almoço será
self service
com suco grátis.
nem mesmo o sindicato
quer greve.
alguém mais vai cair
do andaime
– o suicídio
como forma de fuga ou protesto
(foi só um tropeço…).
não me fode,
eu só quero sossego
depois do trampo
que de dia (adia)
se prorroga
: peão em obra.
31
UMA VOLTA A MAIS
virando a esquina, relembro, afinal,
que nenhum país existe
e um amontoado de gente
escolheu, naquela tarde,
filmar (pra si) a cena,
mas a câmera oculta
o que há de mais visível
– um corpo, ali, presente –
(ninguém está imune
a sua própria
covardia
:
quem finge que não viu,
quem espera sentado,
quem frequenta
sozinho
biblioteca, zoológico,
sabe bem lá no fundo
que se o mundo explodisse
seria um momento
de mais justa igualdade
entre os seres humanos).
e eu sigo calado
sem sofrer represálias
com meus próprios
demônios e demônios
alheios / conquanto
saibamos que estou
são e salvo
e escrevo um poema
no qual se inscreve
não
simplesmente
a visão demagógica
que a câmera amplia,
mas um corpo
ao avesso
que expõe, em seu vulto,
mais um nosso fracasso
: não
o protesto
atônito/anódino
32
diante do massacre (não há
mesmo palavras pra dizer
morto
a pauladas) mas a partilha do
mal em nossos pães
diários,
em cada gesto vago
que
adia (distraído?)
as novas formas de viver
com as quais sonháramos.
33
NO DESERTO
no deserto, há um cofre
cuja senha se dissipa
entre os grãos secos de areia.
nunca mais será aberta
sua porta tão pesada,
liga de chumbo e enigma.
no interior, intacta,
uma bomba se concentra
em contagem regressiva,
mas nenhum alarme soa
nem vai nada pelos ares:
cada megaton do impacto
se conformará no espaço
(ora vazio)
do aquário opaco
dentro do qual reside
a bomba.
antes, porém, que o cubo
esteja (todo-em-si) maciço
e o fogo-fátuo da ogiva
consuma
a si mesmo
num istmo,
encontra-se, cravada,
no coração da bomba
a cidade que nunca
para (a nova
babilônia) de acumular
impasses neste século inexato.
e no meio da cidade
(em seu centro financeiro)
um enorme edifício
que reflete o Sol por dentro
derretendo a rua temperaturas amenas
inteira sob o ar-condicionado
. cada sala do edifício
(no lugar de
horizonte, espelhos)
é em si mesma um cofre
34
totalmente impenetrável
e no qual se depositam
os materiais mais caros
para um (pálido) poema:
muito longe do pré-sal
ou do vale do silício ou
da exploração explícita
das crianças na malásia
, tudo aquilo que dá lastro
ao poema é conservado
: não há ouro, sangue ou pátina,
nenhum canto em comunidade,
não há flores, arabescos
ou formas (ainda)
secretas:
entre
os grãos secos de areia
– impassível, sendo signo –
, nos ventres destes cofres,
há apenas mais deserto.
35
TRISTEZA DE SEXTA-FEIRA
o amor janela afora
(tristeza de sexta-feira)
chove uma água fria
pela madrugada
adentro
não tenho nenhuma dívida
o mundo anda nos trinques
ainda não há portanto
sinal
nem dói no peito
o câncer que está por vir
: decanta-se aqui mesmo
o infinito
e padeço
36
O POETA ESCOLHE SUA CLÍNICA
e, de repente, não há mais dor
– milagre raro –
neste objeto
recoberto por pijama e edredom
. as coisas fluem, torrentemente,
sem ser palavras, num outro
círculo, desrespeitando as leis
da física. os aparelhos, todos
eles, também cobertos
por uma fina camada
– sem consciência
ou concreção –
seguem acesos. e tudo é noite
nesse espaço de tempo
que antecede, desde antes,
todas as manhãs.
um verso surge, depois desbota
(o poema é um desastre
entre o memento e o presságio)
e a dor retorna
a partir do signo
– como um rancor que
, embalado a vácuo,
se torna íntimo como um tumor –,
sendo a ternura que
fulgura próspera
sob a promessa de insurreição.
37
LAVAR O ROSTO
Enxuga-te com a toalha áspera e lança
Um olhar num livro que amas.
(Bertold Brecht via Paulo César de Souza)
o demônio do sono grudado na cara.
os músculos todos doem pesados
(ao menos pesam) e o peso
dificulta o óbvio: o abrir dos olhos,
o lembrar dos sonhos.
o celular tocando
entre o espanto e o alarme
confunde o incauto, que prefere mesmo,
naquele segundo, afundar-se no abismo,
segurando, sedento, o fundo oco
de um último bocejo.
uma olheira (mancha
negra) delineia o futuro,
lentamente
: os traços da velhice, o por vir
da velhice e o fim mesmo
da possível velhice
que é a morte. tudo
isso antes que o tempo se acabe,
que ele chegue atrasado.
a manhã assim se inicia
: é preciso arrancar a máscara
que nos prega à cama e que, no entanto,
não nos livra do ontem
nem (ninguém) do amanhã.
é preciso, cambaleando
(eu penso em suicídio em ter ou não ter filhos na
militância política na grande obra a ser escrita
no insight de um verso – o gênio é uma longa besteira –
etc etc), arrastar-se até a pia.
é preciso torcer a máquina banal
de soltar água.
é preciso senti-la – a água – entre os dedos e
com as mãos em concha,
memória mineral, transbordar-se no
frescor líquido de seu ser
indiferente,
poro por poro, abrindo-se
gota a gota, acordar.
38
UM QUARTO E SALA para Érica Zíngano
há flores na varanda
há gatos (dois ou três)
quadros
na parede
rachaduras
há também barro
na sola das botas (caso
haja botas) um
ar de fim de tarde
poeira sobre os livros
há louças na pia
há troças – alguém
que anota rimas
cujo corpo descanse
agora será examinado
segunda-feira às nove
(assim estava escrito
no bilhete afixado
no espelho do banheiro)
– algo de museu na gaveta
emperrada
onde descansam sóbrios
e sem brilho as facas
os garfos e as
colheres de inox
há um telefone
é claro (sempre
há um telefone
) e alguém que
nunca liga do outro
lado da cidade
uma Lua
que se esboça (se houvesse
tudo
que se vê pela janela)
um poema escrito à mão
que se desmonta
a cada
releitura
39
talvez não sobre nada
imagens recortadas, o vício por cigarros,
um casaco que repousa
sobre o sofá-cama
há sonhos (pensa o corpo)
e antes há
ossos, algum músculo, sangue circulando, órgãos,
contrato de aluguel
(tratar com o proprietário),
certidão de pessoa física
há um país – assim se diz –
e toda gente
que caminha
a passos largos
em busca de um futuro
com mais prosperidade
não há mais tempo porém
e todos sabem
os ponteiros circulando nas mesmas doze horas
que fingimos satisfeitos serem outras
enquanto a vida aflora
que não há nada
aqui dentro
a se perder
40
SEXTILHAS MALIGNAS
mais do que causa ou efeito
, noturno olhar citadino,
esqueça os apartamentos
nos quais o caos se instala
como um quadro na parede,
sem nenhuma sede ao pote.
perceba entre as dobras
– no estilo – de cada tijolo
(às construções e seus vínculos
chamemos de humanidade)
quanto de barro e de mofo
existe naquela argamassa
e em sua própria argamassa
, noturno olhar citadino,
quanta falsa densidade
de seu prospecto caduco
me esconde visões mais livres,
esplêndidas e selvagens?
41
VILA OPERÁRIA
alguma dignidade
(a água depois da chuva
repousa em seus telhados
iguais como as mulheres
deveriam ser iguais
aos homens que – todos
iguais – sendo
únicos em si mesmos
poderiam compartilhar o fim
de mais um ano
com o décimo terceiro
e a certeza do retorno me-
cânico
ao trabalho com
alguma consciência
da exploração na fábrica
que, ali ao lado, hoje
é sesc, espaço
cênico
– cultura é o que arrebata)
resiste casa por casa em sua
insistência notável –
momento de um projeto
que se concluiu
pelo avesso – ao não
se render à
nova arquitetura
da bolha imobiliária
ao contrário de um
poeta (talvez
ingênuo
mas) engajado
que persegue liricamente
da janela do
apartamento – a chuva
explode lá fora
– o cerne de suas tramas
como um lego
, como um legado.
42
PENSANDO EM MÁRIO DE ANDRADE
confiando no país que traz nos dentes,
escreve em seu caderno uma (modesta?)
ode triunfal contrária às regras
mais caducas que
no entanto
em si mesmo carrega
(sagrado coração do cajueiro).
fumando seu cigarro nas esquinas,
a barra funda pesa enormemente
como se a viação brasil inteira
coubesse em seu frágil peito
humano.
visando o futuro no concreto
das relações diárias do edifício,
projeta uma música inaudível
que sonha em ser um lundu de quintal.
expondo-se na vida
em sacrifício,
desde a vitória-régia
até o bumba meu boi,
gargalha como um
lábaro estrelado
(um dia será marginal, herói).
e mergulhando só, num rio de sangue,
a água verdadeira (tietê)
revela enfim a sua tez mestiça
(non ducor travestido de arlequim)
num carnaval que encarna totalmente
: este homem é mulato que nem eu.
43
CANÇÃO DO IMIGRANTE ILEGAL
em cismar, sozinho, à noite
não dou sopa pelas ruas:
minha terra tem mais tretas
minhas tretas mais terrores.
se me pegam aqui sem visto
(garçom, gari, babá),
tou fudido bem fudido
em verde, roxo e amarelo.
minha terra tem mais tretas
e quase que mais amores
e tem um gingado gostoso
que bole co’s gringos daqui:
não permita deus que eu seja
deportado pro brasil!
44
SOL, SLOGAN
Que symbolo fecundo
Vem na aurora anciosa?
(Fernando Pessoa)
gostaria de comprar
uma coca-cola para
o mundo. primeiro
estranha-se mas é
isso aí, uma
coca-cola como
pharmakon: uma pausa
que refresca a mera
metade de nada que
chamamos vida.
overdose, urso polar,
santa claus, cherry
coke. depois
entranha-se e
essa é a real,
coca-cola como
pharmakon: viva o que
é bom, poeta só
porrada, o Sol doura
sem literatura.
45
O AUTOMÓVEL COMO UM MITO MODERNO
monumento de passagem
o mais óbvio dos fálicos
(não à toa marinetti
sonhou mísseis e ferraris)
uma cápsula de stress
totem celta em movimento
(o pateta é macho-alfa
dirigindo um golf preto)
pisa fundo em ode bélica
o varão assinalado
(nós capota mas não breca
numa S10 tunada)
ronco quente dos cavalos
mais que deus, uma ex-máquina
(bate-bate bang bang
high design da catástrofe)
O MODERNO COMO UM MITO AUTOMÓVEL
46
FREQUÊNCIA MODULADA
no trânsito
quer dizer
parado
na avenida
brasil
faixa do meio
às deze
nove
horas ouvindo
notícias do trâns
ito parado como
todos
os carros no páreo
(sozinho, ar
condicionado)
sem pôr
do Sol – mor
maço – acende um
cigarro, chama um
táxi, xinga as motos
, vence um pálio,
na faixa
à esquerda
sonha alto
num uber preto (são
paulo,
corrosão
de minha vida).
aquele opala
pisca,
pisca
um celta ao lado,
retoca o gloss
na boca amarga
do novo
uno
, não abra o vidro
para os inválidos,
andando a pé dentro
do transe – to
do o universo
solta fumaça,
o motor treme
num rio
de asfalto,
postes desabam
em pleno pânico
47
– detran, bafômetro –,
os fios elétricos
faíscam bambos,
um
audi bê
bado
so
be o ca
nteiro ,
a rota atira à
q u e i m a - r o u p a
, um fusca ofusca
a pior enchente
no feriado,
invade a pista
um helicóptero
em seu resgate,
pneus carecas,
i.p.i. zero,
monstros de plástico
(made in china).
está entrando
no ar a voz
do parado
quer dizer
aviso: vou me
atrasar.
48
PROJETO NOVO RECIFE
1.
em plano aberto, a cidade
se inventa como o próprio
homem que a projeta
ou, melhor, como todos
os homens se projetam
no fazer-se cidade
como invento comum
e aberto. tudo nela
aparenta vigor:
letreiros, ruas imensas
– como o rio que, de
fato, a atravessa –,
cafés, bondes elétricos
(naquela tarde, no mais
alto edifício
do centro, um poeta
perseguia com seu lápis
esse modelo).
2.
na sequência, a cidade
se revela como, agora,
o homem que a persegue
ou, ainda, como os outros
homens que existem
em sua fome espessa
como o avesso da fruta
sobre a mesa. tudo nela
arrebenta turvo:
guaiamuns, palafitas
– como as raízes aéreas
crescendo no mangue –,
a polícia, um hospício
(de longe, com sua régua,
o poeta analisava
esse cenário que, em nome
do progresso, a cidade
49
modelo ocultara).
3.
em plano aberto, a cidade,
investimento certo, se
inventa como o próprio
homem que a projeta.
ou, melhor, como todos
os homens que investiram
na cidade e seu futuro
exclusivo. tudo nela
se renova ímpar:
museus, shoppings
– como a pista asséptica
de qualquer aeroporto –,
food trucks, praça cívica
(um mais novo edifício
cresce e suas raízes
aéreas soterram, com
o mangue, este poema
e seu modelo).
50
FANTASMAGORIAS para Paulo Ferraz
1.
pensando um poema
, pelos corredores,
seu corpo já existe
enquanto – a vista
se turva entre vãos
e paredes
úmidas
(hoje museu
, ontem túmulo)
que nunca percorri
mas reconheço
em cada beco da cidade
onde se encena
outra e mais outra
e mais outra das
memórias
encarnadas
que não passam
(que não podem
mais passar)
– estes destroços,
que chamo por palavras,
me recordam que
toda História é remorso.
2.
formando um corpo
, pela própria ausência,
o poema não alcança
nada
– suas incessantes
lentes
não encontram
o Sol ou seu avesso,
nenhuma transparência
ou forma nominável
(escreverei, assim,
forjando uma
51
memória
que não existe
, mas assombra sempre
o agora,
uma nota qualquer
ainda válida?)
–, nem mesmo o silêncio
que indicasse, em si mes-
mo ou no
lapso que o ostenta estrelado,
o quanto
o presente é todo História.
52
GARATUJAS
1.
não há, nesse poema, nenhuma
garantia. a mão imita o fôlego
da voz, a voz gagueja –
passos na calçada. um homem
dorme (é noite) contra o muro
e mal o enxergo
aqui, entre meus versos
: desenho (admirado de si
mesmo), que é tudo quanto tenho. e
tudo é noite.
2.
um monstro que engolisse (esse
poema) toda abstração
de um outro ser. o homem,
ainda lá, – (luto) – dormindo
e eu, que escrevo
a cegas nessa máquina, mastigo letra a
letra (esse poema) em busca
de um nome, um nome apenas.
talvez, a palavra crack, a palavra totem, a palavra
gira, a palavra grão. talvez, a palavra água, a
palavra lavra, a palavra ar, a palavra ave
(“matéria de poesia”), a palavra casco, a palavra
parole, a palavra langue, a palavra pouco caso, o
palavrório, o palavrão. talvez, a palavra não dita,
a palavra só ritmo: entropia.
3.
escrevo (rasgo o véu)
e tudo é noite.
um monstro engole
a luz do poste em frente.
em breve, o Sol renasce
– estrelas morrem –
e o homem jaz opaco
entre todos
os seres
que existem
no que escrevo
: calçada irregular, alguma
árvore, restos de comida, um
53
par de botas
sujas, longas
caminhadas,
câmeras, garagens, muitos
muros, (o homem
ainda dorme), pessoas
apressadas, garrafas,
jornais, guimbas, folhas
secas, semáforos, motores,
mais
pessoas, algum
risco de pombas.
4.
luto contra o monstro
(esse poema) no espelho,
sangue entre
os dentes (nossa
língua), todas as
manhãs. nas frestas
dessa máquina observo,
tão só com minha voz
(seus cacoetes), passos
na calçada, mais
pessoas, um homem
dorme, opaco, e ninguém
nota o verso inútil
(dorme) que desenho.
5.
luto. como se esse verso
inútil, inscrito
no espelho, renascesse
e desse forma aos seres
que existem
– sistema
simples
em tudo
contrário à lógica
dos bancos, à polícia –,
um homem dorme, opaco,
e sua fome (a mão
imita, tímida,
a mudez da voz
ante o real)
é uma sombra
54
, um véu que esconde
o todo. pessoas apressadas,
entropia.
por trás de toda sombra
há um corpo
e é esse
corpo (cego) que procuro.
55
NO FUTURO
sem miséria –
o Sol se põe
(e a Terra dança enquanto
seus prováveis habitantes
aguardam,
olhares túrgidos, outras estrelas.
pensam em mim,
neste poema,
como uma incógnita
/ um fóssil vivo, um lixo inútil,
papel e tinta /
bastante óbvia: e
tudo isso é nossa época.
alguns, mais líricos,
têm presságios
e observam
atentamente
o transformar-se
da matéria amorfa /barro, metal,
fogo, etc/ em signos
de suas próprias obras,
todas ainda
por serem feitas) com
a elegância das cores quentes.
um grande entulho,
desenterrado
há poucas décadas,
possui grades, talvez
algemas, garrafas pet, motor
de carro, latões de leite,
um amuleto
(que a trapezista perdeu
dias antes do acidente
inexplicável)
, cacos de vidro, pedaços de
quartzo, louça chinesa, queima
de arquivos, muitas ossadas
: indistinguíveis sob a injusta pátina.
durante a noite, o silêncio
, que em mim jaz
do maligno,
compõe sua pequena
ode mineral
56
: se forma, assim,
um mar azul (imenso frio
/ com celacantos,
caravelas, desastres
aéreos, cidades submersas e outros
seres abissais / que, no mais fundo
de si, atravessa eras)
– e sem mistério.
57
FABULAÇÃO
algo renasce neste exato instante
, recompondo-se
de suas próprias formas
(uma esponja?
um fígado?
uma salamandra?)
, trazendo em si memórias de outras vidas
(espasmos de um longo pesadelo
que a cada noite /cobra/
estoura suas chagas).
seu nome (legião) não está posto.
entretanto,
em sua língua clara,
recita muitos versos
(de modo descontínuo),
desafinando o coro
comportado dos contentes.
tratores, cadeias, caças aéreos
invadem o seu corpo e desmantelam
seus sentidos,
suas sinapses,
seus pensamentos.
ainda zonza, a criatura
é capturada
(para o bem de todos)
e exposta em praça pública
como uma aberração que,
sendo vítima
de infinitas mortes, ainda respira.
sob a luz branca
(cegueira asséptica),
cientistas do mundo inteiro
recolhem fluídos, amostras de pele,
radiografias de tórax,
receitam remédios
para deter sua metástase, definem seu sexo,
propõem uma origem, um verbete, uma regra.
a tevê retransmite
imagens grotescas deste monstro
bêbado,
58
com as roupas puídas,
suor nos cabelos (e com olhos confusos
sob o gás de pimenta).
multidões pelas ruas
oram por sua alma, defendem
seus direitos,
temem sua existência (muito
maior do que a nossa), invocam
seu linchamento.
e o monstro permanece, no meio da turbulência,
ruminando sua sina, boi enorme
(paciência), pois sabe
que resiste
a todas as intempéries
que os homens de bem
armaram
para protegê-lo (tsunami encarnado)
de sua própria potência.
sabe, apesar de tudo,
por mais que lhe arranquem
a cabeça, que ela crescerá
novamente (monstro híbrido
de ternura e repto)
e manterá sempre firme
o incêndio instaurado
(vingança de bruxa) em seu peito sereno.
59
ÚLTIMO ANÚNCIO pensando em Manuel Bandeira
a vida, que não vivi,
apagou-me cada passo
tortuoso nas calçadas,
nas filas dos mercados,
nas pontes que não cruzei.
sobraram leves pegadas
no carpete de meu quarto:
que esse produto ignaro
seja bom, belo e barato.
da condição dos homens,
absortos em grandes planos,
não quis as negociatas,
jantares com cavalões.
dessa canalha retive
somente o mudo alarido
de feroz agitação:
que esse produto inato
seja belo, barato e bom.
que na hora derradeira
haja ritmo, haja intento
para as últimas palavras
anunciadas aos íntimos
que ainda me restarão.
depois, em pleno silêncio,
quedarei – só – sem anelo:
que esse produto lato
seja bom, barato e belo.
60
ORAÇÃO (SAGRADO CORAÇÃO DE TODO MUNDO)
aceita em seu corpo, se o dia findar,
a noite
em segredo: pelos em riste,
janelas abertas, um copo de gim,
longuíssimos beijos, risadas no quarto
andar entre amigos, sereno e garoa,
o caos das calçadas
– ir-re-gu-la-res –,
rumores do mar, um cigarro, easy
listening,
o vulto elegante de um gato,
sombras. mantenha
consigo
os álbuns de fotos, as fitas k7 (escute sua voz
em mil novecentos
e oitenta e seis), kikos marinhos
ainda no plástico (a vida prensada
a preços módicos),
palavras de amor, cartões de natal, diplomas,
medalhas – no fundo, cães latem –
depois os despreze. procure outros cantos
(terror, euforia) do mundo
em conflito: toda a indiferença, xepa
de feira, uma erva daninha
que enfrenta
a morte,
incêndios, desertos, causas perdidas
– o engodo de um verso sem estofo
(mas harmônico?), espelhos e ecos –
, um golpe de ar, cicuta, botinas,
comandos de caça, crimes prescritos.
encene, afinal,
com seus
pensamentos, a cada segundo, o papel
necessário (uma flor, um sapato, um homem
de barba, o verbo cuspir,
uma onça, um poema) e, sim, se aproxime,
se for aprazível
– acaso eu não mordo… –,
e seja, por nós, contra tudo de ruim,
como um coração
, seguro de si,
batendo, batendo.
61
NOTÍCIAS DE KOBANI para Carolina Serra Azul
a setenta quilômetros da praia / sob a luz das estrelas desta noite /
um brinde às musas / (poucas) que restaram / alguém medita
no sem-fim do tempo / um lampejo / de ideia
prum romance / os cem melhores contos brasileiros
// meus amigos / meus inimigos / vasculhem via google //
notícias de kobani
// os gregos dizem não / a seus credores / a nova tradução da odisseia /
o link que expira em cinco dias / mergulho no azul de um mar
profundo / fulgura só no céu a superLua / e todos os futuros
entrepostos / dez anos de ostracismo em noronha
// viagens ao espaço / milagre dos pães / me acordem quando houver //
notícias de kobani
// um mercenário reza três pais-nossos / o wikileaks expõe os documentos /
a nasa esconde que há vida em marte / ninguém se importa mais
com encantadores / de cobras / congresso / impede pesquisas / com
células-tronco / a dupont investe em novas descobertas
// no fim do jornalismo / alguém talvez se arrisque / e traga ao ocidente //
notícias de kobani
// uma mulher sonhou / a liberdade / um plano de equilíbrio / entre
os seres / (talvez sobreviventes / da hecatombe) / a lei mandou
cortar sua cabeça / antes que seu futuro acontecesse / e desse
algum sentido para a História / e alguma redenção aos desvalidos
// essa mulher encarna todo dia / contra todo o terror / do estado islâmico: //
adeus século vinte
(notícias de kobani)
// outra mulher (talvez / a trapezista) / invade o sonho de um poeta
/ ao longe / seu circo foi cercado / pelo exército / alguém denunciou /
um homem / -bomba / seu coração dispara / mas não pode / deter
o atentado / e ela morre / tentando / ultrapassar os seus / limites
// a dor que dói nos outros / a mesma dor de antes / a sinto ao ler esparsas //
notícias de kobani
// a indonésia tem / pena de morte / a somália tem / pena de morte /
o paquistão também / (pena de morte) / a china / o omã / a arábia
saudita / a nigéria / o egito / os estados unidos / da américa / (pena
de morte / em trinta e dois / estados) / a guatemala / o japão
// alguém ouve tiros / na sessão de cinema / quantos mortos apagados nas //
notícias de kobani
// que as cordas do poema arrebentem / – tão – podres nestes versos
mal urdidos / rompendo com o deslizar macio / da língua /
como monumento imóvel / e que tudo gire / de maneira instável / e
/ alegre / e / leve / e / louca / e as coisas sejam / muito mais / que as coisas
// e haja mesmo um lastro / (mensagem na garrafa) / entre nós e as //
notícias de kobani
62
LUTO para Carlos F. B. Martin
um dia o cultivo – secreto – de flores
/ do amor abstrato aos gestos concretos
(mãos imundas de terra, projetos, suores) /
romperá o asfalto de um modo insurrecto
e claro em seus livres mas caros valores,
luzindo com porte de coisas solares:
fraturas expostas na esteira dos séculos
avessas, em tudo, aos seres suaves.
pensando em matizes de cor tão vibrantes
, que nem poderia – que pena? – cantá-las,
resguardo-me apenas ao mero recolho
do exemplo, preciso, presente no ato
(a rose is a rose is a rose is a rose…)
de grande coragem que é ser generoso.
63
POEMA A DOIS
assim – ela dizia – o infinito é pouco
provável. tudo para nós, humanos,
precisa de estacas / o ponto em que a
água congela ou, ao contrário, eva-
pora, as alfândegas, as tarifas de em-
barque, as divisas do seu fichário, o iní-
cio de um novo milênio, as unhas sem-
pre aparadas, as gramáticas, onde o rio
deságua no mar, a distância de alfa cen-
tauro, a importância da primeira emen-
da, a scala naturæ, o cadastro bio-
métrico, os novos horários de atendi-
mento, matrículas abertas, o padrão mun-
dial de semáforos, a exegese de um
poema, quinze fósseis de homo nalebi
(um nome, talvez, provisório) / tudo
para nós, humanos, precisa de estacas
– ela dizia – e eu sonhava assim / como
quem queira / um enorme espaço vazio:
pontos luminosos espalhados com ele-
gância sob o fundo negro de uma tela
plana. todos os eventos, banais ou epi-
fânicos, ocorrendo nesses pontos numa
escala impossível de tamanho (o tempo:
as coisas pareciam, a meus olhos, uma
sequência sucessiva e permanente de
fatos como num vídeo sem controle
remoto. mas – ela dizia no sonho – al-
go escapa do script). então sua voz, extra-
polando os limites da cena, de repente,
nos transporta para o centro da cidade
e me perco, entrementes, no meio do
raciocínio, procurando a mesma centelha
que une todos aqueles que, como nós dois,
ocuparam a avenida
, estancando este momento.
64
UM MOVIMENTO
político no ato da
fala (legítimo não pela lei
de verniz da
impostura mas pelo
gesto de quem o aciona
na dança) um movimento
que rompa as amarras
que interrompa
a matéria predisposta
aos horários
dos escritórios e dos
centros de compras
um movimento político
cujo eixo seja o
teatro
(não como máscara mas)
como potência
de beleza de todas
as coisas se trans-
formando por meio de
seu próprio movimento
político
sim
num momento
tremendo (a Terra girando
no espaço) que sendo
em si um evento
se espalhe em mais mil
movimentos
contra a rígida estrutura
da ordem do agora
65
TRÊS MOMENTOS NA NOITE
1.
parado no ar
desta madrugada
o som metálico das panelas
já não soa. tudo amanhã
será notícias para jornais,
conversa no café, motivo de
piada.
as pessoas estarão
satisfeitas, com um ódio
que anima para a vida (essa
lacuna entre uma morte
e outra) dos números,
das letras, dos processos.
tudo amanhã
soará de novo:
apitos, sirenes,
toques, buzinas,
um bocejo em meio a tudo
(amanhã será notícia o que
não houve. na tevê,
que confirma o uníssono,
consome-se outra farsa),
tiros
ainda na memória
de alguma viela da cidade.
2.
num planalto qualquer
, há trinta mil anos,
neandertais vislumbram
estrelas. o que sustenta
tanto brilho, parado
no ar,
durante horas? – em que
grunhido
indecifrável indagam?
fazem poemas? gravuras
em troncos ou pedras?
sonham com a morte?
(amanhã partirão
para outras
paragens
em busca de alimento)
66
em breve, nenhum deles
existirá sobre a Terra.
as estrelas continuam
pulsando enquanto
(em cismar – sozinho –
à noite)
escrevo.
3.
parada no ar
, a estrela d'alva
permanece
até que a aurora
interrompa sua existência
visível (para nós)
na Terra
mas uma astronauta
, também
trapezista,
em sua vigília
na grande nave
rumo ao centro
da via-láctea se estica
plena
na gravidade zero e
(o cosmo) observa.
solitária,
sonha com a vida
pequena
em esparsos planetas
ou ainda, parada
no ar,
desta madrugada,
com a voz
de alguém que ecoa
(tiros) na memória.
sente-se suspensa (
os demais tripulantes
agora descansam),
em meio ao assombro
da guerra
que consome
enfim
o pouco que nos resta
e, por um segundo,
67
(ignora as câmeras
e as ordens de comando)
apenas dança
como quem inventa
uma nova chance
para tudo o que ama
: eis meu poema.
68
O INEXPLICÁVEL ACIDENTE
1.
“não é hora de apontar culpados”:
a água podre, dragão (sabemos),
encobre tudo com suas máscaras
e torna turva – adeus, rio doce –
e indistinta toda a paisagem:
o que era casa? o que era gente?
o que era rua? o que era flor?
o que era arma? o que era pedra?
o que era bicho? o que era vale?
nada escapa de seu manto ocre
– líquido, tóxico –
que trouxe o progresso,
que gerou riqueza,
que rompeu barragens.
2.
um gato
na penumbra
se equilibra
entre as lanças
dos muros
da rua
mas não se
enxerga
seu balé elegante.
um cachorro late ao longe,
outros cachorros respondem.
um sabiá
-laranjeira
na madrugada (estrangeiro)
reencontra seu canto
a despeito
das estrelas.
ratos transitam entre sacos plásticos.
o poema é também natureza?
3.
qual é a política da chuva?
aroma forte das manhãs
69
nubladas – ela acorda mais
cedo e observa, pela janela,
o céu cinza
que reflete o asfalto.
4.
“escrever é arriscar
tigres”, isso li
num livro
e afio agora
os meus próprios dardos.
talvez este poema
não
ultrapasse
o rascunho de hoje,
uma página
de luto,
um leitor distraído.
mas ele existe. mínimo,
imperfeito, datado.
as palavras, como as pedras,
se desgastam – sobretudo
os nomes próprios (pedras-
pomes). em trinta anos
o que será dizer SAMARCO?
o poema é ontem, sempre,
incrustado em alguém
que passa.
de repente,
porém, ei-lo aqui
numa manhã que explode.
5.
o poema está ali, aéreo
(e sobrevoa a catástrofe)
– em seus espelhos
o mar de lama se reflete.
embora sangre, é outro o sangue
que escorre (sujo)
de suas guelras.
sua doença é só figura.
70
os peixes mortos
estão lá fora. em mariana,
em valadares, em santana do
paraíso – o mundo sempre
(também sabemos)
trai a linguagem
numa emboscada.
o poema flutua, sem pé
nem sombra, tijolo ou
pétalas, por toda a área
devastada
mas sua mancha
transparente
(assim esboço
/ repórter esso)
é “testemunha ocular da História”.
71
RECONSIDERAÇÃO
nunca fiz o poema que
queria/ corte firme
de cutelo/ no dedo da ferida/
cujo pus seria
então/ a véspera
da cicatriz// repito
eu nunca fiz/ poema
algum/
preciso// diamante//
como um pedaço
de grafite/ que por
um mísero
instante/ fosse
atravessado/ por
um flash/ de laser//
no meio do caminho/ de outra vida/
recolho os caquinhos/ pra encarar
a História/ com/ as minhas retinas
prenhes de agora/ aguardo um
momento/ de luz total// e muito
embora/ eu
debilmente/ me debata/
contra a gravidade/
inata nesta dança/ desastrosa/
desde a beira do abismo
// te atravessa/ meu poema/ a banalização
do mal
72
ÀS ENTIDADES para Eduardo Lacerda
elas, sozinhas, não
fazem
nada, mas nada,
sozinho
, faço sem elas:
acendo um cigarro,
abro as ja-
nelas,
preparo um café
– a úlcera
ataca –, almoço
na esquina, rabis-
co um poema,
atento aos ritmos
– talheres no
prato, canais de tevê,
um copo com gelo,
os músculos
ardem, garçons
e clientes, eu
mesmo
no espelho, tornei-
ras pingando,
calçadas, sirenes,
a tarde que acaba
enquanto me atraso,
transpiro,
atravesso
(respeito silêncios)
e perco amigos
como
quem perde dentes.
mas elas retornam
– matéria sem nome –
durante a noite
e sonho uma forma
que cure, a facadas,
a má letargia
das coisas doentes
(no fundo,
o que quero é
vê-las
brilhando
na lâmina – imagem
de impossíveis
73
fadas além da
ferrugem, da dor
ou do tédio – como
se um brinde fosse
possível)
numa oferenda.
74
O QUE SERÁ
como uma planta que se preserva
conforme o vento,
seu coração, fluindo acesso,
que nunca estanca
será capaz de declamar
aquele verso.
como uma pedra que se mantém
após a bomba,
sua cidade, terra arrasada,
em fragmentos
será ainda uma ruína
talvez humana.
como um deserto que não existe
fora dos livros,
seu caminhar, tão cru e torto,
por essas ruas
será também mais uma vez
um Sol por dentro.
como um alguém que esteve aí
por quase nada,
sua canção, sincera voz
fora de esquadro,
será a mais bela canção
neste momento.
como um espelho opaco e só
na sala escura,
o seu suor, soando assim
seu ser completo,
será não mais que água e sal,
língua confusa.
como uma concha longe do mar
que nunca seca,
a sua gente, crescendo sã
pela avenida,
será então a pulsação
de um novo século.
75
EPIGRAMA
1.
o Sol às quatro, a luz
(cristal) se quebra
– as cores todas
que nunca vemos –
nas tardes de verão,
profundamente,
e sobrevive
neste fragmento
2.
meus olhos (desde a
infância) se refletem
nas poças d'água
e nos azulejos,
luzindo em cores
que não sei o nome
– e é por isso
que eu ainda escrevo –
76
MÍNIMA CANTADA
com tanto amor
(assim mormente)
meu bem prescinde
de qualquer canto
77
SIGNO LUA para Carolina Serra Azul
tentaremos, novamente,
arrematar a noite
em sua plasticidade
única (no que tange
ao gozo
e à remissão
ao gozo) pela luz que
emana, tão carnal, da Lua
– entendida, em nós, como
coisa em si
não reduzida
ao satélite (
muito menos à imagem)
que é, em suma,
e que, de ponta a ponta,
nos orbita
mas a Lua,
seu ser concreto, enquanto
signo (e tudo
que concentra e estrutura
) de nosso amor aberto
– em absoluto
78
VIDA
estalos na cozinha (noite quente de janeiro)
os móveis de madeira
revelam (a meus ouvidos
o som de) sua latência
de coisa ainda viva,
paredes brancas suam
(calor de nossa
cama). o ar repousa úmido
(folículos, poeira).
nos restos de comida
(da louça do jantar)
borbulham bactérias
e outras formas breves.
na água das torneiras,
nas manchas das vidraças
– em tudo explode
(indômita)
a vida
em outra escala (que não
vivenciamos
sem nossas teorias).
(e mesmo em nossos
corpos) em cada vão
de unha, papilas
gustativas, em todos os fluidos, na flora
intestinal, no oco
do umbigo, nos pés, nas axilas,
na vastidão do sexo
ou no rasgo mínimo
da tez (que nos reveste)
a vida desabrocha
outra e sempre a mesma.
(assim, em nosso encontro,
no fundo de um no outro
pelas tantas transbordamos
e nosso amor se expande)
estalos na cozinha (na forma
de outro corpo,
brotando de seu corpo), vida.
79
ORA (DIREIS)
quantos anos, em média, dura
uma estrela?, indagou-me. a resposta,
que parece óbvia, depende
do observador – por exemplo, pensei eu,
em estado de vigília, ontem
ele me disse que o amor
é um conceito por demais abstrato
conquanto contássemos juntos
todas as horas até o fim – para um vírus,
talvez, dure toda uma vida. para nós,
nem mesmo isso (ínfimos
que somos). ele era ínfimo mesmo
e suas ideias pareciam-me
tiradas de um documentário qualquer
da tevê a cabo. e para um deus,
quanto duraria?
pensei, naquela noite,
em responder com outra questão:
o que faríamos se tivéssemos acesso a elas
(as estrelas)?,
mas sabia intimamente que sua energia
pouco seria usada num poema
– “ora (direis) ouvir” etc.
talvez criássemos bombas,
usinas extraterrenas ou objetos
de pura luz (adeus,
fecalidade), ele me disse e era ínfimo
como eu mesmo sou ínfimo, emaranhado
entre meus átomos
e tantas outras – ora (direis) –
insaturáveis formas, sem enigma.
o que faríamos se tivéssemos acesso a eles
(os poemas)?
80
MESMO POEMAS
1.
faltou-me algum excesso
um corte brusco um jorro não
essa fatia mesquinha
de bom
senso
tudo o que sangra e que é finito
o que (se) acaba se consome
o que se configura (traça
perfurando um antigo
volume de poesia
) em existência
parca mas
sincera
foi só por um segundo e a jovem trapezista
se contorceu inteira
tudo se revela turvo escorre
(feito um cão sem plumas)
de vida sempre densa nunca
a mesma água algo assim eu
disse eu sou pela fartura sem
con-ten-ta-men-to
2.
zelo pelo avesso
(escrevo escrevo escrevo)
atrás de alguma origem
mas a miragem muda
a ordem na estante
a moto cruza a rua
intensa no futuro
não haverá mais
dúvidas e ela então pensou
olhando para a câmera a matéria
de um poema (e todos são o mesmo?)
não é decerto fácil porém mas entretanto
o óbvio do verso
em sua plenitude estende a luz aos cantos
talvez mais obscuros e desde esse instante
81
todos podem lê-los
como uma manhã eu disse
ou um hematoma
: uma forma que extrapola
82
DOIS (UM MESMO) RETRATOS (deformado de “Diante de uma fotografia de Auden”, de Donizete Galvão em Azul navalha)
1.
as fotos não têm relevo
embora o poeta
saiba
revelá-lo
com suas precisas
navalhas
nos sulcos
que desenham
um rosto (ácido
corroendo
o bronze)
marcado, entre o gim
e o desengano, de outro
poeta (Auden)
como uma sombra
que existe
, bela e inútil,
a partir de agora
2.
as fotos não têm relevo
embora me espante,
sob uma
capa azul,
encontrá-lo outra
vez (Doni)
nessa tarde
parada em
seu olhar (grave
ruminando
o mundo)
e em sua mão, entre firme
e delicada, os quais moldam
outro azul
como um clarão
que já existe
83
, corpo sutilíssimo,
desde muito antes
84
ESBOÇO DE FIGURA
quando seu sangue
tornar-se carvão
sob os /então/ seus
próprios destroços
e seus descendentes se dispersarem
(cientes agora
/maldição na família/
dos vis privilégios que em vida
gozara)
sob pseudônimos, lençóis, perucas,
batismos, máscaras, documentos falsos,
a pátina nos móveis da casa demolida,
ciúme, doenças, pesadelos, suores,
sonegação, plásticas, arapucas, suicídio
e mil novas formas de metamorfose,
vendendo sua imagem
/domesticada/
em sites de notícias
ou documentários,
e nem seus discípulos se constrangerem
em negociar sua
/persona non grata/
alma ou memória
(limite ou legado)
sob saudáveis porções diárias
e toda sua luta for julgada espúria
e todo seu amor for julgado falso
e seus inimigos, mantendo
o equilíbrio, despolitizarem
cada palavra
/em precisas análises/
sob a beleza de sua obra
encravada
restará algum eco
/sua chaga/
/sua glória/
do
NÃO
que escrevera sob sua própria lápide.
85
MORRE FERREIRA GULLAR
1.
ontem fizemos as pazes:
eu e seu retrato (descanso
de tela),
eu e sua camisa (papel
de parede), eu
e sua ausência (pijamas, relógios).
nenhum marulho ou voz alta
rompeu a placidez de domingo
– na paulista, dizem,
a multidão
aderia à festa da
democracia.
você, por acaso, não.
sem caos nos cabelos,
sem entusiasmo,
sua morte surgiu
como um fato qualquer nos jornais:
morre o poeta
ferreira gullar, morre josé
ribamar ferreira,
morre goulart,
morre o autor do poema
enterrado,
morre o ditador
fidel castro
(“dentro da noite veloz”), morre
o debate sobre oswald
de andrade,
morre,
morre oswald de andrade,
morre o colunista
da folha de são paulo,
morre o jornal
do brasil,
morre a manhã,
morre a tarde,
morre a primavera
de 2016, morre t. s. eliot,
morre a terra, devastada,
86
morre (um último suspiro),
morre (tiro de fuzil),
morre (o Sol, a flor do chico),
morremorre,
morre outro cisco do século vinte,
morre um crítico de arte
como morre qualquer um
a qualquer hora.
2.
ontem fizemos as pazes:
sua múmia e eu-embalsamado.
sua obra, porém, mantém-se
arisca
(circulação
do poema
sem poeta: forma autônoma
de toda circunstância)
e me enfrenta
e me derruba
com seus coices, seus incêndios, suas aftas
: uma pera apodrecendo na varanda.
no coração do diagrama,
diagrama de palavras,
– galo, fogo, gente, luta –,
ainda há sangue, zumbidos na noite,
alguém que diz não, golpes de estado,
muito vermelho, muito azul, muito verde
e no
fundo
turvo
do
torve-
linho
velhos signos que borbulham
– sede, mar, erva, lembro –.