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Coleção Religião e Cultura • As leis da natureza: conhecimento humano e a ação divina - William R. Stoeger • As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião - Jose Severino Croatto • Caminhos da mística - Faustino Teixeira (org.) • Experiência religiosa e crítica social no cristianismo primitivo - Paulo Augusto cie Souza Nogueira • Igreja Universal do Reino de Deus: os novos conquistadores da fé - Ari Pedro Oro, André Corten e lean-Pierre Dozon • Introdução ao estudo comparado das religiões - Aldo Natale Terrin • Nas teias da delicadeza: itinerários místicos - Faustino Teixeira (org.) • No limiar do mistério: mística e religião - Fantino Teixeira O Islã e a política - Peter Antes FAUSTINO TEIXEIRA (ORGANIZADOR) CAMINHOS DA MÍSTICA

Crítica e mística: poesia moderna e instantaneidade

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Coleção Religião e Cultura

• As leis da natureza: conhecimento humano e a ação divina - William R. Stoeger

• As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião -Jose Severino Croatto

• Caminhos da mística - Faustino Teixeira (org.)

• Experiência religiosa e crítica social no cristianismo primitivo -Paulo Augusto cie Souza Nogueira

• Igreja Universal do Reino de Deus: os novos conquistadores da fé -Ari Pedro Oro, André Corten e lean-Pierre Dozon

• Introdução ao estudo comparado das religiões - Aldo Natale Terrin

• Nas teias da delicadeza: itinerários místicos - Faustino Teixeira (org.)

• No limiar do mistério: mística e religião - Fantino Teixeira

• O Islã e a política - Peter Antes

F A U S T I N O T E I X E I R A

( O R G A N I Z A D O R )

CAMINHOS DA MÍSTICA

Dados Internacionais de Cata logação na Publ icação (C IP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP. Brasil)

Caminhos da mistica / Kausl.no Teixeira (organizador). Sito Paulo : Paulinas, 2012. - (Religião c cultura)

Vários autores. Bibliografia. I S B N 9 7 8 - 8 5 - 3 5 6 - 3 0 7 4 - 9

1. Mistério 2. Misticismo - Estudos comparados 3. Religiões

I. Teixeira. Faustino. Π. Sèrie.

.2-0210. C D D - 2 9 M 2 2

índices para catálogo sistemático:

1. Mistica : Religião comparada 291.422 2. Mistica comparada : Religião 291.422

Di reção -ge ra l : Bernadete Hoff Edi to res r e sponsá v e i s : Luzia M. de Oliveira Sena e

Afonso Maña Ugo rio Soares C o p i d e s q u e : Cirano Dias Pelm

C o o r d e n a ç ã o de r ev i são : Marina Mendonça Rev i são : Ruth Mitzuie Kluska

Ass i s t en te de a r te : Ana Karina Roíirtgues Caetano G e r e n t e de p r o d u ç ã o : Felício Calegaro Xeto

Pro je to g rá f i co : Manuel Rebelato Miramontes

1· e d i ç ã o - 2 0 1 2

Senhuma parte desta obra poderá ser repnxJuzida ou transmitida por qualquer forma e.'ou quaisquer meios (eletrônico ou metànico, incluindo fototipia e gravação) ou arquivada cm qualquer sistema ou banco de dadas sem permissão escrita da Eihtora Direitos reservados

Paulinas Rua Dona Inácia Uchoa. 62

04110-020 São Paulo SP (Brasil) Tel.: (11) 2125-3500

http://www.paulinas.org.br - editora(</paulinas.com.br Telemarketing e SAC: 0800-7010081

Pia Sociedade I ilhas de São Paulo São Paulo, 2012

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO Faustino Teixeira 7

PREFACIO Marco Lucchesi 13

NO SUBSOLO Luiz Felipe Pondé 15

MÍSTICA EM PLOTINO Marcus Reis Pinheiro 19

UNIO MYSTICA: O QUE VEM DEPOIS? O VALE DA PERPLEXIDADE EM A LINGUAGEM DOS PÁSSAROS, DE AITAR Carlos Frederico Barboza de Souza 37

MINNE: O AMAGO VISCERAL DE DEUS EM MECHTHILD VON MAGDEBURG Maria José Caldeira do Amaral 51

MARGUERITE PO RETE, MÍSTICA E TEÓLOGA D O SÉCULO XIII Ceci Baptista Mariani 75

O EXTERIOR MAIS INTERIOR QUE O MAIS ÍNTIMO: ECKHART E A BXCELÊNCIA DE MARTA Adriana Andrade de Souza 113

SIMONE WEIL: UMA MÍSTICA PARA O SÉCULO XXI Maria Clara Lucchetti Bingemer 135

TEILHARD DE CHARDIN E A DIAFANIA DE DEUS NO UNIVERSO Faustino Teixeira 165

A MISTICA JUDAICA REFLETIDA NA OBRA DE HESCHEL

Alexandre Leone

DIANTE DA REALIDADE CRUA DAS COISAS: THOMAS MERTON E O "TRABALHO DE CELA" Sibélius Cefas Pereira

A PORTADORA DE CRISTO NOS CAMPOS DO III REICH

Mariana ¡anelli

MÍSTICA, HERESIA E METAFISICA José Carlos Michelazzo

CRÍTICA E MÍSTICA: POESIA MODERNA E INSTAN TANEIDADE Eduardo Guerreiro Β. Losso

APRESENTAÇÃO

O s diversos s e m i n á r i o s de mís t ica c o m p a r a d a rea l izados na c idade de Juiz de Fora, no S e m i n á r i o reden tor i s t a da Floresta , vão-se f i r m a n d o c o m o u m cana l pr iv i leg iado de re f lexão e d ivu l -gação das pesquisas sobre mís t ica rea l izadas n o Brasil. O pri-me i ro even to acon teceu em se t embro de 2001, na ocas ião m e s m a d o t rág ico ep i sód io das Torres Gémeas . Foi o início de u m a feliz iniciativa que já b r i n d o u nove edições . Tra ta -se de u m espaço s ingu la r que vem r e u n i n d o pesqu i sadores de Juiz de Fora, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Hor i zon t e e o u t r a s c idades mine i r a s . As pesquisas são s u r p r e e n d e n t e s e inovadoras , t r a z e n d o focos or ig ina is de a b o r d a g e m e a p o n t a n d o pis tas inus i t adas pa r a a ref lexão sobre a mís t ica . O u t r o t r aço s ingu la r é a c o m p o s i ç ã o d o g rupo . São pesqu i sadores que c o b r e m u m c a m p o prof i ss ional divers i f icado: f i losofia , teologia, h is tór ia , letras e ps icanál ise . O s s e m i n á r i o s ref le tem i g u a l m e n t e o c r e sc imen to das l i n h a s e p ro-jetos de pesquisa sobre o t ema em d e t e r m i n a d o s p r o g r a m a s de pós -g r aduação e m c u r s o no Brasil, c o m o na Unive r s idade Fede-ral de Juiz de Fora (Ciência da Religião), Pont i f íc ia Unive r s idade Católica de São Paulo (Ciências da Religião), Unive r s idade Fede-ral F l u m i n e n s e (Filosofia) e Pont i f íc ia Univers idade Catól ica d o Rio de Janeiro (Teologia). O s f ru tos das pesquisas nesse c a m p o c o m e ç a m a surg i r de f o r m a inovadora nas d i s se r t ações de mes -t rado e teses de dou to rado , c o m o dev ido r e c o n h e c i m e n t o n o âmbi to acadêmico .

CRÌTICA E MISTICA: POESIA MODERNA E INSTANTANEIDADE

E D U A R D O G U E R R E I R O Β. LOSSO*

Na g r a n d e maior ia dos ar t igos e livros de diversas áreas h u m a n a s que leio, escritos por pensadores cujo objeto de es tudo não é a mística, mas que u s a m o t e r m o f requen temente , na maio-ria das vezes o adjetivo, m a s t a m b é m o substant ivo (ambos com signif icado equivalente), observo u m a constante : eles en t endem o substant ivo e o adjet ivo c o m o mani fes t ação de u m f e n ò m e n o Pré -Moderno , pr imi t ivo. Se não pré-civil izado, ao menos ilusó-rio, fan tasmát ico . Q u a n d o se referem à religião cristã, ma rcada pela racional idade teológica, en t endem sua míst ica ou c o m o u m resíduo mítico, ou c o m o signo de que m e s m o o f u n d a m e n t o metafísico da teologia recai na ilusão, na crença de u m a t rans -cendência não mais aceitável pela Mode rn idade laica. Isso signi-fica que, nos casos mais ex t remos , a mís t ica é reduzida ao mi to e a teologia é reduzida à míst ica. Tudo passa a fazer pa r te de u m m e s m o saco de velharias religiosas. Movidos pela urgência

Professor adjunto de Teoria da l iteratura da UFRural-RJ, estuda a mística secularizada na literatura moderna . Organizou o livro Diferencia minoritaria en Latinoamérica (Zürich: Georg Olms, 2008). Fez parte da organização do colóquio franco-alemão "Nostalgie et le rêve européen ' em Paris, em 2006.

2 8 2 C R Í T I C A E M Í S T I C A

da repulsa crítica a qualquer indício de religião, toda religião

parece ser mística e toda mística, mito.

Contudo, quando me encontro 110 meio de estudiosos de reli-gião, há sempre clareza em problematizar o enra izamento dos místicos num escrito sagrado e ao mesmo t empo observar os conflitos entre místicos e ortodoxos.1 O místico seja visto c o m o parte da mesma cultura e doutr ina canònica, seja visto c o m o herético é em geral tratado como um m o d o de pensar d is t in to de teologías oficiais, de filosofias de f u n d a m e n t a ç ã o lógica :

e participante da literatura mais avançada de sua época, que encontra papel ativo na aurora das l i teraturas nacionais,· bem como ligado simultaneamente ao alvorecer da subjet ividade moderna,4 devido aos seus relatos pessoais, ' e de sua desagre-gação e dispersão, devido à experiência de a r reba tamento e seus correspondentes textos paradoxais.

CERTEAU, Michel de. La fable mystique. Paris: Gallimard, 1982. Sobre a origem social dos místicos ocidentais, p. 36-44; sobre a heresia, p. 30. Já no século XIII iniciou-se a separação entre mística e instituição (p. 115), para em seguida trabalhar para seu retorno no seio da Igreja e da tradição (p. 117). ELLIOTT, Dyan. Proving Woman; Female Spirituality and Inquisitio-nal Culture in the Later Middle Ages. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 2004. Sobre a diferenciação prática e discursiva entre sant idade e heresia, ver p. 119-179.

OTTO, Rudolf. Mystique d'Orient et mystique d'Occident. Distinction et uni-té. Paris: Payot, 1996. Ver a tentativa de Otto de estabelecer uma "Lógica mística'', feita de paradoxos, em oposição à "Lógica natural" (p. 56), carac-terizada precisamente pela "exclusão de axiomas lógicos" (p. 64).

AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. São Paulo: Cultrix, 1972. p. 181. CERTEAU, La fable mystique, p. 103-104.

CUR l'EAU, La fable mystique. Sobre distinção de textos místicos na ent rada da Modernidade, p. 28. Mesmo Boileau já reconhecia os místicos como modernos (CERTEAU, La fable mystique, p. 152).

É o que Certeau chama de "privatização" do discurso (CERTEAU, La fable mystique, p. 119).

E D U A R D O G U E R R E I R O Β. Losso 2 8 3

Sem pre tender expor u m a his tór ia r igorosa do r educ ion i smo do te rmo, parece que o emprego feito no clássico capí tulo sobre o fetiche da mercador ia no Livro P r ime i ro do Capital de Karl Marx é decisivo nesse sentido.

O caráter místico da mercadoria não provém, portanto, de seu valor de uso. Ele não provém, tampouco, do conteúdo das determinações de valor.6 Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. For isso, para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião.7 O reflexo religioso do mundo real somente pode desaparecer quando as circunstân-cias cotidianas, da vida prática, representarem para os homens relações transparentes e racionais entre si e com a natureza. A figura do processo social da vida, isto é, do processo da produ-ção material, apenas se desprenderá do seu místico véu nebu-loso quando, como produto de homens livremente socializa-dos, ela ficar sob seu controle consciente e planejado.8

Segundo Marx , a abs t ração do valor de uso e a adoção do valor de t roca para avaliar o t raba lho p roduz ido cr is tal izado no preço da mercador ia p roduzem u m efeito fan tasmát ico de que as mercador ias existem por si só, pela sua simples diferença de preço e a sua consequente valorização art if icial . O fetiche, mais evidente nos p rodu tos mais cobiçados, passa a impregnar toda a es t ru tu ra mercadológica baseada no valor de troca e obriga o fi lósofo a observar u m a analogia com "a região nebulosa do

MARX, Karl. O capital. Crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultu-ral, 1996. v. 1, livro primeiro: "O processo de produção do capital", t. l , p . 197.

Ibid., p. 198.

Ibid., p. 205.

2 8 4 C R Ì T I C A E M Ì S T I C A

mundo da religião" O valor mais objetivo das coisas mais obje-tivas possíveis, na economia capitalista, está enfei t içado pelo fantasma da religião, aqui caracterizada como mist i f icação irra-cional. Para sair desse feitiço (a raiz da palavra "fetiche" está na palavra portuguesa "feitiço"), é necessário o t raba lho de desmis-tificação de u m material ismo dialético racional, que explicará a fonte da ilusão fetichista nas relações de produção sociais.

A tese é valiosa e está na base do que ha de melhor na crí-tica social do marxismo ocidental do século XX. Ela mostra o quanto o senso comum cotidiano e o sistema capitalista laico são subterraneamente dependentes de estruturas religiosas sem nem desconfiar delas. A riqueza dessa tese é inesgotável até hoje e f u n -damentou esforços de compreender o quanto instituições e estru-turas modernas carregam a marca de estruturas rituais e míticas.

Contudo, observa-se que os termos mistério, mística, fetiche, fantasma e religião são totalmente equivalentes, todos parecem referir-se a um mesmo patamar fenomenològico. Ora , sabemos que a chamada mística do xamanismo não tem nada a ver com a mística especulativa cristã, ou a cabala judaica, ou o suf i smo árabe. Uma mística de base mítica não tem absolutamente nada em comum nem com a tradição judaica profética da proibi-ção das imagens (Bildverbot) nem com a teologia negativa da tradição de Plotino e Dionísio Areopagita, que negam não só imagens, mas também qualquer atributo divino, isto é, contri-buíram precisamente para a negação mais radical do culto às imagens. Nos estudos de religião levados a cabo m e s m o pela ori-gem da sociologia em Durkheim e Max Weber, há um esforço de diferenciação qualitativa das religiões em diferentes civilizações e estágios histórico-culturais. Com a antropologia, o quest io-namento dessas categorias é ainda mais avançado. Uma ànsia marxiana de contrapor-se à teologia de certo modo fez com que

EDUARDO GUERREIRO Β. LOSSO 2 8 5

a sua crítica à religião reduzisse a complex idade do própr io fenô-m e n o religioso1' e, em certos aspectos, reduziu mais do que a própr ia teologia de sua época.

Hoje os marxistas que es tudam religião ou estruturas religio-sas na Modernidade usam tais categorias de Marx com a cons-ciência desses avanços e te rminam por abstrair o equívoco dessa equivalência terminologica redutora ao usá-los para a crítica de fenômenos regressivos da sociedade industrial, como é o caso da indústria cultural. Contudo, outros reproduzem o equívoco inicial marx iano bem depois das conquistas dos estudos históricos, socio-lógicos e antropológicos. Convido um estudioso de religião atento a constatar como é fácil observar a diferença entre um e outro.

Para isso, ve jamos mais u m exemplo, t a m b é m e x t r e m a m e n t e inf luente , de u m dos clássicos dos es tudos de teoria da l i teratura, o livro de Mikha i l Bakht in sobre o escritor François Rabelais, que lhe pe rmi te aborda r aspectos decisivos da cu l tura popu la r da Idade Média e do Renasc imento que se colocam f ron t a lmen te contra a repressão religiosa.

O homem medieval sentia no riso, com uma acuidade par-ticular, a vitória sobre o medo, não somente como uma vitória sobre o terror místico ("terror divino") e o medo que inspira-vam as forças da natureza, mas antes de tudo como uma vitória sobre o medo moral que acorrentava, oprimia e obscurecia a

BENNETT, lane. C o m m o d i t y Fetishism and C o m m o d i t y Enchan tmen t . Theory ά Event, Volume 5, Issue 1, p. 8-10, 2001. A crítica da autora de uma compreensão preconceituosa do an imismo em Marx é interessante, bem c o m o o ques t ionamento dos pressupostos da desmistificação, mas a af i rmação de um "encanto mode rno" da mercador ia contra a teoria crítica é suspeita, compreendendo mal a necessidade da crítica da indúst r ia cultural hoje. De qualquer modo, seu a rgumento ignora a validade da mística para experiências de encantamento .

286 CRÍTICA E MISTICA

consciência do homem, o medo de tudo que era sagrado e inter-dito ("tabu" e "maná"), o medo do poder divino e humano, dos mandamentos e proibições autoritárias, da morte e dos castigos de além-túmulo, do inferno, de tudo que era mais temível que a terra. Ao derrotar esse medo, o riso esclarecia a consciência do homem, revelava-lhe um novo mundo. Na verdade, essa vitória efêmera só durava o período da festa e era logo seguida por dias ordinários de medo e de opressão; mas graças aos clarões que a consciência humana assim entrevia, ela podia formar para si uma verdade diferente, não oficial, sobre o mundo e o homem, que preparava a nova autoconsciência do Renascimento.10

Esse exemplo ret irado do livro, s o m a d o a a lguns ou t ro s rela-tivos à mística, a f i rma o poder esclarecedor do riso, a a t iv idade consciente e empreendedora do h o m e m (valores bu rgueses d o Renascimento) e a profanação cômica e grotesca, p rópr ia da literatura, que regem a carnaval ização de Rabelais. Bakh t in contrapõe essas qualidades emanc ipadoras ao 1 m u n d o velho e agonizante"11 da religião medieval (as quais ele liga, a meu ver erradamente, a noções da antropologia c o m o " tabu" e "maná" , de Marcel Mauss et alii), cujas característ icas negativas associa-das à mística são: o medo moral do sagrado e do interdi to, a fan-tasmagoria das visões "místicas" e a s imbologia dos n ú m e r o s , baseada numa operação de mist if icação ilusória.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento; o contexto de François Rabelais. São Paulo: Huciteç, 1987. p. 78. Ver ou-tros exemplos em que o personagem Panurge é acossado por "fantasmas místicos na p. 150; a consciência da "força puramente humana , material e corporal" vence os terrores místicos", p. 259; e a profanação satírica dos números contra a a utilização simbólica, metafísica e mística dos núme-ros", p. 408-409.

BAKHTIN, A cultura popular na Idade Média e no Renascimentop. 259.

E D U A R D O G U E R R E I R O Β losso 2 8 7

Percebe-se que em M a r x e e m Bakht in há p r o c e d i m e n t o s

c o m u n s : o uso i n d i s c r i m i n a d o d o ad je t ivo "mís t ica" pa ra desig-

na r c rendices popu la re s que i ludem as pessoas, imposs ib i l i t am o

exercício da r azão emanc ipa tó r i a e r e p r i m e m desejos que satis-

fazem o h o m e m . Em Bakht in , o riso, a festa do carnava l med ie -

val e a sua decor ren te p r o f a n a ç ã o l i terária p r o d u z e m desmis t i -

f icações ef icazes da c rença e do i m a g i n á r i o "místico". "Mís t ica"

s empre se refere, p o r t a n t o , ao p l ano mí t i co - fan ta smagór i co ,

p r o d u z i n d o crendice , supers t ição e a luc inações .

Eu poder ia ci tar vár ios ou t ro s teór icos d o século XX m u i t o in f luen te s que caem e x a t a m e n t e n o m e s m o prob lema, m a s esses dois casos são exemplares e r ep re sen tam b e m a tendência geral. N ã o é o caso, aqui , de ana l i sa r os teóricos i m p o r t a n t e s da mís t ica e f u n d a m e n t a r u m uso ma i s adequado , o que já fiz na m i n h a tese.12 O que nos interessa é a p o n t a r que os crí t icos da religião o p e r a r a m o que é c o m u m e n t e c h a m a d o de u m a desmis -t i f icação não só da religião, m a s t a m b é m das fo rmas de abs t ra-ção ott to-tcológica da metaf ís ica . P o d e m o s dizer que a ope ração de desmistificação (categoria i n t r i n secamen te ligada à crít ica mater ia l is ta , seja marx i s t a , seja posi t ivis ta . N o caso da p r ime i r a , d i r e t a m e n t e ligada à aná l i se m a r x i a n a t an to da mis t i f icação da íi losofia hegel iana q u a n t o dos processos e c o n ô m i c o s do capi-tal, que p r o d u z e m a falsa consciência1 3) é a essência da a t iv idade crítica m o d e r n a , seja de base marx i s ta , he rmenêu t i ca ontológica ou descons t ruc ion i s t a . A teoria m o d e r n a desmis t i f i ca d i ferentes man i fe s t ações de mis t i f icação: crendices popu la res P ré -Moder -

12 LOSSÜ, Eduardo Guerre i ro Brito. Teologia negativa e Theodor Adorno. A secularizarlo da mística tia arte moderna. Rio de Janeiro: U F RJ/Faculdade de Letras, 2007. p. 231-259.

FOULKES, A. Peter. Literature and Propaganda. London: Methuen, 1983. p. 55-70.

288 CRÍTICA E MÍSTICA

nas, estereotipos modernos da mídia, e s t ru tu ras sociais, cul tu-

r a i s e econômicas, filosofias metafísicas t radicionais e pressu-

postos metafísicos de outras teorias modernas .

O problema que encont ramos a par t i r daí é que, em pr imei ro lugar, a maioria dos teóricos que prat icam essa crítica desco-nhece os estudos de mística e ignora a diferença básica ent re místicas "primitivas" (das quais os antropólogos ter iam mui to a dizer em sua defesa) e místicas de grandes civilizações (são as que nos interessam: judaica, cristã, árabe, h indu , japonesa etc.), cu jo conteúdo teórico e prático é ex t remamente avançado em te rmos filosóficos, literários e ascéticos. Em segundo lugar, esquece que a mística ocidental tradicional, por conter u m caráter subversivo em relação a ortodoxias, ainda que não deixe de f u n d a m e n t a r - s e numa religião, contém o maior potencial emancipa tór io e crítico de sua época,14 por isso mesmo seus efeitos p ropagaram-se na quintessência de boa parte da filosofia da Modern idade (penso aqui no idealismo alemão, Schopenhauer, Nietzsche, Bataille, Heidegger, Benjamin, Adorno, Bloch...) e mais a inda na maior parte dos grandes nomes da literatura da Modern idade (só para ficar na poesia, há mística, nada mais nada menos, nos três maiores: Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé), onde se pode dizer que há uma verdadeira mística própria da ar te moderna.1 5 Para

14 ADORNO, Theodor W. Band 16. Musikalische Schriften 1: Klangfiguren. II: Quasi una fantasia. III: Musikalische Schriften. Prankfur t am Main: Suhr-kamp, 1978. p. 463. ADORNO, Theodor W. Band 20,2: Vermischte Schriften IL Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1978 - comentár io sobre a ligação entre mística e esclarecimento em Gerschom Scholem, p. 481. Para u m estudo da relação entre Adorno e mística: LOSSO, Teologia negativa e Theodor Ador-no..., p. 174-303.

É na Alemanha que esta discussão está em seu estágio mais avançado, a meu ver. Quem preparou o terreno para ela foi a antologia de textos tra-dicionais e modernos de Hans Dieter Z IMMERMANN Rationalität und

EDUARDO GUERREIRO Β. Losso 283

os que pensam que o lado míst ico desses ar t is tas e fi lósofos é o seu pon to fraco, algo que os d i m i n u i e que eles pode r i am pres-cindir, s empre observo que os que pensam assim s implesmente não e s tuda ram nem pensa ram a f u n d o a questão: eu dir ia que é nessa " f raqueza" que está a sua força, pa r a f r a seando Paulo (cf. 2Cor 12,9).

O míst ico inverte o pr incípio de d o m i n a ç ã o da na tureza e pre tende, p o r meio da ascese, u m t raba lho ativo no núcleo da experiência. Se todas as vantagens mater ia is pre tendem satisfa-zer o confor to , o míst ico não p rocura a posse de bens, mas quer t r a n s f o r m a r a experiência com a medi tação da e te rn idade no ins tante , isto é, no cerne de nossa f raqueza morta l , o míst ico quer encon t ra r u m ins tante de júbilo imorta l . Mui tos míst icos ins is t i ram no topos da e te rn idade no instante . Cito u m míst ico e poeta pietista a lemão c h a m a d o Gerhard Tersteegen (1697-1769), n u m a t radução livre m i n h a :

O instante divino Mergulha no silencioso agora, o instante divino Calmo, querido e memorável, nem adiante nem atrás! Kntão abandona-te a Deus profundamente e a Ele te inclina E espera com paciência, até que ele mesmo se mostre!16

Mystik (F rankfur t am Main: Insel. 1981). Mas o livro que estabeleceu uma pr imeira tese é de Mar t ina WAGNER-EGELHAAF Mystik der Moderne; die visionäre Ästhetik der deutschen Literatur im 20. Jahrhunder t (Stutt-gart: Metzler, 1989). SPÖRL, Uwe. Gottlose Mystik in der deutschen Litera-tur um die Jahrhundertwende. Paderborn: Schöningh, 1997. A bibliografìa está sempre crescendo, mas esses in t roduzem a questão. Para u m resumo e avaliação da mistica na Modern idade , ver LOSSO, Teologia negativa e Theodor Adorno..., p. 281-298.

TERSTEEGEN, Gerhard . Geistliches Blumengärtiein. Stuttgart: J. F. Stein-kopf, 1956. p. 54: "Der göttliche Augenblick / Senk dich ins stille Nun, den göttlich η Augenblick, / Sanft, lieblich und gedenk nicht vorwärts noch

2 9 0 C R I T I C A L M I S T I C A

O que esse pequeno poema deixa em estado de mistér io

Meister Eckhart nos esclarece:

Muitas vezes já disse que há uma força na alma, a que não tange nem o tempo nem a carne; ela flui do espírito e perma-nece no espírito e é toda inteiramente espiritual. Nela, Deus é tão florescente e verdejante em toda a alegria e em toda glória, como ele é em si mesmo. [...] Digamos que um homem possuísse todo um reino ou toda a riqueza da terra, mas que a doasse puramente por e para Deus e se tornasse um dos homens mais pobres, vivendo nalgum canto da terra, e que Deus então lhe desse tanto a sofrer como jamais o permitiu a um homem e a tudo isso esse homem sofresse até sua morte; e se Deus lhe dei-xasse, por uma única vez, apenas num lance de olho, ver como ele é nessa força: sua alegria seria tão grande que todo esse sofrer e toda essa pobreza teriam sido ainda pouco demais. Sim, mesmo que Deus depois nunca mais lhe desse o reino do céu, teria, porém, recebido uma recompensa grande demais, por tudo quanto sofrera; pois Deus é nessa força como no eterno instante. Se o espírito estivesse unido com Deus todo o tempo nessa força, o homem não poderia envelhecer; pois o instante em que ele criou o primeiro homem, o instante em que há de perecer o último homem e o instante em que eu estou falando, agora, são iguais em Deus e nada mais do que um instante.17

A linguagem desses dois místicos parece ser demasiada-mente religiosa aos olhos modernos? Por mais diferenças que existam entre poetas modernos e místicos, as conexões são mais surpreendentes do que se pensa. Basta lembrar, em pr imei ro

zurück! / So überlaß dich Gott, dich innig in ihn neige / Und warte in Ge-duld, bis er sich selbst dir zeige!"

ECK HART, Meister. Sermões alemães; sermões 1 a 60. Petrópolis: Vozes, 2006. v. 1, p. 48-49.

E D U A R D O G U E R R E I R O Β Losso 2 9 1

lugar, que o p r ime i ro g r a n d e pensador do conceito de Moder-n idade foi u m poeta: Char les Baudelaire. Foi ele que escreveu as seguintes frases: "A M o d e r n i d a d e é o t ransi tório, o efémero, o cont ingente , é a me tade da ar te , sendo a out ra metade o e te rno e o imutável"1 8 e "Em poucas palavras, para que toda Modern i -dade seja d igna de tornar -se Ant igu idade , é necessár io que dela se extraia a beleza mister iosa que a vida h u m a n a involuntar ia-mente lhe confere".1 ' Isso quer dizer que a origem do conceito de M o d e r n i d a d e poética, ao se con t rapor ao culto bolorento do passado (feito pelos pintores da época de Baudelaire), está em extrair , nas palavras de Eckhar t , a força do e terno da efemeri-dade e cont ingência do instante , de m o d o que a f raqueza do ins-tante contém sua e ternidade.

A par t i r daí p o d e m o s descor t inar vários poemas modernos . Recolho exemplos de Mur i lo Mendes: "Passeamos nas a lamedas do lustre. / Cada ins tante a s sume u m século";20 "Dos telhados abstratos / Vejo os limites da pele, / Assisto crescerem os cabelos dos m i n u t o s / No instante da eternidade";2 1 "A poesia da eterni-dade esclarecendo, comple t ando e amp l i ando a poesia do t empo [...] Os poetas reconduzi rão o h o m e m a Deus. E submeterão os chefes t empora i s à o rdem da caridade";22 "A e tern idade não me será u m simples refúgio; já sou eterno".23

BAUDFI AIRE, Charles. A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 174.

19 Ibid., p. 175.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Agui-lar, 1994. p. 430.

21 Ibid., p. 332. 22 Ibid., p. 760-761. 23 Ibid., p. 761.

2 9 2 C R Í T I C A E M Í S T I C A

De todos os exemplos do topos focado, o mais impress io-nante é esse: "A e ternidade será u m t e m p o in f in i to - ou antes , um estado infini to?"2 4 Nele fica expos to que a apa ren te a m b i ç ã o desmedida do poeta de pre tender subst i tu i r os chefes do m u n d o pelos poetas, de considerar-se eterno, de es tar o p e r a n d o a "poe-sia da eternidade", toda essa prepotência mos t ra que a a m b i ç ã o de ser poderoso dá-se somente na fraqueza, na delicadeza da experiência, dependente de estados de consciência . O que o poeta, com sua mística, anseia é por u m es tado in f in i to de sen-sação de eternidade, e não tornar-se u m ser e terno. D r u m m o n d : "E que mais, vida eterna, m e planejas? / O que se desa tou n u m só momento / não cabe no inf ini to , e é fuga e v e n t o ' / ' O es tado infinito, de tão eterno, não cabe do inf ini to , e foge para a vaga fragilidade do instante. A es t ranha conclusão a que cheguei com o famoso imperativo de Rimbaud u é preciso ser abso lu t amen te moderno", bem ao contrár io do jargão da desmis t i f icação , é a seguinte: para ser absolutamente moderno é preciso ser minima-mente místico.

Certeau af i rmou que a mística é 'realista, engajada [...] Ela é crítica, então. Ela relativiza o êxtase ou os es t igmas c o m o um signo que se torna uma miragem caso se os fixe>l ( t radu-ção minha).26 Em outras palavras: a mística é desmi t i f i cadora . A melhor sugestão que se pode da r àqueles que professam o discurso da desmisficação é que, pr imeiro , para desmist i f icar , é preciso aprender muito com os místicos, p rec isamente c o m o os

24 Ibid., p. 869.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 421.

CERTEAU, Michel de. Le lieu de l'autre; histoire religieuse et mystique. Pa-ris: Gallimard, 2005. p. 333.

EDUARDO GUERRE IRO Β. LOSSO 2 8 3

poe t a s m o d e r n o s t an to f i ze r am, a p o n t o de, em cer tos aspectos , c o n f u n d i r e m - s e c o m eles.

Segundo: pa r a en t ende r as ambições e as singelezas ma i s radi -

cais da poesia m o d e r n a , com sua baude la i r i ana "beleza ex t ra -

vagante", é preciso m e r g u l h a r na mís t ica , pois a mís t ica é u m

f enómeno , c o m o a f i r m o u Cer teau , ao m e s m o t e m p o e s t r a n h o e

essencial:2 a e s t r a n h a essencia l idade da mís t ica , com seu gosto

pelo p a r a d o x o e pela coincidentia oppositorum, isto é,pela dialé-

tica, é a chave de sua ocu l ta e en igmát ica M o d e r n i d a d e .

Terceiro: o que p o d e m o s c h a m a r de mís t ica m o d e r n a está,

em boa p a r t e de sua me lho r sa f ra , na poesia m o d e r n a . E se a

poesia m o d e r n a é tão crít ica, d i s sonan te e decepc ionan te pa r a a

burgues ia , é po rque ela é f r u t o de u m m o d o de viver e s t r anho ,

d i ferente , que critica na soc iedade m o d e r n a o seu lamentável

desprezo pela po tenc ia l idade ocul ta e in f in i ta da exper iência . A

raiz do gesto crí t ico na poesia m o d e r n a está, po r t an to , na capa-

cidade, mística, de ex t ração m á x i m a de v i ta l idade no ins tante .

Ibid., p. 329.