Mundo sem fim ken follett
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mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por
dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um
novo nvel."
- 2. MUNDOSEMFIM KENFOLLETT Traduo de A. B. Pinheiro de
Lemos
- 3. Ttulo Original: World Without End Traduo: A. B. Pinheiro de
Lemos
- 4. ndice Parte I Parte II Parte III Parte IV Parte V Parte VI
Parte VII Agradecimentos
- 5. Para Barbara
- 6. ParteI
- 7. 1 Gwenda estava com oito anos, mas no tinha medo do escuro.
Quando abriu os olhos no pde ver nada, mas no foi isso que a
assustou. Sabia onde se encontrava. Estava no priorado de
Kingsbridge, no prdio de pedra comprido que chamavam de hospital -
um lugar para tratar de doentes, mas que tambm servia como um
albergue para os pobres e os ricos - deitada no cho, numa cama de
palha. A me deitava ao seu lado, e Gwenda compreendeu, pelo cheiro
de leite quente, que amamentava o beb que acabara de nascer, ainda
sem nome. Do outro lado da me estava o pai e, junto de Gwenda, o
irmo mais velho, Philemon, que tinha doze anos. Havia muita gente
no hospital. Embora no pudesse ver as outras famlias deitadas no
cho, espremidas como ovelhas num cercado, Gwenda podia sentir o
cheiro desagradvel dos corpos quentes. Quando o dia amanhecesse,
seria Todos os Santos, um domingo naquele ano, e por isso mesmo um
dia muito especial. A noite anterior fora um momento perigoso,
quando os espritos do mal vagueavam livres por toda parte. Centenas
de pessoas haviam ido para Kingsbridge, das aldeias ao redor, como
a famlia de Gwenda, a fim de passar o Dia de Todos os Santos no
recinto sagrado do priorado, comparecendo missa ao amanhecer.
Gwenda era cautelosa com os espritos do mal, como todas as pessoas
sensatas; mas sentia-se mais assustada com o que teria de fazer
durante o servio religioso. Ela ficou olhando para o escuro,
tentando no pensar no que a deixava apavorada. Sabia que havia uma
janela em arco na parede sua frente. No tinha vidro - s os prdios
mais importantes tinham vidro nas janelas , mas uma cortina de
linho impedia a entrada do ar frio do outono. Mas Gwenda no
conseguiu divisar uma mancha cinza no lugar em que deveria estar a
janela. E sentiu-se contente por isso. No queria que a manh
chegasse. No podia ver nada, mas havia muito para escutar. A palha
que cobria o cho sussurrava a todo instante, sempre que as pessoas
se mexiam e mudavam de posio no sono. Uma criana gritou, como se
tivesse sido acordada por um pesadelo, mas foi logo silenciada por
palavras de carinho murmuradas. Algum falava de vez em quando,
enunciando as palavras truncadas de conversa no sono. Em algum
lugar havia o som de duas pessoas fazendo a coisa que os pais
faziam, mas sobre a qual nunca falavam, a coisa que Gwenda chamava
de grunhido, porque no tinha outra palavra para descrev-la. No
demorou muito para que surgisse uma luz. No lado leste do vasto
salo, um monge passou pela porta, carregando uma nica vela.
Colocou-a ao p do altar, usou a chama para acender uma vela fina e
comprida. Saiu pelo salo, encostando a chama nos lampies nas
paredes. Sua sombra comprida subia pela parede a cada vez, a vela
de verdade se encontrando com a vela de sombra no pavio de cada
lampio.
- 8. A claridade crescente iluminava as fileiras de pessoas
estendidas no cho, envoltas por seus mantos miserveis ou
aconchegadas contra os vizinhos, em busca de calor. As pessoas
doentes ocupavam os catres perto do altar, onde podiam obter o
mximo de benefcio da santidade do lugar. No lado oposto havia uma
escada que levava ao andar superior, que tinha quartos para os
visitantes aristocrticos: o conde de Shiring estava ali naquele
momento, com sua famlia. O monge inclinou-se sobre Gwenda para
acender o lampio por cima de sua cabea. Fitou-a e sorriu. Ela
estudou o rosto luz bruxuleante das chamas e reconheceu-o. Era o
irmo Godwyn, jovem e bonito. Na noite anterior ele conversara
gentilmente com Philemon. Ao lado de Gwenda havia outra famlia de
sua aldeia: Samuel, um prspero campons, que cuidava de uma
propriedade grande, a esposa e os dois filhos. O caula, Wulfric,
era um irritante menino de seis anos, que achava que jogar bolotas
de carvalho nas meninas e correr em seguida era a coisa mais
divertida do mundo. A famlia de Gwenda no era prspera. O pai no
tinha nenhuma terra e trabalhava para qualquer um que quisesse lhe
pagar. Havia sempre trabalho no vero, mas, depois da colheita,
quando o tempo comeava a esfriar, a famlia muitas vezes passava
fome. Era por isso que Gwenda tinha de roubar. Ela se imaginava
sendo apanhada: a mo forte de algum agarrando-a pelo brao; uma voz
profunda e cruel dizendo Ora, ora, uma pequena ladra; a dor e a
humilhao de ser aoitada; e depois, o pior de tudo, a agonia e perda
quando sua mo fosse cortada. O pai sofrera essa punio. Ao final do
brao esquerdo tinha um coto horrvel, todo enrugado. Ele conseguia
fazer as coisas com uma nica mo: era capaz de usar uma p, selar um
cavalo, at fazer uma rede para pegar aves. Mesmo assim, era sempre
o ltimo trabalhador a ser contratado na primavera e o primeiro a
ser dispensado no outono. Nunca poderia deixar a aldeia e procurar
trabalho em outros lugares, porque a amputao marcava-o como um
ladro; por isso, as pessoas se recusariam a contrat-lo. Quando
viajava, ele amarrava uma luva recheada no coto, para no ser
escorraado por todo estranho que encontrasse; mas isso tambm no
enganava as pessoas por muito tempo. Gwenda no testemunhara a punio
do pai - ocorrera antes de seu nascimento -, mas imaginava-a com
frequncia Agora, no podia deixar de pensar na mesma coisa lhe
acontecendo. Em sua mente, via a lmina do machado descendo para o
pulso, cortando pele e ossos, separando a mo do brao, de tal forma
que nunca mais seriam religados; e teve de ranger os dentes para no
soltar um grito. As pessoas levantavam e se esticavam, esfregando o
rosto. Gwenda tambm se levantou e ajeitou as roupas. Todos os seus
trajes haviam pertencido antes ao
- 9. irmo mais velho. Ela usava uma bata de l que descia at os
joelhos, com uma tnica por cima, presas na cintura por um cinto
feito de corda de cnhamo. Os sapatos outrora tinham cordes, mas os
ilhoses haviam rasgado e os cordes desapareceram. Agora, ela
prendia os sapatos nos ps com palha tranada. Assim que juntou os
cabelos por baixo de uma touca feita de rabos de esquilo, ela
terminou de se arrumar. Olhou para o pai, que indicou furtivamente
uma famlia ali perto, um casal de meia-idade com dois filhos,
apenas um pouco maiores do que Gwenda. O homem era baixo e
franzino, com uma barba ruiva encrespada. Afivelava uma espada na
cintura, o que significava que era um homem de armas ou um
cavaleiro, j que os homens comuns no tinham permisso para usar
espadas. A esposa era magra, com uma atitude brusca e uma expresso
mal-humorada. Enquanto Gwenda os examinava, irmo Godwyn acenou com
a cabea, respeitoso, e disse: - Bom-dia, Sir Gerald, lady Maud.
Gwenda viu o que atrara a ateno do pai. Sir Gerald tinha uma bolsa
presa ao cinto por uma tira de couro. A bolsa estava estufada.
Devia conter vrias centenas das pequenas moedas de prata de
pennies, halfpennies e farthings, o dinheiro ingls... tanto quanto
o pai poderia ganhar em um ano inteiro de trabalho, se conseguisse
arrumar emprego. Seria mais do que o suficiente para alimentar a
famlia at o plantio da primavera. A bolsa poderia at conter umas
poucas moedas de ouro estrangeiras, como florins de Florena ou
ducados de Veneza. Gwenda tinha uma pequena faca numa bainha de
madeira, pendurada por um cordo no pescoo. A lmina afiada cortaria
a tira de couro e faria com que a bolsa estufada casse em sua mo...
a menos que Sir Gerald sentisse alguma coisa estranha e a agarrasse
antes que cometesse o furto... Godwyn elevou a voz por cima do
rumor das conversas. - Pelo amor de Cristo, que nos ensina a
caridade, ser servida uma refeio depois do servio de Todos os
Santos. At l, h gua para beber na fonte no ptio. Por favor, no
deixem de usar as latrinas l fora... nada de urinar dentro do
prdio! Os monges e freiras eram rigorosos com a higiene. Ontem
noite, Godwyn surpreendera um menino de seis anos urinando num
canto e expulsara toda a famlia. A menos que tivessem um penny para
uma taverna, teriam passado a fria noite de outubro estremecendo no
cho de pedra do prtico norte da catedral. Havia tambm uma proibio
para animais. O cachorro de trs pernas de Gwenda, Hop, fora banido.
E ela se perguntava onde Hop passara a noite. Depois que todos os
lampies foram acesos, Godwyn abriu a enorme porta de madeira para o
exterior. O ar frio da noite gelou as orelhas e a ponta do nariz de
Gwenda. Quando Sir Gerald e a famlia encaminharam-se para a porta,
o pai e a me foram atrs. Gwenda e Philemon seguiram o exemplo.
- 10. Philemon sempre fora o encarregado de roubar at agora. Mas,
no dia anterior, quase fora apanhado, no mercado de Kingsbridge.
Palmeara um pequeno pote de leo carssimo do estande de um mercador
italiano, mas deixara-o cair, vista de todos. Por sorte, o pote no
quebrara ao bater no cho. E ele fora obrigado a fingir que o
derrubara acidentalmente. At bem pouco tempo atrs, Philemon era
pequeno e apagado, no chamava a ateno de ningum. Mas, durante o
ltimo ano, crescera bastante, adquirira uma voz profunda,
tornara-se desajeitado, como se no conseguisse se acostumar ao novo
tamanho de seu corpo. Ontem noite, depois do incidente com o pote
de leo, o pai anunciara que Philemon era agora grande demais para o
furto sistemtico; dali por diante, essa incumbncia seria de Gwenda.
Fora por isso que ela permanecera acordada durante boa parte da
noite. O nome de Philemon na verdade era Holger. Quando tinha dez
anos, ele decidira que seria monge; e dissera a todo mundo que
mudara o nome para Philemon, que parecia mais religioso. Numa reao
surpreendente, a maioria das pessoas atendeu a seu desejo, embora o
pai e a me continuassem a cham-lo de Holger. Eles passaram pela
porta e viram duas fileiras de freiras trmulas, segurando tochas
acesas, para iluminar o caminho do hospital at a enorme porta de
oeste da catedral de Kingsbridge. As sombras cabriolavam na beira
da luz das tochas, como se os duendes e diabinhos da noite anterior
estivessem espreita ali, mantidos distncia apenas pela santidade
das freiras. Gwenda pensava que encontraria Hop esperando l fora,
mas no o avistou. Talvez ele tivesse encontrado algum lugar quente
para dormir. Enquanto seguiam para a catedral, o pai deu um jeito
de permanecerem prximos de Sir Gerald. Algum deu um puxo doloroso
nos cabelos de Gwenda, por trs. Ela soltou um grito estridente,
pensando que era um duende. Virou-se para descobrir que era
Wulfric, seu vizinho de seis anos. Ele se afastou para fora de seu
alcance, rindo. Mas o pai de Wulfric berrou Comporte-se!, e deu um
cascudo em sua cabea. O menino comeou a chorar. A vasta catedral
era uma massa informe pairando acima da multido amontoada. S as
partes inferiores eram ntidas, arcadas e janelas iluminadas em
laranja e vermelho pela luz bruxuleante das tochas. A procisso
passou a andar mais devagar ao se aproximar da entrada da catedral,
e Gwenda avistou os moradores da cidade, que vinham da direo
oposta. Havia centenas de pessoas, pensou ela, talvez milhares,
embora no soubesse quantas pessoas havia em mil, pois no era capaz
de contar to alto. A multido avanava lentamente pela entrada. A luz
irrequieta das tochas incidia sobre as figuras esculpidas nas
paredes, dando a impresso de que se empenhavam numa dana delirante.
Havia demnios e monstros no nvel mais
- 11. baixo. Gwenda olhou assustada para drages e grifos, um urso
com cabea de homem, um cachorro com dois corpos e um nico focinho.
Alguns dos demnios lutavam contra humanos: um demnio punha um lao
no pescoo de um homem, um monstro parecido com uma raposa arrastava
uma mulher pelos cabelos, uma guia com mos espetava com uma lana um
homem nu. Por cima dessas cenas, os santos formavam uma fileira,
abrigados sob dossis; mais acima, os apstolos sentavam em seus
tronos; depois, na arcada por cima da porta principal, So Pedro com
sua chave e So Paulo com um pergaminho olhavam em adorao para Jesus
Cristo l no alto. Gwenda sabia que Jesus estava lhe dizendo para no
pecar ou seria torturada pelos demnios; mas os humanos
assustavam-na mais do que os demnios. Se no conseguisse roubar a
bolsa de Sir Gerald, seria aoitada pelo pai. Pior ainda, no haveria
nada para a famlia comer alm de sopa feita com bolotas de carvalho.
Ela e Philemon passariam fome por semanas a fio. Os seios da me
secariam e o beb morreria, como os dois ltimos. O pai desapareceria
por vrios dias e voltaria sem nada para a panela, apenas uma gara
magricela ou um par de esquilos. Sentir fome era pior do que ser
aoitada... doa por mais tempo. Ela fora ensinada a cometer pequenos
furtos desde que era bem pequena: uma ma de uma barraca, um ovo
retirado de baixo da galinha do vizinho, uma faca que um bbado
descuidado largava na mesa de uma taverna. Mas roubar dinheiro era
diferente. Se fosse apanhada ao tirar a bolsa de Sir Gerald, no
adiantaria desatar a chorar e torcer para ser tratada como uma
criana travessa, como acontecera uma vez, depois que roubara um par
de sapatos de couro de uma freira de corao mole. Cortar o cordo de
couro da bolsa de um cavaleiro no era um pecadilho infantil, mas um
crime de adulto, e seria tratado de acordo. Ela tentou no pensar a
respeito. Era pequena, gil e rpida. Pegaria a bolsa furtivamente,
como um fantasma... desde que conseguisse no tremer. A vasta
catedral j estava lotada. Monges encapuzados seguravam tochas nos
corredores laterais, projetando clares vermelhos irrequietos. As
colunas em marcha da nave subiam pela escurido. Gwenda permaneceu
perto de Sir Gerald, enquanto a multido avanava para o altar. O
cavaleiro de barba ruiva e sua esposa magricela no a notaram. Os
dois meninos no prestavam mais ateno a ela do que s paredes de
pedra da catedral. A famlia de Gwenda ficou para trs, e ela no viu
mais ningum. A nave se encheu depressa. Gwenda nunca vira tantas
pessoas no mesmo lugar; estava mais movimentada do que a campina
verde no dia do mercado. As pessoas se cumprimentavam na maior
jovialidade, sentindo-se a salvo dos espritos do mal naquele lugar
sagrado. O som de todas as conversas se juntava num rugido.
- 12. At que o sino repicou e todos calaram. Sir Gerald estava ao
lado de uma famlia da cidade. Todos usavam mantos de bom tecido, o
que indicava que o chefe devia ser negociante de l. Ao lado do
cavaleiro havia uma garota que devia ter dez anos. Gwenda postou-se
atrs de Sir Gerald e da garota. Tentou passar despercebida, mas,
para sua consternao, a garota olhou para trs e sorriu,
tranquilizadora, como se lhe dissesse que no precisava ficar
assustada. Ao longo das paredes, os monges comearam a apagar as
tochas, uma a uma, at que a vasta catedral ficou mergulhada na mais
absoluta escurido. Gwenda especulou se a garota rica se lembraria
dela mais tarde. No se limitara a lanar um olhar para Gwenda e
depois a ignorara, como a maioria das pessoas fazia. Notara-a,
pensara nela, previra que poderia ficar assustada, e oferecera um
sorriso cordial. Mas havia centenas de crianas na catedral. Ela no
poderia ter percebido as feies de Gwenda com bastante nitidez na
semi-escurido da catedral... ou ser que poderia? Gwenda tentou
remover a preocupao de sua mente. Invisvel no escuro, adiantou-se e
esgueirou-se sem fazer barulho entre as duas figuras. Sentiu a l
macia do manto da garota num lado e o tecido mais spero do manto do
cavaleiro no outro. Agora se encontrava em posio de alcanar a
bolsa. Levou a mo ao pescoo e tirou a pequena faca da bainha. O
silncio foi rompido por um terrvel grito. Gwenda j esperava por
isso a me explicara o que aconteceria durante o servio religioso -,
mas mesmo assim ficou atordoada. Parecia que algum estava sendo
torturado. Depois, houve um estrondo estridente, como se algum
estivesse batendo numa placa de metal. Mais rudos se seguiram:
gemidos, risadas ensandecidas, uma trompa de caa, barulho de
correntes, o repicar de um sino. Na congregao, uma criana comeou a
chorar, e foi logo seguida por outras. Alguns adultos soltavam
risadas nervosas. Sabiam que os rudos eram feitos por monges, mas
ainda assim era uma cacofonia infernal. Aquele no era o momento
para pegar a bolsa, pensou Gwenda, amedrontada. Todos estavam
tensos, alertas. O cavaleiro seria sensvel a qualquer toque. O rudo
diablico foi se tornando mais e mais alto, at que um novo som
interveio: msica. A princpio, era to baixo que Gwenda no podia ter
certeza se ouvira mesmo, mas pouco a pouco foi se tornando mais
alto. As freiras cantavam. Gwenda sentiu seu corpo dominado pela
tenso. O momento se aproximava. Movendo-se como um esprito,
imperceptvel como o ar, ela virou- se, a fim de ficar de frente
para Sir Gerald. Sabia exatamente o que ele vestia. Tinha uma
grossa tnica comprida de l, presa na cintura por um cinto largo e
tachonado. Por cima da tnica, usava um
- 13. manto bordado, dispendioso mas velho, com botes de osso
amarelados na frente. Fechara alguns botes, mas no todos,
provavelmente por causa da indolncia do sono ou porque a caminhada
do hospital at a catedral era to curta. Com um toque to leve quanto
possvel, Gwenda encostou a mo no manto. Imaginou a mo como uma
aranha, to desprovida de peso que o homem no poderia sentir. A mo
de aranha deslizou pela frente do manto e encontrou a abertura.
Enfiou-se por baixo da beira do manto e avanou pelo cinto largo at
encontrar a bolsa. O pandemnio diminua medida que a msica se
tornava mais alta. Da frente da congregao veio um murmrio de
reverncia. Gwenda no podia ver nada, mas sabia que um lampio fora
aceso no altar para iluminar um relicrio, uma caixa elaborada, de
ouro e marfim, contendo os ossos de St. Adolphus, que no estavam
ali quando as tochas se apagaram. A multido se adiantou, todos
querendo chegar mais perto das relquias sagradas. Ao sentir que era
espremida entre Sir Gerald e o homem na frente, Gwenda ergueu a mo
direita e encostou a beira da faca no cordo da bolsa. O couro era
duro e seu primeiro movimento no foi suficiente para cort-lo.
Serrou-o frentica com a faca, torcendo desesperada para que Sir
Gerald estivesse to interessado na cena no altar que no notaria o
que acontecia por baixo de seu nariz. Olhou para cima e compreendeu
que podia comear a divisar os contornos das pessoas ao redor: os
monges e freiras acendiam as velas. A claridade seria maior a cada
momento. Quase no lhe restava tempo. Ela deu um puxo mais forte na
faca e sentiu que a tira do couro cedia. Sir Gerald soltou um
grunhido baixo: sentira alguma coisa ou reagia ao espetculo no
altar? A bolsa caiu e parou na sua mo; mas era muito grande para
que a segurasse com facilidade e comeou a escapulir. Por um momento
terrvel, ela pensou que a deixaria cair e a perderia no cho, entre
os ps indiferentes da multido. Pouco depois conseguiu segur-la com
firmeza, experimentou um momento de alvio e alegria: estava com a
bolsa. Mas ainda corria um tremendo perigo. O corao batia to alto
que tinha a sensao de que todos ao redor podiam ouvi-la. Virou-se
depressa, ficando de costas para o cavaleiro. No mesmo movimento,
enfiou a bolsa recheada pela frente da tnica. Podia sentir que
formava uma protuberncia, pendendo sua frente, junto a barriga de
um velho. Deslocou-a para o lado, onde ficaria parcialmente oculta
pelo brao. Ainda seria visvel quando a claridade aumentasse, mas no
tinha outro lugar para guard-la. Meteu a faca na bainha. Agora,
tinha de escapar depressa, antes que Sir Gerald sentisse a perda...
mas a presso dos fiis, que a ajudara a pegar a bolsa sem ser
notada, agora obstrua a fuga. Tentou recuar, na esperana de
encontrar uma brecha nos
- 14. cantos por trs, mas todos ainda tentavam se adiantar, na
esperana de ver os ossos do santo. Ela estava acuada, incapaz de se
mover, bem na frente do homem que acabara de roubar. Uma voz
murmurou em seu ouvido: Voc est bem? Era a garota rica. Gwenda fez
um esforo para conter o pnico. Precisava ser invisvel. Uma criana
mais velha prestativa era a ltima coisa que queria naquele momento.
No disse nada. Tomem cuidado - disse a garota s pessoas ao redor. -
Esto espremendo a menina. Gwenda teve vontade de gritar. A
gentileza da garota rica poderia fazer com que sua mo fosse
cortada. Desesperada para escapar, ela estendeu as mos para o homem
da frente e o empurrou, mas no conseguiu afast-lo. S conseguiu
atrair a ateno de Sir Gerald. - No consegue ver nada a embaixo, no
? - murmurou sua vtima, em tom gentil. E, para seu horror, Sir
Gerald pegou-a por baixo dos braos e levantou-a. Gwenda estava
impotente. A mo enorme do homem estava a poucos centmetros de sua
axila, onde escondera a bolsa. Virou-se para a frente, a fim de que
ele s pudesse ver a parte posterior de sua cabea. Olhou por cima da
multido para o altar, onde monges e freiras acendiam mais velas e
cantavam para o santo havia muito morto. Alm deles, uma tnue
claridade brilhava atravs da janela de roscea: o dia amanhecia,
expulsando os espritos do mal. O clangor cessara agora, e o canto
aumentava de intensidade. Um monge alto e bonito subiu para o
altar. Gwenda reconheceu-o como Anthony, o prior de Kingsbridge.
Ele ergueu as mos numa bno e disse, bem alto: - E assim, mais uma
vez, pela graa de Cristo Jesus, o mal e as trevas deste inundo so
banidos pela harmonia e pela luz da santa igreja de Deus. A
congregao deixou escapar um rugido triunfante, para depois comear a
relaxar. O clmax da cerimnia passara. Gwenda contorceu-se. Sir
Gerald entendeu a mensagem e a ps no cho. Com o rosto virado para o
outro lado, ela afastou-se, seguindo para o fundo da multido. As
pessoas no se sentiam mais ansiosas em ver o altar, e ela pde
esgueirar-se entre os corpos. Quanto mais se distanciava, mais fcil
era, at que finalmente avistou a grande porta de oeste e encontrou
sua famlia. O pai fitava-a em expectativa, pronto para um acesso de
fria, se ela tivesse fracassado. Gwenda tirou a bolsa de baixo da
tnica e estendeu-a, contente por se livrar. O pai pegou-a, e
virou-a para um olhar furtivo no contedo. E deu um sorriso de
satisfao. Entregou-a me, que a escondeu nas dobras da manta que
agasalhava o beb. A provao terminara, mas o risco ainda no
passara.
- 15. - Uma garota rica me notou - avisou Gwenda, notando a
estridncia do medo na prpria voz. Os olhos pequenos e escuros do
pai faiscaram em raiva. - Ela viu o que voc fez? - No. Mas disse
aos outros para no me espremerem. E depois o cavaleiro me levantou
para que eu pudesse ver melhor. A me soltou um gemido baixo. O pai
resmungou: - Ento ele viu seu rosto. - Virei para o outro lado
durante todo o tempo. - Mesmo assim, melhor ele nunca mais se
encontrar com voc. No vamos voltar para o hospital. Comeremos numa
taverna. - No podemos nos esconder durante o dia inteiro - disse a
me. - Tem toda razo. Mas podemos sumir no meio da multido. Gwenda
comeou a se sentir melhor. O pai parecia pensar que no havia um
perigo real. De qualquer forma, ficava mais segura porque o pai
assumia o comando, tirando a responsabilidade dela. - Alm do mais -
acrescentou o pai -, estou com vontade de comer po e carne, em vez
do mingau aguado dos monges. Podemos pagar agora. Eles deixaram a
catedral. O cu era de um cinza aperolado com a claridade do
amanhecer. Gwenda queria segurar a mo da me, mas o beb comeou a
chorar. E atraiu por completo a ateno da me. Foi nesse instante que
Gwenda avistou um cachorrinho de trs pernas, branco, de cara preta,
que veio correndo da catedral. - Hop! - gritou ela, pegando o
cachorro nos braos e apertando-o com fora.
- 16. 2 Merthin tinha onze anos, um ano mais velho do que o irmo
Ralph; mas, para sua intensa irritao, Ralph era mais alto e mais
forte. Isso causava problemas com os pais. O pai, Sir Gerald, era
um soldado, e no podia esconder seu desapontamento quando Merthin
se mostrava incapaz de levantar a pesada lana, ou ficava exausto
antes de terminar de cortar uma rvore, ou voltava para casa
chorando depois de perder uma briga. A me, lady Maud, agravava
ainda mais a situao, embaraando Merthin por sua atitude
superprotetora, quando o que o menino precisava mesmo era que ela
fingisse que no notava. Sempre que o pai demonstrava orgulho pela
fora de Ralph, a me tentava t compensar com crticas estupidez de
Ralph. Como era um pouco lento para compreender as coisas, Ralph
era escarnecido pelos outros meninos, o que o deixava curioso e o
levava a brigar. Os pais estavam nervosos na manh do Dia de Todos
os Santos. O pai nem queria ir a Kingsbridge. Mas fora obrigado.
Devia dinheiro ao priorado e no tinha como pagar. A me dizia que os
monges tomariam suas terras: ele era senhor de trs aldeias perto de
Kingsbridge. O pai lembrava-lhe que era descendente direto do
Thomas que se tornara conde de Shiring no ano em que o arcebispo
Beckct fora assassinado pelo rei Henry II. Esse conde Thomas era
filho de Jack Uuilder, o arquiteto da catedral de Kingsbridge, e de
lady Aliena de Shiring... um casal quase legendrio, cuja histria
era contada nas longas noites de inverno, junto com os relatos
heroicos de Carlos Magno e Roland. Com tais ancestrais, Sir Gerald
no podia ter as terras confiscadas por qualquer monge, ele berrava,
muito menos por aquele velho assustado que era o prior Anthony.
Quando ele comeou a gritar, uma expresso de resignao cansada se
estampava no rosto de Maud, que se virava em seguida. Merthin j a
ouvira murmurar: - Lady Aliena tinha um irmo, Richard, que s sabia
lutar, no servia para qualquer outra coisa. O prior Anthony podia
ser uma velha, mas pelo menos fora homem suficiente para se queixar
das dvidas no pagas de Sir Gerald. Procurara o suserano de Sir
Gerald, o atual conde de Shiring, que era tambm primo em segundo
grau de Gerald. O conde Roland convocara Gerald a Kingsbridge hoje,
para um encontro com o prior, em que tentariam encontrar uma soluo.
Era esse o motivo do mau humor do pai. E,, ainda por cima, o pai
fora roubado. S descobriu a perda depois do servio religioso de
Todos os Santos. Merthin apreciara o drama: a escurido, os
estranhos rudos, a msica comeando suavemente e depois aumentando de
intensidade, at que parecia vibrar em toda a vasta catedral, e no
final as velas sendo acesas uma a uma, devagar. Tambm notara,
quando a claridade comeava a aumentar, que algumas pessoas
haviam
- 17. tirado proveito da escurido para cometer pequenos pecados,
pelos quais podiam agora ser perdoadas: vira dois monges parando de
se beijar abruptamente, e um mercador matreiro retirar a mo do seio
rolio de uma mulher sorridente, que parecia ser a esposa de outro.
Merthin ainda se encontrava num clima de excitamento quando
voltaram ao hospital. Enquanto esperavam que as freiras servissem a
refeio, um garoto da cozinha passou por perto e subiu a escada,
levando uma bandeja com um jarro de cerveja, a bebida maltada,
escura e amarga, e uma travessa com uma carne assada. A me
comentou, irritada: - Acho que seu parente, o conde, poderia nos
convidar para comer com ele, em seu aposento particular. Afinal,
sua av era irm do av dele. - Se voc no quer o mingau, podemos comer
na taverna - respondeu o pai. Merthin ficou alerta no mesmo
instante. Gostava de comer na taverna, do po fresco e da manteiga
salgada. Mas a me disse: - No podemos pagar. - Claro que podemos. O
pai estendeu a mo para a bolsa, e foi nesse instante que descobriu
que ela havia desaparecido. A princpio, ele olhou para o cho ao
redor, como se pudesse ter cado naquele momento; e depois notou a
ponta cortada da tira de couro e rugiu com indignao. Todos olharam
para ele, exceto a me, que se virou; e Merthin ouviu-a murmurar: -
Era todo o dinheiro que tnhamos. O pai lanou olhares acusadores
para as pessoas prximas. A cicatriz comprida, que se estendia da
tmpora direita ao olho esquerdo, pareceu escurecer com a raiva.
Houve um silncio tenso: um cavaleiro furioso era sempre um perigo,
mesmo sendo um cavaleiro que parecia cado em desgraa. - Voc foi
roubado na catedral, com toda certeza - comentou a me nesse
instante. Merthin refletiu que devia ter sido mesmo isso. No
escuro, as pessoas haviam roubado mais do que beijos. - Sacrilgio
ainda por cima! - exclamou o pai. - Acho que aconteceu quando voc
suspendeu aquela menina. - A me tinha o rosto todo contorcido, como
se tivesse acabado de engolir alguma coisa amarga. - O ladro deve
ter se inclinado por trs para alcanar sua cintura. - Ele deve ser
encontrado! - gritou o pai. O jovem monge chamado Godwyn interveio:
- Lamento muito que isso tenha acontecido, Sir Gerald. Vou
comunicar imediatamente a John Constable, o chefe dos guardas. Ele
pode procurar por um morador da cidade que se tornou rico de
repente. Merthin refletiu que era um plano pouco promissor. Havia
milhares de
- 18. moradores da cidade e mais centenas de visitantes. O guarda
no poderia vigiar todos. Mas o pai se mostrou um pouco apaziguado.
- O patife ser enforcado! - bradou ele, a voz um pouco menos alta.
- Enquanto isso, talvez voc, lady Maud e seus filhos queiram nos
conceder a honra de sentar mesa que est sendo armada na frente do
altar - murmurou Godwyn, deferente. O pai soltou um grunhido.
Sentia-se satisfeito, Merthin sabia, por lhe ser atribudo um
reconhecimento acima do da massa dos convidados, que sentariam no
lugar onde haviam dormido. O momento de violncia potencial passou.
Merthin relaxou um pouco. Enquanto os quatro sentavam mesa, no
entanto, ele especulou sobre o que poderia acontecer agora com a
famlia. O pai era um bravo soldado... todos reconheciam isso. Sir
Gerald lutara pelo velho rei em Boroughbridge, onde a espada de Um
rebelde do Lancashire abrira a cicatriz em sua testa. Mas era um
homem sem sorte. Alguns cavaleiros voltavam da batalha com
despojos: apoderavam-se de jias, tarroas com dispendiosos tecidos
flamengos ou sedas italianas ou com o atirado pai de uma famlia
nobre, que podia ser resgatado por mil libras. Sir Gerald, porm,
nunca conseguira muitos despojos. Mas ainda tinha de comprar armas,
uma armadura e um carssimo cavalo de guerra, para poder cumprir seu
dever e servir ao rei; e, por algum motivo, os rendimentos de suas
terras nunca eram suficientes. Por isso, contra a vontade da me,
ele comeara a tomar emprestado. Empregados da cozinha trouxeram um
caldeiro fumegante. A famlia de Sir Gerald foi servida primeiro. O
mingau era feito com cevada e temperado com alecrim e sal. Ralph,
que no compreendia a crise da famlia, comeou a falar muito excitado
sobre o servio de Todos os Santos. Mas acabou se calando, por causa
do silncio sombrio com que seus comentrios foram recebidos. Depois
de comer o mingau, Merthin foi at o altar. Escondera seu arco e
flecha por trs. As pessoas hesitariam em roubar qualquer coisa de
um altar. Ainda poderiam superar o medo se a recompensa fosse
bastante tentadora, mas no era o caso de um arco tosco e umas
poucas flechas, que ainda estavam onde deixara. Sentia-se orgulhoso
de seu arco. Era pequeno, claro: para dobrar um arco normal, com
quase dois metros, era preciso toda a fora de um homem adulto. O
arco de Merthin tinha pouco mais de um metro de comprimento e era
fino, mas, sob outros aspectos, era igual ao arco ingls de combate,
que matara tantos homens das montanhas escocesas, rebeldes galeses
e cavaleiros franceses de armadura. O pai no fizera antes qualquer
comentrio sobre o arco. Agora, deu a impresso de que o via pela
primeira vez. - Onde conseguiu essa madeira curva? - indagou ele. -
Custa muito caro. - No esta, porque muito curta. Foi um fabricante
de arcos que me deu.
- 19. O pai balanou a cabea. A no ser por isso, perfeita. Foi
cortada da parte interna do teixo, onde o albrneo se encontra com o
cerne. Ele apontou para as duas cores diferentes. Merthin respondeu
com ansiedade, pois no era sempre que tinha a oportunidade de
impressionar o pai: - Sei disso. O alburno melhor para a frente do
arco, porque o puxa de volta para o formato original; e o cerne
mais duro melhor para a parte interna da curva, porque empurra de
volta quando o arco dobrado para dentro. - Exatamente. - O pai
devolveu o arco. Mas lembre-se de que essa no a arma de um nobre.
Os filhos de cavaleiros no se tornam arqueiros. D para o filho de
algum campons. Merthin ficou desolado. - Mas ainda nem
experimentei! A me interveio. - Deixe os dois brincarem. So apenas
meninos. - Tem razo - murmurou o pai, perdendo o interesse. - Ser
que esses monges nos trariam um jarro de cerveja? - L vai voc de
novo - resmungou a me. - Merthin, tome conta de seu irmo. - O
inverso mais provvel - resmungou o pai. Merthin ficou contrariado.
O pai no tinha a menor idia do que acontecia. Ele, Merthin, podia
cuidar de si mesmo, mas Ralph sozinho sempre se metia em brigas.
Merthin sabia, no entanto, que era melhor no discordar quando o pai
estava naquele humor. Por isso, deixou o hospital sem dizer mais
nada. Ralph seguiu-o. Era um dia claro e frio de novembro. O teto
do cu era formado por nuvens de um cinza claro. Deixaram a catedral
lado a lado e desceram pela rua principal, passando pela Fish Lane,
Leather Yard e Cookshop Street. Na base da colina, atravessaram a
ponte de madeira sobre o rio, deixando a cidade para a comunidade
suburbana chamada de Newtown. As ruas com casas de madeira passavam
entre pastos e hortas. Merthin seguiu na frente at uma campina
conhecida como Lovers Field, o campo dos namorados. Ali, o
constable da cidade e seus ajudantes haviam colocado tocos de
rvores... alvos para os arqueiros. A prtica de arco-e-flecha depois
do servio religioso era compulsria para todos os homens, por ordem
do rei. No havia necessidade de impor o cumprimento da determinao
real: afinal, no era difcil ou extenuante disparar algumas flechas
na manh de domingo. Por isso, havia uma centena ou mais de jovens
da cidade em fila, esperando por sua vez, observados por mulheres,
crianas e homens que se consideravam velhos ou distintos demais
para serem arqueiros. Alguns tinham suas prprias armas. Para os que
eram pobres demais e no tinham condies de comprar um arco, John
Constable punha disposio arcos de treino, baratos, feitos de teixo
ou aveleira. Era como um dia de festival. Dick Brewer vendia
canecas de cerveja, de um
- 20. barril numa carroa. As quatro filhas adolescentes de Betty
Baxter circulavam com bandejas de pes temperados para vender. Os
habitantes mais ricos estavam bem agasalhados, com gorros de pele e
sapatos novos; at mesmo as mulheres mais pobres haviam arrumado os
cabelos e enfeitado seus mantos com tranados novos. Merthin era o
nico menino com um arco e por isso logo atraiu a ateno das outras
crianas. Ele e Ralph foram logo cercados, os meninos fazendo
perguntas invejosas, as meninas com olhares de admirao ou desdm,
segundo o temperamento de cada uma. Uma das garotas indagou: - Como
soube fazer um arco? Merthin reconheceu-a: ela ficara perto dele na
catedral. Era cerca de um ano mais jovem, calculou ele, usava um
vestido e um manto caro, de l bem fechada. De um modo geral,
Merthin achava que as meninas de sua idade eram insuportveis. Riam
muito e recusavam-se ai levar qualquer coisa a srio. Mas aquela
fitava-o e a seu arco com uma curiosidade franca, que no podia
deixar de agradar-lhe. - Acho que adivinhei. - Isso muito bom.
Funciona direito? - Ainda no experimentei. Qual seu nome? - Caris,
da famlia Wooler. Quem voc? - Merthin. Meu pai Sir Gerald. Merthin
empurrou para trs o capuz do manto e pegou l dentro a corda
enrolada do arco. - Por que guarda a corda no capuz? - Para no
molhar se chover. o que fazem os arqueiros de verdade. Ele prendeu
a corda nas aberturas nas extremidades do arco, dobrando-o um pouco
para que a tenso a mantivesse no lugar. - Vai atirar nos alvos? -
Vou. - No deixaro - interveio outro menino. Merthin fitou-o. O
menino tinha cerca de doze anos, alto e magro, ps e mos grandes.
Merthin vira-o na noite passada no hospital com a famlia: seu nome
era Philemon. Assediara os monges, fazendo perguntas. Ajudara a
servir a ceia. - Claro que deixaro - declarou Merthin. - Por que no
deixariam? - Porque voc jovem demais. - Isso estupidez. Mesmo
enquanto falava, Merthin sabia que no deveria se sentir to seguro:
os adultos muitas vezes eram estpidos. Mas a pressuposio de maior
conhecimento de Philemon irritara-o, ainda mais depois que ele
demonstrara tanta confiana na frente de Caris. Ele deixou as
crianas e se aproximou de um grupo de homens esperando para
- 21. usar um alvo. Reconheceu um deles: um homem muito alto, de
ombros largos, chamado MarkWebber. Markolhou para o pequeno arco e
perguntou a Merthin: - Onde conseguiu esse arco? - Eu fiz -
respondeu Merthin, orgulhoso. - D uma olhada, Elfric - disse Mark
para o homem ao seu lado. - Ele fez um bom trabalho. Elfric era
musculoso, com uma expresso astuta. Lanou um olhar superficial para
o arco e comentou, desdenhoso: - muito pequeno. Nunca vai disparar
uma flecha capaz de penetrar n armadura de um cavaleiro francs. -
Talvez no - admitiu Mark, a voz suave. - Mas creio que o rapaz
ainda vai esperar um ou dois anos antes de enfrentar os franceses.
John Constable gritou nesse instante: - Estamos prontos para
comear. MarkWebber, voc o primeiro. O gigante adiantou-se at a
linha de tiro. Pegou um arco e testou-o, dobrando a madeira grossa
sem o menor esforo. O constable notou a presena de Merthin pela
primeira vez. - Nada de meninos - declarou ele. - Por que no? -
protestou Merthin. - No importa por que no. Apenas saia da para no
atrapalhar. Merthin ouviu os risos zombeteiros das outras crianas.
- No h motivo para me impedir! - insistiu ele, indignado. - No
tenho de dar explicaes para crianas. Muito bem, Mark, pode atirar.
Merthin sentia-se mortificado. O untuoso Philemon provara que ele
estava errado na frente de todos. Ele voltou para junto das
crianas. - Eu disse que no da conseguir - comentou Philemon. - Ora,
cale a boca e v embora! - No pode me obrigar a ir embora - declarou
Philemon, que era quinze centmetros mais alto do que Merthin. Ralph
interveio: - Mas eu posso. Merthin suspirou. Ralph era sempre leal,
mas no percebia que sua briga com Philemon faria com que Merthin
parecesse um fraco, alm de idiota. - Preciso ir embora de qualquer
maneira - disse Philemon. - Tenho de ajudar o irmo Godwyn. Ele
afastou-se. As outras crianas se dispersaram, em busca de novas
curiosidades. Caris sugeriu a Merthin: - Voc pode experimentar o
arco em outro lugar. Era evidente que ela estava ansiosa por ver o
que aconteceria. Merthin olhou ao redor. -Mas onde?
- 22. Se fosse visto a atirar sem superviso, poderiam lhe tirar o
arco. - Podemos ir para a floresta. Merthin ficou surpreso. As
crianas eram proibidas de entrar na floresta. Malfeitores
escondiam-se na floresta, homens e mulheres que viviam do roubo. As
crianas podiam ser despojadas de suas roupas ou virar escravas... e
havia perigos ainda piores, que os pais apenas insinuavam. E mesmo
que escapassem desses perigos, as crianas ainda corriam o risco de
ser aoitadas pelos pais, por ter violado as regras. Mas Caris
parecia no ter medo, e Merthin no queria parecer menos corajoso do
que ela. Alm do mais, a maneira brusca como fora dispensado pelo
constable levava-o a ser desafiador. - Est bem. Mas precisamos ter
certeza de que ningum nos ver. Caris tinha uma soluo. - Conheo um
caminho. Ela seguiu na direo do rio. Merthin e Ralph foram atrs. Um
cachorro pequeno, de trs pernas, acompanhou-os. - Qual o nome do
seu cachorro? - perguntou Merthin a Caris. - Ele no meu. Mas
dei-lhe um pedao de toucinho mofado e agora no consigo me livrar
dele. Foram andando pela margem lamacenta do rio, passando por
armazns, cais e barcaas. Merthin estudava discretamente a garota
que se tornara lder sem qualquer esforo. Tinha um rosto quadrado e
determinado, que no era bonito nem feio. Havia malcia nos olhos,
que eram esverdeados, com manchas de um castanho dourado. Os
cabelos castanho-claros estavam presos em duas trancas, como era a
moda entre as mulheres das classes mais prsperas. As roupas eram
caras, mas as botas, prticas, de couro, em vez dos sapatos de pano
bordados que as damas da nobreza preferiam. Ela afastou-se do rio.
Passaram por uma serraria e entraram numa rea de mato baixo.
Merthin sentiu uma pontada de apreenso. Agora que estavam na
floresta, onde poderia haver um bandido espreita por trs de
qualquer carvalho, ele se arrependia de sua bravata; mas ficaria
envergonhado se recuasse. Continuaram a andar, procura de uma
clareira bastante larga para praticar com arco e flecha. Caris
disse, em voz baixa, num tom de conspirao: - Esto vendo aquela
moita grande de azevinho? - Claro. - Assim que passarmos por ali,
agachem-se junto comigo e no faam barulho. - Por qu? - J vai
descobrir. Um momento depois, Merthin, Ralph e Caris agacharam-se
por trs da moita. O cachorro de trs pernas sentou tambm, olhando
esperanoso para Caris. Ralph
- 23. comeou a fazer uma pergunta, mas Caris fez um gesto para
que se calasse. Um minuto depois, uma menina apareceu. Caris
levantou-se de um pulo e segurou-a. A menina gritou. - No grite! -
ordenou Caris. - Estamos perto da estrada e no queremos ser
ouvidos. Por que est nos seguindo? - Vocs esto com meu cachorro, e
ele no quer voltar! - soluou a menina. - Conheo voc... nos
encontramos na catedral esta manh - disse Caris, com a voz mais
suave. - No precisa gritar. No vamos lhe fazer nenhum mal. Qual o
seu nome? - Gwenda. - E o cachorro? - Hop. Gwenda pegou o cachorro,
que lambeu suas lgrimas. - Est com ele agora. melhor continuar
conosco, porque ele pode fugir de novo. Alm do mais, no conseguiria
encontrar o caminho de volta para a cidade sozinha. Continuaram a
andar. Merthin perguntou: - O que tem oito braos e onze pernas? -
Eu desisto - disse Ralph no mesmo instante. Ele sempre desistia. -
Eu sei - disse Caris, sorrindo. - Somos ns. Quatro crianas e o
cachorro. Ela riu e arrematou: - Essa boa. Merthin ficou
satisfeito. As pessoas nem sempre entendiam suas piadas; as garotas
quase nunca. Um momento depois, eles ouviram Gwenda explicar a
Ralph: - Dois braos, mais dois braos, mais dois braos, mais dois
braos, fazem oito. Duas pernas... No viram ningum, o que era timo.
As poucas pessoas que tinham atividades legtimas na floresta -
lenhadores, queimadores de carvo, aqueles que fundiam ferro - no
trabalhariam naquele dia; e seria excepcional encontrar um grupo de
aristocratas caando no domingo. Os que por acaso se reunissem ali,
naquele dia, s poderiam ser malfeitores. Mas as chances de
encontr-los eram mnimas. A floresta era grande, estendendo-se por
muitos quilmetros. Merthin nunca viajara bastante longe para ver o
fim daquela floresta. Alcanaram uma clareira larga e Merthin disse:
- Aqui est bom. Havia um carvalho com um tronco largo no outro lado
da clareira, a cerca de quinze metros de distncia. Merthin ficou de
lado para o alvo, como vira os homens fazerem. Pegou uma de suas
trs flechas e ajustou a ponta com uma reentrncia na corda do arco.
Tivera tanta dificuldade para fazer as flechas quanto encontrara
com o arco. A madeira era freixo e as penas eram de ganso.
- 24. No conseguira arrumar ferro para as pontas, por isso se
limitara a afi-las e calcin-las, para que ficassem duras. Mirou o
carvalho. Puxou a corda do arco. Precisou fazer o maior esforo.
Lanou a flecha. Caiu no cho antes de atingir o alvo. Hop, o
cachorro, correu atravs da clareira para busc-la. Merthin ficou
consternado. Esperava que a flecha voasse pelo ar, zunido, e a
ponta cravasse no tronco. Compreendia agora que no puxara o arco
pelo espao necessrio. Tentou com o arco na mo direita e a flecha na
esquerda. Era excepcional sob esse aspecto, porque no era canhoto
nem destro, mas uma mistura. Com a segunda flecha, puxou a corda
ainda mais, e conseguiu dobrar o arco mais do que antes. Desta vez,
a flecha quase tocou no carvalho. No terceiro disparo, ele apontou
para cima, na esperana de que a flecha voasse num arco, e descesse
em cima do tronco. Mas exagerou e a flecha passou entre os galhos,
caindo no cho com uma chuva de folhas secas amareladas. Merthin
sentiu-se embaraado. Atirar com um arco era mais difcil do que ele
imaginara. O arco provavelmente era bom, ele refletiu; o problema
era sua competncia... ou melhor, falta de competncia. Mais uma vez,
Caris pareceu no perceber seu constrangimento. - Deixe-me tentar -
pediu ela. - Garotas no podem atirar - interveio Ralph. Ele tirou o
arco de Merthin. Ficou de lado para o alvo, como Merthin o fizera,
mas no atirou de imediato; em vez disso, puxou o arco vrias vezes,
para ter uma noo. Como Merthin, descobriu que era mais duro do que
previra a princpio. Mas, depois de alguns momentos, pareceu pegar o
jeito. Hop largara as trs flechas aos ps de Gwenda, que agora as
pegou e estendeu para Ralph. Ele mirou sem puxar a corda, apontando
a flecha para o tronco enquanto no havia presso de seus braos.
Merthin compreendeu que deveria ter feito a mesma coisa. Por que
essas coisas eram to naturais para Ralph, que no era capaz de
responder ao enigma mais simples? Ralph puxou a corda, no sem
esforo, mas num movimento fluido, parecendo sustentar a tenso com
as coxas. Soltou a flecha e acertou no tronco do carvalho, a ponta
penetrando por dois ou trs centmetros na casca externa mais mole.
Ralph soltou uma risada triunfante. Hop saiu correndo atrs da
flecha. Parou quando alcanou a rvore, aturdido. Ralph j estava
puxando a corda do arco outra vez. Merthin percebeu o que ele
tencionava fazer. - No... Mas era tarde demais. Ralph atirou no
cachorro. A flecha acertou-o atrs do pescoo e afundou. Hop tombou
para a frente e ficou se contorcendo.
- 25. Gwenda soltou um grito desesperado. Caris exclamou: - Oh,
no! As duas saram correndo na direo do cachorro. Ralph exibiu um
sorriso. - O que acha disso? - indagou ele, orgulhoso. - Voc atirou
no cachorro dela! - berrou Merthin, furioso. - No tem importncia...
o bicho s tinha trs pernas. - Mas a menina gostava dele, seu
idiota! Olhe s como ela est chorando! - Voc s est com inveja porque
no sabe atirar. Alguma coisa atraiu a ateno de Ralph. Com um
movimento gil, ele prendeu outra flecha na corda, puxou-a, virou o
arco, e disparou, sem qualquer pausa. Merthin no viu no que ele
atirava, at que a flecha atingiu o alvo, uma gorda lebre saltando
pelo ar, ferida nos quartos traseiros. Merthin no pde ocultar sua
admirao. Mesmo com prtica, nem todos conseguiam acertar uma lebre
em disparada. Ralph possua um talento natural. Merthin sentia
inveja, embora nunca fosse admitir. Ansiava em ser um cavaleiro,
bravo e forte, e lutar pelo rei, como o pai fazia; e sentia-se
consternado ao descobrir que era um caso perdido, que nem sabia
como atirar com arco e flecha. Ralph pegou uma pedra e esmagou o
crnio da lebre, acabando com seu sofrimento. Merthin foi se
ajoelhar ao lado das duas meninas e de Hop. O cachorro no estava
mais respirando. Caris, gentilmente, tirou a flecha de seu pescoo e
entregou a Merthin. No houve fluxo de sangue. Hop estava mesmo
morto. Por um momento, ningum disse nada. No silncio, ouviram um
homem gritar. Merthin levantou-se de um pulo, o corao batendo
forte. Ouviram outro grito, uma voz diferente: havia mais de uma
pessoa. Eram vozes agressivas e furiosas. Havia uma luta ali perto.
Merthin ficou apavorado, tanto quanto as outras crianas.
Paralisados, escutando, eles ouviram outro som, o barulho de um
homem correndo impetuoso pela floresta, pisando em galhos cados,
achatando rvores novas, pisoteando folhas mortas. E se aproximava
da clareira. Caris foi a primeira a falar: - A moita! Ela apontou
para uma moita grande, formada por vrias plantas... provavelmente o
lugar em que se abrigava a lebre que Ralph matara, pensou Merthin.
Um momento depois, ela estava deitada de barriga para baixo,
rastejando pela moita. Gwenda seguiu-a, com o corpo de Hop nos
braos. Ralph pegou a lebre morta e foi se juntar aos outros.
Merthin estava de joelhos, vigiando a clareira, quando compreendeu
que haviam deixado uma flecha denunciadora espetada no tronco do
carvalho. Correu atravs da clareira, arrancou-a, e voltou para
mergulhar por baixo da moita. Ouviram o homem respirar antes de
avist-lo. Ofegava bastante enquanto corria,
- 26. aspirando o ar com um esforo que indicava que quase no
aguentava mais. Seus perseguidores continuavam a gritar, avisando
um ao outro: - Por aqui... ele seguiu nesta direo! Merthin recordou
que Caris dissera que no estavam longe da estrada. O homem em fuga
seria um viajante que fora atacado por salteadores? Um momento
depois, ele apareceu na clareira. Era um cavaleiro, de vinte e
poucos anos, com uma espada e uma adaga comprida presas no cinto.
Estava bem vestido, numa tnica de couro para viagem, botas de cano
alto, as bordas superiores viradas. Cambaleou e caiu, rolou,
levantou-se, encostou no carvalho, ofegante. Sacou suas armas.
Merthin olhou para os outros. Caris estava branca de medo, mordendo
o lbio. Gwenda apertava o corpo do cachorro morto como se isso a
fizesse se sentir mais segura. Ralph tambm parecia assustado, mas
no tanto que o impedisse de arrancar a flecha da lebre e meter a
carcaa por dentro da tnica. Por um momento, o cavaleiro olhou
fixamente para a moita. Merthin sentiu, com um terror total, que
ele vira as crianas escondidas ali. Ou talvez notasse os gravetos
quebrados e folhas pisoteadas por onde haviam passado. Pelo canto
do olho, Merthin viu que Ralph prendia uma flecha no arco. No
instante seguinte, os perseguidores apareceram. Eram dois homens de
armas, corpulentos, empunhando suas espadas. Usavam tnicas
distintivas, de duas cores, o lado esquerdo amarelo, o lado direito
verde. Um deles usava um manto marrom de l ordinria, o outro, um
manto preto encardido. Todos os trs ficaram parados, recuperando o
flego. Merthin tinha certeza de que estava prestes a ver o
cavaleiro ser retalhado at a morte, e sentiu um impulso vergonhoso
de desatar a chorar. At que, subitamente, o cavaleiro virou a
espada e estendeu-a, o cabo virado para a frente, num gesto de
rendio. O mais velho dos homens de armas, o que usava o manto
preto, adiantou-se e estendeu a mo esquerda. Cauteloso, pegou a
espada estendida, entregou-a a seu companheiro, e aceitou depois a
adaga do cavaleiro, antes de dizer: - No so suas armas que eu
quero, Thomas Langley. - Voc me conhece, mas eu no o conheo. - Se
Thomas sentia algum medo, mantinha-o sob controle. - Pelas tnicas,
devem ser homens da rainha. O homem mais velho encostou a ponta da
espada na garganta de Thomas e empurrou-o contra a rvore. - Voc tem
uma carta. - Instrues do conde para o xerife sobre a questo dos
impostos. Pode ler vontade. Era uma piada. Os homens de armas,
quase com certeza, no sabiam ler. Thomas tinha muita coragem e
calma, pensou Merthin, para escarnecer de homens que pareciam
dispostos a mat-lo. O segundo homem de armas passou por baixo da
espada do primeiro e pegou a
- 27. carteira presa no cinto de Thomas. Impaciente, cortou o
cinto com sua espada. Jogou o cinto para o lado e abriu a carteira.
Tirou uma bolsa pequena, que parecia ser feita de l oleada. Pegou
um pergaminho enrolado, lacrado com cera. Aquela luta poderia ser
apenas por causa de uma carta?, especulou Merthin. Se era isso
mesmo, ento o que estava escrito no pergaminho? No era provvel que
fossem instrues rotineiras sobre impostos. Algum terrvel segredo
devia estar escrito ali. - Se voc me matar - disse o cavaleiro -, o
crime ser testemunhado por quem se esconde naquela moita. A cena
ficou paralisada por uma frao de segundo. O homem de manto preto
manteve a espada encostada na garganta de Thomas, resistindo tentao
de olhar para trs. O homem de verde hesitou, mas acabou olhando
para a moita. Foi nesse instante que Gwenda gritou. O homem de
verde ergueu a espada e deu duas passadas largas atravs da
clareira, na direo da moita. Gwenda levantou-se e saiu correndo,
deixando a folhagem. O homem de armas partiu em seu encalo,
estendendo a mo para agarr-la. Ralph tambm se levantou. Ergueu o
arco e atirou a flecha contra o homem, no mesmo movimento.
Acertou-o no olho e afundou na cabea por vrios centmetros. O homem
ergueu a mo esquerda, como se quisesse pegar a flecha e arranc-la,
mas depois ficou inerte e caiu como um saco de trigo, batendo no
cho com um baque to forte que Merthin pde sentir o tremor. Ralph
tambm saiu correndo da moita e seguiu Gwenda. A beira de seu campo
de viso, Merthin percebeu que Caris agora corria atrs deles.
Merthin queria fugir tambm, mas seus ps pareciam enraizados no
solo. Soou um grito no outro lado da clareira. Merthin viu que
Thomas derrubara a espada que o ameaava e sacara, de algum lugar do
corpo, uma pequena faca, a lmina com a extenso da mo de um homem.
Mas o homem de armas de manto preto estava alerta, e pulou para
trs, fora do alcance da faca. Depois, ergueu a espada e desferiu um
golpe, visando a cabea do cavaleiro. Thomas esquivou-se, mas no com
a rapidez suficiente. A beira da lmina atingiu seu brao esquerdo,
cortando o couro e alcanando a carne. Ele soltou um uivo de dor,
mas no caiu. Com um movimento rpido, que pareceu extremamente
gracioso, levantou a mo direita e atingiu a garganta do oponente; e
com a mo ainda em movimento, descrevendo um arco, puxou a faca para
o lado, cortando a maior parte do pescoo. O sangue esguichou da
garganta do homem, como gua saindo de uma fonte. O homem de preto
tombou, a cabea pendendo do corpo apenas por uma pequena tira.
Thomas largou a faca e estendeu a mo direita para segurar o brao
esquerdo
- 28. ferido. Sentou no cho, parecendo subitamente fraco. Merthin
estava sozinho com o cavaleiro ferido, dois homens de armas mortos
e o cadver de um cachorro de trs pernas. Sabia que deveria correr
atrs das outras crianas, mas a curiosidade prevaleceu. Thomas
parecia agora inofensivo, ele disse a si mesmo. O cavaleiro tinha
uma boa vista. Pode sair da moita agora - disse ele. - No sou mais
um perigo para voc veja o estado em que me encontro. Hesitante,
Merthin levantou-se e saiu da moita. Atravessou a clareira e foi
parar a alguns passos de distncia do cavaleiro sentado no cho.
Thomas disse: - Ser aoitado se descobrirem que estava brincando na
floresta. Merthin acenou com a cabea em concordncia. - Guardarei
seu segredo, se voc guardar o meu. Merthin tornou a acenar com a
cabea. Ao aceitar o acordo, ele no fazia concesses. Nenhuma das
crianas contaria o que vira. Haveria problemas incalculveis se
falassem. O que aconteceria com Ralph, que matara um dos homens da
rainha? - Poderia fazer o favor de me ajudar a passar uma atadura
neste ferimento? pediu Thomas. Apesar de tudo o que acontecera, ele
falava com extrema cortesia, pensou Merthin. O controle do
cavaleiro era extraordinrio. Merthin sentiu que queria ser como ele
quando crescesse. Depois de um longo esforo, a garganta apertada de
Merthin conseguiu emitir uma palavra. - Claro. - Pegue aquele cinto
rasgado e enrole no meu brao. Merthin fez o que ele mandou. A
camisa de Thomas estava encharcada de sangue e a carne do brao,
aberta, como um pedao de carne no cepo do aougueiro. Merthin
sentiu-se um pouco nauseado, mas forou-se a passar o cinto em torno
do brao de Thomas, para fechar o ferimento e diminuir a hemorragia.
Deu um n, e Thomas usou a mo direita para apert-lo ao mximo
possvel. Depois, com um enorme esforo, Thomas conseguiu se
levantar. Olhou para os homens mortos. - No podemos enterr-los. Eu
sangraria at a morte antes que as sepulturas acabassem de ser
escavadas. - Ele lanou um olhar para Merthin. - Mesmo com voc me
ajudando. Thomas pensou por um momento. - Por outro lado, no quero
que sejam encontrados por algum casal de namorados procurando um
lugar para... ficar a ss. Vamos arrastar os corpos para aquela
moita em que vocs se escondiam. O homem do manto verde
- 29. primeiro. Os dois foram at o morto indicado. - Cada um
segura uma perna - disse Thomas. Com a mo direita, ele pegou o
tornozelo esquerdo do homem. Merthin pegou o outro p, com as duas
mos. Juntos, arrastaram o morto at a moita, ao lado do corpo de
Hop. - Aqui est bom - decidiu Thomas. Ele tinha o rosto branco de
tanta dor. Depois de um momento, abaixou-se e arrancou a flecha do
olho do morto. - sua? - indagou, alteando uma sobrancelha. Merthin
pegou a flecha e limpou-a na terra, para remover o sangue e o
crebro grudado. Em seguida, arrastaram o corpo do outro homem
atravs da clareira, da mesma maneira, a cabea quase solta balanando
de um lado para outro. Deixaram-no ao lado do primeiro. Thomas
pegou as espadas dos dois atacantes e jogou-as na moita. Depois,
recuperou suas prprias armas. - Agora, tenho de pedir que me faa um
grande favor. - Thomas estendeu a adaga. - Pode cavar um pequeno
buraco para mim? - Est bem. Merthin pegou a adaga. - Bem aqui, na
frente do carvalho. - De que tamanho? Thomas pegou a carteira de
couro que estava presa em seu cinto. - Grande o suficiente para
esconder isto por cinquenta anos. Merthin tomou coragem para
perguntar: - Por qu? - Cave e lhe contarei tudo o que posso contar.
Merthin fez um quadrado no solo com a adaga e usou-a para afofar a
terra fria, antes de retir-la com as mos. Thomas pegou o
pergaminho, o ps na bolsa de l e ajeitou-o dentro da carteira. -
Recebi esta carta para entregar ao conde de Shiring. Mas contm um
segredo to perigoso que compreendi que o portador seria morto, para
se ter certeza de que no poderia revel-lo. Por isso, eu precisava
desaparecer. Decidi que procuraria santurio num mosteiro, e me
tornaria um monge. Estou cansado de lutar e tenho muitos pecados de
que me arrepender. Assim que perceberam meu desaparecimento, as
pessoas que me deram a carta comearam a me procurar... e tive azar.
Fui visto e reconhecido numa taverna em Bristol. - Por que os
homens da rainha o perseguiam? - Ela tambm gostaria de impedir a
revelao do segredo. Quando o buraco cavado por Merthin tinha quase
meio metro de profundidade, Thomas disse:
- 30. - J suficiente. Ele largou a carteira no buraco. Merthin
tapou-o com a terra retirada. Thomas cobriu a terra revirada com
folhas e gravetos, at que ficou indistinguvel da rea ao redor. - Se
souber que eu morri, gostaria que abrisse o buraco e entregasse a
carta a um padre - pediu Thomas. - Pode fazer isso por mim? -
Claro. - At que isso acontea, no deve contar a ningum. Enquanto
souberem que tenho a carta, mas ignorarem onde est, tero medo de
fazer qualquer coisa. Mas, se voc revelar o segredo, duas coisas vo
acontecer. Primeiro, eles me mataro. Depois, mataro voc. Merthin
ficou transtornado. Era injusto que corresse tanto perigo s porque
ajudara um homem, cavando um buraco. - Lamento assust-lo -
acrescentou Thomas. - Mas tambm a culpa no toda minha. Afinal, no
pedi que viesse at aqui. - No, no pediu. Merthin desejou com toda a
fora do corao ter obedecido ordem da me e se mantido longe da
floresta. - Voltarei para a estrada agora. Por que voc no retorna
pelo caminho por onde veio? Aposto que encontrar seus amigos
esperando em algum lugar perto daqui. Merthin virou-se para ir
embora. - Qual o seu nome? - perguntou Thomas, antes que ele se
afastasse. - Merthin, filho de Sir Gerald. - mesmo? - disse Thomas,
como se conhecesse o pai. - No conte nada, nem mesmo para ele.
Merthin acenou com a cabea e partiu. Vomitou depois de percorrer
cinquenta metros. E sentiu-se um pouco melhor. Como Thomas previra,
os outros esperavam-no beira da floresta, perto da serraria.
Agruparam-se ao seu redor, tocando-o, como se quisessem se
certificar de que ele estava mesmo bem. Pareciam aliviados, mas
tambm envergonhados, como se estivessem se sentindo culpados por
t-lo deixado para trs. Estavam todos abalados, at mesmo Ralph, que
balbuciou: - Aquele homem... em quem acertei a flechada... ele
ficou muito ferido? - Ele morreu. Merthin mostrou a flecha, ainda
suja de sangue. - Arrancou a flecha do olho dele? Merthin gostaria
de dizer que sim, mas decidiu dizer a verdade. - Foi o cavaleiro
quem tirou. - O que aconteceu com o outro homem de armas? - O
cavaleiro cortou sua garganta. E depois escondemos os corpos na
moita. - E ele deixou voc ir embora? - Deixou.
- 31. Merthin no disse nada sobre a carta enterrada. - Temos de
guardar segredo - declarou Caris. - Haver problemas terrveis se
algum descobrir. - Nunca contarei a ningum - disse Ralph. - Devemos
fazer um juramento - insistiu Caris. Formaram um pequeno crculo.
Caris estendeu o brao, para que sua mo ficasse no centro do crculo.
Merthin ps sua mo por cima. A pele de Caris era macia e quente.
Ralph estendeu a mo tambm. Gwenda fez a mesma coisa. Juraram pelo
sangue de Jesus. E voltaram cidade. A prtica de arco-e-flecha j
terminara, e se aproximava o momento da refeio do meio-dia. Ao
atravessarem a ponte, Merthin comentou com Ralph: - Quando eu
crescer, quero ser como aquele cavaleiro... sempre corts, sem nunca
sentir medo, mortfero numa luta. - Eu tambm - disse Ralph. - Quero
ser mortfero. Na cidade, Merthin experimentou um sentimento
irracional de surpresa por descobrir que a vida normal continuava:
o som de bebs chorando, o cheiro de carne assando, a viso de homens
tomando cerveja fora das tavernas. Caris parou diante de uma casa
enorme, na rua principal, na frente da entrada para o priorado.
Estendeu o brao pelos ombros de Gwenda e disse: Minha cachorra
acaba de ter filhotes. Quer ver os filhotes? Gwenda ainda parecia
assustada, beira das lgrimas, mas acenou com a cabea, enftica. -
Quero, sim, por favor. Era uma manobra hbil, alm de gentil, pensou
Merthin. Os filhotes seriam um conforto para a menina... e tambm
uma distrao. Quando voltasse para sua famlia, contaria sobre os
filhotes e era menos provvel que falasse da aventura na floresta.
Despediram-se. As meninas entraram na casa. Merthin descobriu-se a
pensar em quando veria Caris de novo. At que se lembrou dos outros
problemas. O que o pai faria em relao s dvidas? Merthin e Ralph
chegaram catedral. Ralph ainda levava o arco e a lebre morta. O
hospital estava vazio, exceto por uns poucos doentes. Uma freira
informou: - O pai de vocs est na catedral, com o conde de Shiring.
Os dois entraram na vasta catedral. Os pais estavam no vestbulo. A
me sentava junto de uma coluna, no canto em que a coluna redonda se
aproximava do canto quadrado. A luz fria que passava pelas janelas
altas, seu rosto era sereno, quase como se esculpido da mesma pedra
cinzenta da coluna em que encostava a cabea. O pai mantinha-se de p
ao seu lado, os ombros largos arriados numa
- 32. atitude de resignao. O conde Roland se encontrava na frente
dos dois. Era mais velho do que o pai, mas parecia mais jovem por
causa dos cabelos pretos e dos movimentos vigorosos. O prior
Anthony estava ao lado do conde. Os dois meninos recuaram quando
viram a cena, mas a me fez sinal para que se adiantassem. - Venham
at aqui - disse ela. - O conde Roland ajudou-nos a chegar a um
acordo com o prior Anthony que resolve todos os nossos problemas. O
pai soltou um grunhido, como se no se sentisse to grato quanto a me
pelo que o conde fizera. - E o priorado fica com as minhas terras -
disse ele. - Vocs dois no tero nada para herdar. - Passaremos a
viver aqui, em Kingsbridge - explicou a me, em tom mais animado. -
Seremos corrodirios do priorado. - O que um corrodirio? - perguntou
Merthin. - Significa que os monges nos daro uma casa para viver e
duas refeies por dia, pelo resto de nossas vidas. No maravilhoso?
Merthin compreendeu que ela no pensava de fato que era maravilhoso.
Apenas fingia estar satisfeita. J o pai sentia uma vergonha
evidente de ter perdido suas terras. Havia mais do que uma insinuao
de desgraa nisso, concluiu Merthin. O pai olhou para o conde. - O
que vai acontecer com meus meninos? O conde Roland virou-se para
examin-los. - O maior parece promissor - disse ele. - Foi voc que
matou essa lebre? - Fui, sim, milorde - respondeu Ralph, orgulhoso.
- Acertei-a com uma flecha. - Ele pode me procurar dentro de poucos
anos para ser um pajem, um aprendiz de cavaleiro. O pai parecia
satisfeito. Merthin sentia-se atordoado. Grandes decises estavam
sendo tomadas muito depressa. Ficou indignado pelo fato de o irmo
mais jovem ser privilegiado, enquanto no faziam nenhuma meno a ele.
- Isso no justo! - protestou Merthin. - Tambm quero ser um
cavaleiro! - No! - exclamou a me. - Mas eu fiz o arco! O pai deixou
escapar um suspiro exasperado. - Foi voc quem fez o arco, pequeno?
- disse o conde, com uma expresso desdenhosa. - Neste caso, ser
aprendiz de carpinteiro.
- 33. 3 A casa de Caris era um prdio de madeira luxuoso, com cho
de pedra e uma chamin de pedra. Havia trs cmodos separados no
trreo: a sala com a grande mesa de jantar, a sala pequena em que o
pai podia tratar de negcios em particular, e a cozinha. Quando
Caris e Gwenda entraram, a casa estava impregnada pelo aroma
apetitoso de pernil assando. Caris levou Gwenda pela sala grande,
at a escada interna. - Onde esto os filhotes? - perguntou Gwenda. -
Quero ver minha me primeiro - explicou Caris. - Ela est doente.
Entraram no quarto da frente, onde a me deitava numa cama de
madeira toda esculpida. Era uma mulher pequena e frgil; Caris j
tinha a mesma altura da me. Ela achou que a me parecia mais plida
do que o habitual hoje, vrios fios dos cabelos ainda no arrumados
grudados no rosto molhado de suor. - Como se sente, mame? -
perguntou Caris. - Um pouco fraca hoje. O esforo de falar deixou a
me ofegante. Caris sentiu uma mistura familiar e angustiante de
ansiedade e desamparo. A me estava doente havia um ano. Comeara com
dores nas juntas. Logo passara a ter lceras dentro da boca e
equimoses inexplicadas pelo corpo. Sentia-se fraca demais para
fazer qualquer coisa. Na semana passada pegara um resfriado. Agora,
tinha febre e dificuldade para respirar. - Precisa de alguma coisa?
- No, obrigada. Era a resposta habitual, mas Caris sentia-se
enfurecida com a prpria impotncia cada vez que a ouvia. - Devo
chamar madre Cecilia? A prioresa de Kingsbridge era a nica pessoa
capaz de proporcionar algum conforto me. Ela tinha um extrato de
papoulas que misturava com mel e vinho quente para atenuar a dor
por algum tempo. Caris achava que Cecilia era melhor do que um
anjo. - No h necessidade, querida. Como foi o servio de Todos os
Santos? Caris notou que os lbios da me estavam muito plidos. -
Assustador. A me fez uma pausa, descansando um pouco, antes de
perguntar: - O que fez esta manh? - Fui assistir prtica de
arco-e-flecha. Caris prendeu a respirao, com medo de que a me
pudesse adivinhar seu segredo culpado, como acontecia com frequncia
Mas a me olhou para Gwenda. - Quem sua amiguinha?
- 34. - Gwenda. Eu a trouxe at aqui para ver os filhotes. - Isso
timo. A me mostrou-se subitamente cansada. Fechou os olhos e virou
a cabea para o lado. As meninas deixaram o quarto sem fazer
barulho. Gwenda estava chocada. - O que h de errado com ela? - Ela
tem uma doena debilitante. Caris detestava falar a respeito. A
doena da me deixava-a com o sentimento enervante de que nada era
certo, qualquer coisa poderia acontecer, no havia nenhuma segurana
no mundo. Era ainda mais assustadora do que a luta que testemunhara
na floresta. Se pensava no que poderia acontecer, na possibilidade
da morte da me, sofria uma sensao de pnico que deixava o corao
palpitando e dava vontade de gritar. O quarto do meio era usado no
vero pelos italianos, compradores de l de Florena e Prato, que
vinham fazer negcios com o pai. Agora, estava vazio. Os filhotes se
encontravam no quarto dos fundos, que pertencia a Caris e sua irm,
Alice. Tinham sete semanas de idade, prontos para deixar a me, que
se mostrava cada vez mais impaciente com as crias. Gwenda soltou um
suspiro de alegria, e se abaixou no mesmo instante para ficar no
cho com os filhotes. Caris pegou uma fmea, a menor da ninhada, mas
bastante animada, sempre se aventurando sozinha para explorar o
mundo. - Ficarei com esta - comentou ela. - Seu nome Scrap. Segurar
a cachorrinha acalmou-a, e ajudou-a a esquecer as outras coisas que
a perturbavam. Os outros quatro animais subiram em Gwenda,
farejando-a e mastigando seu vestido. Ela pegou um macho, feio,
marrom, o focinho comprido, os olhos muito juntos. - Gosto deste -
murmurou ela. O filhote enroscou-se em seu colo. Caris disse: -
Gostaria de ficar com ele? Lgrimas afloraram aos olhos de Gwenda. -
Temos permisso para dar todos os filhotes. - mesmo? - Papai no quer
mais cachorros. Se voc quiser, pode levar. - Quero, sim - sussurrou
Gwenda. - Muito obrigada. - J tem um nome? - Alguma coisa que me
lembre Hop. Talvez eu o chame de Skip. Era uma referncia expresso
bop, skip and a jump, um pulo, outro pulo e um salto, para designar
uma distncia curta. - um bom nome. Caris percebeu que Skip j
adormecera no colo de Gwenda. As duas meninas
- 35. continuaram sentadas no cho com os filhotes, em silncio.
Caris pensou nos dois meninos que haviam conhecido, o pequeno, de
cabelos vermelhos e olhos castanho dourados, e seu irmo mais jovem,
alto e bonito. O que a impelira a lev-los para a floresta? No era a
primeira vez que ela cedia a um impulso estpido. Tendia a acontecer
quando algum de autoridade ordenava que ela no fizesse alguma
coisa. Sua tia Petranilla vivia ditando regras: - No d comida a
esse gato ou nunca vamos nos livrar dele. Nada de jogo de bola em
casa. Fique longe daquele menino, pois sua famlia de camponeses.
Regras que reprimiam seu comportamento pareciam levar Caris
loucura. Mas ela nunca fizera nada to insensato. E sentiu-se
abalada agora ao pensar a respeito. Dois homens haviam morrido. Mas
o que poderia acontecer era ainda pior. As quatro crianas poderiam
ter sido mortas tambm. Ela especulou sobre o motivo da luta, por
que os homens de armas perseguiam o cavaleiro. Obviamente, no era
um simples assalto. Haviam falado de uma carta. Mas Merthin no
dissera mais nada a respeito. Era bem provvel que no tivesse sabido
de mais nada. Ou seja, era apenas outro mistrio da vida adulta.
Caris gostara de Merthin. Seu irmo, insuportvel, era como todos os
outros meninos de Kingsbridge, fanfarro e agressivo, alm de
estpido. Mas Merthin era diferente. Ela sentira-se atrada desde o
incio. Duas novas amizades em um nico dia, pensou ela, olhando para
Gwenda. A menina no era bonita. Tinha olhos castanho-escuros bem
juntos, por cima de um nariz adunco. Escolhera um cachorro que
parecia um pouco com ela, compreendeu Caris, divertida. As roupas
de Gwenda eram velhas e deviam ter sido usadas por muitas outras
crianas antes. Gwenda estava mais calma agora. No dava mais a
impresso de que poderia desatar a chorar a qualquer momento. E ela
tambm sentia-se tranquilizada pelos filhotes. Soaram passos
familiares na sala l embaixo. Um momento depois, uma voz berrou: -
Tragam-me um jarro de cerveja, pelo amor dos santos! Estou com mais
sede que um cavalo de carroa! - meu pai - anunciou Caris. - Venha
comigo para conhec-lo. Ao perceber que Gwenda estava apreensiva,
ela acrescentou: - No se preocupe. Ele sempre grita assim, mas um
homem bom. As meninas desceram com os filhotes. - O que aconteceu
com todos os meus criados? - esbravejou o pai. - Fugiram para a
terra dos duendes? Ele saiu da cozinha, arrastando a perna direita
torta, como sempre, carregando uma enorme caneca de madeira, com a
cerveja ameaando derramar. - Ol, meu boto-de-ouro! A voz com que
ele se dirigiu a Caris era mais suave. Sentou numa cadeira enorme,
cabeceira da mesa, e tomou um gole prolongado da caneca.
- 36. - Assim melhor. - Ele enxugou a barba irregular com a
manga. Notou a presena de Gwenda. - Uma pequena margarida para
acompanhar meu boto- de-ouro? Como seu nome? - Gwenda, de Wigleigh,
milorde - respondeu ela, apavorada. - Dei um filhote a ela -
explicou Caris. - Uma tima idia! Os filhotes precisam de ateno, e
ningum pode amar mais um filhote do que uma menina. Caris viu, no
banco ao lado da mesa, um manto escarlate. S podia ser importado,
porque os tintureiros ingleses no sabiam como obter aquele vermelho
brilhante. Seguindo o olhar da filha, o pai explicou: - para sua
me. Ela sempre quis ter um casaco de vermelho italiano. Espero que
isto a encoraje a melhorar logo para vesti-lo. Caris tocou no
casaco. A l era macia e fechada, como s os italianos sabiam fazer.
- lindo - murmurou ela. Tia Petranilla veio da rua. Tinha alguma
semelhana com o pai, mas era muito contida, enquanto o irmo era
expansivo. Parecia mais com o outro irmo, Anthony, o prior de
Kingsbridge: eram ambos altos e imponentes, enquanto o pai era
baixo, de peito estufado, e manco. Caris no gostava de Petranilla.
Ela era esperta e mesquinha, uma combinao terrvel num adulto: Caris
nunca conseguia engan-la. Gwenda sentiu a averso de Caris e olhou
apreensiva para a recm-chegada. S que o pai se mostrou satisfeito
ao v-la. - Entre, irm - disse ele. - Onde esto todos os meus
criados? - No sei por que voc imagina que eu sei, j que venho de
minha prpria casa, no outro lado da rua. Mas, se tivesse de
adivinhar, Edmund, eu diria que sua cozinheira est no galinheiro,
procura de ovos para fazer um pudim, enquanto a outra criada est l
em cima, ajudando sua esposa a sentar num banco, o que costuma
fazer por volta de meio-dia. E espero que seus dois aprendizes
estejam de guarda no armazm beira do rio, cuidando para que nenhum
dos festeiros embriagados neste dia de festa resolva acender uma
fogueira a distncia de um voo de fasca de sua l. Ela costumava
falar assim mesmo, fazendo um pequeno sermo em resposta pergunta
mais simples. Seu comportamento era arrogante, mas o pai no se
importava... ou fingia no se importar. - Minha extraordinria irm -
disse ele. - Voc a nica que herdou a sabedoria de nosso pai. Ela
virou-se para as meninas. - Nosso pai descendia de Tom Builder, o
padrasto e mentor de Jack Builder, que foi o arquiteto da catedral
de Kingsbridge. O pai prometeu que daria seu primognito a Deus, mas
infelizmente fui a primeira criana a nascer. Ele me
- 37. deu o nome de Santa Petranilla... que era filha de So
Pedro, como tenho certeza que sabem... e rezou para que nascesse um
menino em seguida. E nasceu um menino, s que era deformado, Como no
queria dar a Deus um presente defeituoso, ele criou Edmund para
assumir o negcio de l. Felizmente veio outro menino em seguida,
nosso irmo Anthony, bem-comportado e temente a Deus, que ingressou
no mosteiro ainda pequeno, para se tornar agora, como todos nos
orgulhamos de proclamar, o prior. Ela teria se tornado sacerdote se
fosse homem, mas tivera de se contentar em fazer a melhor coisa
seguinte, criando o filho Godwyn para ser um monge no priorado.
Como o av Wooler, Petranilla entregara um filho a Deus. Caris
sempre sentira pena de Godwyn, seu primo mais velho, por ser filho
de Petranilla. Petranilla notou o casaco vermelho. - De quem isto?
- indagou ela. - o tecido italiano mais caro! - Comprei para Rose -
disse o pai. Petranilla fitou-o fixamente. Caris podia sentir que
ela estava pensando que o irmo era um tolo ao comprar um casaco
como aquele para uma mulher que no saa de casa havia um ano. Mas
ela limitou-se a fazer um comentrio, que podia ser encarado como um
elogio... ou no: - Voc muito bom para ela. O pai no se importou. -
Suba para v-la exortou ele. - Vai anim-la. Caris duvidava, mas
Petranilla no tinha essas apreenses e tratou de subir. A irm de
Caris, Alice, veio da rua. Tinha onze anos, um a mais do que Caris.
Olhou para Gwenda e perguntou: - Quem ela? - Minha nova amiga,
Gwenda - respondeu Caris. - Ela vai levar um filhote. - Mas ela
pegou o filhote que eu queria! - protestou Alice. Ela nunca dissera
isso antes. - Ei... voc no tinha escolhido nenhum! - exclamou
Caris, indignada. - S est dizendo isso por maldade! - Por que ela
deveria ficar com um dos nossos filhotes? O pai interveio: - Calma,
calma... Temos mais filhotes do que precisamos. - Caris deveria ter
me perguntado primeiro qual deles eu queria! - Tem razo - disse o
pai, embora soubesse muito bem que Alice estava apenas querendo
criar problemas. - No faa isso de novo, Caris. - Est bem, papai. A
cozinheira veio da cozinha, com jarros e canecas. Quando Caris
estava aprendendo a falar, chamava-a de Tutty, ningum sabia por qu.
Mas o nome pegara. O pai disse: - Obrigado, Tutty. Sentem-se mesa,
meninas. Gwenda hesitou, sem saber se o convite a inclua. Mas Caris
acenou com a
- 38. cabea para ela, pois sabia que o pai a inclua... ele
costumava convidar para comer todas as pessoas que se encontravam
em sua presena no momento da refeio. Tutty encheu de cerveja a
caneca do pai, depois serviu a Alice, Caris e Gwenda um pouco de
cerveja misturada com gua. Gwenda bebeu tudo imediatamente, com
evidente satisfao. Caris compreendeu que ela no bebia cerveja com
frequncia: as pessoas pobres tomavam sidra feita com ma cida. Em
seguida, Tutty ps na frente de cada pessoa uma grossa fatia de po
de centeio. Gwenda pegou sua fatia para comer, e Caris adivinhou
que ela nunca antes comera a uma mesa. - Espere um instante -
murmurou ela. Gwenda largou o po. Tutty trouxe o pernil numa tbua,
junto com um prato de repolho. O pai pegou um faco e cortou fatias
do pernil, empilhadas em cima de cada pedao de po. Gwenda arregalou
os olhos pela quantidade de carne que lhe foi servida. Caris usou
uma colher para pegar folhas de repolho e pr sobre as fatias do
pernil. Foi nesse instante que a outra criada, Elaine, desceu
correndo a escada. - A patroa parece pior - disse ela. - A sra.
Petranilla diz que devemos chamar madre Cecilia. - Pois ento corra
at o priorado e pea a ela para vir - ordenou o pai. A criada saiu.
- Comam, crianas - disse o pai. Ele espetou uma fatia de pernil
quente com a faca; mas Caris podia perceber que o pai no sentia
mais qualquer satisfao pela comida. Parecia estar olhando para
alguma coisa distante. Gwenda comeu um pouco do repolho e
sussurrou: - Isto uma comida do cu. Caris experimentou. O repolho
fora cozido com gengibre. Provavelmente Gwenda nunca provara
gengibre antes. S os ricos podiam compr-lo. Petranilla desceu, ps
um pouco de pernil num prato de madeira e subiu para oferecer
cunhada. Mas voltou poucos momentos depois com a comida intacta.
Sentou mesa para comer o pernil. A cozinheira trouxe-lhe po. -
Quando eu era pequena, nossa famlia era a nica em Kingsbridge que
tinha carne para comer todos os dias - comentou ela. - Exceto nos
dias de jejum... meu pai era muito devoto. Foi o primeiro mercador
de l da cidade a negociar diretamente com os italianos. Todos fazem
isso agora... embora meu irmo Edmund ainda seja o mais importante.
Caris perdera o apetite. Tinha de mastigar bastante para poder
engolir. Madre Cecilia finalmente chegou, uma mulher pequena e
ativa, com uma atitude mandona tranquilizadora Era acompanhada por
irm Juliana, uma pessoa simples, com um corao terno. Caris
sentiu-se melhor ao observ-las subirem a
- 39. escada, uma pardoca saltitante e uma galinha balanando de
um lado para outro em sua esteira. Lavariam a me com gua-de-rosas
para esfriar a febre, e a fragrncia serviria para reanim-la. Tutty
trouxe mas e queijo. O pai descascou uma ma com sua faca, distrado.
Caris recordou que o pai costumava lhe dar os pedaos da ma
descascada quando ela era pequena, e depois ele comia a casca. Irm
Juliana desceu, com uma expresso preocupada no rosto rolio. - A
prioresa quer que o irmo Joseph venha ver a sra. Rose Vou cham-lo.
Joseph era o mdico snior no mosteiro; estudara com os mestres em
Oxford. Juliana saiu apressada para a rua. O pai largou a ma
descascada sem comer. - O que vai acontecer? - perguntou Caris. -
No sei, boto-de-ouro. Vai chover? Os florentinos precisam de
quantos sacos de l? As ovelhas vo pegar uma morrinha? A criana que
vai nascer ser uma menina ou um menino com a perna torta? Nunca
sabemos, no mesmo? isso... - O pai desviou os olhos. - isso o que
torna tudo to difcil. Ele estendeu a ma para Caris, que a deu a
Gwenda... que comeu tudo, inclusive os caroos. Irmo Joseph chegou
poucos momentos depois, acompanhado por um jovem assistente, que
Caris reconheceu como Saul Whitehead, Cabea Branca, assim chamado
porque os cabelos - o pouco que restava depois do corte monacal
eram louro acinzentados. Cecilia e Juliana desceram, sem dvida para
dar espao aos dois homens no pequeno quarto. Cecilia sentou-se
mesa, mas no comeu. Tinha um rosto pequeno, com feies bem
acentuadas, o nariz um pouco pontudo, olhos brilhantes, um queixo
que parecia a proa de um barco. Olhou curiosa para Gwenda. - Quem
essa menina? - indagou ela, jovial. - Ela ama Jesus e sua Santa Me?
- Sou Gwenda, amiga de Caris. Ela fitou Caris, ansiosa, como se
temesse que fosse muita presuno de sua parte reivindicar essa
amizade. - A Virgem Maria vai fazer minha me ficar melhor? -
perguntou Caris. Cecilia ergueu as sobrancelhas. - Uma pergunta
direta. fcil perceber que voc filha de Edmund. - Todo mundo reza
para ela, mas nem todos ficam bons - comentou Caris. - E sabe por
que isso acontece? - Talvez seja porque ela nunca ajuda ningum, e
acontece apenas que as pessoas fortes ficam boas, mas as fracas,
no. - No diga bobagem - interveio o pai. - Todo mundo sabe que a
Santa Me nos ajuda. - No se preocupe - disse-lhe Cecilia. - normal
as crianas fazerem
- 40. perguntas... ainda mais as inteligentes. Caris, os santos
so sempre poderosos, mas algumas oraes so mais eficazes do que
outras. Compreende isso? Caris acenou com a cabea, relutante, no se
sentindo convencida, mas sem saber o que responder. - Ela deve ir
para a nossa escola - disse Cecilia. As freiras mantinham uma
escola para as filhas da nobreza e os habitantes mais prsperos da
cidade. Os monges cuidavam de uma escola separada para os meninos.
O pai no concordava com essa idia. - Rose j ensinou as letras para
as meninas. E Caris conhece os nmeros to bem quanto eu... at me
ajuda nos negcios. - Ela deve aprender mais do que isso. No vai
querer que ela passe a vida como sua serva, no ? Petranilla
interveio: - Ela no precisa aprender as coisas dos livros. Vai
casar muito bem. Haver multides de pretendentes para as duas irms.
Filhos de mercadores, at mesmo filhos de cavaleiros, se mostraro
ansiosos em casar nesta famlia. Mas Caris uma criana voluntariosa;
devemos cuidar para que ela no se perca com algum menestrel sem
dinheiro. Caris notou que Petranilla no previa problemas com a
obediente Alice, que provavelmente casaria com o homem que a famlia
escolhesse para seu marido. - Deus pode chamar Caris para seu
servio - sugeriu Cecilia. - Deus j chamou duas pessoas desta
famlia... meu irmo e meu sobrinho resmungou o pai. - Imagino que
Ele j se sente satisfeito a esta altura. Cecilia olhou para Caris.
- O que voc acha? Quer ser uma mercadora de l, a esposa de um
cavaleiro ou uma freira? A perspectiva de ser freira deixava Caris
horrorizada. Teria de obedecer s ordens de outra pessoa em todas as
horas do dia. Seria como permanecer uma criana pelo resto da
vida... e ter Petranilla como me. Ser a esposa de um cavaleiro, ou
de qualquer outro homem, parecia quase to ruim, porque as mulheres
tinham de obedecer a seus maridos. Ajudar o pai, talvez assumir o
negcio quando ele se tornasse velho demais, era a opo menos
desagradvel; mas, por outro lado, no era exatamente o seu sonho. -
No quero ser nenhuma dessas coisas. - H alguma outra coisa que voc
gostaria de fazer? - indagou Cecilia. Havia, sim, embora Caris
nunca tivesse dito a ningum antes; na verdade, nem sequer
compreendera direito at aquele momento. Mas agora a ambio parecia
plenamente formada e ela compreendeu, sem a menor dvida, que era
seu destino. - Vou ser uma doutora. Houve um momento de silncio, e
depois todos riram. Caris corou, sem saber o
- 41. que era to engraado. O pai se compadeceu e explicou: - S os
homens podem ser doutores. No sabia disso, boto-de-ouro? Caris
ficou espantada. Olhou para Cecilia. - Mas o que voc ? - No sou uma
mdica. As freiras podem cuidar de doentes, claro, mas seguem as
instrues dos homens treinados. Os homens que estudaram com os
mestres compreendem os humores do corpo, a maneira como se
desequilibram na doena, e como lev-los de volta s propores
corretas, para restabelecer a boa sade. Sabem que veia sangrar para
a enxaqueca, lepra ou falta de ar; onde aplicar uma ventosa e onde
cauterizar; se pr um cataplasma ou dar um banho. - Uma mulher no
poderia aprender essas coisas? - Talvez, mas Deus determinou o
contrrio. Caris sentia-se frustrada com a maneira como os adultos
recorriam a esse trusmo todas as vezes que no sabiam como
responder. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, o irmo Saul
desceu com uma bacia com sangue, e atravessou a cozinha para
despej-la no quintal dos fundos. A cena deixou Caris com vontade de
chorar. Todos os mdicos usavam a sangria como uma cura, e por isso
devia ser eficaz; mas mesmo assim ela detestava ver a fora vital da
me numa bacia, prestes a ser jogada fora. Saul voltou ao quarto da
doente. Poucos momentos depois, ele e Joseph desceram. - Fiz tudo o
que posso por ela - declarou Joseph ao pai, solene. - E ela
confessou seus pecados. Confessou seus pecados! Caris sabia o que
isso significava. Comeou a chorar. O pai tirou seis pennies de
prata de sua bolsa e entregou-os ao monge, murmurando, a voz rouca:
- Obrigado, irmo. Enquanto os monges se retiravam, as duas freiras
tornaram a subir. Alice sentou no colo do pai e comprimiu o rosto
contra seu pescoo. Caris chorou e abraou Scrap. Petranilla ordenou
que Tutty tirasse a mesa. Gwenda observava tudo com os olhos
arregalados. Todos continuaram sentados mesa, esperando.
- 42. 4 O irmo Godwyn estava com fome. J comera um ensopado de
nabos cortados com peixe salgado, mas no se satisfizera. Os monges
quase sempre comiam peixe e tomavam uma cerveja fraca, mesmo quando
no era um dia de jejum. Nem todos os monges, claro. O prior Anthony
tinha uma dieta privilegiada. E teria hoje uma refeio ainda mais
especial, pois a prioresa, madre Cecilia, seria sua convidada. Ela
estava acostumada a uma boa comida. As freiras, que sempre pareciam
ter mais dinheiro do que os monges, matavam um porco ou uma ovelha
a intervalos de poucos dias e comiam com vinho da Gasconha. Era
incumbncia de Godwyn supervisionar a refeio, uma tarefa difcil,
quando seu prprio estmago roncava de fome. Ele conversou com o
cozinheiro do mosteiro, verificou o ganso gordo assando no forno, a
panela com o molho de ma borbulhando no fogo. Pediu ao adegueiro
que tirasse um jarro de sidra do barril e pegou um po de centeio na
padaria... do dia anterior, j que no se fazia po aos domingos.
Tirou as taas e travessas de prata da arca trancada e as arrumou na
mesa da sala da casa do prior. O prior e a prioresa faziam uma
refeio juntos pelo menos uma vez por ms. O mosteiro e o convento
eram instituies separadas, com suas prprias instalaes e diferentes
fontes de receita. O prior e a prioresa eram subordinados de forma
independente ao bispo de Kingsbridge. Apesar disso, partilhavam a
enorme catedral e vrios outros prdios, onde os monges trabalhavam
como mdicos e as freiras, como enfermeiras. Por isso, havia sempre
detalhes para discutir: servios na catedral, hspedes e pacientes no
hospital, os problemas polticos da cidade. Anthony tentava muitas
vezes persuadir Cecilia a pagar custos que, em termos estritos,
deveriam ser divididos igualmente - janelas de vidro para a sala do
captulo, colchas para o hospital, a repintura do interior da
catedral - e ela quase sempre concordava. Hoje, porm, a conversa
deveria se concentrar na poltica. Anthony voltara no dia anterior
de duas semanas em Gloucester, onde participara das cerimnias de
sepultamento do rei Edward II, que perdera o trono em janeiro e a
vida em setembro. Madre Cecilia queria saber de tudo, embora
simulasse se manter acima de todas as intrigas. Godwyn tinha outra
coisa em mente. Queria conversar com Anthony sobre seu futuro.
Estivera aguardando ansioso pelo momento certo desde que o prior
voltara. Ensaiara o discurso, mas ainda no encontrara a
oportunidade de faz-lo. Esperava ter a chance naquela tarde.
Anthony entrou na sala no momento em que Godwyn punha um queijo e
uma tigela com peras no aparador. O prior parecia uma verso mais
velha de Godwyn. Os dois eram altos, com feies regulares e cabelos
castanho-claros. Como todos na famlia, tinham olhos esverdeados com
pintas douradas. Anthony
- 43. parou ao lado do fogo... a sala estava fria e o velho prdio
permitia a passagem de aragens geladas. Godwyn serviu uma taa de
sidra. - Padre prior, hoje meu aniversrio. Estou com vinte e um
anos. - Sei disso. Lembro muito bem de seu nascimento. Eu tinha
quatorze anos na ocasio. Minha irm Petranilla berrou como um javali
com uma flecha nas entranhas quando trouxe voc ao mundo. - Anthony
ergueu a taa num brinde, fitando o sobrinho com uma expresso
afetuosa. - E agora voc um homem. Godwyn decidiu que aquele era o
momento. - Estou no priorado h dez anos. - Tanto tempo assim? -
Isso mesmo... como estudante, novio e monge. - muito tempo. -
Espero ter sido um crdito para minha me e para meu tio. - Sentimos
orgulho de voc. - Obrigado. - Godwyn engoliu em seco. - E agora
quero ir para Oxford. A cidade