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Mundo sem fim ken follett

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  1. 1. DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. expressamente proibida e totalmente repudavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente contedo Sobre ns: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam contedo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educao devem ser acessveis e livres a toda e qualquer pessoa. Voc pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.Info ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."
  2. 2. MUNDOSEMFIM KENFOLLETT Traduo de A. B. Pinheiro de Lemos
  3. 3. Ttulo Original: World Without End Traduo: A. B. Pinheiro de Lemos
  4. 4. ndice Parte I Parte II Parte III Parte IV Parte V Parte VI Parte VII Agradecimentos
  5. 5. Para Barbara
  6. 6. ParteI
  7. 7. 1 Gwenda estava com oito anos, mas no tinha medo do escuro. Quando abriu os olhos no pde ver nada, mas no foi isso que a assustou. Sabia onde se encontrava. Estava no priorado de Kingsbridge, no prdio de pedra comprido que chamavam de hospital - um lugar para tratar de doentes, mas que tambm servia como um albergue para os pobres e os ricos - deitada no cho, numa cama de palha. A me deitava ao seu lado, e Gwenda compreendeu, pelo cheiro de leite quente, que amamentava o beb que acabara de nascer, ainda sem nome. Do outro lado da me estava o pai e, junto de Gwenda, o irmo mais velho, Philemon, que tinha doze anos. Havia muita gente no hospital. Embora no pudesse ver as outras famlias deitadas no cho, espremidas como ovelhas num cercado, Gwenda podia sentir o cheiro desagradvel dos corpos quentes. Quando o dia amanhecesse, seria Todos os Santos, um domingo naquele ano, e por isso mesmo um dia muito especial. A noite anterior fora um momento perigoso, quando os espritos do mal vagueavam livres por toda parte. Centenas de pessoas haviam ido para Kingsbridge, das aldeias ao redor, como a famlia de Gwenda, a fim de passar o Dia de Todos os Santos no recinto sagrado do priorado, comparecendo missa ao amanhecer. Gwenda era cautelosa com os espritos do mal, como todas as pessoas sensatas; mas sentia-se mais assustada com o que teria de fazer durante o servio religioso. Ela ficou olhando para o escuro, tentando no pensar no que a deixava apavorada. Sabia que havia uma janela em arco na parede sua frente. No tinha vidro - s os prdios mais importantes tinham vidro nas janelas , mas uma cortina de linho impedia a entrada do ar frio do outono. Mas Gwenda no conseguiu divisar uma mancha cinza no lugar em que deveria estar a janela. E sentiu-se contente por isso. No queria que a manh chegasse. No podia ver nada, mas havia muito para escutar. A palha que cobria o cho sussurrava a todo instante, sempre que as pessoas se mexiam e mudavam de posio no sono. Uma criana gritou, como se tivesse sido acordada por um pesadelo, mas foi logo silenciada por palavras de carinho murmuradas. Algum falava de vez em quando, enunciando as palavras truncadas de conversa no sono. Em algum lugar havia o som de duas pessoas fazendo a coisa que os pais faziam, mas sobre a qual nunca falavam, a coisa que Gwenda chamava de grunhido, porque no tinha outra palavra para descrev-la. No demorou muito para que surgisse uma luz. No lado leste do vasto salo, um monge passou pela porta, carregando uma nica vela. Colocou-a ao p do altar, usou a chama para acender uma vela fina e comprida. Saiu pelo salo, encostando a chama nos lampies nas paredes. Sua sombra comprida subia pela parede a cada vez, a vela de verdade se encontrando com a vela de sombra no pavio de cada lampio.
  8. 8. A claridade crescente iluminava as fileiras de pessoas estendidas no cho, envoltas por seus mantos miserveis ou aconchegadas contra os vizinhos, em busca de calor. As pessoas doentes ocupavam os catres perto do altar, onde podiam obter o mximo de benefcio da santidade do lugar. No lado oposto havia uma escada que levava ao andar superior, que tinha quartos para os visitantes aristocrticos: o conde de Shiring estava ali naquele momento, com sua famlia. O monge inclinou-se sobre Gwenda para acender o lampio por cima de sua cabea. Fitou-a e sorriu. Ela estudou o rosto luz bruxuleante das chamas e reconheceu-o. Era o irmo Godwyn, jovem e bonito. Na noite anterior ele conversara gentilmente com Philemon. Ao lado de Gwenda havia outra famlia de sua aldeia: Samuel, um prspero campons, que cuidava de uma propriedade grande, a esposa e os dois filhos. O caula, Wulfric, era um irritante menino de seis anos, que achava que jogar bolotas de carvalho nas meninas e correr em seguida era a coisa mais divertida do mundo. A famlia de Gwenda no era prspera. O pai no tinha nenhuma terra e trabalhava para qualquer um que quisesse lhe pagar. Havia sempre trabalho no vero, mas, depois da colheita, quando o tempo comeava a esfriar, a famlia muitas vezes passava fome. Era por isso que Gwenda tinha de roubar. Ela se imaginava sendo apanhada: a mo forte de algum agarrando-a pelo brao; uma voz profunda e cruel dizendo Ora, ora, uma pequena ladra; a dor e a humilhao de ser aoitada; e depois, o pior de tudo, a agonia e perda quando sua mo fosse cortada. O pai sofrera essa punio. Ao final do brao esquerdo tinha um coto horrvel, todo enrugado. Ele conseguia fazer as coisas com uma nica mo: era capaz de usar uma p, selar um cavalo, at fazer uma rede para pegar aves. Mesmo assim, era sempre o ltimo trabalhador a ser contratado na primavera e o primeiro a ser dispensado no outono. Nunca poderia deixar a aldeia e procurar trabalho em outros lugares, porque a amputao marcava-o como um ladro; por isso, as pessoas se recusariam a contrat-lo. Quando viajava, ele amarrava uma luva recheada no coto, para no ser escorraado por todo estranho que encontrasse; mas isso tambm no enganava as pessoas por muito tempo. Gwenda no testemunhara a punio do pai - ocorrera antes de seu nascimento -, mas imaginava-a com frequncia Agora, no podia deixar de pensar na mesma coisa lhe acontecendo. Em sua mente, via a lmina do machado descendo para o pulso, cortando pele e ossos, separando a mo do brao, de tal forma que nunca mais seriam religados; e teve de ranger os dentes para no soltar um grito. As pessoas levantavam e se esticavam, esfregando o rosto. Gwenda tambm se levantou e ajeitou as roupas. Todos os seus trajes haviam pertencido antes ao
  9. 9. irmo mais velho. Ela usava uma bata de l que descia at os joelhos, com uma tnica por cima, presas na cintura por um cinto feito de corda de cnhamo. Os sapatos outrora tinham cordes, mas os ilhoses haviam rasgado e os cordes desapareceram. Agora, ela prendia os sapatos nos ps com palha tranada. Assim que juntou os cabelos por baixo de uma touca feita de rabos de esquilo, ela terminou de se arrumar. Olhou para o pai, que indicou furtivamente uma famlia ali perto, um casal de meia-idade com dois filhos, apenas um pouco maiores do que Gwenda. O homem era baixo e franzino, com uma barba ruiva encrespada. Afivelava uma espada na cintura, o que significava que era um homem de armas ou um cavaleiro, j que os homens comuns no tinham permisso para usar espadas. A esposa era magra, com uma atitude brusca e uma expresso mal-humorada. Enquanto Gwenda os examinava, irmo Godwyn acenou com a cabea, respeitoso, e disse: - Bom-dia, Sir Gerald, lady Maud. Gwenda viu o que atrara a ateno do pai. Sir Gerald tinha uma bolsa presa ao cinto por uma tira de couro. A bolsa estava estufada. Devia conter vrias centenas das pequenas moedas de prata de pennies, halfpennies e farthings, o dinheiro ingls... tanto quanto o pai poderia ganhar em um ano inteiro de trabalho, se conseguisse arrumar emprego. Seria mais do que o suficiente para alimentar a famlia at o plantio da primavera. A bolsa poderia at conter umas poucas moedas de ouro estrangeiras, como florins de Florena ou ducados de Veneza. Gwenda tinha uma pequena faca numa bainha de madeira, pendurada por um cordo no pescoo. A lmina afiada cortaria a tira de couro e faria com que a bolsa estufada casse em sua mo... a menos que Sir Gerald sentisse alguma coisa estranha e a agarrasse antes que cometesse o furto... Godwyn elevou a voz por cima do rumor das conversas. - Pelo amor de Cristo, que nos ensina a caridade, ser servida uma refeio depois do servio de Todos os Santos. At l, h gua para beber na fonte no ptio. Por favor, no deixem de usar as latrinas l fora... nada de urinar dentro do prdio! Os monges e freiras eram rigorosos com a higiene. Ontem noite, Godwyn surpreendera um menino de seis anos urinando num canto e expulsara toda a famlia. A menos que tivessem um penny para uma taverna, teriam passado a fria noite de outubro estremecendo no cho de pedra do prtico norte da catedral. Havia tambm uma proibio para animais. O cachorro de trs pernas de Gwenda, Hop, fora banido. E ela se perguntava onde Hop passara a noite. Depois que todos os lampies foram acesos, Godwyn abriu a enorme porta de madeira para o exterior. O ar frio da noite gelou as orelhas e a ponta do nariz de Gwenda. Quando Sir Gerald e a famlia encaminharam-se para a porta, o pai e a me foram atrs. Gwenda e Philemon seguiram o exemplo.
  10. 10. Philemon sempre fora o encarregado de roubar at agora. Mas, no dia anterior, quase fora apanhado, no mercado de Kingsbridge. Palmeara um pequeno pote de leo carssimo do estande de um mercador italiano, mas deixara-o cair, vista de todos. Por sorte, o pote no quebrara ao bater no cho. E ele fora obrigado a fingir que o derrubara acidentalmente. At bem pouco tempo atrs, Philemon era pequeno e apagado, no chamava a ateno de ningum. Mas, durante o ltimo ano, crescera bastante, adquirira uma voz profunda, tornara-se desajeitado, como se no conseguisse se acostumar ao novo tamanho de seu corpo. Ontem noite, depois do incidente com o pote de leo, o pai anunciara que Philemon era agora grande demais para o furto sistemtico; dali por diante, essa incumbncia seria de Gwenda. Fora por isso que ela permanecera acordada durante boa parte da noite. O nome de Philemon na verdade era Holger. Quando tinha dez anos, ele decidira que seria monge; e dissera a todo mundo que mudara o nome para Philemon, que parecia mais religioso. Numa reao surpreendente, a maioria das pessoas atendeu a seu desejo, embora o pai e a me continuassem a cham-lo de Holger. Eles passaram pela porta e viram duas fileiras de freiras trmulas, segurando tochas acesas, para iluminar o caminho do hospital at a enorme porta de oeste da catedral de Kingsbridge. As sombras cabriolavam na beira da luz das tochas, como se os duendes e diabinhos da noite anterior estivessem espreita ali, mantidos distncia apenas pela santidade das freiras. Gwenda pensava que encontraria Hop esperando l fora, mas no o avistou. Talvez ele tivesse encontrado algum lugar quente para dormir. Enquanto seguiam para a catedral, o pai deu um jeito de permanecerem prximos de Sir Gerald. Algum deu um puxo doloroso nos cabelos de Gwenda, por trs. Ela soltou um grito estridente, pensando que era um duende. Virou-se para descobrir que era Wulfric, seu vizinho de seis anos. Ele se afastou para fora de seu alcance, rindo. Mas o pai de Wulfric berrou Comporte-se!, e deu um cascudo em sua cabea. O menino comeou a chorar. A vasta catedral era uma massa informe pairando acima da multido amontoada. S as partes inferiores eram ntidas, arcadas e janelas iluminadas em laranja e vermelho pela luz bruxuleante das tochas. A procisso passou a andar mais devagar ao se aproximar da entrada da catedral, e Gwenda avistou os moradores da cidade, que vinham da direo oposta. Havia centenas de pessoas, pensou ela, talvez milhares, embora no soubesse quantas pessoas havia em mil, pois no era capaz de contar to alto. A multido avanava lentamente pela entrada. A luz irrequieta das tochas incidia sobre as figuras esculpidas nas paredes, dando a impresso de que se empenhavam numa dana delirante. Havia demnios e monstros no nvel mais
  11. 11. baixo. Gwenda olhou assustada para drages e grifos, um urso com cabea de homem, um cachorro com dois corpos e um nico focinho. Alguns dos demnios lutavam contra humanos: um demnio punha um lao no pescoo de um homem, um monstro parecido com uma raposa arrastava uma mulher pelos cabelos, uma guia com mos espetava com uma lana um homem nu. Por cima dessas cenas, os santos formavam uma fileira, abrigados sob dossis; mais acima, os apstolos sentavam em seus tronos; depois, na arcada por cima da porta principal, So Pedro com sua chave e So Paulo com um pergaminho olhavam em adorao para Jesus Cristo l no alto. Gwenda sabia que Jesus estava lhe dizendo para no pecar ou seria torturada pelos demnios; mas os humanos assustavam-na mais do que os demnios. Se no conseguisse roubar a bolsa de Sir Gerald, seria aoitada pelo pai. Pior ainda, no haveria nada para a famlia comer alm de sopa feita com bolotas de carvalho. Ela e Philemon passariam fome por semanas a fio. Os seios da me secariam e o beb morreria, como os dois ltimos. O pai desapareceria por vrios dias e voltaria sem nada para a panela, apenas uma gara magricela ou um par de esquilos. Sentir fome era pior do que ser aoitada... doa por mais tempo. Ela fora ensinada a cometer pequenos furtos desde que era bem pequena: uma ma de uma barraca, um ovo retirado de baixo da galinha do vizinho, uma faca que um bbado descuidado largava na mesa de uma taverna. Mas roubar dinheiro era diferente. Se fosse apanhada ao tirar a bolsa de Sir Gerald, no adiantaria desatar a chorar e torcer para ser tratada como uma criana travessa, como acontecera uma vez, depois que roubara um par de sapatos de couro de uma freira de corao mole. Cortar o cordo de couro da bolsa de um cavaleiro no era um pecadilho infantil, mas um crime de adulto, e seria tratado de acordo. Ela tentou no pensar a respeito. Era pequena, gil e rpida. Pegaria a bolsa furtivamente, como um fantasma... desde que conseguisse no tremer. A vasta catedral j estava lotada. Monges encapuzados seguravam tochas nos corredores laterais, projetando clares vermelhos irrequietos. As colunas em marcha da nave subiam pela escurido. Gwenda permaneceu perto de Sir Gerald, enquanto a multido avanava para o altar. O cavaleiro de barba ruiva e sua esposa magricela no a notaram. Os dois meninos no prestavam mais ateno a ela do que s paredes de pedra da catedral. A famlia de Gwenda ficou para trs, e ela no viu mais ningum. A nave se encheu depressa. Gwenda nunca vira tantas pessoas no mesmo lugar; estava mais movimentada do que a campina verde no dia do mercado. As pessoas se cumprimentavam na maior jovialidade, sentindo-se a salvo dos espritos do mal naquele lugar sagrado. O som de todas as conversas se juntava num rugido.
  12. 12. At que o sino repicou e todos calaram. Sir Gerald estava ao lado de uma famlia da cidade. Todos usavam mantos de bom tecido, o que indicava que o chefe devia ser negociante de l. Ao lado do cavaleiro havia uma garota que devia ter dez anos. Gwenda postou-se atrs de Sir Gerald e da garota. Tentou passar despercebida, mas, para sua consternao, a garota olhou para trs e sorriu, tranquilizadora, como se lhe dissesse que no precisava ficar assustada. Ao longo das paredes, os monges comearam a apagar as tochas, uma a uma, at que a vasta catedral ficou mergulhada na mais absoluta escurido. Gwenda especulou se a garota rica se lembraria dela mais tarde. No se limitara a lanar um olhar para Gwenda e depois a ignorara, como a maioria das pessoas fazia. Notara-a, pensara nela, previra que poderia ficar assustada, e oferecera um sorriso cordial. Mas havia centenas de crianas na catedral. Ela no poderia ter percebido as feies de Gwenda com bastante nitidez na semi-escurido da catedral... ou ser que poderia? Gwenda tentou remover a preocupao de sua mente. Invisvel no escuro, adiantou-se e esgueirou-se sem fazer barulho entre as duas figuras. Sentiu a l macia do manto da garota num lado e o tecido mais spero do manto do cavaleiro no outro. Agora se encontrava em posio de alcanar a bolsa. Levou a mo ao pescoo e tirou a pequena faca da bainha. O silncio foi rompido por um terrvel grito. Gwenda j esperava por isso a me explicara o que aconteceria durante o servio religioso -, mas mesmo assim ficou atordoada. Parecia que algum estava sendo torturado. Depois, houve um estrondo estridente, como se algum estivesse batendo numa placa de metal. Mais rudos se seguiram: gemidos, risadas ensandecidas, uma trompa de caa, barulho de correntes, o repicar de um sino. Na congregao, uma criana comeou a chorar, e foi logo seguida por outras. Alguns adultos soltavam risadas nervosas. Sabiam que os rudos eram feitos por monges, mas ainda assim era uma cacofonia infernal. Aquele no era o momento para pegar a bolsa, pensou Gwenda, amedrontada. Todos estavam tensos, alertas. O cavaleiro seria sensvel a qualquer toque. O rudo diablico foi se tornando mais e mais alto, at que um novo som interveio: msica. A princpio, era to baixo que Gwenda no podia ter certeza se ouvira mesmo, mas pouco a pouco foi se tornando mais alto. As freiras cantavam. Gwenda sentiu seu corpo dominado pela tenso. O momento se aproximava. Movendo-se como um esprito, imperceptvel como o ar, ela virou- se, a fim de ficar de frente para Sir Gerald. Sabia exatamente o que ele vestia. Tinha uma grossa tnica comprida de l, presa na cintura por um cinto largo e tachonado. Por cima da tnica, usava um
  13. 13. manto bordado, dispendioso mas velho, com botes de osso amarelados na frente. Fechara alguns botes, mas no todos, provavelmente por causa da indolncia do sono ou porque a caminhada do hospital at a catedral era to curta. Com um toque to leve quanto possvel, Gwenda encostou a mo no manto. Imaginou a mo como uma aranha, to desprovida de peso que o homem no poderia sentir. A mo de aranha deslizou pela frente do manto e encontrou a abertura. Enfiou-se por baixo da beira do manto e avanou pelo cinto largo at encontrar a bolsa. O pandemnio diminua medida que a msica se tornava mais alta. Da frente da congregao veio um murmrio de reverncia. Gwenda no podia ver nada, mas sabia que um lampio fora aceso no altar para iluminar um relicrio, uma caixa elaborada, de ouro e marfim, contendo os ossos de St. Adolphus, que no estavam ali quando as tochas se apagaram. A multido se adiantou, todos querendo chegar mais perto das relquias sagradas. Ao sentir que era espremida entre Sir Gerald e o homem na frente, Gwenda ergueu a mo direita e encostou a beira da faca no cordo da bolsa. O couro era duro e seu primeiro movimento no foi suficiente para cort-lo. Serrou-o frentica com a faca, torcendo desesperada para que Sir Gerald estivesse to interessado na cena no altar que no notaria o que acontecia por baixo de seu nariz. Olhou para cima e compreendeu que podia comear a divisar os contornos das pessoas ao redor: os monges e freiras acendiam as velas. A claridade seria maior a cada momento. Quase no lhe restava tempo. Ela deu um puxo mais forte na faca e sentiu que a tira do couro cedia. Sir Gerald soltou um grunhido baixo: sentira alguma coisa ou reagia ao espetculo no altar? A bolsa caiu e parou na sua mo; mas era muito grande para que a segurasse com facilidade e comeou a escapulir. Por um momento terrvel, ela pensou que a deixaria cair e a perderia no cho, entre os ps indiferentes da multido. Pouco depois conseguiu segur-la com firmeza, experimentou um momento de alvio e alegria: estava com a bolsa. Mas ainda corria um tremendo perigo. O corao batia to alto que tinha a sensao de que todos ao redor podiam ouvi-la. Virou-se depressa, ficando de costas para o cavaleiro. No mesmo movimento, enfiou a bolsa recheada pela frente da tnica. Podia sentir que formava uma protuberncia, pendendo sua frente, junto a barriga de um velho. Deslocou-a para o lado, onde ficaria parcialmente oculta pelo brao. Ainda seria visvel quando a claridade aumentasse, mas no tinha outro lugar para guard-la. Meteu a faca na bainha. Agora, tinha de escapar depressa, antes que Sir Gerald sentisse a perda... mas a presso dos fiis, que a ajudara a pegar a bolsa sem ser notada, agora obstrua a fuga. Tentou recuar, na esperana de encontrar uma brecha nos
  14. 14. cantos por trs, mas todos ainda tentavam se adiantar, na esperana de ver os ossos do santo. Ela estava acuada, incapaz de se mover, bem na frente do homem que acabara de roubar. Uma voz murmurou em seu ouvido: Voc est bem? Era a garota rica. Gwenda fez um esforo para conter o pnico. Precisava ser invisvel. Uma criana mais velha prestativa era a ltima coisa que queria naquele momento. No disse nada. Tomem cuidado - disse a garota s pessoas ao redor. - Esto espremendo a menina. Gwenda teve vontade de gritar. A gentileza da garota rica poderia fazer com que sua mo fosse cortada. Desesperada para escapar, ela estendeu as mos para o homem da frente e o empurrou, mas no conseguiu afast-lo. S conseguiu atrair a ateno de Sir Gerald. - No consegue ver nada a embaixo, no ? - murmurou sua vtima, em tom gentil. E, para seu horror, Sir Gerald pegou-a por baixo dos braos e levantou-a. Gwenda estava impotente. A mo enorme do homem estava a poucos centmetros de sua axila, onde escondera a bolsa. Virou-se para a frente, a fim de que ele s pudesse ver a parte posterior de sua cabea. Olhou por cima da multido para o altar, onde monges e freiras acendiam mais velas e cantavam para o santo havia muito morto. Alm deles, uma tnue claridade brilhava atravs da janela de roscea: o dia amanhecia, expulsando os espritos do mal. O clangor cessara agora, e o canto aumentava de intensidade. Um monge alto e bonito subiu para o altar. Gwenda reconheceu-o como Anthony, o prior de Kingsbridge. Ele ergueu as mos numa bno e disse, bem alto: - E assim, mais uma vez, pela graa de Cristo Jesus, o mal e as trevas deste inundo so banidos pela harmonia e pela luz da santa igreja de Deus. A congregao deixou escapar um rugido triunfante, para depois comear a relaxar. O clmax da cerimnia passara. Gwenda contorceu-se. Sir Gerald entendeu a mensagem e a ps no cho. Com o rosto virado para o outro lado, ela afastou-se, seguindo para o fundo da multido. As pessoas no se sentiam mais ansiosas em ver o altar, e ela pde esgueirar-se entre os corpos. Quanto mais se distanciava, mais fcil era, at que finalmente avistou a grande porta de oeste e encontrou sua famlia. O pai fitava-a em expectativa, pronto para um acesso de fria, se ela tivesse fracassado. Gwenda tirou a bolsa de baixo da tnica e estendeu-a, contente por se livrar. O pai pegou-a, e virou-a para um olhar furtivo no contedo. E deu um sorriso de satisfao. Entregou-a me, que a escondeu nas dobras da manta que agasalhava o beb. A provao terminara, mas o risco ainda no passara.
  15. 15. - Uma garota rica me notou - avisou Gwenda, notando a estridncia do medo na prpria voz. Os olhos pequenos e escuros do pai faiscaram em raiva. - Ela viu o que voc fez? - No. Mas disse aos outros para no me espremerem. E depois o cavaleiro me levantou para que eu pudesse ver melhor. A me soltou um gemido baixo. O pai resmungou: - Ento ele viu seu rosto. - Virei para o outro lado durante todo o tempo. - Mesmo assim, melhor ele nunca mais se encontrar com voc. No vamos voltar para o hospital. Comeremos numa taverna. - No podemos nos esconder durante o dia inteiro - disse a me. - Tem toda razo. Mas podemos sumir no meio da multido. Gwenda comeou a se sentir melhor. O pai parecia pensar que no havia um perigo real. De qualquer forma, ficava mais segura porque o pai assumia o comando, tirando a responsabilidade dela. - Alm do mais - acrescentou o pai -, estou com vontade de comer po e carne, em vez do mingau aguado dos monges. Podemos pagar agora. Eles deixaram a catedral. O cu era de um cinza aperolado com a claridade do amanhecer. Gwenda queria segurar a mo da me, mas o beb comeou a chorar. E atraiu por completo a ateno da me. Foi nesse instante que Gwenda avistou um cachorrinho de trs pernas, branco, de cara preta, que veio correndo da catedral. - Hop! - gritou ela, pegando o cachorro nos braos e apertando-o com fora.
  16. 16. 2 Merthin tinha onze anos, um ano mais velho do que o irmo Ralph; mas, para sua intensa irritao, Ralph era mais alto e mais forte. Isso causava problemas com os pais. O pai, Sir Gerald, era um soldado, e no podia esconder seu desapontamento quando Merthin se mostrava incapaz de levantar a pesada lana, ou ficava exausto antes de terminar de cortar uma rvore, ou voltava para casa chorando depois de perder uma briga. A me, lady Maud, agravava ainda mais a situao, embaraando Merthin por sua atitude superprotetora, quando o que o menino precisava mesmo era que ela fingisse que no notava. Sempre que o pai demonstrava orgulho pela fora de Ralph, a me tentava t compensar com crticas estupidez de Ralph. Como era um pouco lento para compreender as coisas, Ralph era escarnecido pelos outros meninos, o que o deixava curioso e o levava a brigar. Os pais estavam nervosos na manh do Dia de Todos os Santos. O pai nem queria ir a Kingsbridge. Mas fora obrigado. Devia dinheiro ao priorado e no tinha como pagar. A me dizia que os monges tomariam suas terras: ele era senhor de trs aldeias perto de Kingsbridge. O pai lembrava-lhe que era descendente direto do Thomas que se tornara conde de Shiring no ano em que o arcebispo Beckct fora assassinado pelo rei Henry II. Esse conde Thomas era filho de Jack Uuilder, o arquiteto da catedral de Kingsbridge, e de lady Aliena de Shiring... um casal quase legendrio, cuja histria era contada nas longas noites de inverno, junto com os relatos heroicos de Carlos Magno e Roland. Com tais ancestrais, Sir Gerald no podia ter as terras confiscadas por qualquer monge, ele berrava, muito menos por aquele velho assustado que era o prior Anthony. Quando ele comeou a gritar, uma expresso de resignao cansada se estampava no rosto de Maud, que se virava em seguida. Merthin j a ouvira murmurar: - Lady Aliena tinha um irmo, Richard, que s sabia lutar, no servia para qualquer outra coisa. O prior Anthony podia ser uma velha, mas pelo menos fora homem suficiente para se queixar das dvidas no pagas de Sir Gerald. Procurara o suserano de Sir Gerald, o atual conde de Shiring, que era tambm primo em segundo grau de Gerald. O conde Roland convocara Gerald a Kingsbridge hoje, para um encontro com o prior, em que tentariam encontrar uma soluo. Era esse o motivo do mau humor do pai. E,, ainda por cima, o pai fora roubado. S descobriu a perda depois do servio religioso de Todos os Santos. Merthin apreciara o drama: a escurido, os estranhos rudos, a msica comeando suavemente e depois aumentando de intensidade, at que parecia vibrar em toda a vasta catedral, e no final as velas sendo acesas uma a uma, devagar. Tambm notara, quando a claridade comeava a aumentar, que algumas pessoas haviam
  17. 17. tirado proveito da escurido para cometer pequenos pecados, pelos quais podiam agora ser perdoadas: vira dois monges parando de se beijar abruptamente, e um mercador matreiro retirar a mo do seio rolio de uma mulher sorridente, que parecia ser a esposa de outro. Merthin ainda se encontrava num clima de excitamento quando voltaram ao hospital. Enquanto esperavam que as freiras servissem a refeio, um garoto da cozinha passou por perto e subiu a escada, levando uma bandeja com um jarro de cerveja, a bebida maltada, escura e amarga, e uma travessa com uma carne assada. A me comentou, irritada: - Acho que seu parente, o conde, poderia nos convidar para comer com ele, em seu aposento particular. Afinal, sua av era irm do av dele. - Se voc no quer o mingau, podemos comer na taverna - respondeu o pai. Merthin ficou alerta no mesmo instante. Gostava de comer na taverna, do po fresco e da manteiga salgada. Mas a me disse: - No podemos pagar. - Claro que podemos. O pai estendeu a mo para a bolsa, e foi nesse instante que descobriu que ela havia desaparecido. A princpio, ele olhou para o cho ao redor, como se pudesse ter cado naquele momento; e depois notou a ponta cortada da tira de couro e rugiu com indignao. Todos olharam para ele, exceto a me, que se virou; e Merthin ouviu-a murmurar: - Era todo o dinheiro que tnhamos. O pai lanou olhares acusadores para as pessoas prximas. A cicatriz comprida, que se estendia da tmpora direita ao olho esquerdo, pareceu escurecer com a raiva. Houve um silncio tenso: um cavaleiro furioso era sempre um perigo, mesmo sendo um cavaleiro que parecia cado em desgraa. - Voc foi roubado na catedral, com toda certeza - comentou a me nesse instante. Merthin refletiu que devia ter sido mesmo isso. No escuro, as pessoas haviam roubado mais do que beijos. - Sacrilgio ainda por cima! - exclamou o pai. - Acho que aconteceu quando voc suspendeu aquela menina. - A me tinha o rosto todo contorcido, como se tivesse acabado de engolir alguma coisa amarga. - O ladro deve ter se inclinado por trs para alcanar sua cintura. - Ele deve ser encontrado! - gritou o pai. O jovem monge chamado Godwyn interveio: - Lamento muito que isso tenha acontecido, Sir Gerald. Vou comunicar imediatamente a John Constable, o chefe dos guardas. Ele pode procurar por um morador da cidade que se tornou rico de repente. Merthin refletiu que era um plano pouco promissor. Havia milhares de
  18. 18. moradores da cidade e mais centenas de visitantes. O guarda no poderia vigiar todos. Mas o pai se mostrou um pouco apaziguado. - O patife ser enforcado! - bradou ele, a voz um pouco menos alta. - Enquanto isso, talvez voc, lady Maud e seus filhos queiram nos conceder a honra de sentar mesa que est sendo armada na frente do altar - murmurou Godwyn, deferente. O pai soltou um grunhido. Sentia-se satisfeito, Merthin sabia, por lhe ser atribudo um reconhecimento acima do da massa dos convidados, que sentariam no lugar onde haviam dormido. O momento de violncia potencial passou. Merthin relaxou um pouco. Enquanto os quatro sentavam mesa, no entanto, ele especulou sobre o que poderia acontecer agora com a famlia. O pai era um bravo soldado... todos reconheciam isso. Sir Gerald lutara pelo velho rei em Boroughbridge, onde a espada de Um rebelde do Lancashire abrira a cicatriz em sua testa. Mas era um homem sem sorte. Alguns cavaleiros voltavam da batalha com despojos: apoderavam-se de jias, tarroas com dispendiosos tecidos flamengos ou sedas italianas ou com o atirado pai de uma famlia nobre, que podia ser resgatado por mil libras. Sir Gerald, porm, nunca conseguira muitos despojos. Mas ainda tinha de comprar armas, uma armadura e um carssimo cavalo de guerra, para poder cumprir seu dever e servir ao rei; e, por algum motivo, os rendimentos de suas terras nunca eram suficientes. Por isso, contra a vontade da me, ele comeara a tomar emprestado. Empregados da cozinha trouxeram um caldeiro fumegante. A famlia de Sir Gerald foi servida primeiro. O mingau era feito com cevada e temperado com alecrim e sal. Ralph, que no compreendia a crise da famlia, comeou a falar muito excitado sobre o servio de Todos os Santos. Mas acabou se calando, por causa do silncio sombrio com que seus comentrios foram recebidos. Depois de comer o mingau, Merthin foi at o altar. Escondera seu arco e flecha por trs. As pessoas hesitariam em roubar qualquer coisa de um altar. Ainda poderiam superar o medo se a recompensa fosse bastante tentadora, mas no era o caso de um arco tosco e umas poucas flechas, que ainda estavam onde deixara. Sentia-se orgulhoso de seu arco. Era pequeno, claro: para dobrar um arco normal, com quase dois metros, era preciso toda a fora de um homem adulto. O arco de Merthin tinha pouco mais de um metro de comprimento e era fino, mas, sob outros aspectos, era igual ao arco ingls de combate, que matara tantos homens das montanhas escocesas, rebeldes galeses e cavaleiros franceses de armadura. O pai no fizera antes qualquer comentrio sobre o arco. Agora, deu a impresso de que o via pela primeira vez. - Onde conseguiu essa madeira curva? - indagou ele. - Custa muito caro. - No esta, porque muito curta. Foi um fabricante de arcos que me deu.
  19. 19. O pai balanou a cabea. A no ser por isso, perfeita. Foi cortada da parte interna do teixo, onde o albrneo se encontra com o cerne. Ele apontou para as duas cores diferentes. Merthin respondeu com ansiedade, pois no era sempre que tinha a oportunidade de impressionar o pai: - Sei disso. O alburno melhor para a frente do arco, porque o puxa de volta para o formato original; e o cerne mais duro melhor para a parte interna da curva, porque empurra de volta quando o arco dobrado para dentro. - Exatamente. - O pai devolveu o arco. Mas lembre-se de que essa no a arma de um nobre. Os filhos de cavaleiros no se tornam arqueiros. D para o filho de algum campons. Merthin ficou desolado. - Mas ainda nem experimentei! A me interveio. - Deixe os dois brincarem. So apenas meninos. - Tem razo - murmurou o pai, perdendo o interesse. - Ser que esses monges nos trariam um jarro de cerveja? - L vai voc de novo - resmungou a me. - Merthin, tome conta de seu irmo. - O inverso mais provvel - resmungou o pai. Merthin ficou contrariado. O pai no tinha a menor idia do que acontecia. Ele, Merthin, podia cuidar de si mesmo, mas Ralph sozinho sempre se metia em brigas. Merthin sabia, no entanto, que era melhor no discordar quando o pai estava naquele humor. Por isso, deixou o hospital sem dizer mais nada. Ralph seguiu-o. Era um dia claro e frio de novembro. O teto do cu era formado por nuvens de um cinza claro. Deixaram a catedral lado a lado e desceram pela rua principal, passando pela Fish Lane, Leather Yard e Cookshop Street. Na base da colina, atravessaram a ponte de madeira sobre o rio, deixando a cidade para a comunidade suburbana chamada de Newtown. As ruas com casas de madeira passavam entre pastos e hortas. Merthin seguiu na frente at uma campina conhecida como Lovers Field, o campo dos namorados. Ali, o constable da cidade e seus ajudantes haviam colocado tocos de rvores... alvos para os arqueiros. A prtica de arco-e-flecha depois do servio religioso era compulsria para todos os homens, por ordem do rei. No havia necessidade de impor o cumprimento da determinao real: afinal, no era difcil ou extenuante disparar algumas flechas na manh de domingo. Por isso, havia uma centena ou mais de jovens da cidade em fila, esperando por sua vez, observados por mulheres, crianas e homens que se consideravam velhos ou distintos demais para serem arqueiros. Alguns tinham suas prprias armas. Para os que eram pobres demais e no tinham condies de comprar um arco, John Constable punha disposio arcos de treino, baratos, feitos de teixo ou aveleira. Era como um dia de festival. Dick Brewer vendia canecas de cerveja, de um
  20. 20. barril numa carroa. As quatro filhas adolescentes de Betty Baxter circulavam com bandejas de pes temperados para vender. Os habitantes mais ricos estavam bem agasalhados, com gorros de pele e sapatos novos; at mesmo as mulheres mais pobres haviam arrumado os cabelos e enfeitado seus mantos com tranados novos. Merthin era o nico menino com um arco e por isso logo atraiu a ateno das outras crianas. Ele e Ralph foram logo cercados, os meninos fazendo perguntas invejosas, as meninas com olhares de admirao ou desdm, segundo o temperamento de cada uma. Uma das garotas indagou: - Como soube fazer um arco? Merthin reconheceu-a: ela ficara perto dele na catedral. Era cerca de um ano mais jovem, calculou ele, usava um vestido e um manto caro, de l bem fechada. De um modo geral, Merthin achava que as meninas de sua idade eram insuportveis. Riam muito e recusavam-se ai levar qualquer coisa a srio. Mas aquela fitava-o e a seu arco com uma curiosidade franca, que no podia deixar de agradar-lhe. - Acho que adivinhei. - Isso muito bom. Funciona direito? - Ainda no experimentei. Qual seu nome? - Caris, da famlia Wooler. Quem voc? - Merthin. Meu pai Sir Gerald. Merthin empurrou para trs o capuz do manto e pegou l dentro a corda enrolada do arco. - Por que guarda a corda no capuz? - Para no molhar se chover. o que fazem os arqueiros de verdade. Ele prendeu a corda nas aberturas nas extremidades do arco, dobrando-o um pouco para que a tenso a mantivesse no lugar. - Vai atirar nos alvos? - Vou. - No deixaro - interveio outro menino. Merthin fitou-o. O menino tinha cerca de doze anos, alto e magro, ps e mos grandes. Merthin vira-o na noite passada no hospital com a famlia: seu nome era Philemon. Assediara os monges, fazendo perguntas. Ajudara a servir a ceia. - Claro que deixaro - declarou Merthin. - Por que no deixariam? - Porque voc jovem demais. - Isso estupidez. Mesmo enquanto falava, Merthin sabia que no deveria se sentir to seguro: os adultos muitas vezes eram estpidos. Mas a pressuposio de maior conhecimento de Philemon irritara-o, ainda mais depois que ele demonstrara tanta confiana na frente de Caris. Ele deixou as crianas e se aproximou de um grupo de homens esperando para
  21. 21. usar um alvo. Reconheceu um deles: um homem muito alto, de ombros largos, chamado MarkWebber. Markolhou para o pequeno arco e perguntou a Merthin: - Onde conseguiu esse arco? - Eu fiz - respondeu Merthin, orgulhoso. - D uma olhada, Elfric - disse Mark para o homem ao seu lado. - Ele fez um bom trabalho. Elfric era musculoso, com uma expresso astuta. Lanou um olhar superficial para o arco e comentou, desdenhoso: - muito pequeno. Nunca vai disparar uma flecha capaz de penetrar n armadura de um cavaleiro francs. - Talvez no - admitiu Mark, a voz suave. - Mas creio que o rapaz ainda vai esperar um ou dois anos antes de enfrentar os franceses. John Constable gritou nesse instante: - Estamos prontos para comear. MarkWebber, voc o primeiro. O gigante adiantou-se at a linha de tiro. Pegou um arco e testou-o, dobrando a madeira grossa sem o menor esforo. O constable notou a presena de Merthin pela primeira vez. - Nada de meninos - declarou ele. - Por que no? - protestou Merthin. - No importa por que no. Apenas saia da para no atrapalhar. Merthin ouviu os risos zombeteiros das outras crianas. - No h motivo para me impedir! - insistiu ele, indignado. - No tenho de dar explicaes para crianas. Muito bem, Mark, pode atirar. Merthin sentia-se mortificado. O untuoso Philemon provara que ele estava errado na frente de todos. Ele voltou para junto das crianas. - Eu disse que no da conseguir - comentou Philemon. - Ora, cale a boca e v embora! - No pode me obrigar a ir embora - declarou Philemon, que era quinze centmetros mais alto do que Merthin. Ralph interveio: - Mas eu posso. Merthin suspirou. Ralph era sempre leal, mas no percebia que sua briga com Philemon faria com que Merthin parecesse um fraco, alm de idiota. - Preciso ir embora de qualquer maneira - disse Philemon. - Tenho de ajudar o irmo Godwyn. Ele afastou-se. As outras crianas se dispersaram, em busca de novas curiosidades. Caris sugeriu a Merthin: - Voc pode experimentar o arco em outro lugar. Era evidente que ela estava ansiosa por ver o que aconteceria. Merthin olhou ao redor. -Mas onde?
  22. 22. Se fosse visto a atirar sem superviso, poderiam lhe tirar o arco. - Podemos ir para a floresta. Merthin ficou surpreso. As crianas eram proibidas de entrar na floresta. Malfeitores escondiam-se na floresta, homens e mulheres que viviam do roubo. As crianas podiam ser despojadas de suas roupas ou virar escravas... e havia perigos ainda piores, que os pais apenas insinuavam. E mesmo que escapassem desses perigos, as crianas ainda corriam o risco de ser aoitadas pelos pais, por ter violado as regras. Mas Caris parecia no ter medo, e Merthin no queria parecer menos corajoso do que ela. Alm do mais, a maneira brusca como fora dispensado pelo constable levava-o a ser desafiador. - Est bem. Mas precisamos ter certeza de que ningum nos ver. Caris tinha uma soluo. - Conheo um caminho. Ela seguiu na direo do rio. Merthin e Ralph foram atrs. Um cachorro pequeno, de trs pernas, acompanhou-os. - Qual o nome do seu cachorro? - perguntou Merthin a Caris. - Ele no meu. Mas dei-lhe um pedao de toucinho mofado e agora no consigo me livrar dele. Foram andando pela margem lamacenta do rio, passando por armazns, cais e barcaas. Merthin estudava discretamente a garota que se tornara lder sem qualquer esforo. Tinha um rosto quadrado e determinado, que no era bonito nem feio. Havia malcia nos olhos, que eram esverdeados, com manchas de um castanho dourado. Os cabelos castanho-claros estavam presos em duas trancas, como era a moda entre as mulheres das classes mais prsperas. As roupas eram caras, mas as botas, prticas, de couro, em vez dos sapatos de pano bordados que as damas da nobreza preferiam. Ela afastou-se do rio. Passaram por uma serraria e entraram numa rea de mato baixo. Merthin sentiu uma pontada de apreenso. Agora que estavam na floresta, onde poderia haver um bandido espreita por trs de qualquer carvalho, ele se arrependia de sua bravata; mas ficaria envergonhado se recuasse. Continuaram a andar, procura de uma clareira bastante larga para praticar com arco e flecha. Caris disse, em voz baixa, num tom de conspirao: - Esto vendo aquela moita grande de azevinho? - Claro. - Assim que passarmos por ali, agachem-se junto comigo e no faam barulho. - Por qu? - J vai descobrir. Um momento depois, Merthin, Ralph e Caris agacharam-se por trs da moita. O cachorro de trs pernas sentou tambm, olhando esperanoso para Caris. Ralph
  23. 23. comeou a fazer uma pergunta, mas Caris fez um gesto para que se calasse. Um minuto depois, uma menina apareceu. Caris levantou-se de um pulo e segurou-a. A menina gritou. - No grite! - ordenou Caris. - Estamos perto da estrada e no queremos ser ouvidos. Por que est nos seguindo? - Vocs esto com meu cachorro, e ele no quer voltar! - soluou a menina. - Conheo voc... nos encontramos na catedral esta manh - disse Caris, com a voz mais suave. - No precisa gritar. No vamos lhe fazer nenhum mal. Qual o seu nome? - Gwenda. - E o cachorro? - Hop. Gwenda pegou o cachorro, que lambeu suas lgrimas. - Est com ele agora. melhor continuar conosco, porque ele pode fugir de novo. Alm do mais, no conseguiria encontrar o caminho de volta para a cidade sozinha. Continuaram a andar. Merthin perguntou: - O que tem oito braos e onze pernas? - Eu desisto - disse Ralph no mesmo instante. Ele sempre desistia. - Eu sei - disse Caris, sorrindo. - Somos ns. Quatro crianas e o cachorro. Ela riu e arrematou: - Essa boa. Merthin ficou satisfeito. As pessoas nem sempre entendiam suas piadas; as garotas quase nunca. Um momento depois, eles ouviram Gwenda explicar a Ralph: - Dois braos, mais dois braos, mais dois braos, mais dois braos, fazem oito. Duas pernas... No viram ningum, o que era timo. As poucas pessoas que tinham atividades legtimas na floresta - lenhadores, queimadores de carvo, aqueles que fundiam ferro - no trabalhariam naquele dia; e seria excepcional encontrar um grupo de aristocratas caando no domingo. Os que por acaso se reunissem ali, naquele dia, s poderiam ser malfeitores. Mas as chances de encontr-los eram mnimas. A floresta era grande, estendendo-se por muitos quilmetros. Merthin nunca viajara bastante longe para ver o fim daquela floresta. Alcanaram uma clareira larga e Merthin disse: - Aqui est bom. Havia um carvalho com um tronco largo no outro lado da clareira, a cerca de quinze metros de distncia. Merthin ficou de lado para o alvo, como vira os homens fazerem. Pegou uma de suas trs flechas e ajustou a ponta com uma reentrncia na corda do arco. Tivera tanta dificuldade para fazer as flechas quanto encontrara com o arco. A madeira era freixo e as penas eram de ganso.
  24. 24. No conseguira arrumar ferro para as pontas, por isso se limitara a afi-las e calcin-las, para que ficassem duras. Mirou o carvalho. Puxou a corda do arco. Precisou fazer o maior esforo. Lanou a flecha. Caiu no cho antes de atingir o alvo. Hop, o cachorro, correu atravs da clareira para busc-la. Merthin ficou consternado. Esperava que a flecha voasse pelo ar, zunido, e a ponta cravasse no tronco. Compreendia agora que no puxara o arco pelo espao necessrio. Tentou com o arco na mo direita e a flecha na esquerda. Era excepcional sob esse aspecto, porque no era canhoto nem destro, mas uma mistura. Com a segunda flecha, puxou a corda ainda mais, e conseguiu dobrar o arco mais do que antes. Desta vez, a flecha quase tocou no carvalho. No terceiro disparo, ele apontou para cima, na esperana de que a flecha voasse num arco, e descesse em cima do tronco. Mas exagerou e a flecha passou entre os galhos, caindo no cho com uma chuva de folhas secas amareladas. Merthin sentiu-se embaraado. Atirar com um arco era mais difcil do que ele imaginara. O arco provavelmente era bom, ele refletiu; o problema era sua competncia... ou melhor, falta de competncia. Mais uma vez, Caris pareceu no perceber seu constrangimento. - Deixe-me tentar - pediu ela. - Garotas no podem atirar - interveio Ralph. Ele tirou o arco de Merthin. Ficou de lado para o alvo, como Merthin o fizera, mas no atirou de imediato; em vez disso, puxou o arco vrias vezes, para ter uma noo. Como Merthin, descobriu que era mais duro do que previra a princpio. Mas, depois de alguns momentos, pareceu pegar o jeito. Hop largara as trs flechas aos ps de Gwenda, que agora as pegou e estendeu para Ralph. Ele mirou sem puxar a corda, apontando a flecha para o tronco enquanto no havia presso de seus braos. Merthin compreendeu que deveria ter feito a mesma coisa. Por que essas coisas eram to naturais para Ralph, que no era capaz de responder ao enigma mais simples? Ralph puxou a corda, no sem esforo, mas num movimento fluido, parecendo sustentar a tenso com as coxas. Soltou a flecha e acertou no tronco do carvalho, a ponta penetrando por dois ou trs centmetros na casca externa mais mole. Ralph soltou uma risada triunfante. Hop saiu correndo atrs da flecha. Parou quando alcanou a rvore, aturdido. Ralph j estava puxando a corda do arco outra vez. Merthin percebeu o que ele tencionava fazer. - No... Mas era tarde demais. Ralph atirou no cachorro. A flecha acertou-o atrs do pescoo e afundou. Hop tombou para a frente e ficou se contorcendo.
  25. 25. Gwenda soltou um grito desesperado. Caris exclamou: - Oh, no! As duas saram correndo na direo do cachorro. Ralph exibiu um sorriso. - O que acha disso? - indagou ele, orgulhoso. - Voc atirou no cachorro dela! - berrou Merthin, furioso. - No tem importncia... o bicho s tinha trs pernas. - Mas a menina gostava dele, seu idiota! Olhe s como ela est chorando! - Voc s est com inveja porque no sabe atirar. Alguma coisa atraiu a ateno de Ralph. Com um movimento gil, ele prendeu outra flecha na corda, puxou-a, virou o arco, e disparou, sem qualquer pausa. Merthin no viu no que ele atirava, at que a flecha atingiu o alvo, uma gorda lebre saltando pelo ar, ferida nos quartos traseiros. Merthin no pde ocultar sua admirao. Mesmo com prtica, nem todos conseguiam acertar uma lebre em disparada. Ralph possua um talento natural. Merthin sentia inveja, embora nunca fosse admitir. Ansiava em ser um cavaleiro, bravo e forte, e lutar pelo rei, como o pai fazia; e sentia-se consternado ao descobrir que era um caso perdido, que nem sabia como atirar com arco e flecha. Ralph pegou uma pedra e esmagou o crnio da lebre, acabando com seu sofrimento. Merthin foi se ajoelhar ao lado das duas meninas e de Hop. O cachorro no estava mais respirando. Caris, gentilmente, tirou a flecha de seu pescoo e entregou a Merthin. No houve fluxo de sangue. Hop estava mesmo morto. Por um momento, ningum disse nada. No silncio, ouviram um homem gritar. Merthin levantou-se de um pulo, o corao batendo forte. Ouviram outro grito, uma voz diferente: havia mais de uma pessoa. Eram vozes agressivas e furiosas. Havia uma luta ali perto. Merthin ficou apavorado, tanto quanto as outras crianas. Paralisados, escutando, eles ouviram outro som, o barulho de um homem correndo impetuoso pela floresta, pisando em galhos cados, achatando rvores novas, pisoteando folhas mortas. E se aproximava da clareira. Caris foi a primeira a falar: - A moita! Ela apontou para uma moita grande, formada por vrias plantas... provavelmente o lugar em que se abrigava a lebre que Ralph matara, pensou Merthin. Um momento depois, ela estava deitada de barriga para baixo, rastejando pela moita. Gwenda seguiu-a, com o corpo de Hop nos braos. Ralph pegou a lebre morta e foi se juntar aos outros. Merthin estava de joelhos, vigiando a clareira, quando compreendeu que haviam deixado uma flecha denunciadora espetada no tronco do carvalho. Correu atravs da clareira, arrancou-a, e voltou para mergulhar por baixo da moita. Ouviram o homem respirar antes de avist-lo. Ofegava bastante enquanto corria,
  26. 26. aspirando o ar com um esforo que indicava que quase no aguentava mais. Seus perseguidores continuavam a gritar, avisando um ao outro: - Por aqui... ele seguiu nesta direo! Merthin recordou que Caris dissera que no estavam longe da estrada. O homem em fuga seria um viajante que fora atacado por salteadores? Um momento depois, ele apareceu na clareira. Era um cavaleiro, de vinte e poucos anos, com uma espada e uma adaga comprida presas no cinto. Estava bem vestido, numa tnica de couro para viagem, botas de cano alto, as bordas superiores viradas. Cambaleou e caiu, rolou, levantou-se, encostou no carvalho, ofegante. Sacou suas armas. Merthin olhou para os outros. Caris estava branca de medo, mordendo o lbio. Gwenda apertava o corpo do cachorro morto como se isso a fizesse se sentir mais segura. Ralph tambm parecia assustado, mas no tanto que o impedisse de arrancar a flecha da lebre e meter a carcaa por dentro da tnica. Por um momento, o cavaleiro olhou fixamente para a moita. Merthin sentiu, com um terror total, que ele vira as crianas escondidas ali. Ou talvez notasse os gravetos quebrados e folhas pisoteadas por onde haviam passado. Pelo canto do olho, Merthin viu que Ralph prendia uma flecha no arco. No instante seguinte, os perseguidores apareceram. Eram dois homens de armas, corpulentos, empunhando suas espadas. Usavam tnicas distintivas, de duas cores, o lado esquerdo amarelo, o lado direito verde. Um deles usava um manto marrom de l ordinria, o outro, um manto preto encardido. Todos os trs ficaram parados, recuperando o flego. Merthin tinha certeza de que estava prestes a ver o cavaleiro ser retalhado at a morte, e sentiu um impulso vergonhoso de desatar a chorar. At que, subitamente, o cavaleiro virou a espada e estendeu-a, o cabo virado para a frente, num gesto de rendio. O mais velho dos homens de armas, o que usava o manto preto, adiantou-se e estendeu a mo esquerda. Cauteloso, pegou a espada estendida, entregou-a a seu companheiro, e aceitou depois a adaga do cavaleiro, antes de dizer: - No so suas armas que eu quero, Thomas Langley. - Voc me conhece, mas eu no o conheo. - Se Thomas sentia algum medo, mantinha-o sob controle. - Pelas tnicas, devem ser homens da rainha. O homem mais velho encostou a ponta da espada na garganta de Thomas e empurrou-o contra a rvore. - Voc tem uma carta. - Instrues do conde para o xerife sobre a questo dos impostos. Pode ler vontade. Era uma piada. Os homens de armas, quase com certeza, no sabiam ler. Thomas tinha muita coragem e calma, pensou Merthin, para escarnecer de homens que pareciam dispostos a mat-lo. O segundo homem de armas passou por baixo da espada do primeiro e pegou a
  27. 27. carteira presa no cinto de Thomas. Impaciente, cortou o cinto com sua espada. Jogou o cinto para o lado e abriu a carteira. Tirou uma bolsa pequena, que parecia ser feita de l oleada. Pegou um pergaminho enrolado, lacrado com cera. Aquela luta poderia ser apenas por causa de uma carta?, especulou Merthin. Se era isso mesmo, ento o que estava escrito no pergaminho? No era provvel que fossem instrues rotineiras sobre impostos. Algum terrvel segredo devia estar escrito ali. - Se voc me matar - disse o cavaleiro -, o crime ser testemunhado por quem se esconde naquela moita. A cena ficou paralisada por uma frao de segundo. O homem de manto preto manteve a espada encostada na garganta de Thomas, resistindo tentao de olhar para trs. O homem de verde hesitou, mas acabou olhando para a moita. Foi nesse instante que Gwenda gritou. O homem de verde ergueu a espada e deu duas passadas largas atravs da clareira, na direo da moita. Gwenda levantou-se e saiu correndo, deixando a folhagem. O homem de armas partiu em seu encalo, estendendo a mo para agarr-la. Ralph tambm se levantou. Ergueu o arco e atirou a flecha contra o homem, no mesmo movimento. Acertou-o no olho e afundou na cabea por vrios centmetros. O homem ergueu a mo esquerda, como se quisesse pegar a flecha e arranc-la, mas depois ficou inerte e caiu como um saco de trigo, batendo no cho com um baque to forte que Merthin pde sentir o tremor. Ralph tambm saiu correndo da moita e seguiu Gwenda. A beira de seu campo de viso, Merthin percebeu que Caris agora corria atrs deles. Merthin queria fugir tambm, mas seus ps pareciam enraizados no solo. Soou um grito no outro lado da clareira. Merthin viu que Thomas derrubara a espada que o ameaava e sacara, de algum lugar do corpo, uma pequena faca, a lmina com a extenso da mo de um homem. Mas o homem de armas de manto preto estava alerta, e pulou para trs, fora do alcance da faca. Depois, ergueu a espada e desferiu um golpe, visando a cabea do cavaleiro. Thomas esquivou-se, mas no com a rapidez suficiente. A beira da lmina atingiu seu brao esquerdo, cortando o couro e alcanando a carne. Ele soltou um uivo de dor, mas no caiu. Com um movimento rpido, que pareceu extremamente gracioso, levantou a mo direita e atingiu a garganta do oponente; e com a mo ainda em movimento, descrevendo um arco, puxou a faca para o lado, cortando a maior parte do pescoo. O sangue esguichou da garganta do homem, como gua saindo de uma fonte. O homem de preto tombou, a cabea pendendo do corpo apenas por uma pequena tira. Thomas largou a faca e estendeu a mo direita para segurar o brao esquerdo
  28. 28. ferido. Sentou no cho, parecendo subitamente fraco. Merthin estava sozinho com o cavaleiro ferido, dois homens de armas mortos e o cadver de um cachorro de trs pernas. Sabia que deveria correr atrs das outras crianas, mas a curiosidade prevaleceu. Thomas parecia agora inofensivo, ele disse a si mesmo. O cavaleiro tinha uma boa vista. Pode sair da moita agora - disse ele. - No sou mais um perigo para voc veja o estado em que me encontro. Hesitante, Merthin levantou-se e saiu da moita. Atravessou a clareira e foi parar a alguns passos de distncia do cavaleiro sentado no cho. Thomas disse: - Ser aoitado se descobrirem que estava brincando na floresta. Merthin acenou com a cabea em concordncia. - Guardarei seu segredo, se voc guardar o meu. Merthin tornou a acenar com a cabea. Ao aceitar o acordo, ele no fazia concesses. Nenhuma das crianas contaria o que vira. Haveria problemas incalculveis se falassem. O que aconteceria com Ralph, que matara um dos homens da rainha? - Poderia fazer o favor de me ajudar a passar uma atadura neste ferimento? pediu Thomas. Apesar de tudo o que acontecera, ele falava com extrema cortesia, pensou Merthin. O controle do cavaleiro era extraordinrio. Merthin sentiu que queria ser como ele quando crescesse. Depois de um longo esforo, a garganta apertada de Merthin conseguiu emitir uma palavra. - Claro. - Pegue aquele cinto rasgado e enrole no meu brao. Merthin fez o que ele mandou. A camisa de Thomas estava encharcada de sangue e a carne do brao, aberta, como um pedao de carne no cepo do aougueiro. Merthin sentiu-se um pouco nauseado, mas forou-se a passar o cinto em torno do brao de Thomas, para fechar o ferimento e diminuir a hemorragia. Deu um n, e Thomas usou a mo direita para apert-lo ao mximo possvel. Depois, com um enorme esforo, Thomas conseguiu se levantar. Olhou para os homens mortos. - No podemos enterr-los. Eu sangraria at a morte antes que as sepulturas acabassem de ser escavadas. - Ele lanou um olhar para Merthin. - Mesmo com voc me ajudando. Thomas pensou por um momento. - Por outro lado, no quero que sejam encontrados por algum casal de namorados procurando um lugar para... ficar a ss. Vamos arrastar os corpos para aquela moita em que vocs se escondiam. O homem do manto verde
  29. 29. primeiro. Os dois foram at o morto indicado. - Cada um segura uma perna - disse Thomas. Com a mo direita, ele pegou o tornozelo esquerdo do homem. Merthin pegou o outro p, com as duas mos. Juntos, arrastaram o morto at a moita, ao lado do corpo de Hop. - Aqui est bom - decidiu Thomas. Ele tinha o rosto branco de tanta dor. Depois de um momento, abaixou-se e arrancou a flecha do olho do morto. - sua? - indagou, alteando uma sobrancelha. Merthin pegou a flecha e limpou-a na terra, para remover o sangue e o crebro grudado. Em seguida, arrastaram o corpo do outro homem atravs da clareira, da mesma maneira, a cabea quase solta balanando de um lado para outro. Deixaram-no ao lado do primeiro. Thomas pegou as espadas dos dois atacantes e jogou-as na moita. Depois, recuperou suas prprias armas. - Agora, tenho de pedir que me faa um grande favor. - Thomas estendeu a adaga. - Pode cavar um pequeno buraco para mim? - Est bem. Merthin pegou a adaga. - Bem aqui, na frente do carvalho. - De que tamanho? Thomas pegou a carteira de couro que estava presa em seu cinto. - Grande o suficiente para esconder isto por cinquenta anos. Merthin tomou coragem para perguntar: - Por qu? - Cave e lhe contarei tudo o que posso contar. Merthin fez um quadrado no solo com a adaga e usou-a para afofar a terra fria, antes de retir-la com as mos. Thomas pegou o pergaminho, o ps na bolsa de l e ajeitou-o dentro da carteira. - Recebi esta carta para entregar ao conde de Shiring. Mas contm um segredo to perigoso que compreendi que o portador seria morto, para se ter certeza de que no poderia revel-lo. Por isso, eu precisava desaparecer. Decidi que procuraria santurio num mosteiro, e me tornaria um monge. Estou cansado de lutar e tenho muitos pecados de que me arrepender. Assim que perceberam meu desaparecimento, as pessoas que me deram a carta comearam a me procurar... e tive azar. Fui visto e reconhecido numa taverna em Bristol. - Por que os homens da rainha o perseguiam? - Ela tambm gostaria de impedir a revelao do segredo. Quando o buraco cavado por Merthin tinha quase meio metro de profundidade, Thomas disse:
  30. 30. - J suficiente. Ele largou a carteira no buraco. Merthin tapou-o com a terra retirada. Thomas cobriu a terra revirada com folhas e gravetos, at que ficou indistinguvel da rea ao redor. - Se souber que eu morri, gostaria que abrisse o buraco e entregasse a carta a um padre - pediu Thomas. - Pode fazer isso por mim? - Claro. - At que isso acontea, no deve contar a ningum. Enquanto souberem que tenho a carta, mas ignorarem onde est, tero medo de fazer qualquer coisa. Mas, se voc revelar o segredo, duas coisas vo acontecer. Primeiro, eles me mataro. Depois, mataro voc. Merthin ficou transtornado. Era injusto que corresse tanto perigo s porque ajudara um homem, cavando um buraco. - Lamento assust-lo - acrescentou Thomas. - Mas tambm a culpa no toda minha. Afinal, no pedi que viesse at aqui. - No, no pediu. Merthin desejou com toda a fora do corao ter obedecido ordem da me e se mantido longe da floresta. - Voltarei para a estrada agora. Por que voc no retorna pelo caminho por onde veio? Aposto que encontrar seus amigos esperando em algum lugar perto daqui. Merthin virou-se para ir embora. - Qual o seu nome? - perguntou Thomas, antes que ele se afastasse. - Merthin, filho de Sir Gerald. - mesmo? - disse Thomas, como se conhecesse o pai. - No conte nada, nem mesmo para ele. Merthin acenou com a cabea e partiu. Vomitou depois de percorrer cinquenta metros. E sentiu-se um pouco melhor. Como Thomas previra, os outros esperavam-no beira da floresta, perto da serraria. Agruparam-se ao seu redor, tocando-o, como se quisessem se certificar de que ele estava mesmo bem. Pareciam aliviados, mas tambm envergonhados, como se estivessem se sentindo culpados por t-lo deixado para trs. Estavam todos abalados, at mesmo Ralph, que balbuciou: - Aquele homem... em quem acertei a flechada... ele ficou muito ferido? - Ele morreu. Merthin mostrou a flecha, ainda suja de sangue. - Arrancou a flecha do olho dele? Merthin gostaria de dizer que sim, mas decidiu dizer a verdade. - Foi o cavaleiro quem tirou. - O que aconteceu com o outro homem de armas? - O cavaleiro cortou sua garganta. E depois escondemos os corpos na moita. - E ele deixou voc ir embora? - Deixou.
  31. 31. Merthin no disse nada sobre a carta enterrada. - Temos de guardar segredo - declarou Caris. - Haver problemas terrveis se algum descobrir. - Nunca contarei a ningum - disse Ralph. - Devemos fazer um juramento - insistiu Caris. Formaram um pequeno crculo. Caris estendeu o brao, para que sua mo ficasse no centro do crculo. Merthin ps sua mo por cima. A pele de Caris era macia e quente. Ralph estendeu a mo tambm. Gwenda fez a mesma coisa. Juraram pelo sangue de Jesus. E voltaram cidade. A prtica de arco-e-flecha j terminara, e se aproximava o momento da refeio do meio-dia. Ao atravessarem a ponte, Merthin comentou com Ralph: - Quando eu crescer, quero ser como aquele cavaleiro... sempre corts, sem nunca sentir medo, mortfero numa luta. - Eu tambm - disse Ralph. - Quero ser mortfero. Na cidade, Merthin experimentou um sentimento irracional de surpresa por descobrir que a vida normal continuava: o som de bebs chorando, o cheiro de carne assando, a viso de homens tomando cerveja fora das tavernas. Caris parou diante de uma casa enorme, na rua principal, na frente da entrada para o priorado. Estendeu o brao pelos ombros de Gwenda e disse: Minha cachorra acaba de ter filhotes. Quer ver os filhotes? Gwenda ainda parecia assustada, beira das lgrimas, mas acenou com a cabea, enftica. - Quero, sim, por favor. Era uma manobra hbil, alm de gentil, pensou Merthin. Os filhotes seriam um conforto para a menina... e tambm uma distrao. Quando voltasse para sua famlia, contaria sobre os filhotes e era menos provvel que falasse da aventura na floresta. Despediram-se. As meninas entraram na casa. Merthin descobriu-se a pensar em quando veria Caris de novo. At que se lembrou dos outros problemas. O que o pai faria em relao s dvidas? Merthin e Ralph chegaram catedral. Ralph ainda levava o arco e a lebre morta. O hospital estava vazio, exceto por uns poucos doentes. Uma freira informou: - O pai de vocs est na catedral, com o conde de Shiring. Os dois entraram na vasta catedral. Os pais estavam no vestbulo. A me sentava junto de uma coluna, no canto em que a coluna redonda se aproximava do canto quadrado. A luz fria que passava pelas janelas altas, seu rosto era sereno, quase como se esculpido da mesma pedra cinzenta da coluna em que encostava a cabea. O pai mantinha-se de p ao seu lado, os ombros largos arriados numa
  32. 32. atitude de resignao. O conde Roland se encontrava na frente dos dois. Era mais velho do que o pai, mas parecia mais jovem por causa dos cabelos pretos e dos movimentos vigorosos. O prior Anthony estava ao lado do conde. Os dois meninos recuaram quando viram a cena, mas a me fez sinal para que se adiantassem. - Venham at aqui - disse ela. - O conde Roland ajudou-nos a chegar a um acordo com o prior Anthony que resolve todos os nossos problemas. O pai soltou um grunhido, como se no se sentisse to grato quanto a me pelo que o conde fizera. - E o priorado fica com as minhas terras - disse ele. - Vocs dois no tero nada para herdar. - Passaremos a viver aqui, em Kingsbridge - explicou a me, em tom mais animado. - Seremos corrodirios do priorado. - O que um corrodirio? - perguntou Merthin. - Significa que os monges nos daro uma casa para viver e duas refeies por dia, pelo resto de nossas vidas. No maravilhoso? Merthin compreendeu que ela no pensava de fato que era maravilhoso. Apenas fingia estar satisfeita. J o pai sentia uma vergonha evidente de ter perdido suas terras. Havia mais do que uma insinuao de desgraa nisso, concluiu Merthin. O pai olhou para o conde. - O que vai acontecer com meus meninos? O conde Roland virou-se para examin-los. - O maior parece promissor - disse ele. - Foi voc que matou essa lebre? - Fui, sim, milorde - respondeu Ralph, orgulhoso. - Acertei-a com uma flecha. - Ele pode me procurar dentro de poucos anos para ser um pajem, um aprendiz de cavaleiro. O pai parecia satisfeito. Merthin sentia-se atordoado. Grandes decises estavam sendo tomadas muito depressa. Ficou indignado pelo fato de o irmo mais jovem ser privilegiado, enquanto no faziam nenhuma meno a ele. - Isso no justo! - protestou Merthin. - Tambm quero ser um cavaleiro! - No! - exclamou a me. - Mas eu fiz o arco! O pai deixou escapar um suspiro exasperado. - Foi voc quem fez o arco, pequeno? - disse o conde, com uma expresso desdenhosa. - Neste caso, ser aprendiz de carpinteiro.
  33. 33. 3 A casa de Caris era um prdio de madeira luxuoso, com cho de pedra e uma chamin de pedra. Havia trs cmodos separados no trreo: a sala com a grande mesa de jantar, a sala pequena em que o pai podia tratar de negcios em particular, e a cozinha. Quando Caris e Gwenda entraram, a casa estava impregnada pelo aroma apetitoso de pernil assando. Caris levou Gwenda pela sala grande, at a escada interna. - Onde esto os filhotes? - perguntou Gwenda. - Quero ver minha me primeiro - explicou Caris. - Ela est doente. Entraram no quarto da frente, onde a me deitava numa cama de madeira toda esculpida. Era uma mulher pequena e frgil; Caris j tinha a mesma altura da me. Ela achou que a me parecia mais plida do que o habitual hoje, vrios fios dos cabelos ainda no arrumados grudados no rosto molhado de suor. - Como se sente, mame? - perguntou Caris. - Um pouco fraca hoje. O esforo de falar deixou a me ofegante. Caris sentiu uma mistura familiar e angustiante de ansiedade e desamparo. A me estava doente havia um ano. Comeara com dores nas juntas. Logo passara a ter lceras dentro da boca e equimoses inexplicadas pelo corpo. Sentia-se fraca demais para fazer qualquer coisa. Na semana passada pegara um resfriado. Agora, tinha febre e dificuldade para respirar. - Precisa de alguma coisa? - No, obrigada. Era a resposta habitual, mas Caris sentia-se enfurecida com a prpria impotncia cada vez que a ouvia. - Devo chamar madre Cecilia? A prioresa de Kingsbridge era a nica pessoa capaz de proporcionar algum conforto me. Ela tinha um extrato de papoulas que misturava com mel e vinho quente para atenuar a dor por algum tempo. Caris achava que Cecilia era melhor do que um anjo. - No h necessidade, querida. Como foi o servio de Todos os Santos? Caris notou que os lbios da me estavam muito plidos. - Assustador. A me fez uma pausa, descansando um pouco, antes de perguntar: - O que fez esta manh? - Fui assistir prtica de arco-e-flecha. Caris prendeu a respirao, com medo de que a me pudesse adivinhar seu segredo culpado, como acontecia com frequncia Mas a me olhou para Gwenda. - Quem sua amiguinha?
  34. 34. - Gwenda. Eu a trouxe at aqui para ver os filhotes. - Isso timo. A me mostrou-se subitamente cansada. Fechou os olhos e virou a cabea para o lado. As meninas deixaram o quarto sem fazer barulho. Gwenda estava chocada. - O que h de errado com ela? - Ela tem uma doena debilitante. Caris detestava falar a respeito. A doena da me deixava-a com o sentimento enervante de que nada era certo, qualquer coisa poderia acontecer, no havia nenhuma segurana no mundo. Era ainda mais assustadora do que a luta que testemunhara na floresta. Se pensava no que poderia acontecer, na possibilidade da morte da me, sofria uma sensao de pnico que deixava o corao palpitando e dava vontade de gritar. O quarto do meio era usado no vero pelos italianos, compradores de l de Florena e Prato, que vinham fazer negcios com o pai. Agora, estava vazio. Os filhotes se encontravam no quarto dos fundos, que pertencia a Caris e sua irm, Alice. Tinham sete semanas de idade, prontos para deixar a me, que se mostrava cada vez mais impaciente com as crias. Gwenda soltou um suspiro de alegria, e se abaixou no mesmo instante para ficar no cho com os filhotes. Caris pegou uma fmea, a menor da ninhada, mas bastante animada, sempre se aventurando sozinha para explorar o mundo. - Ficarei com esta - comentou ela. - Seu nome Scrap. Segurar a cachorrinha acalmou-a, e ajudou-a a esquecer as outras coisas que a perturbavam. Os outros quatro animais subiram em Gwenda, farejando-a e mastigando seu vestido. Ela pegou um macho, feio, marrom, o focinho comprido, os olhos muito juntos. - Gosto deste - murmurou ela. O filhote enroscou-se em seu colo. Caris disse: - Gostaria de ficar com ele? Lgrimas afloraram aos olhos de Gwenda. - Temos permisso para dar todos os filhotes. - mesmo? - Papai no quer mais cachorros. Se voc quiser, pode levar. - Quero, sim - sussurrou Gwenda. - Muito obrigada. - J tem um nome? - Alguma coisa que me lembre Hop. Talvez eu o chame de Skip. Era uma referncia expresso bop, skip and a jump, um pulo, outro pulo e um salto, para designar uma distncia curta. - um bom nome. Caris percebeu que Skip j adormecera no colo de Gwenda. As duas meninas
  35. 35. continuaram sentadas no cho com os filhotes, em silncio. Caris pensou nos dois meninos que haviam conhecido, o pequeno, de cabelos vermelhos e olhos castanho dourados, e seu irmo mais jovem, alto e bonito. O que a impelira a lev-los para a floresta? No era a primeira vez que ela cedia a um impulso estpido. Tendia a acontecer quando algum de autoridade ordenava que ela no fizesse alguma coisa. Sua tia Petranilla vivia ditando regras: - No d comida a esse gato ou nunca vamos nos livrar dele. Nada de jogo de bola em casa. Fique longe daquele menino, pois sua famlia de camponeses. Regras que reprimiam seu comportamento pareciam levar Caris loucura. Mas ela nunca fizera nada to insensato. E sentiu-se abalada agora ao pensar a respeito. Dois homens haviam morrido. Mas o que poderia acontecer era ainda pior. As quatro crianas poderiam ter sido mortas tambm. Ela especulou sobre o motivo da luta, por que os homens de armas perseguiam o cavaleiro. Obviamente, no era um simples assalto. Haviam falado de uma carta. Mas Merthin no dissera mais nada a respeito. Era bem provvel que no tivesse sabido de mais nada. Ou seja, era apenas outro mistrio da vida adulta. Caris gostara de Merthin. Seu irmo, insuportvel, era como todos os outros meninos de Kingsbridge, fanfarro e agressivo, alm de estpido. Mas Merthin era diferente. Ela sentira-se atrada desde o incio. Duas novas amizades em um nico dia, pensou ela, olhando para Gwenda. A menina no era bonita. Tinha olhos castanho-escuros bem juntos, por cima de um nariz adunco. Escolhera um cachorro que parecia um pouco com ela, compreendeu Caris, divertida. As roupas de Gwenda eram velhas e deviam ter sido usadas por muitas outras crianas antes. Gwenda estava mais calma agora. No dava mais a impresso de que poderia desatar a chorar a qualquer momento. E ela tambm sentia-se tranquilizada pelos filhotes. Soaram passos familiares na sala l embaixo. Um momento depois, uma voz berrou: - Tragam-me um jarro de cerveja, pelo amor dos santos! Estou com mais sede que um cavalo de carroa! - meu pai - anunciou Caris. - Venha comigo para conhec-lo. Ao perceber que Gwenda estava apreensiva, ela acrescentou: - No se preocupe. Ele sempre grita assim, mas um homem bom. As meninas desceram com os filhotes. - O que aconteceu com todos os meus criados? - esbravejou o pai. - Fugiram para a terra dos duendes? Ele saiu da cozinha, arrastando a perna direita torta, como sempre, carregando uma enorme caneca de madeira, com a cerveja ameaando derramar. - Ol, meu boto-de-ouro! A voz com que ele se dirigiu a Caris era mais suave. Sentou numa cadeira enorme, cabeceira da mesa, e tomou um gole prolongado da caneca.
  36. 36. - Assim melhor. - Ele enxugou a barba irregular com a manga. Notou a presena de Gwenda. - Uma pequena margarida para acompanhar meu boto- de-ouro? Como seu nome? - Gwenda, de Wigleigh, milorde - respondeu ela, apavorada. - Dei um filhote a ela - explicou Caris. - Uma tima idia! Os filhotes precisam de ateno, e ningum pode amar mais um filhote do que uma menina. Caris viu, no banco ao lado da mesa, um manto escarlate. S podia ser importado, porque os tintureiros ingleses no sabiam como obter aquele vermelho brilhante. Seguindo o olhar da filha, o pai explicou: - para sua me. Ela sempre quis ter um casaco de vermelho italiano. Espero que isto a encoraje a melhorar logo para vesti-lo. Caris tocou no casaco. A l era macia e fechada, como s os italianos sabiam fazer. - lindo - murmurou ela. Tia Petranilla veio da rua. Tinha alguma semelhana com o pai, mas era muito contida, enquanto o irmo era expansivo. Parecia mais com o outro irmo, Anthony, o prior de Kingsbridge: eram ambos altos e imponentes, enquanto o pai era baixo, de peito estufado, e manco. Caris no gostava de Petranilla. Ela era esperta e mesquinha, uma combinao terrvel num adulto: Caris nunca conseguia engan-la. Gwenda sentiu a averso de Caris e olhou apreensiva para a recm-chegada. S que o pai se mostrou satisfeito ao v-la. - Entre, irm - disse ele. - Onde esto todos os meus criados? - No sei por que voc imagina que eu sei, j que venho de minha prpria casa, no outro lado da rua. Mas, se tivesse de adivinhar, Edmund, eu diria que sua cozinheira est no galinheiro, procura de ovos para fazer um pudim, enquanto a outra criada est l em cima, ajudando sua esposa a sentar num banco, o que costuma fazer por volta de meio-dia. E espero que seus dois aprendizes estejam de guarda no armazm beira do rio, cuidando para que nenhum dos festeiros embriagados neste dia de festa resolva acender uma fogueira a distncia de um voo de fasca de sua l. Ela costumava falar assim mesmo, fazendo um pequeno sermo em resposta pergunta mais simples. Seu comportamento era arrogante, mas o pai no se importava... ou fingia no se importar. - Minha extraordinria irm - disse ele. - Voc a nica que herdou a sabedoria de nosso pai. Ela virou-se para as meninas. - Nosso pai descendia de Tom Builder, o padrasto e mentor de Jack Builder, que foi o arquiteto da catedral de Kingsbridge. O pai prometeu que daria seu primognito a Deus, mas infelizmente fui a primeira criana a nascer. Ele me
  37. 37. deu o nome de Santa Petranilla... que era filha de So Pedro, como tenho certeza que sabem... e rezou para que nascesse um menino em seguida. E nasceu um menino, s que era deformado, Como no queria dar a Deus um presente defeituoso, ele criou Edmund para assumir o negcio de l. Felizmente veio outro menino em seguida, nosso irmo Anthony, bem-comportado e temente a Deus, que ingressou no mosteiro ainda pequeno, para se tornar agora, como todos nos orgulhamos de proclamar, o prior. Ela teria se tornado sacerdote se fosse homem, mas tivera de se contentar em fazer a melhor coisa seguinte, criando o filho Godwyn para ser um monge no priorado. Como o av Wooler, Petranilla entregara um filho a Deus. Caris sempre sentira pena de Godwyn, seu primo mais velho, por ser filho de Petranilla. Petranilla notou o casaco vermelho. - De quem isto? - indagou ela. - o tecido italiano mais caro! - Comprei para Rose - disse o pai. Petranilla fitou-o fixamente. Caris podia sentir que ela estava pensando que o irmo era um tolo ao comprar um casaco como aquele para uma mulher que no saa de casa havia um ano. Mas ela limitou-se a fazer um comentrio, que podia ser encarado como um elogio... ou no: - Voc muito bom para ela. O pai no se importou. - Suba para v-la exortou ele. - Vai anim-la. Caris duvidava, mas Petranilla no tinha essas apreenses e tratou de subir. A irm de Caris, Alice, veio da rua. Tinha onze anos, um a mais do que Caris. Olhou para Gwenda e perguntou: - Quem ela? - Minha nova amiga, Gwenda - respondeu Caris. - Ela vai levar um filhote. - Mas ela pegou o filhote que eu queria! - protestou Alice. Ela nunca dissera isso antes. - Ei... voc no tinha escolhido nenhum! - exclamou Caris, indignada. - S est dizendo isso por maldade! - Por que ela deveria ficar com um dos nossos filhotes? O pai interveio: - Calma, calma... Temos mais filhotes do que precisamos. - Caris deveria ter me perguntado primeiro qual deles eu queria! - Tem razo - disse o pai, embora soubesse muito bem que Alice estava apenas querendo criar problemas. - No faa isso de novo, Caris. - Est bem, papai. A cozinheira veio da cozinha, com jarros e canecas. Quando Caris estava aprendendo a falar, chamava-a de Tutty, ningum sabia por qu. Mas o nome pegara. O pai disse: - Obrigado, Tutty. Sentem-se mesa, meninas. Gwenda hesitou, sem saber se o convite a inclua. Mas Caris acenou com a
  38. 38. cabea para ela, pois sabia que o pai a inclua... ele costumava convidar para comer todas as pessoas que se encontravam em sua presena no momento da refeio. Tutty encheu de cerveja a caneca do pai, depois serviu a Alice, Caris e Gwenda um pouco de cerveja misturada com gua. Gwenda bebeu tudo imediatamente, com evidente satisfao. Caris compreendeu que ela no bebia cerveja com frequncia: as pessoas pobres tomavam sidra feita com ma cida. Em seguida, Tutty ps na frente de cada pessoa uma grossa fatia de po de centeio. Gwenda pegou sua fatia para comer, e Caris adivinhou que ela nunca antes comera a uma mesa. - Espere um instante - murmurou ela. Gwenda largou o po. Tutty trouxe o pernil numa tbua, junto com um prato de repolho. O pai pegou um faco e cortou fatias do pernil, empilhadas em cima de cada pedao de po. Gwenda arregalou os olhos pela quantidade de carne que lhe foi servida. Caris usou uma colher para pegar folhas de repolho e pr sobre as fatias do pernil. Foi nesse instante que a outra criada, Elaine, desceu correndo a escada. - A patroa parece pior - disse ela. - A sra. Petranilla diz que devemos chamar madre Cecilia. - Pois ento corra at o priorado e pea a ela para vir - ordenou o pai. A criada saiu. - Comam, crianas - disse o pai. Ele espetou uma fatia de pernil quente com a faca; mas Caris podia perceber que o pai no sentia mais qualquer satisfao pela comida. Parecia estar olhando para alguma coisa distante. Gwenda comeu um pouco do repolho e sussurrou: - Isto uma comida do cu. Caris experimentou. O repolho fora cozido com gengibre. Provavelmente Gwenda nunca provara gengibre antes. S os ricos podiam compr-lo. Petranilla desceu, ps um pouco de pernil num prato de madeira e subiu para oferecer cunhada. Mas voltou poucos momentos depois com a comida intacta. Sentou mesa para comer o pernil. A cozinheira trouxe-lhe po. - Quando eu era pequena, nossa famlia era a nica em Kingsbridge que tinha carne para comer todos os dias - comentou ela. - Exceto nos dias de jejum... meu pai era muito devoto. Foi o primeiro mercador de l da cidade a negociar diretamente com os italianos. Todos fazem isso agora... embora meu irmo Edmund ainda seja o mais importante. Caris perdera o apetite. Tinha de mastigar bastante para poder engolir. Madre Cecilia finalmente chegou, uma mulher pequena e ativa, com uma atitude mandona tranquilizadora Era acompanhada por irm Juliana, uma pessoa simples, com um corao terno. Caris sentiu-se melhor ao observ-las subirem a
  39. 39. escada, uma pardoca saltitante e uma galinha balanando de um lado para outro em sua esteira. Lavariam a me com gua-de-rosas para esfriar a febre, e a fragrncia serviria para reanim-la. Tutty trouxe mas e queijo. O pai descascou uma ma com sua faca, distrado. Caris recordou que o pai costumava lhe dar os pedaos da ma descascada quando ela era pequena, e depois ele comia a casca. Irm Juliana desceu, com uma expresso preocupada no rosto rolio. - A prioresa quer que o irmo Joseph venha ver a sra. Rose Vou cham-lo. Joseph era o mdico snior no mosteiro; estudara com os mestres em Oxford. Juliana saiu apressada para a rua. O pai largou a ma descascada sem comer. - O que vai acontecer? - perguntou Caris. - No sei, boto-de-ouro. Vai chover? Os florentinos precisam de quantos sacos de l? As ovelhas vo pegar uma morrinha? A criana que vai nascer ser uma menina ou um menino com a perna torta? Nunca sabemos, no mesmo? isso... - O pai desviou os olhos. - isso o que torna tudo to difcil. Ele estendeu a ma para Caris, que a deu a Gwenda... que comeu tudo, inclusive os caroos. Irmo Joseph chegou poucos momentos depois, acompanhado por um jovem assistente, que Caris reconheceu como Saul Whitehead, Cabea Branca, assim chamado porque os cabelos - o pouco que restava depois do corte monacal eram louro acinzentados. Cecilia e Juliana desceram, sem dvida para dar espao aos dois homens no pequeno quarto. Cecilia sentou-se mesa, mas no comeu. Tinha um rosto pequeno, com feies bem acentuadas, o nariz um pouco pontudo, olhos brilhantes, um queixo que parecia a proa de um barco. Olhou curiosa para Gwenda. - Quem essa menina? - indagou ela, jovial. - Ela ama Jesus e sua Santa Me? - Sou Gwenda, amiga de Caris. Ela fitou Caris, ansiosa, como se temesse que fosse muita presuno de sua parte reivindicar essa amizade. - A Virgem Maria vai fazer minha me ficar melhor? - perguntou Caris. Cecilia ergueu as sobrancelhas. - Uma pergunta direta. fcil perceber que voc filha de Edmund. - Todo mundo reza para ela, mas nem todos ficam bons - comentou Caris. - E sabe por que isso acontece? - Talvez seja porque ela nunca ajuda ningum, e acontece apenas que as pessoas fortes ficam boas, mas as fracas, no. - No diga bobagem - interveio o pai. - Todo mundo sabe que a Santa Me nos ajuda. - No se preocupe - disse-lhe Cecilia. - normal as crianas fazerem
  40. 40. perguntas... ainda mais as inteligentes. Caris, os santos so sempre poderosos, mas algumas oraes so mais eficazes do que outras. Compreende isso? Caris acenou com a cabea, relutante, no se sentindo convencida, mas sem saber o que responder. - Ela deve ir para a nossa escola - disse Cecilia. As freiras mantinham uma escola para as filhas da nobreza e os habitantes mais prsperos da cidade. Os monges cuidavam de uma escola separada para os meninos. O pai no concordava com essa idia. - Rose j ensinou as letras para as meninas. E Caris conhece os nmeros to bem quanto eu... at me ajuda nos negcios. - Ela deve aprender mais do que isso. No vai querer que ela passe a vida como sua serva, no ? Petranilla interveio: - Ela no precisa aprender as coisas dos livros. Vai casar muito bem. Haver multides de pretendentes para as duas irms. Filhos de mercadores, at mesmo filhos de cavaleiros, se mostraro ansiosos em casar nesta famlia. Mas Caris uma criana voluntariosa; devemos cuidar para que ela no se perca com algum menestrel sem dinheiro. Caris notou que Petranilla no previa problemas com a obediente Alice, que provavelmente casaria com o homem que a famlia escolhesse para seu marido. - Deus pode chamar Caris para seu servio - sugeriu Cecilia. - Deus j chamou duas pessoas desta famlia... meu irmo e meu sobrinho resmungou o pai. - Imagino que Ele j se sente satisfeito a esta altura. Cecilia olhou para Caris. - O que voc acha? Quer ser uma mercadora de l, a esposa de um cavaleiro ou uma freira? A perspectiva de ser freira deixava Caris horrorizada. Teria de obedecer s ordens de outra pessoa em todas as horas do dia. Seria como permanecer uma criana pelo resto da vida... e ter Petranilla como me. Ser a esposa de um cavaleiro, ou de qualquer outro homem, parecia quase to ruim, porque as mulheres tinham de obedecer a seus maridos. Ajudar o pai, talvez assumir o negcio quando ele se tornasse velho demais, era a opo menos desagradvel; mas, por outro lado, no era exatamente o seu sonho. - No quero ser nenhuma dessas coisas. - H alguma outra coisa que voc gostaria de fazer? - indagou Cecilia. Havia, sim, embora Caris nunca tivesse dito a ningum antes; na verdade, nem sequer compreendera direito at aquele momento. Mas agora a ambio parecia plenamente formada e ela compreendeu, sem a menor dvida, que era seu destino. - Vou ser uma doutora. Houve um momento de silncio, e depois todos riram. Caris corou, sem saber o
  41. 41. que era to engraado. O pai se compadeceu e explicou: - S os homens podem ser doutores. No sabia disso, boto-de-ouro? Caris ficou espantada. Olhou para Cecilia. - Mas o que voc ? - No sou uma mdica. As freiras podem cuidar de doentes, claro, mas seguem as instrues dos homens treinados. Os homens que estudaram com os mestres compreendem os humores do corpo, a maneira como se desequilibram na doena, e como lev-los de volta s propores corretas, para restabelecer a boa sade. Sabem que veia sangrar para a enxaqueca, lepra ou falta de ar; onde aplicar uma ventosa e onde cauterizar; se pr um cataplasma ou dar um banho. - Uma mulher no poderia aprender essas coisas? - Talvez, mas Deus determinou o contrrio. Caris sentia-se frustrada com a maneira como os adultos recorriam a esse trusmo todas as vezes que no sabiam como responder. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, o irmo Saul desceu com uma bacia com sangue, e atravessou a cozinha para despej-la no quintal dos fundos. A cena deixou Caris com vontade de chorar. Todos os mdicos usavam a sangria como uma cura, e por isso devia ser eficaz; mas mesmo assim ela detestava ver a fora vital da me numa bacia, prestes a ser jogada fora. Saul voltou ao quarto da doente. Poucos momentos depois, ele e Joseph desceram. - Fiz tudo o que posso por ela - declarou Joseph ao pai, solene. - E ela confessou seus pecados. Confessou seus pecados! Caris sabia o que isso significava. Comeou a chorar. O pai tirou seis pennies de prata de sua bolsa e entregou-os ao monge, murmurando, a voz rouca: - Obrigado, irmo. Enquanto os monges se retiravam, as duas freiras tornaram a subir. Alice sentou no colo do pai e comprimiu o rosto contra seu pescoo. Caris chorou e abraou Scrap. Petranilla ordenou que Tutty tirasse a mesa. Gwenda observava tudo com os olhos arregalados. Todos continuaram sentados mesa, esperando.
  42. 42. 4 O irmo Godwyn estava com fome. J comera um ensopado de nabos cortados com peixe salgado, mas no se satisfizera. Os monges quase sempre comiam peixe e tomavam uma cerveja fraca, mesmo quando no era um dia de jejum. Nem todos os monges, claro. O prior Anthony tinha uma dieta privilegiada. E teria hoje uma refeio ainda mais especial, pois a prioresa, madre Cecilia, seria sua convidada. Ela estava acostumada a uma boa comida. As freiras, que sempre pareciam ter mais dinheiro do que os monges, matavam um porco ou uma ovelha a intervalos de poucos dias e comiam com vinho da Gasconha. Era incumbncia de Godwyn supervisionar a refeio, uma tarefa difcil, quando seu prprio estmago roncava de fome. Ele conversou com o cozinheiro do mosteiro, verificou o ganso gordo assando no forno, a panela com o molho de ma borbulhando no fogo. Pediu ao adegueiro que tirasse um jarro de sidra do barril e pegou um po de centeio na padaria... do dia anterior, j que no se fazia po aos domingos. Tirou as taas e travessas de prata da arca trancada e as arrumou na mesa da sala da casa do prior. O prior e a prioresa faziam uma refeio juntos pelo menos uma vez por ms. O mosteiro e o convento eram instituies separadas, com suas prprias instalaes e diferentes fontes de receita. O prior e a prioresa eram subordinados de forma independente ao bispo de Kingsbridge. Apesar disso, partilhavam a enorme catedral e vrios outros prdios, onde os monges trabalhavam como mdicos e as freiras, como enfermeiras. Por isso, havia sempre detalhes para discutir: servios na catedral, hspedes e pacientes no hospital, os problemas polticos da cidade. Anthony tentava muitas vezes persuadir Cecilia a pagar custos que, em termos estritos, deveriam ser divididos igualmente - janelas de vidro para a sala do captulo, colchas para o hospital, a repintura do interior da catedral - e ela quase sempre concordava. Hoje, porm, a conversa deveria se concentrar na poltica. Anthony voltara no dia anterior de duas semanas em Gloucester, onde participara das cerimnias de sepultamento do rei Edward II, que perdera o trono em janeiro e a vida em setembro. Madre Cecilia queria saber de tudo, embora simulasse se manter acima de todas as intrigas. Godwyn tinha outra coisa em mente. Queria conversar com Anthony sobre seu futuro. Estivera aguardando ansioso pelo momento certo desde que o prior voltara. Ensaiara o discurso, mas ainda no encontrara a oportunidade de faz-lo. Esperava ter a chance naquela tarde. Anthony entrou na sala no momento em que Godwyn punha um queijo e uma tigela com peras no aparador. O prior parecia uma verso mais velha de Godwyn. Os dois eram altos, com feies regulares e cabelos castanho-claros. Como todos na famlia, tinham olhos esverdeados com pintas douradas. Anthony
  43. 43. parou ao lado do fogo... a sala estava fria e o velho prdio permitia a passagem de aragens geladas. Godwyn serviu uma taa de sidra. - Padre prior, hoje meu aniversrio. Estou com vinte e um anos. - Sei disso. Lembro muito bem de seu nascimento. Eu tinha quatorze anos na ocasio. Minha irm Petranilla berrou como um javali com uma flecha nas entranhas quando trouxe voc ao mundo. - Anthony ergueu a taa num brinde, fitando o sobrinho com uma expresso afetuosa. - E agora voc um homem. Godwyn decidiu que aquele era o momento. - Estou no priorado h dez anos. - Tanto tempo assim? - Isso mesmo... como estudante, novio e monge. - muito tempo. - Espero ter sido um crdito para minha me e para meu tio. - Sentimos orgulho de voc. - Obrigado. - Godwyn engoliu em seco. - E agora quero ir para Oxford. A cidade