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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
A TE MORIENTEM: VEREDAS DA FICÇÃO LITERÁRIA NO PENSAMENTO DE SANTO AGOSTINHO
Hugo Langone Machado
2011
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A TE MORIENTEM: VEREDAS DA FICÇÃO LITERÁRIA NO PENSAMENTO DE SANTO AGOSTINHO
Hugo Langone Machado
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Teoria Literária.
Orientadora: Professora Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira
Rio de Janeiro
2011
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A te morientem: veredas da ficção literária no pensamento de Santo Agostinho Hugo Langone Machado
Orientadora: Professora Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Teoria Literária. Aprovada por: _________________________________________________ Presidente, Professora Martha Alkimin de Araújo Vieira – UFRJ _________________________________________________ Professor José Thomaz Almeida Brum Duarte – PUC/Rio _________________________________________________ Professor Alberto Pucheu Neto – UFRJ _________________________________________________ Professora Flávia Trocolli Xavier da Silva – UFRJ, suplente _________________________________________________ Professora Silvia Regina Pinto – UERJ, suplente
Rio de Janeiro Abril de 2011
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Machado, Hugo Langone. A te morientem: veredas da ficção literária no
pensamento de Santo Agostinho/ Hugo Langone Machado. – Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2011.
x, 89f. Orientadora: Martha Alkimin de Araújo Vieira Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-
graduação em Ciência da Literatura, 2011. Referências bibliográficas: f. 95-100. 1. Agostinho, Santo, 354-430. 2. Literatura. 3.
Patrística. I. Vieira, Martha Alkimin de Araújo. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós- graduação em Ciência da Literatura. III. Título
5
Agradecimentos
A tarefa de redigir agradecimentos é daquelas árduas, em especial ao
término de um processo de pesquisa longo e, de alguma forma, desgastante: ao mesmo
tempo em que eles se fazem urgentes, como demonstração de que nada seria possível na
solidão, o receio de esquecer nomes importantes semeia no agradecido a vontade de
simplesmente deixá-los subentendidos em gestos de outra natureza. No entanto, seria
impossível não registrar por escrito, aqui, algumas sinceras gratidões.
Em primeiro lugar, a Maria, Otávio e Camila, pela paciência infinita, dura
e carinhosa. E também pela compreensão nos momentos certos e pela não compreensão
nos momentos mais certos ainda. A tarefa de conviver com o autor deste trabalho é que
deveria ser objeto de pesquisas acadêmicas rigorosíssimas.
A Camila Lavôr, por cuja companhia e beleza sou profunda e
completamente indigno. É esta a maior prova de que a misericórdia divina pode ser
muito maior do que sua justiça.
A Jorge, José, Marta, Beatriz e Ângelo, referenciais sempre seguros.
A Cely e Nonno, in memoriam.
A Olga, Luís e Letícia, por todas as aventuras gastronômicas, passadas e
futuras.
Aos amigos Alessandra Missagia, Ana Adão, Bernardo Brandão, Bruna
Nin, Bruno Gripp, Bruno Paes & Juliana Pereira, Gustavo Deslandes, Izabel Aleixo,
Juliana Cassidy, Larissa Helena, Natália Gama, Pedro Sette-Câmara e Victor Quaresma.
Por razões diferentes, há um pouco de cada um de vocês em meus últimos passos.
6
A Bruno, ex-irmão Martinho, OSB, e ao saudoso pe. Mauro Odoríssio, cp,
por todos os livros emprestados e todas as orientações reconfortantes.
E, claro, a Martha Alkimin, cuja postura num meio por vezes tão
complicado me é, e sempre será, sólida referência. Nunca poderei ser grato o suficiente
pela confiança e pela companhia, tanto na densa atmosfera acadêmica quanto na densa
leveza de Agostinho.
Debetur soli gloria vera Deo.
7
Resumo
A TE MORIENTEM: VEREDAS DA FICÇÃO LITERÁRIA NO PENSAMENTO DE
SANTO AGOSTINHO
Hugo Langone Machado
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura, Centro de Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos à obtenção do grau de Mestre em Ciência da
Literatura (Teoria Literária).
Orientadora: Martha Alkimin de Araújo Vieira
O presente trabalho tem como objetivo desvelar os possíveis caminhos de reflexão
abertos pelos comentários de Santo Agostinho acerca da natureza ficcional e do
problema literário. Para que tal meta fosse alcançada, dedicamos a primeira parte do que
aqui é apresentado à elucidação de alguns pontos cruciais do pensamento agostiniano,
os quais se consolidam como norte das abordagens que o autor dá a temas caros à teoria
da literatura. Em seguida, tomam o centro a análise de textos que tocam o problema da
ficção artística e do texto de literatura, sempre contextualizados em sua relação com a
verdade e com os riscos que, segundo Agostinho, a literatura traz à alma humana.
Palavras-chave: ficção; verdade; alma; Agostinho.
Rio de Janeiro
Abril de 2011
8
Abstract
A TE MORIENTEM: THE PATHS OF LITERARY FICTION IN SAINT
AUGUSTINE’S THOUGHT
Hugo Langone Machado
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura, Centro de Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos à obtenção do grau de Mestre em Ciência da
Literatura (Teoria Literária).
Orientadora: Martha Alkimin de Araújo Vieira
The following work aims at unveiling the reflective possibilities created by Saint
Augustine’s commentaries on the fictional nature and on the problem of literature. To
achieve such a goal, we dedicated the first part of this text to illuminate crucial
questions of the Augustinian thought, which consolidate themselves as a guide to the
approaches given by the author over themes of interest to the field of literary theory.
Next, we focus on the analysis of treatises which somehow deal with the problem of
artistic fiction and of the literaty work, always under the context of their relation to the
truth and to the risks that, according to Augustine, literature brings to human soul.
Keywords: fiction; truth; soul; Augustine.
Rio de Janeiro
Abril de 2011
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Sumário
Abreviações 10
1. Introdução 11
2. Pressupostos teóricos 16
2.1. [...] et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te:
o problema da felicidade 17
2.2. A posição da fé 23
2.3. As possibilidades da certeza 26
2.4. Si fallor, sum 30
2.5. A sensação 33
2.6. Análise linguística e transcendência da alma 35
2.7. No pensamento de Deus 44
3. Poetica illa figmenta: o falso ficcional e a verdade 50
3.1 O mundo bom e o mal 50
3.2. A Queda e o distanciamento da Verdade 55
3.3. O falso e a literatura para a alma caída: os Soliloquia 58
4. Da mentira à retificação de Virgílio 69
4.1. De mendacio: a mentira, a interioridade e a posição da ficção 69
4.2 Os sentidos da alegoria 77
4.3. Agostinho, um novo Enéias: corrigindo Virgílio 83
5. Conclusão 91
Obras consultadas 95
10
Abreviações
As obras de Agostinho foram abreviadas de acordo com o Augustinus-Lexikon,
organizado por Cornelius Mayer em 1986. As referências são as que se seguem:
c.Acad. Contra academicos [Contra acadêmicos]
b.vita De beata vita [A vida feliz]
civ.dei De civitate Dei [A cidade de Deus]
conf. Confessiones [Confissões]
doc.chr. De doctrina christiana [A doutrina cristã]
Gn.litt. De Genesi ad litteram [Comentário literal ao Gênesis]
lib.arb. De libero arbitrio [O livre-arbítrio]
mag. De magistro [O mestre]
mend. De mendacio [Sobre a mentira]
nat.b. De natura boni [A natureza do bem]
s. Sermones [Sermões]
sol. Soliloquia [Solilóquios]
trin. De trinitate [A trindade]
util.cred. De utilitate credendi [A utilidade de crer]
vera rel. De vera religione [A verdadeira religião]
11
1. Introdução
Aquele que deseja mergulhar no pensamento de Santo Agostinho para
apreender o real estatuto da literatura e da ficção certamente se encontrará em posição
curiosa. Em primeiro lugar, se tiver como ambiente o meio acadêmico como hoje se
encontra, onde precisará enfrentar o resíduo de um pensamento que aparentemente mina
a autoridade de uma figura tão importante. Ao preconceito injustificado, impõe-se ainda
o recorte inerente ao pesquisador das Letras: se por um lado é possível construir uma
boa documentação tomando os temas caros à Teologia, à Filosofia, à Estética e à
Hermenêutica, a Teoria Literária e a Literatura Comparada se mostram em evidente
desvantagem.
Novos caminhos, porém, parecem se abrir. À profusão de linhas impostas
nos últimos anos aos estudos literários se coloca a crescente necessidade de retornar a
muito do que, um dia, foi estabelecido nos períodos clássicos e na Antiguidade. Esse
movimento vem se mostrando comum ainda quando não há qualquer objetivo de adotar
como norte o que fora então produzido. Com Santo Agostinho, alguns exemplos aos
poucos são identificados: Karlheinz Stierle, em sua A ficção, dedica um segmento
apenas para colocar o hiponense em posição delicada diante do fenômeno literário
ficcional; Harald Weirinch retoma o que disse Agostinho sobre a mentira para
reformular novas definições para o tema; e assim também, no Brasil, o faz Costa Lima,
que vê no De mendacio agostiniano um contributo importante para suas reflexões acerca
da natureza ficcional e sua recepção.
12
No entanto, nenhum obstáculo se impõe como o objeto de estudo em si. A
exemplo de poucos, Agostinho se expande com profundidade em terrenos que, hoje,
soam completamente distintos e irreconciliáveis. Por isso mesmo, o desejo de mergulhar
num único aspecto de sua doutrina impõe um compromisso com sua doutrina toda, e
esse passeio é de fato obrigatório não apenas para que se tenha honestidade com seu
pensamento, mas também para que não sejam criadas lacunas prejudiciais à
compreensão daquilo que deve ser sistematizado.
É sob este pano de fundo que este trabalho deve ser encarado. Seu
objetivo, mais do que verticalizar as reflexões que Agostinho propõe acerca do
problema literário e ficcional, é indicar as diversas possibilidades que o tema ganha em
sua obra, assim como sua posição em meio às questões que o guiam e que tornam a
literatura algo de relevância. Não é possível pensar o problema literário sem termos em
mente por que ele deve ser um problema.
Por essa razão, do leitor interessado será exigido um exercício grande de
paciência. Antes que as questões mais próximas à Teoria da Literatura tomem um
primeiro plano, o cerne do pensamento de Agostinho precisa ser percorrido, ao menos
naquilo que pode indicar a importância da Verdade como fim último e verdadeira fonte
de felicidade. Seguimos aqui esse processo, muitas vezes levantando questões que,
embora não tão essenciais para sublinhar a posição da Verdade, fazem a transição entre
as várias veredas do pensamento agostiniano e, assim, tornam também mais palatável a
sua compreensão. Portanto, é de maneira completamente consciente que o capítulo
primeiro excede em tamanho os demais. Seria impossível, neste trabalho, fazer o
contrário. Além disso, é importante que assim o seja, pois aqui o problema da ficção
literária precisa figurar no lugar que lhe cabe: anexo a questões que, para o bispo de
Hipona, certamente se mostravam muito maiores e mais importantes.
13
Este será o primeiro movimento do trabalho aqui apresentado. Nele,
procuramos deixar Agostinho se expressar de maneira mais transparente, intervindo
apenas para que os temas apresentados seguissem uma ordem capaz de facilitar sua
apreensão e construir um panorama geral de parte de sua doutrina. Seu objetivo é tão
somente criar uma base segura para quem deseja pensar a posição da literatura e da
crítica da ficção na obra do hiponense. Diante de Agostinho, o movimento do
pesquisador da Teoria Literária é sempre o de retornar aos seus pressupostos mais
básicos.
O capítulo seguinte é demarcadamente mais híbrido. Sua primeira metade
explora ainda algumas consequências teológicas do encontro com a Verdade que
arremata o capítulo inicial, mas o faz exatamente para que o problema da ficção seja
abordado a partir do contraste com a Verdade que, ao que indica Agostinho, o
caracteriza. Ainda são as obras do bispo de Hipona que aí falam mais alto – em especial,
um pequeno diálogo do ano de 387 intitulado Soliloquia, cuja segunda parte traz
considerações importantes sobre o estatuto da representação artística em geral.
O terceiro segmento, por sua vez, procura indicar ainda outras frentes para
os estudos da literatura. Num primeiro momento, tomando os caminhos abertos pelas
considerações linguísticas de Agostinho, seu objetivo é sinalizar de que maneira as
Sagradas Escrituras estão libertas da acusação de mentira e, assim, como o conceito de
alegoria, importante para a hermenêutica do santo e caro aos estudos literários, é
utilizado para justificá-las. Embora não seja próprio do pesquisador das Letras debruçar-
se sobre a Bíblia como o fez Agostinho, o que o hiponense tem a dizer diante dos textos
sagrados não deixa de levantar a questão da diferença entre a obra inspirada pela
Verdade e a obra ficcional.
14
O segundo momento do terceiro capítulo marca exatamente a transição do
problema acima para sua resolução pragmática. Afinal, o contato de Agostinho com a
literatura que lhe servia de suporte educacional é amplamente descrito pelo autor. Quais
são as especificidades literárias, perguntaremos, que tornam problemática a sua
aceitação? E de que forma poderíamos justificar a importância que Agostinho dá a
Virgílio, em especial nas Confessiones? Não tendo o bispo de Hipona dissertado
especificamente sobre o problema, foi preciso recorrer, aqui, aos pesquisadores que se
dedicaram à investigação da relação entre o hiponense e o poeta maior do Império. Os
resultados são por demais interessantes: levando em conta o panorama geral de sua
bibliografia, eles evitam que a análise de episódios dispersos subvertam a unidade do
pensamento de Agostinho.
Nas considerações sobre os textos e comentaristas que aqui nos serviram
de suporte, é preciso ainda que se esclareça algo. Em especial no primeiro capítulo, sob
o esforço que é erguer a estrutura da Verdade no pensamento de Agostinho, muitos
textos célebres poderiam nos ter servido como base crítica. Afinal, de Tomás de Aquino
a Jaspers, passando, entre outros, por Wittgenstein, muitos são os pensadores que se
detiveram em ao menos uma parte das várias áreas sobre as quais se debruçou o Doutor
da Graça. No entanto, poucas foram as vezes, especialmente nos teóricos mais recentes,
em que tais referências vieram isentas de tom corretivo, o qual exige ainda uma gama
outra de pressupostos. Nunca foi esse o nosso tom. Por isso, optamos por comentaristas
que partilhassem conosco a intenção de, diante de Agostinho, ouvi-lo mais do que
retificá-lo.
Por essa posição, talvez possam acusar este trabalho de alguma
superficialidade. Defendemo-nos, ainda que constrangidos pela banalidade da defesa,
afirmando ser impossível ir além da abertura de veredas num trabalho desta extensão. O
15
contrário exigiria investimentos inviáveis de várias ordens, além de um domínio que –
reconhecimento necessário – muito falta ao seu autor.
16
2. Pressupostos teóricos
Não é de se admirar que todos conheçam bem as palavras que Aristóteles
coloca na abertura de sua Metafísica: “Todos os homens tendem, naturalmente, ao
saber.” (980a) Mais do que provar a grandeza do pensamento do Estagirita, contudo, é
emblemático, para aquele que procura se embrenhar pelo pensamento antigo, que uma
de suas frases mais famosas tivesse como centro algo que leva o homem à felicidade,
através do conhecimento das virtudes e da consonância que com elas a alma pode vir a
ter.
Não é esse, porém, um fato que deve surpreender. Se já por muito tempo a
filosofia e as artes procuraram colocar de lado o problema da beatitude, ele
fundamentou sem cessar, durante séculos a fio, as reflexões sobre o destino humano. Ao
fazer uma pequena introdução acerca do tema, temos com Beirwaltes (1995, p. 47-63)
um exemplo de como foi a felicidade que pautou, além das filosofias de Aristóteles e
Platão, as especulações epicuristas e muitos dos trabalhos de Píndaro, Eurípides e
Virgílio. A ele parece se juntar, entre outros, Julia Annas (1993, p. 9), quando afirma
que na ética antiga as noções de felicidade e virtude ocupavam posições basilares. Não é
de se espantar, portanto, que em meio ao pensamento grego e latino de sua formação, a
questão da felicidade para Santo Agostinho tenha sido fundamental, e sua vida — que
como quase em nenhum outro pensador vestiu seu próprio percurso intelectual — é
prova clara da centralidade da busca pela beatitude e de sua teorização. É com isso em
mente, então, que começaremos a delineação de algumas das teses agostinianas a partir
da definição que seu sistema de pensamento dá à verdadeira felicidade, associando-a à
17
Sabedoria e à obtenção da Verdade através de uma realização essencialmente atrelada às
potencialidades da alma humana.
2.1. [...] et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te: o problema da
felicidade
Aos 19 anos, estudando retórica em Cartago após ter sido submetido a um
sistema educacional predominantemente literário, e no qual se liam autores como
Virgílio, Terêncio e Salústio, Agostinho por fim teria contato com o diálogo que
considerou responsável por sua “primeira conversão” à filosofia. Até então, nenhum
outro escrito despertara no futuro bispo de Hipona um arrebatamento semelhante ao
despertado pelo hoje perdido Hortensius, de Cícero, e é com adjetivos de grande
importância que nas Confessiones Agostinho relembra de suas leituras. Vivendo até
então uma vida progressivamente direcionada aos bens mundanos e às famas temporais,
finalmente foi ele levado a “aspirar à imortalidade que vem da sabedoria” (conf. 3, 4, 7)
e a viver de acordo com sua ciência, como propunha uma importante tradição legada a
Antiguidade tardia e enraizada no Protréptico de Aristóteles, onde a filosofia aparece
“como exortação a uma vida refletida [...] que examina criticamente as convenções
vigentes, que presta conta dos objetivos que almeja e que adquire sua orientação básica
pela compreensão da natureza humana” (BRACHTENDORF, 2008, p. 73).
Mais atento aos problemas concernentes à filosofia, então, e
principalmente aos que diziam respeito à origem do mal, o santo professaria por alguns
anos as crenças dos maniqueus, que acreditavam na materialidade do Bem, parcela do
corpo de Deus [Cf. conf., 4, 16, 31], e do Mal, assim como na luta entre cada um desses
elementos. Mais tarde, o hiponense combateria a seita de maneira impetuosa. Seu
18
afastamento, no entanto, só viria a se concretizar por completo a partir do outono de
384, quando enfim chegou a Milão e conheceu Ambrósio, através de quem pôde se
deparar com a fraqueza dos argumentos estáticos que caracterizavam sua antiga crença e
buscar novos caminhos cruciais, por onde delinearia as renovações de seu sistema
teológico.
Foi neste mesmo período que chegaram às suas mãos as traduções latinas
de Plotino e de alguns outros neoplatônicos, cuja influência lhe seria incomensurável e
transformaria toda sua visão de mundo. Não foi à toa que, sobre a profundidade do
contato, Agostinho disse a Romaniano, com palavras graves,
que certos livros bem repletos, como diz Celsino, exalaram para nós perfumes da Arábia, e deixaram cair na chamazinha pouquíssimas gotas de perfume precioso; incrível, Romaniano, incrível, mais do que podes pensar. Que posso acrescentar? Atearam em mim um incêndio incrível até para mim próprio. Que me importavam então a honraria, a pompa humana, o vão desejo de fama, e finalmente as prisões de esta vida mortal? Rapidamente voltava a mim. Confesso que olhei quase de relance para aquela religião em que vivera desde criança, e me penetrava até a medula; mas ela atraía-me sem eu saber. (c.Acad. 2, 2, 5)
Ainda estimulado por Ambrósio e talvez impulsionado pelos círculos
neoplatônicos que começavam a adotar o cristianismo1, o jovem, recém-aberto aos
preceitos dos quais fugira por toda sua juventude — chegou a rejeitar as Sagradas
Escrituras por não terem a beleza das palavras de Cícero —, logo encontrou em são
Paulo a disciplina que buscava para complementar a estrutura do pensamento enraizado
em Platão. Também nesta época, já inteiramente inserido no cristianismo católico, 1 Era um círculo de intenso intercâmbio cultural, como pode ser inferido pelas palavras de Marrou (1957, p. 30-31): “Mas, principalmente pelo próprio Ambrósio (que pesquisas recentes demonstraram ter sido mais nutrido em filosofia do que geralmente se cria), por seu conselheiro teológico e futuro sucessor, o padre Simpliciano, por outros letrados das rodas que frequentava, como o ilustre Málio Teodoro, Agostinho chegou à descoberta do neoplatonismo e da interpretação cristã dada no ambiente: o neo-platonismo equivalia, para esses católicos milaneses, ao aristotelismo para a escolástica do século XIII: era a filosofia por excelência, a verdade racionalmente estabelecida, uma filosofia, em suma, que, com pequenos retoques ou transposições, se revelava capaz de auxiliar a fé cristã a tomar consciência da própria estrutura interna e a elaborar-se em teologia. Com efeito, era de maneira absolutamente natural que passavam, nesse ambiente, das Enéadas de Plotino ao Prólogo do Evangelho de João, ou a São Paulo.”
19
Agostinho tomaria conhecimento, por Ponticiano, dos mosteiros fundados por santo
Antônio, sendo definitivamente incentivado, assim, como alguém que de fato havia se
convertido à filosofia, a morrer para o mundo.
Inteiramente dedicado à atividade que o transformou num dos pilares da
Idade Média e do Ocidente, Santo Agostinho toma a sabedoria como objeto filosófico
porque ela, e apenas ela, é capaz de levar o homem à felicidade, à ação beatificadora
que posiciona a alma no lugar em que deve estar: “[...] abaixo d’Aquele a quem ela deve
se submeter, acima do que deve dominar; acima do corpo e abaixo de Deus.” (GILSON,
2006, p. 18) Sua própria experiência, no entanto, faz com que reconheça as dificuldades
do caminho: muitos se perdem na decadência, motivados pelo orgulho e pela fruição
dos prazeres mundanos; outros desde cedo buscam o saber e logo o atingem, apenas se
afastando dele para chamar à luz da filosofia os que vivem na escuridão; por fim, o
meio-termo, que traduz a trajetória de Santo Agostinho e que engloba os que na
juventude se perderam, retomando posteriormente, em meio a eventuais desvios, o
caminho que ruma para o “único ponto de acesso à região e à terra firme da vida feliz
[...], numa caminhada exclusivamente dirigida pela razão e conduzida pela vontade”
(b.vita. 1, 1).
É no De beata vita, obra do ano de sua conversão definitiva ao
cristianismo católico (386), que Santo Agostinho trabalha mais objetivamente o seu
conceito de felicidade perfeita. Para isso, relata três colóquios realizados a partir do dia
de seu aniversário, em que participam sua mãe, santa Mônica; seu irmão, Navígio; seus
discípulos Triségio e Licêncio; seus primos Lastidiano e Rústico e, por fim, seu filho,
Adeodato. A reduzida extensão da interlocução está longe de indicar uma reduzida
complexidade. Nela, Agostinho evoca algumas das convicções que pautavam sua antiga
condição e lhes atribui um significado novo e uma dimensão completamente cristã. O
20
próprio Hortensius, que outrora o lançara à filosofia, é utilizado, e é um trecho do
próprio manuscrito ciceroniano que orienta os caminhos do diálogo:
Há certos homens [...] que pretendem ser felizes todos aqueles que vivem a seu bel-prazer. Mas tal é falso, de todos os pontos de vista, porque não há desgraça pior do que querer o que não convém. És menos infeliz por não conseguires o que queres, do que por ambicionar obter algo inconveniente. De fato, a malícia da vontade ocasiona ao homem males maiores do que a fortuna pode lhe trazer de bens. (Ibid., 2, 10)
É sobre tal afirmação que o hiponense traça a motivação principal do
colóquio em questão: se todos os homens procuram a felicidade, e se a procura da
felicidade através de algo inconveniente é maléfica, é necessário saber o que devemos
possuir a fim de atingir a sabedoria que a proporciona. Não pode haver dúvidas sobre
isto se quisermos alcançar uma real beatitude. E, como sabemos que nenhum homem
pode ser feliz sem ter o que deseja, nossa busca precisa objetivar algo permanente,
imutável e impermeável ao receio da perda, pois qualquer bem material está à mercê do
tempo e das fortunas da vida.
Ao estabelecermos as características “imutável” e “permanente” ao termo
da procura, não há como não nos voltarmos a Deus, único ser digno de tais adjetivos.
Contudo, embora não seja difícil perceber logicamente, depois das considerações acima,
que apenas a Sua posse pode ser condição de felicidade, o problema não deixa de se
apresentar complexo: frente à pergunta de quem realmente possuiria Deus, Licêncio
afirma que “possui a Deus quem vive bem” (Ibid., 2, 12), enquanto Trigésio e Adeodato
também manifestam suas opiniões. O primeiro declara que quem O possui “faz o que
Deus quer que se faça” (Ibid., id.), ao mesmo tempo em que o segundo diz que “possui
a Deus quem não tem em si o espírito imundo” (Ibid., id.). A aparente discordância das
opiniões, porém, é desconstruída pelo mediador Agostinho. Afinal, possui a vida correta
quem se submete às vontades divinas, mas quem se submete a elas também vive
21
retamente. Da mesma forma, o espírito limpo é fruto da castidade, e só será casto quem
voltar os olhos a Deus e se submeter ao que Ele quer. A submissão incondicional à
vontade de Deus se torna, então, essência pura da boa vida.
É preciso discernir, então, o que Deus quer de nós. Certamente, Ele quer
que o encontremos, e quem O procura obtém sua benevolência e afasta as impurezas do
próprio espírito. O problema é que quem procura Deus ainda não o possui, e, como
vimos, ninguém pode ser feliz sem ter o que deseja. Como é possível, então, que alguém
que tenha a benevolência de Deus se encontre na miséria? A questão deve ser, e é,
deslocada para outro plano.
Se a carência é fonte de infelicidade, aquele que é feliz não será indigente.
Contudo, pode-se carecer de muitas coisas e manter-se no nível da beatitude, ao mesmo
tempo em que a quantidade de posses não garante a satisfação plena, pois sempre
existirá a possibilidade dos reveses da sorte. O sábio, exatamente por sua virtude, não
sofre qualquer tipo de necessidade corporal ou medo, assim como não pode ser atingido
pelas vicissitudes do mundo. Com relação aos bens materiais, aquele que possui a
sabedoria saberá usá-los quando for conveniente, sem atribuir a eles a causa ou ausência
de sua felicidade, esperando do mundo somente aquilo que for possível. A beatitude
passa, assim, a ser um bem espiritual, e a causa da infelicidade se desloca para a
ausência da sabedoria, numa vida estagnada sob a imprudência [stultitia] e sujeita,
assim, a outros tipos de carência. E justamente por ser a falta da sabedoria a causa da
carência, arremata Agostinho, “a sabedoria será plenitude” (Ibid., 4, 31).
Como plenitude, então, a sabedoria possui em si a medida correta das
coisas. Nela desfrutamos de uma realidade imperturbável, que independe do uso dado
aos bens mundanos e que livra o homem dos excessos que afligem sua alma. Por não
reclamar, exceder ou recear coisa alguma, a sabedoria realiza por completo a felicidade.
22
No entanto, ainda há uma extensão crucial no pensamento agostiniano
sobre a beatitude perfeita. A autoridade divina, relembra o filósofo, nos indica que
Cristo é “o poder de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor 1, 242). E, se Cristo é o próprio
Deus, a suspeita inicial de que a posse de Deus constitui a verdadeira fonte de vida feliz
é verdadeira. Além disso, também nos contam as Escrituras: “Diz-lhe Jesus: Eu sou o
Caminho, a Verdade e a Vida.” (Jo 14, 6) O resultado que daí se extrai, então, é lógico:
se Deus é a Sabedoria, e se a Sabedoria é a Verdade, Deus, como Verdade e Sabedoria,
encerra também a Suma Medida, que existe por si só, sem qualquer motivação externa.
Assim, arremata Agostinho, “nunca houve Verdade sem Medida, nem Medida sem
verdade” (b.vita., 4, 34).
De qualquer maneira, esta caracterização da beatitude como posse nos
leva, então, a identificar uma nuance crucial para a filosofia cristã. Embora a
contemplação da Verdade desempenhe um papel-chave no sistema de pensamento de
Santo Agostinho, ela só pode servir como delimitação de um objeto a ser obtido, pois a
visão não é o fim em si, mas sim a posse do que é contemplado. E, mesmo que o
conhecimento deste bem beatífico implique, em alguma medida, a sua posse, não pode
ser nunca uma posse plena. Portanto, o amor, guiado pela razão, se torna condição
essencial para que o homem possa assimilar e se confundir com aquilo que apenas o
pensamento pode contemplar. No fim, aquele que possui Deus
“possui” um ser que se esquiva do tempo e do espaço, imutável e eterno: “possui” o Ser em si. Ser-feliz significa, assim, “obter algo de eterno através do conhecimento”, participar do Bem imutável ou do sumo Bem, “gozar” da imobilidade e da verdade imutável. O conhecimento possui algo de eterno já na Ideia, enquanto fundamento de cada um dos entes temporais. Porém, em Deus, que é o Ser imutável, o conhecimento possui o fundamento pensante, o lugar originário das Ideias. (BEIERWALTES, op. cit., p. 70)
2 Utilizamos a tradução da Bíblia de Jerusalém (São Paulo: Paulus, 2008). Quando necessário, para qualquer outra compreensão, seguir mais de perto a Vulgata, tomaremos a liberdade de indicar.
23
Em Agostinho, o homem, pela potencialidade de sua própria alma, se abre
a Deus ao perceber as verdades às quais se submetem o pensamento. Porém, como nos
diz Paulo, por essa abertura O percebemos somente “em espelho, e de maneira confusa”
(1Cor 13, 12), e apenas futuramente poderemos contemplá-Lo como realmente é, “face
a face”. Se é para além desta vida que obteremos a desejada posse de Deus, nossa
felicidade terrena só pode ser uma felicidade na esperança, no real cessar do desejo, se
realizando “como o repouso, o ócio e a paz do próprio Deus” (BEIERWALTES, op.
cit., p. 75).
Tendo isto estabelecido, vejamos agora ao que nos leva esta delimitação de
um bem beatífico.
2.2. A posição da fé
Fixando como ponto de referência o summum bonum, objeto da verdadeira
filosofia e da verdadeira felicidade, somos levados à necessidade de entender como,
através de nossas limitações, podemos alcançá-Lo. Principalmente durante a juventude,
Santo Agostinho buscara compreender a natureza da verdade através da razão, mas as
crenças com que se envolveu acabaram por não lhe oferecer uma resposta satisfatória.
Na ânsia de sua busca, o filósofo logo perceberia que, enquanto os caminhos do
pensamento o afastavam da sabedoria, sua fé dispunha da mesma verdade almejada pela
razão.
A declaração de que a crença constituiria o primeiro passo do trabalho
filosófico pode soar estranha aos ouvidos dos leitores mais modernos, mas
questionamentos do gênero também eram realizados na época de Agostinho. Ciente
24
disto, o bispo de Hipona sabiamente constatou que a fé se mostra tão natural ao
pensamento quanto a própria capacidade de raciocinar. Exemplos cotidianos não faltam.
Mesmo sem visitar cidades como Roma ou Moscou, sem tocar o solo de Alexandria ou
de Cairo, é justificável que um homem acredite na existência destes locais. Da mesma
maneira, outros atos de fé, dignos de maior destaque, nos afetam ainda de forma mais
grave. Agostinho recorre, em particular, à estrutura familiar, a fim de demonstrar que,
para a criança pequena, a paternidade e a maternidade não são reconhecidas de maneira
racional. O que garante ao infante que aqueles que atendem as suas primeiras
necessidades são de fato seus progenitores? Mesmo assim, por vezes condenamos os
que não honram os próprios pais. As pessoas que preferem rebaixar a crença a uma
forma superficial de conhecimento, como talvez propusessem os platônicos, precisam
de mais justificativas para isto do que as que se atêm a uma autoridade, pois há fatos do
passado e do presente que só podem ser encarados à luz da fé. A conclusão, portanto,
não poderia ser outra, senão a de que “podemos afirmar muitas coisas para mostrar que,
em toda sociedade humana, tudo sucumbiria se escolhêssemos não acreditar no que não
podemos compreender completamente” (util.cred. 12, 26).
Por Agostinho, então, é difícil ignorar o fato de que, a todo momento,
tomamos conhecimento do mundo de duas formas: através de nossas capacidades
intelectivas e da autoridade de outrem, e o âmbito religioso não poderia fugir a tal regra.
Se há uma tradição escritural que nos comunica a história da salvação, como alegar
injustificável que creiamos nela? À pergunta “Como sabes que estes livros foram dados
aos homens pelo espírito único de Deus, que é a verdade?” (conf. 6, 5, 7), Agostinho
contrapõe a ação providencial, sustentada pela própria crença na existência divina:
Portanto, sendo os homens incapazes de encontrar a verdade mediante a razão pura, e tendo necessidade do apoio da Sagrada Escritura, eu já principiava a crer que não concederias tanta autoridade por toda a terra a
25
estes Livros Sagrados se não tivesses querido que se acreditasse em ti e se buscasse a ti através deles. (Ibid. 6, 5, 8)
Assim, enquanto a razão por vezes se mostrava falha durante a juventude
de Agostinho, a fé no magistério da Igreja conseguia unificar, sob um pensamento
homogêneo, povos extremamente longínquos. Com efeito, a tensão entre razão e fé nos
leva a atribuir à razão a função de cogitar a existência divina, mas tal atribuição não é
essencial quando se busca a salvação. A fé conhece os conteúdos que a razão busca e
transcende o tipo de conhecimento que podemos atingir racionalmente, cobrando apenas
que reconheçamos Cristo como o filho de Deus feito carne. O profeta Isaías já afirmava
que, “[...] se não o crerdes, não vos mantereis firmes” (Is 7, 9), e o próprio Jesus nos
instiga a crer “naquele que ele [Deus] enviou” (Jo 6, 28).
No entanto, a questão se torna mais complexa quando, como Gilson,
lembramos que os “filósofos pagãos enganam-se porque não têm fé”, enquanto “os
heréticos pretendem ter uma e, contudo, se enganam porque se enganam quanto à
natureza do conteúdo do que a fé ensina” (GILSON, 2006, p. 67). Como contornar este
problema e retirar do erro aqueles que não dispõem de uma crença em comum?
Neste contexto, é quase impossível não lembrarmos do famoso “crê para
compreender” [crede ut intelligas]3 de Agostinho, em que o bispo de Hipona atribui à fé
a grande preparação de um caminho que nos leva a conhecer o que deve ser conhecido
para que atinjamos a plenitude máxima, isto é, a vida eterna na morada divina. Pela
crença, podemos atingir inúmeras verdades, é certo; porém, apenas através dela,
dificilmente seríamos capazes de explicitar suas próprias fundamentações. É por isso
que o crede ut intelligas não pode ser dissociado de seu intellige ut credas, isto é, de seu
“compreender para crer”. Pois, se a crença é crucial para o entendimento, entender
3 Cf. s. 43, 7.
26
aquilo em que acreditamos nos aproxima da Verdade e nos dá a certeza de sua
existência. Diz o hiponense:
Depois [o Senhor] disse àqueles que já eram crentes: “Procurai e encontrareis.” (Mt 7, 7) Pois não se pode considerar como encontrado aquilo em que se acredita sem entender. E ninguém se torna capaz de encontrar a Deus se antes não crer no que há de compreender. (lib.arb. 2, 2, 6)
No entanto, antes de prosseguir em sua prova da existência divina,
Agostinho não poderia ignorar a oposição radical a qualquer possibilidade de
conhecimento, à qual teria aderido no sombrio período em que se mostrava
decepcionado com o pensamento maniqueu.
2.3. As possibilidades da certeza
Segundo os seguidores da Nova Academia, adeptos de Cícero e dos
postulados de Zenão, “o homem não pode encontrar a ciência no domínio da filosofia,
[...] e no entanto pode ser sábio, para o que basta a busca da verdade” (c.Acad. 2, 5, 11).
A definição de Zenão que fundamenta tal crença aparece pelo menos quatro vezes no
Contra academicos, obra que o filósofo dedica à refutação dos céticos. São elas:
Parece que tiravam a ideia da inacessibilidade da verdade da definição de Zenão, o estóico, para quem só pode ser verdadeira uma impressão do real no espírito, quando não pudesse existir se o objeto não fosse real. Ou mais rápido e mais claro: o verdadeiro só pode reconhecer-se por sinais que o falso não possa ter. (Ibid. 2, 5, 11) Zenão é que renovou o problema, afirmando que nada podia ter-se por verdadeiro senão o que se distinguisse do falso por características de dessemelhança, e que ao sábio não era dado opinar; Arcesilau em consequência negou que o homem pudesse alguma vez achar tal critério e que a vida do sábio não deveria arriscar-se ao naufrágio da opinião. De onde concluiu que não devia assentir-se em coisa alguma. (Ibid. 2, 6, 14) Mas vejamos o que diz Zenão: Só pode compreender-se e perceber-se [percipi] o que não tenha sinais comuns com o falso. (Ibid. 3, 9, 18)
27
Mas, embora estultos, discutamos o que Zenão definiu. Diz ele que pode perceber-se [percipi] o que parece tal que não possa parecer falso. (Ibid. 3, 9, 21)
Assim, segundo os adeptos da Nova Academia, só poderíamos dizer, por
exemplo, que uma proposição é verdadeira, ou que uma cadeira é realmente uma
cadeira, se tivéssemos certeza de que não há qualquer possibilidade de ela ser falsa.
Inicialmente, a própria história da filosofia poderia servir como indício da
impossibilidade de termos essa certeza da falsidade, pois já teria ela mostrado não ser
possível a concordância entre as inumeráveis correntes de pensamento. Da mesma
forma, incontáveis podem ser os erros que acometem nossos sentidos. Neste mesmo
momento, talvez, poderíamos estar vivendo sob alguma espécie de delírio, sob a ilusão
de um sonho ou sob o efeito de alguma substância que alterasse nossa capacidade
perceptiva. Como consequência, o sábio do cético há de ser alguém que se empenhe
apenas na busca de uma verdade, sem fazer qualquer assentimento final. Para ele — e
não é à toa que Agostinho o classifica como um ser “dormente” —, podemos afirmar
que algo é provável ou verossímil, mas não temos meios confiáveis para dizer que algo
é verídico.
O primeiro alvo das críticas agostinianas é a especialmente contraditória
concepção de sábio adotada pelos discípulos de Cícero, Zenão e Carnéades. Afinal,
pensa, se coisa alguma pode ser apreendida pelo homem, homem algum pode ser sábio,
já que ninguém é sábio se não conhece a sabedoria. O sábio, portanto, só deixaria de
conhecer a sabedoria se a sabedoria se resumisse a nada, o que deixa os céticos numa
posição delicada. Se é possível que a conheçamos, o ceticismo está equivocado; se não é
possível, nenhum cético é sábio. A fundamentação dos céticos é por si só paradoxal, e o
segundo motivo dos ataques do hiponense revela ainda mais esta fragilidade.
28
Tomando como verdadeira a definição de Zenão, temos já a certeza de
algo. Tomando-a como uma falsidade, isto é, como algo que participa em alguma
medida do falso, não poderíamos afirmar com certeza a sua condição de verdade, e
derrubaríamos o ceticismo dentro de suas próprias concepções. Não seria possível
sequer afirmar que a concepção de Zenão não precisa ser verdadeira ou falsa, mas
apenas provável: mesmo assim, diz Agostinho, se ela é provável, ela é verdadeira ou
falsa, uma oposição que, em si, já acarreta uma certeza.
Um adepto da Nova Academia poderia, ainda, declarar que a
impossibilidade de certeza só se aplica aos assuntos filosóficos propostos pelas diversas
correntes de pensamento. No entanto, seria difícil não perceber que tal declaração é, por
si só, um tópico filosófico, e assim deveríamos questioná-la ou aceitá-la como verídica.
Em ambos os casos, a filosofia dos céticos estaria essencialmente comprometida, e,
deixando isto claro, Agostinho se concentra, de maneira extremamente perspicaz, nas
pequenas certezas físicas acessíveis até àqueles que não ambicionam o porto da
sabedoria:
Sei que o mundo é uno ou múltiplo; se múltiplo, será em número finito ou infinito. [...] Sei também que o nosso mundo foi disposto por natureza dos corpos ou por alguma providência; ou que sempre existiu e existirá, ou começou e não acabará; ou não começou no tempo mas terá fim, ou teve começo e terá fim. E muitas outras coisas físicas analogamente sei. (Ibid. 3, 10, 23)
Qualquer que seja a certeza adotada, a verdade é que as proposições
disjuntivas oferecerão sempre uma certeza segura, mesmo que isenta de opinião, e
dificilmente seria possível que um cético afirmasse o contrário. Porém, isso talvez não
fosse o suficiente.
Agostinho afirmava questões físicas sobre o mundo; no entanto, como
saber se o mundo de fato existe, se os sentidos não nos enganam quando acreditamos
29
em sua existência? O bispo de Hipona é claro ao afirmar que, embora possamos
perceber algo que não seja de fato a realidade em si, ninguém negaria que alguma coisa
é percebida. É esse conjunto de coisas que se encontra à nossa volta, então, que
Agostinho chama de mundo. Tudo o que vemos nele parece real, e, sendo aparência,
pode ser ou não ser de fato. Assim, se provarem que não vemos nada, não estaremos em
erro, pois para isso precisaríamos declarar que tudo que aparece à nossa frente é a
realidade.
As especulações ainda não se extinguem. O cético, prossegue Agostinho,
talvez fosse ainda capaz de questionar se este mundo continuaria a existir se
estivéssemos sonhando. O hiponense resolve a questão com alguma facilidade. Mesmo
dormindo, continuamos a perceber coisas, o que não invalidaria sua concepção de
mundo como o conjunto de elementos que nos envolve. Da mesma forma, as
proposições anteriormente apresentadas — “o mundo é uno ou múltiplo”, “se múltiplo,
será em número finito ou infinito”, “nosso mundo foi disposto por natureza dos corpos
ou por alguma providência”, “ou sempre existiu e existirá, ou começou e não acabará”,
“ou não começou no tempo mas terá fim, ou teve começo e terá fim” — não deixariam
de ser verdadeiras, assim como certas verdades matemáticas, tal qual a de que “se há um
mundo e mais seis, há sete mundos, seja qual for o modo como me afetam” (Ibid. 3, 10,
25).
É claro, então, para Agostinho, que o grande erro em que os seguidores da
Nova Academia incorreram foi o de confiar inteiramente nos sentidos, alçando suas
percepções à condição de suma verdade. Nesse sentido, o sábio verdadeiro deve
transpor, como fizeram os platônicos, a simples interpretação perceptiva, utilizando o
caminho do pensamento puro para atingir a ciência.
30
De certa forma, isso poderia explicar por que, no decorrer de sua obra,
Agostinho não se estende demasiadamente sobre as formas sensíveis de conhecimento.
Ao contrário, a prova da existência do pensamento puro ganha, na obra agostiniana, um
espaço muito maior, e é depois de estabelecer, através dela, a prova da própria
existência, que, no De libero arbitrio, o bispo de Hipona inicia sua caminhada rumo à
prova da existência de Deus.
2.4. Si fallor, sum
De maneira impressionantemente análoga ao cogito de Descartes, Santo
Agostinho afirma em seu De civitate Dei:
Tais verdades desafiam todos os argumentos dos acadêmicos, que dizem: Que? E se te enganas? Pois, se me engano, existo. Quem não existe não pode enganar-se; por isso, se me engano, existo. Logo, se existo, se me engano, como me engano, crendo que existo, quando é certo que existo, se me engano? Embora me engane, sou eu que me engano e, portanto, em quanto conheço que existo, não me engano. Segue-se também que, em quanto conheço que me conheço, não me engano. Como conheço que existo, conheço que conheço. (11, 26)
Raciocínios semelhantes podem ser encontrados ainda no De beata vita (2,
2, 7), no De vera religione (39, 73), nos Soliloquia (2, 1, 1) e, de maneira mais
audaciosa, no De trinitate (15, 12, 21). Em todas elas, porém, fica claro que a evidência
do próprio pensamento nos leva à evidência da própria existência: se desejo, se me
engano, se acredito, se me lembro, é porque sou capaz de pensar; e se penso, vivo. O
pensamento se torna uma espécie de porto seguro do conhecimento, pois pode ser
encontrado mesmo no erro e é reconhecido por si só. Como consequência, ele, que,
como vimos, se reconhece como alma, reconhece sua existência e se reconhece também
31
como substância, pois se encontra à parte da matéria e só pode se distinguir do que não
se caracteriza como ele mesmo, ou seja, como pensamento:
Se ela [a alma] se conhece é porque conhece sua substância. Se ela se conhece com certeza é porque ela conhece com certeza a sua substância. [...] Pelo contrário, ela não tem certeza alguma de ser ar, fogo, corpo ou algo de corporal. [...] Com efeito, a alma apenas pensa no fogo, no ar e em qualquer outra realidade corporal. Ora, seria impossível ela pensar no que ela mesma é como pensa no que não é. (trin. 10, 10, 16).
Porém, ao contrário do que Descartes realizaria séculos depois, Agostinho
não utiliza a certeza da vida e do pensamento para fundamentar seu projeto filosófico.
Ao questionar Evódio, seu interlocutor, quanto à certeza de sua existência, Agostinho
abre o livro II do De libero arbitrio com o intuito de estimular nossa reflexão acerca do
que podemos saber por nós mesmos, uma base sólida, e sem influência externa, para a
edificação do caminho que leva a Deus.
Se sabemos que pensamos, sabemos que vivemos, e assim também se
manifesta uma terceira verdade: a de que somos capazes de entender. De todas elas,
seria difícil não admitir que a realidade mais elevada seja a última. Enquanto a pedra
apenas existe, enquanto o animal existe e vive, o homem pensa, entende e, como quem
pensa também vive, e como o que vive existe, o homem também vive. Nele, todas as
três perfeições se encontram, enquanto os animais carecem de uma e o seres
inanimados, de duas.
Assim, estabelecida a gradação dos fatos fundamentais, Agostinho e
Evódio passam à realidade que na ordenação se mostrou superior. De todas as formas de
conhecimento, a mais imediata é, certamente, o das coisas que compreendemos através
dos nossos sentidos. À visão, à audição, ao olfato, ao paladar e ao tato, sabemos existir
objetos próprios: através de nossos olhos, percebemos a tonalidade dos objetos
32
corporais, enquanto, pelos ouvidos, constatamos os mais diversos sons; pelo nariz
conhecemos os odores e, pelo paladar, os sabores, ao mesmo tempo em que o tato nos
comunica características como a aspereza, a moleza, a dureza etc. Porém, da mesma
forma que podemos definir um domínio exclusivo de cada um dos cinco sentidos,
somos capazes de reconhecer que a vários deles competem, simultaneamente, objetos
diversos: “E a respeito das formas temporais”, afirma Agostinho, “enquanto grandes ou
pequenas, quadradas ou redondas, e de outras propriedades semelhantes, não temos
também a sensação delas pelo tato, como pela vista [...]?” (lib.arb. 2, 3, 7) Qualquer que
seja o caso, é possível que delimitemos o domínio dos nossos sentidos externos através
de nossa própria experiência.
Num primeiro momento, talvez nos sintamos tentados a acreditar que o
discernimento dos objetos transmitidos pelos sentidos seja uma tarefa tipicamente
racional. Evódio, porém, nos lembra que também os animais realizam algum tipo de
julgamento diante daquilo que seus sentidos apreendem. Tal atitude não poderia, nunca,
ter origem no próprio órgão externo, sendo necessário um sentido interior [sensus
interior] para determinar se os objetos são dignos de serem “procurados e apossados
pelos animais, no caso de isso lhes causar agrado; ou [...] evitados e rejeitados, no caso
de lhes serem nocivos” (Ibid. 2, 3, 8). Agostinho aceita de bom grado a intervenção,
mas sabe que de forma alguma ela fere a superioridade racional. Não é difícil
compreender que a existência do sentido interior não pode ser um dado deste mesmo
sentido, nem de qualquer outro elemento que vimos durante a gradação dos fatos
fundamentais e do conhecimento sensível. Assim, de qualquer forma é preciso
transcender o reino animal e encontrar a razão, instância humana superior responsável
por exercer os tipos de julgamentos que realizamos até aqui.
33
Embora de maneira geral não seja complicado perceber como a alma
racional transcende a existência pura e a vida sem inteligência, a relação da razão com a
sensação impõe à investigação agostiniana um problema espinhoso e crucial, que
exercerá uma influência notável durante a Idade Média.
2.5. A sensação
Como é possível perceber, a ordenação até agora estabelecida por Santo
Agostinho gira em torno de um princípio de subordinação verbalizado no livro II do De
libero arbitrio: “Quem julga é superior àquele sobre o que julga” (5, 12), onde “julgar”,
longe de assumir sua concepção mais comum, nos remete à influência ativa de um
elemento sobre outro, a si subordinado. Com isto estabelecido, Agostinho afirma, em
obra posterior:
Não se há de pensar que o corpo faz algo no espírito, como se o espírito se submetesse ao corpo que age pela condição de ser matéria. Com efeito, de todos os modos é mais excelente o que faz do que a matéria da qual se faz algo. De modo algum o corpo é mais excelente que o espírito, pelo contrário, o espírito é mais excelente que o corpo de modo eminente. (gn.litt. 12, 16, 33)
O problema agostiniano da sensação decorre exatamente desta
impossibilidade de ação do inferior sobre o superior. Através da organização
investigativa que Agostinho propõe, seria impossível admitir, por exemplo, que a
movimentação do ar fosse a verdadeira causa de nossa audição, que as relações
numéricas que atribuem ritmo a um verso imprimissem, na alma, os números com que
julgamos a própria composição proferida, e assim com relação a todos os nossos
sentidos. Como superar tal problema?
34
A questão parece caminhar para uma resolução quando nos lembramos do
papel real da alma. Como vida, ela deseja o corpo, o anima e vela por ele. Além disso,
se sabemos que, ao contrário de uma pedra, o animal vive, é porque, dentre outras
coisas, possui a capacidade de sentir, e assim a alma, como elemento distintivo entre
vida e existência, não pode ser distanciada da produção da sensação. Dessa maneira,
para que a sensação deixe de ser um obstáculo no percurso da prova da existência de
Deus, é preciso que tenhamos em mente que nosso princípio anímico é inteiramente
ativo. Atuante, a alma percebe a ação dos seres corporais sobre o próprio corpo que
anima, e esta ação pode ser útil ou não para ele. Percebendo uma excitação negativa,
isto é, uma influência que prejudique o equilíbrio entre o corpo e o ambiente, a alma
causa, então, uma sensação de dor ou incômodo, e o mesmo poderia ser estendido a
outras sensações, pois todas respondem a uma carência ou a um excesso sentido durante
a constante vigilância de nossa alma, que dispõe de cada um dos cinco sentidos. Dando
prosseguimento à passagem reproduzida acima, o bispo de Hipona então afirma que,
ainda que vejamos primeiro algum corpo que antes não víamos, e em seguida comece a imagem do mesmo a estar no nosso espírito, no qual podemos nos lembrar quando se ausentar, contudo, o corpo não produz sua imagem no espírito, mas o próprio espírito a produz em si mesmo com rapidez admirável, a qual dista de modo inefável da lentidão do corpo. A imagem do corpo, logo que este for visto pelos olhos, forma-se no espírito de quem vê sem qualquer intervalo de tempo. Da mesma forma, com respeito à audição: se o espírito não formasse imediatamente em si mesmo a imagem da voz percebida pelos ouvidos, e a retivesse na memória, ignorar-se-ia se a segunda sílaba era a segunda sílaba, visto que a primeira já não existiria certamente, porque teria passado depois de ferir o ouvido. E assim todo modo de falar, toda suavidade no cantar, finalmente, todo movimento corporal disperso em nossos atos morreriam. (Ibid., id.)
Segundo ele, a análise do conhecimento sensitivo reforça a percepção
iluminada pela prova de nossa própria existência, nos direcionando de forma semelhante
a um pensamento puro, a uma alma que, ultrapassando o corpo, também o serve,
velando-o enquanto cria, em si mesma, imagens de um reino que lhe é inferior. Dessa
35
maneira, a especulação que segue em direção a Deus continua sempre a reforçar a
certeza de que a razão é o que de mais superior o homem possui, mas também nos
impõe que a alma humana seja transcendida para uma prova possível da existência de
um ser que a tudo seja superior. Pois, se encontrarmos algo acima da razão, podemos
estar certo de que Deus existe, mesmo que este algo não seja o próprio Deus, mesmo
que seja acima deste algo que exista um ser eterno e imutável:
Pois bastar-me-á, então, mostrar a existência de tal realidade [superior à razão] que, ou bem aceitarás como Deus; ou bem, caso haja outro ser acima dela, concordarás que esse mesmo ser é verdadeiramente Deus. (lib.arb. 2, 6, 14)
Cabe-nos então investigar se, além de ser causa da sensação, a alma
também é responsável pela criação de suas próprias verdades e de seus próprios
conceitos, ou se ela está submetida a algo que não pode modificar. Por isso, é
especialmente importante acompanhar o caminho de investigação que Agostinho propõe
em seu De magistro, pois é neste diálogo que, com a ajuda de seu filho, Adeodato, o
filósofo analisa o que aparentemente se mostra como o principal meio para a troca de
ideias: a linguagem.
2.6. Análise linguística e transcendência da alma
Diante das considerações de Cícero acerca da linguagem, Agostinho
assimilou a ideia de que todo e qualquer vocábulo traria em si a possibilidade de
desempenhar as funções de um nome [nomen], ou seja, de ser algo capaz de significar
determinando. Tal caráter não seria de uso obrigatório, mas representaria, antes de mais
36
nada, um conjunto de possibilidades linguísticas regular e universal, passível de
condicionar o uso que fazemos da linguagem. No opúsculo agostiniano, a demonstração
desta potencialidade tem início com um exemplo retirado da segunda carta de são Paulo
aos Coríntios, em que o apóstolo nos diz que “não estava em Cristo o é e o não é”4
(2Cor 1, 19). A frase é muito ilustrativa: ao tomarmos o verbo latino est da proposição,
logo percebemos como ele pode exercer a função de sujeito, tipicamente nominal, sem
que a sentença deixe de se manter completamente compreensível. Para que fique
provada universalidade desta regra nominativa, basta substituirmos a forma verbal por
vocábulos diversos, como pelo substantivo virtude [uirtus]: “não estava em Cristo a
virtude...” Mesmo não sendo sinônimo de est, uirtus não fere a compreensibilidade da
sentença, pois a possibilidade dos nomes de desempenhar uma função subjetiva também
lhe diz respeito.
O aspecto sintático, porém, não ganha do hiponense uma atenção
prolongada. Agostinho logo se volta para o aspecto semântico das palavras e, para poder
se aprofundar nesta face dos vocábulos, opta por apreendê-los em seu uso corriqueiro,
através do qual é possível delimitar duas formas de significação comuns. A maneira
pela qual Agostinho demonstra a existência destas duas características nasce de um
pedido curioso, feito a seu filho Adeodato: “E, antes de mais, diz-me se homem é
homem.” (mag. 8, 22)
Aparentemente jocosa, a solicitação de Agostinho é na verdade bastante
ilustrativa. Com um exame mais detalhado, somos levados a perceber que, para que
possamos dar uma resposta à questão, precisamos definir que “homem” é esse ao qual o
filósofo se refere. Será ao “homem” que nada mais é do que a junção das sílabas “ho” e
“mem”, isto é, ao seu estatuto puramente significante? Ou ao elemento do mundo ao 4 A Bíblia de Jerusalém traduz o segmento como “Cristo não foi sim e não”, e neste caso optamos pela tradução que se aproxima da forma latina que Agostinho analisa. O verbo de ligação em que o filósofo fundamenta seu exemplo existe no “non fuit Est et Non” da Vulgata.
37
que o vocábulo se refere, caracterizado como ser vivo dotado de razão? De uma só vez,
“homem” pode se referir tanto ao “homem-nome” quanto ao “homem-externo”. Como o
fez Maria Leonor Xavier (1995), podemos chamar de significação reflexiva o primeiro
âmbito de significação e designar o segundo por significação transitiva.
Esta noção de palavra como signo foi amplamente desenvolvida no
decorrer da obra agostiniana, ganhando especial destaque em seu De doctrina
christiana. No De magistro, a concepção do vocábulo como algo que sinaliza a si
próprio ou a um elemento exterior é a base da análise que o bispo de Hipona empreende
para chegar à transcendência da alma e à prova da impossibilidade do ensino. Porém,
para que este objetivo possa ser alcançado, ele precisa demonstrar que, embora haja a
dupla possibilidade de significação explicitada acima, não é a significação reflexiva que
responde às exigências do pensamento. Embora possamos travar uma comunicação que
se concentre na significação reflexiva dos vocábulos, não é este o tipo de sinalização
que caracteriza o movimento que realizamos em contato com as palavras. Nosso padrão
de comunicação nos leva automaticamente à significação transitiva, e por isso nos causa
estranhamento ouvir que não somos homens, mesmo quando não somos, de fato, a
junção de duas sílabas. A assunção da significação transitiva segue a regra do próprio
pensamento, colocando o domínio das coisas em destaque no processo comunicativo.
Por isso mesmo, Agostinho diz que este movimento natural do pensamento constitui
uma loquendi regula, ou seja, uma regra da fala, definida através da tomada de
consciência de seu uso regular. Com efeito, se não fosse a determinação transitiva, até
mesmo o exercício judicativo da razão estaria comprometido. Pois, se no exemplo
citado tomássemos o vocábulo “homem” indistintamente, não poderíamos realizar
qualquer juízo de identidade. Diz novamente Xavier:
Se a dupla possibilidade de significar reflexiva e transitivamente não fosse regulada pela determinação do primado da segunda no uso da linguagem,
38
tornar-se-ia fácil confundir as palavras com as coisas, e assim impedir o exercício judicativo da razão. (Ibid., p. 25)
Assim, mais do que constatar uma dinâmica que, por seguir os rumos do
pensamento, é ao mesmo tempo da linguagem e da razão, Agostinho coloca em
evidência a primazia das coisas em relação à linguagem. A conclusão do filósofo,
porém, é frágil, e no capítulo IX do De magistro, Adeodato coloca em questão a
resolução do pensamento de seu pai através de um vocábulo que contraria a ideia de que
a realidade sinalizada é melhor do que o sinal que a indica. Afinal, como seria possível
afirmar que a palavra imundície [coenum] é inferior à coisa sinalizada por ela?
O bispo de Hipona concorda que, de fato, não podemos preferir a
imundície ao significante que lhe designa. Porém, diz ele, se utilizamos tal signo para
designar a realidade da imundície, é porque queremos, de alguma forma, nos referir à
realidade-imundície, que conhecemos antes do significante. Ainda que o elemento
externo à palavra seja mais desprezível do que o vocábulo, o conhecimento desta
realidade é ainda superior a qualquer um dos dois fatores. Embora, se retomamos o
exemplo, a realidade indicada pelo vocábulo seja inferior às suas sílabas, o
conhecimento desta realidade é preferível, pois este conhecimento é condição do uso da
própria linguagem: “Efectivamente, não foi por outro motivo que se antepôs este
conhecimento ao sinal de que tratámos, senão por se demonstrar que o sinal é por causa
do conhecimento, e não este por causa daquele.” (mag. 9, 25)
É para demonstrar como a palavra, sendo mero som, só pode ser
apreendida a partir da compreensão de que é um elemento significante, e que por isso
está subordinada ao conhecimento da coisa [cognitio rei], que Agostinho apresenta o
famoso exemplo fundamentado na passagem de Daniel 3, 94: Et saraballae eorum non
39
sunt immutatae.5 Através dele, o bispo de Hipona nos leva a imaginar alguém que não
conheça o significado da palavra saraballae (por vezes sarabarae ou saraballa), a qual,
como nos informa o próprio filósofo, tem origem persa e significa capitum tegmina,
“cobertura para a cabeça”, frequentemente traduzido como coifa. Ao se deparar com o
vocábulo desconhecido, o ignorante logo percebe que o contato com a forma lexical não
lhe transfere o conhecimento do objeto a que ela se refere. As sílabas lidas ou
pronunciadas não imprimem no receptor qualquer imagem. É claro que, como
Agostinho, podemos ilustrar através dos termos “cabeça” e “cobertura” o que
saraballae de fato aponta, mas isto de nada serviria se o próprio ouvinte não conhecesse
também a significação de “cabeça” e “cobertura”.6
A certeza de que há uma primazia do conhecimento na relação do homem
com a linguagem é ampliada ainda mais quando o bispo de Hipona reconhece, em obra
posterior, que há casos em que, mesmo sem apreendermos a realidade das coisas, temos
consciência de que está sendo proferido um elemento significante. No De trinitate,
Agostinho traz o exemplo de alguém que escuta a palavra latina arcaica temetum. Como
nos informa o hiponense, é um vocábulo que caiu em desuso e que era usado por seus
antepassados como sinônimo de vinum [vinho]. Sem conhecê-lo, o ouvinte logo o
identifica como um sinal e deseja saber seu significado, pois, reconhecendo em temetum
um estatuto significante, sabe que as sílabas significam algo. Dessa forma, mesmo em
5 “E suas coifas não se deterioraram.” 6 Poderíamos questionar, também, a primeira audição de determinada palavra. Ao ouvirmos inicialmente o vocábulo “cabeça”, ele também se encontra na mesma posição de saraballae: um conjunto de sílabas que não traz consigo a realidade externa a ela. Como associar pela primeira vez, então, determinado vocábulo com a realidade que ele representa? Agostinho, embora não se atenha tanto à questão, parece elucidá-la um pouco nas Confessiones, ao relatar um episódio de sua meninice: “Procurava guardar na memória o nome que davam às coisas; e vendo que as pessoas, conforme esta ou aquela palavra, se dirigiam para este ou aquele objeto, eu observava e lembrava que a esse objeto correspondia o som que produzia quando queriam mostrar esse objeto.” (1, 8) Este “quadro agostiniano da linguagem”, como ficou conhecido, sofreu algumas críticas de Wittgenstein. Para uma ideia geral do problema, Cf. “Augustine’s Philosophy of Language”. In: The Cambridge Companion to Augustine. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
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casos como este, temos um saber prévio, pois o desconhecimento pleno do sinal não
implica um desconhecimento anterior completo. Para desejar saber o que significa
temetum, o ignorante precisa saber, antes, o conceito de “conhecer” e de “sentido”, que
são elementos puramente inteligíveis. É a partir deste conhecimento prévio que é
motivado a encontrar a significação da palavra.
Mais importante, porém, do que uma análise lexical que se fecha em si é o
posicionamento do exame destes signos num contexto mais amplo de comunicação.
Numa situação em que as palavras são empregadas em seu contexto mais comum, isto é,
num discurso, onde se ligam frases declarativas sobre diversos assuntos, é certo que
julgamos ser verdadeira ou falsa determinada proposição, ou então que ignoramos a
qual das duas categorias ela pertence, recorrendo, assim, à fé ou à opinião. Independente
da situação, entretanto, o fato é que o próprio enunciado não pode trazer consigo o seu
estatuto de verdade, pois só podemos reconhecê-lo no fundo de nossa alma, isto é,
depois de consultarmos uma série de valores que encontramos intrinsecamente.
Vejamos uma ilustração.
Imaginemos a existência de um professor que precise ensinar o que uma
determinada ideia representa. Para isso, como fazem todos os mestres, emite enunciados
e propõe questões. Definida a ideia, seus discípulos, que agora parecem compreendê-la,
a julgam verdadeira e saem com a sensação de que aprenderam algo. Para Agostinho, tal
sensação não passa de uma ilusão, pois o conteúdo intelectivo que utilizamos para julgar
a ideia transmitida não pode ser estabelecido pelas palavras. Se os vocábulos que o
mestre profere fazem sentido, é porque os discípulos devem possuir este mesmo sentido
dentro de si, é porque este sentido interno atribui aos enunciados do professor sua
compreensibilidade. Neste aspecto do agostinianismo, somos sempre juízes do que
recebemos, pois são os receptores que “consideram consigo mesmos se se disseram
41
coisas verdades, e fazem-no contemplando, na medida das próprias forças, aquela
Verdade interior de que falamos. É então que aprendem” (mag. 14, 45).
Agostinho estabelece, portanto, que, no que diz respeito ao conhecimento,
e sob as condições da regra da fala e da nominação, não há qualquer ostensibilidade na
natureza da linguagem, com exceção dos casos englobados pela significação reflexiva,
determinada geralmente por contexto. Na filosofia do hiponense, apenas as coisas
mostram a si mesmas, embora não sem diversos graus de dificuldade; a linguagem
apenas adverte, indica, requerendo certo cenário de conhecimento. E, embora seja mais
fácil visualizar como é ostensível a realidade física, domínio de nossa apreensão
sensível, não podemos deixar de apreender como as próprias ideias inteligíveis têm
origem, também, numa ostensão. Pois, para darmos os pareceres baseados apenas nas
realidades inteligíveis, recorremos às regras metafísicas que também não são
evidenciadas pela linguagem, mas indicadas por ela. Apenas a Justiça, a Sabedoria, o
Belo, entre tantas outras naturezas deste gênero, nos fazem conhecer a própria Justiça, a
própria Sabedoria e a própria Beleza.
Agostinho é claro ao afirmar que possuímos estas ideias inteligíveis à
disposição, mas, no decurso de sua bibliografia, também faz questão de descartar a
possibilidade desta posse provir da anamnese, como pensava Platão. A refutação da
reminiscência que explicaria a presença de ideias concebidas em nossa alma muitas
vezes é incompreendida, pois em diversos momentos de sua obra o doctor gratiae se
atém a termos como “reminiscência” e “esquecimento”, aparentemente atribuindo-lhes
concepções platônicas. Porém, no De trinitate (12, 15), Agostinho ataca o problema
mais diretamente, e, evocando a experiência relatada pelo filósofo grego no Mênon,
onde Sócrates consegue fazer com que um escravo iletrado resolva problemas
complexos de geometria, limita o postulado platônico. Em primeiro lugar, embora o
42
bispo de Hipona, como vimos, reconheça que temos acesso a estas verdades inteligíveis,
como as referentes à matemática, à ética, à estética, à natureza de Deus e à natureza da
alma, ao contrário de Platão ele não admite que a alma possa ter contemplado,
anteriormente, os conhecimentos de nível sensitivo. É verdade que Agostinho não
procurou — e talvez sequer se interessasse em — resolver o problema da formação das
ideias relacionadas à ordem sensível, mas em momento algum deixou de afirmar que o
conhecimento das coisas temporais [res temporales] não fosse domínio da cognitio
rationalis, isto é, do conhecimento racional. Se a totalidade do conhecimento estivesse
impressa na alma de cada um de nós, quantos técnicos não teríamos por todo o mundo?
Além disso, é claro que a teoria apresentada por Platão não pode ser dissociada de uma
alma pré-existente que se reencarna, e, já alertado por Porfírio, Agostinho não poderia
aceitar o absurdo de uma alma que, no alto de sua elevação, buscasse o rebaixamento:
“Na realidade, é loucura acreditar que da vida [...] as almas desejem cair nos corpos
corruptíveis [...], como se a suprema purificação lhes inspirasse o desejo de manchar-se
de novo.” (civ.dei. 10, 30)
Assim também, por não ser possível a teoria da reminiscência platônica, e
sabendo existir essas verdades que nos levam ao exercício judicativo da razão, cabe-nos
ainda pensar na possibilidade de a própria alma produzir, por si mesma, estes elementos
intelectivos. No segundo livro do De libero arbitrio, o bispo de Hipona resolve a
questão utilizando o exemplo dos números, da noção de sabedoria, de justiça e de
prudência, mas é certo que por toda a sua obra abundam as regras que podem ilustrar a
questão. O fato é que, se tomarmos cada uma delas e as enunciarmos, a constatação de
uma verdade se desenvolve no espírito de todos os homens. Podemos ilustrar a questão
com o exemplo da unidade: sabemos que todos os corpos podem ser divididos em
partes, e cada nova divisão possibilita partilhas novas. Assim, a unidade é uma questão
43
puramente inteligível, pois não conseguimos nunca apreendê-la pelos sentidos. Todos os
homens, porém, trazem consigo uma noção clara do que seja ela, isto é, a Unidade é
uma ideia da qual todos desfrutamos. Estendamos ainda mais o exemplo e analisemos a
ideia de Justiça: “[...] subordinar as coisas menos boas às melhores; comparar entre si as
semelhantes; e dar a cada um o que lhe é devido.” (lib.arb. 2, 10, 28) Ao nos
depararmos com tal noção universalmente acessível, sabemos que é verdadeira. Se cada
mente produzisse suas próprias regras inteligíveis, como poderíamos concordar com
suas verdades, já que estamos certos de não podermos ler o pensamento alheio? Além
disso, se tais regras fossem produtos da alma, seriam mutáveis como ela, e não algo que
constatamos, como sugere Agostinho quando toma o exemplo da verdade —
[...] permanecendo a mesma em si mesmo, [a verdade] não ganha nada quando a vemos mais claramente nem perde quando a vemos menos bem. Ela guarda sempre sua integridade e inalterabilidade. (lib.arb. 2, 12, 34);
— e quando mostra que as regras interiores não sofrem julgamento da razão:
Dizemos dos corpos muitas vezes não somente que são ou não assim, que deviam ser ou não de tal modo. E igualmente sobre nossa alma sabemos não apenas que ela possui tal ou tal maneira de ser, mas que talvez deveria possuir tal ou tal outro modo de ser. De fato, a respeito dos corpos é desse modo que julgamos, ao dizer: “este é menos branco do que deveria ser” ou: “é menos quadrado, e ainda a respeito de muitas outras propriedades. Sobre nossa alma, dizemos: “ela é menos capaz do que deveria ser”, ou: “menos condescendente”, ou “menos corajosa”, conforme a modalidade com que se apresenta nosso estado moral. E nós formamos esses julgamentos de acordo com aquelas regras interiores da verdade que todos possuímos em comum. E de modo algum ninguém vem a julgar essas mesmas regras. Com efeito, quando alguém afirma: “as coisas eternas são superiores às temporais”, ou então: “sete e três são dez”, ninguém diz: “isso deveria ser assim”. Pelo contrário, cada um apenas constata ser assim. Ninguém constata como se fosse um censor, mas registra com alegria como uma descoberta. (lib.arb. 2, 12, 34)
Dessa forma, além de propor uma reconfiguração da dinâmica do ensino
— pois, se nenhuma ideia inteligível pode ser de fato transmitida por enunciação, o
44
papel do professor passa a se concentrar no estímulo dado para que os alunos possam
reconhecer, interiormente, a verdade —, as observações feitas por Agostinho no De
magistro revelam que é necessário estabelecer uma nova forma de pensar a aquisição de
conhecimento. Descartando a anamnese, a autosuficiência da alma na geração de suas
ideias e a transmissão do conteúdo intelectivo através da comunicação, o filósofo
retoma a autoridade da fé e propõe que, na verdade, as regras metafísicas não podem
advir senão do Mestre que age dentro de nós quando precisamos realizar um julgamento
racional:
Ora, acerca de todas as coisas que inteleccionamos, não consultamos alguém que fala e produz um som fora de nós, mas a Verdade que preside interiormente à nossa mente, sendo talvez incitados pelas palavras a consultá-la. (mag. 11, 38)
E essa Verdade, claro, é Cristo, o único e verdadeiro mediador entre o homem e Deus
[Cf., por exemplo, civ.dei 9, 15], “no qual se acham escondidos todos os tesouros da
sabedoria e da ciência” (trin. 13, 20, 24), e “de quem se disse que habita no ‘homem
interior’ [Ef 3, 16-17], e é o Poder incomutável de Deus, e a sempiterna Sabedoria”
(Ibid., id.). Porém, é preciso detalhar melhor a relação entre as realidades inteligíveis,
homem e Deus para que as conclusões do De magistro não pareçam desarticuladas.
2.7. No pensamento de Deus
Embora não tratada ex professo em nenhum dos escritos do hiponense, já é
possível perceber, no De magistro, todos os elementos que caracterizam a doutrina
agostiniana da iluminação divina. Essencialmente neoplatônica, nela Agostinho
compara a ação de Deus em nosso intelecto à ação da luz solar que ilumina todas as
45
coisas e que nos permite julgar os elementos do mundo. Diz ele, no mesmo segmento
em que critica a reminiscência platônica, que “a natureza da alma intelectiva foi criada
de tal modo que, aplicada ao inteligível segundo sua natureza, [...] possa ver esses
conhecimentos em certa luz incorpórea de sua própria natureza” (trin. 12, 15, 24), e a
isto acrescenta, no De Genesi ad litteram, que “a luz é o próprio Deus” (12, 31, 59).
É de fato difícil precisar como se dá a atuação de Deus sobre nosso
pensamento, pois, como dito, Santo Agostinho nunca discorreu sobre a doutrina
magistralmente. Porém, da sua obra podemos concluir que temos contato com Deus
quando encaramos tais verdades eternas, imutáveis e necessárias, pois só Ele possui
estas características. Exprime Gilson, percebendo muito oportunamente a relação entre
estas ideias e a inteligência divina:
De qualquer maneira, as ideias são os arquétipos de toda espécie ou de todo indivíduo criado por Deus. [...] Assim, cada coisa foi criada segundo seu modelo próprio e, posto que tudo foi criado por Deus, os modelos das coisas, ou ideias, só poderiam existir no pensamento de Deus. (Op. cit., p. 168)
Embora possamos ver, através do conhecimento natural, as ideias
imutáveis em Deus, dificilmente poderíamos afirmar que tal contemplação abarca
também as ideias de Deus. Se assim fosse, não precisaríamos buscar uma prova de Sua
existência e também não necessitaríamos de nossos sentidos para tomar conhecimento
das coisas do mundo. Afinal, “Deus conhece a priori todas as coisas, mesmo as
materiais, já que elas são apenas imitações das ideias divinas” (Ibid., p. 171). É fato que,
por ter Agostinho deixado em aberto a forma como formamos os conceitos dos objetos
apreendidos pelos sentidos, é difícil afirmar até que ponto o problema realmente tocou o
bispo de Hipona. Seguro é apenas dizer que a iluminação só age quando precisamos dar
um parecer guiado por uma das verdades imutáveis e puramente abstratas que estão
46
acessíveis a todos os homens, como nos ilustra um exemplo do nono livro do De
trinitate:
O mesmo acontece quando evoco em mim, por exemplo, um belo e artístico arco, simetricamente frisado que vi em Cartago. Esse objeto material, chegado à minha mente através dos olhos e armazenado na memória, leva-me a ter dele uma representação imaginária. Mas com o olhar da mente contemplo outro modelo, conforme o qual aquela obra me agrada; e caso não me agradasse, poderia até corrigi-la. (9, 6, 11)
Agostinho propõe um modelo de conhecimento natural comum a todos,
através do qual estamos constantemente submetidos às invioláveis ideias que permitem
o julgamento do mundo, inclusive de seus elementos materiais. Mesmo sem encontrar
dentro de si a Sabedoria ou a Justiça, por exemplo, um indivíduo condenável enxerga
com os olhos da alma estas regras inteligíveis, e sabe falar sobre elas mesmo que não as
traga impressas no coração. Não há como fugir da ação direta desta luz. No
agostinianismo, a iluminação que vem de Deus está longe de ser uma ação sobrenatural,
destinada apenas a poucos escolhidos.
Fora deste conhecimento natural, Agostinho também estabelece uma
segunda forma de conhecimento, mais profunda e rara. Trata-se do conhecimento
místico, em que a alma não se encontra apenas sob o efeito da luz divina, mas se eleva e
contempla momentaneamente as ideias de Deus e esta mesma luz. Pelas Sagradas
Escrituras, Agostinho tomara conhecimento de “um homem em Cristo que [...] foi
arrebatado ao terceiro céu” (2 Cor 12, 2), e nas próprias Confessiones o filósofo relatou
o momento em que teria alcançado, com sua mãe, o estado de êxtase proporcionado pela
elevação mística:
Indo além [de nossas almas], atingimos a região da inesgotável abundância, onde nutres eternamente Israel com o alimento da verdade, e onde a vida é a própria Sabedoria pela qual foram criadas todas as coisas [...]. (9, 10, 25)
47
Através do olho da mente, o místico atravessa o mundo e o espírito
humano e alcança aquele sol em que “toda percepção do mutável, todo pensamento
variável e toda comunicação indireta por sinais cessará definitivamente”
(BRACHTENDORF, op. cit., p. 192). É o aproximar-se momentâneo da eternidade.
De qualquer maneira, independente da forma de conhecimento
considerada, todo o caminho percorrido por Agostinho culmina, e evidencia, a
existência de Deus, trazendo à tona uma realidade que, como proposto no De libero
arbitrio, se encontra acima da razão. Mesmo que naturalmente tenhamos acesso às
verdades apenas na luz de Deus, vê-las com os olhos da alma, abertos às realidades
inteligíveis, é de certa forma ver o próprio divino, mesmo que não contemplemos
substancialmente o Verbo. E isto só ganha ainda mais profundidade quando
transcendemos tal nível de intelecção e enxergamos a própria luz. É certo que a doutrina
da iluminação, além de não esclarecer profundamente a formação dos conceitos
advindos do conhecimento sensível, também deixa em aberto algumas indeterminações,
como a estrutura conceitual das verdades inteligíveis. Se a iluminação traz consigo um
conceito claro das regras que nos transcendem, ou se funciona apenas como um
princípio formal é algo que deixaremos para os especialistas dispostos a resolver a
aporia. Majoritariamente, nos interessa aqui o caminho percorrido por Agostinho e o seu
termo, caracterizado pela prova da existência de um Deus acessível e atuante em cada
um de nós.
Como pode ser percebido no decorrer de sua obra, o bispo de Hipona
acaba por amenizar um pouco a importância da visão intelectual de Deus porque ela
exigiria mais um desprendimento dos sentidos do que uma purificação moral efetiva.
Seus próprios mestres da tradição platônica, buscando constantemente a elevação do
espírito àquela luz que a tudo ilumina, se encontravam mergulhados em vaidade e
48
orgulho, reivindicando para si próprios a posse da sabedoria. No entanto, é inegável a
importância que estes pensadores tiveram para a definição do Deus cristão agostiniano.
Através deles, Agostinho pôde se libertar do materialismo maniqueu e perceber um
Deus que transcende os elementos corpóreos e que a tudo supera, mas que, de alguma
forma, respeitando os limites da natureza humana, pode ser intuído pelo próprio exame
da Criação, em contraste com os elementos do mundo:
A construção da hierarquia [dos elementos do mundo] pode ser realizada sem qualquer conhecimento da existência ou da natureza de Deus. Porém, os mesmos princípios comparativos de hierarquização também podem ser utilizados para justificar a supremacia divina. Como a vida é melhor que os seres inanimados, Deus deve ser caracterizado pela vida; como uma vida pautada pela sabedoria é melhor do que uma vida que não a possui, Deus deve ser caracterizado pela sabedoria; e como uma vida pautada pela sabedoria imutável é melhor que uma vida cuja sabedoria é mutável, Deus deve ser caracterizado pela sabedoria imutável. (MACDONALD, 2006, p. 81)
Não foi à toa que, perguntado por Moisés sobre sua identidade, Deus
responde que é aquele que é: Ego sum qui sum (Ex 3, 14). Nesta proposição, Deus
resume toda a sua plenitude. Seu nome indica sua própria essência, o ser absoluto,
perfeito e simples, que não pode ser aprimorado ou modificado: somente Deus é ser
verdadeiro, pois é “imutável, existente sempre do mesmo modo (sem evolução
temporal), idêntico a si mesmo e livre de qualquer diferença” (BEIRWALTES, 1995, p.
107).
*
Embora consideravelmente extensos, todos os campos do saber analisados
por Agostinho têm como centro a Verdade. N’Ela, como se viu acima, tudo culmina, e
49
não há vida feliz e salvação sem que seja Ela o nosso fim. É por isso que se faz tão
necessária, para o pesquisador interessado em investigar as relações de Agostinho com a
literatura, a compreensão dos princípios básicos que regem seu pensamento (e, por
certo, sua vida), pois pensar a ficção no bispo de Hipona é evocar sempre o estatuto que
a Verdade ocupa em sua doutrina. Não é à toa, portanto, que muitas das concepções
esboçadas acima sejam sempre evocadas quando o bispo se dedica a analisar o
problema literário, em qualquer uma das suas dimensões.
50
3. Poetica illa figmenta: o falso ficcional e a verdade
A declaração com a qual teve termo o capítulo anterior se mostra ainda
mais verdadeira quando o pesquisador se põe a pensar a relação entre a natureza do
objeto ficcional e a Verdade, em especial ao investigar a oposição entre falso e
verdadeiro geralmente encontrada na literatura como a encaramos. De fato, a estrutura
do pensamento de Agostinho nos impõe mais algumas veredas que, apenas em
aparência, nos desvirtuam do problema. Tomemo-las.
3.1. O mundo bom e o mal
Dando os primeiros passos na explicação de sua cosmogonia, Platão
coloca nos lábios de Timeu a proposição seguinte:
Desejando a divindade que tudo fosse bom e, tanto quanto possível, estreme de defeitos, tomou o conjunto das coisas visíveis — nunca em repouso, mas movimentando-se discordante e desordenadamente — e fê-lo passar da desordem para a ordem, por estar convencido de que esta em tudo é superior àquela. (Timeu, 30a, grifo nosso)
O diálogo no qual o trecho acima se encontra foi certamente um dos
poucos escritos de Platão a serem lidos diretamente por Agostinho7 [Cf. civ.dei, 10, 31].
No entanto, levado por sua própria prova da existência divina, é possível que o bispo de 7 H.-I. Marrou (1938) conta nove referências ao Timeu na bibliografia agostiniana, assim como quatro ao Fédon. É certo, como vimos já no capítulo anterior, que também tenha tido contato com o Mênon e que não tenha lido no original qualquer uma das tais obras, embora sejam controversas as autorias de cada uma das traduções ao latim. Circulam entre os pesquisadores nomes como o de Cícero, Mário Vitorino e Apuleio.
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Hipona tenha, com prontidão, discordado da proposição platônica. Diante da ordem das
coisas incessantemente evidenciada por seu pensamento, Deus ganha, como Sumo Bem,
um atributo que nega qualquer existência anterior ou inicialmente concomitante a Si
próprio, inclusive a de qualquer matéria informe (a hýle dos gregos) que pudesse ser
modelada para a formação do mundo sensível: “Deus é o Bem Supremo, acima do qual
não há outro: é o bem imutável e, portanto, verdadeiramente imortal.” (nat.b., 1)
A soberania divina nos coloca, então, diante de um Deus do qual todas as
coisas provêm e de um Deus que, pleno, não poderia ter criado o universo senão por
uma bondade infinita, uma benevolência que, de tão elevada, seria incapaz de privar-se
à própria comunicação.8 Tendo isso em mente, é necessário estabelecer os termos de tal
Criação, para que não seja interpretada erroneamente a natureza do homem e do mundo
e para que, assim, possam ser colocados em seus devidos lugares na doutrina o Criador
e as criaturas. Afinal, se as naturezas mundanas e as almas são em alguma medida
mutáveis, Deus continua imutável e perfeito, e dessa forma não poderíamos ser frutos
de sua mesma natureza divina e o resultado de sua própria emanação. Como pensar,
então, a origem de tudo?
Em resposta à questão, Agostinho aprofunda e estabelece sentidos e chaves
de interpretação do livro do Gênesis, enunciando a famosa doutrina da criação ex nihilo,
a partir do nada:
Mas como as fizeste? Como fizeste, ó Deus, o céu e a terra? Certamente não fizeste o céu e a terra no céu e na terra, nem no ar, nem nas águas; porque também estas coisas pertencem ao céu e à terra. Nem fizeste o mundo universo no universo mundo, pois não havia onde o fazer antes que o fizesses e ele existisse. Nem tinhas tu algo à mão, de onde pudesse fazer o céu e a terra; porque de onde teria saído isso que não tinhas feito e do qual farias algo? E o que há que não seja porque tu és? Tu disseste, então as coisas foram feitas; com tua palavra as criaste. (conf. 11, 5, 7)
8 No mesmo trecho citado acima, Timeu afirma que, sendo infinitamente perfeito, o divino artífice não poderia ser invejoso a ponto de não dividir a própria bondade. É provável que Agostinho concordasse com a afirmação.
52
Embora a posição de Deus como mente criadora nos ajude a resolver o
problema da diferenciação entre Criador e criatura, emerge de uma tal constatação um
predicado aplicável a toda e qualquer coisa existente: criada por Ele, não há nada que,
em si, não seja naturalmente bom. A aparente lógica dessa afirmação é expressa pelo
bispo de Hipona em termos filosóficos quando o mesmo expressa que, a qualquer
substância, visível ou não, foi conferida por Deus uma medida [modus], uma ordem
[ordo] e uma espécie [species]. Quanto maiores essas características, maior o nível de
perfeição da natureza em questão; quanto menor, menor será enquanto bem, mas sem
deixar de ser um bem, pois existe e desfruta de tais atributos, como qualquer coisa que
ganha existência:
Igualmente, onde estas três coisas forem grandes, grandes serão as naturezas; onde forem pequenas, pequenas serão as naturezas; onde absolutamente não existirem, tampouco existirá natureza alguma. Logo, toda e qualquer natureza é boa. (nat.b. 1)
Tal concepção ganha especial importância porque, em momento posterior
das investigações de Agostinho, coloca em destaque o problema da origem do mal em
seu estado mais delicado. Se não somos capazes de trair nossa própria experiência,
afirmando a inexistência do sofrimento, como saber a quem imputá-lo?
Sobre o (aparente) mal natural, não precisamos nos debruçar mais do que o
necessário. Basta que nos lembremos do que diz Agostinho sobre a Ordem do universo:
“Dá-se aqui o mesmo que num discurso bem pomposo, cuja beleza resulta de as sílabas
e sons nascerem e morrerem sucessiva e harmoniosamente.” (nat.b., 8) Com expressões
de tal gênero, o hiponense indica como devemos reeducar nossos olhos para contemplar
a verdadeira beleza do universo. A Ordem, estabelecida na razão divina, é perfeita por
53
natureza: desde a Criação ex nihilo, podemos percebê-la na diacronia, como sinal de
uma bondade extraordinária e inebriante.
Se de lado foi colocada a possibilidade de um mal que se manifesta
naturalmente no universo, temos no âmbito moral — e, portanto, humano — o
verdadeiro espaço de investigação do problema. De fato, em poucos momentos de sua
obra o pensamento de Agostinho ganha tanto vigor. Ciente, em especial devido à
história de sua conversão, das dificuldades e das inclinações na qual o homem se vê
mergulhado, o santo prepara, com suas teses sobre o mal, o terreno na qual frutificariam
seus postulados sobre a graça, aquela ajuda gratuita que Deus oferece ao homem para
erguê-lo. O problema, então, como já demonstrava saber Agostinho desde a época de
seu De libero arbitrio, é tomar consciência da completa responsabilidade humana diante
da maldade. Mas como compreender uma imputação do gênero?
Em primeiro lugar, neguemos as outras possibilidades da origem do mal,
ainda fundamentados na prova agostiniana da existência divina. Quanto a Deus, em
nada negativo Ele toma parte. Bem soberano, tudo que d’Ele procede é bom, assim
como são boas todas as coisas originadas a partir daqueles excelentes atributos
inteligíveis — prudência, a temperança, a justiça etc. — que tornam o homem
moralmente reto e que Lhe dizem respeito.9 Ao mesmo tempo, se, como alternativa,
buscamos a causa da corrupção do homem nos bens inferiores, voltamos ao ponto da
doutrina de Agostinho que nos diz que nada inferior pode exercer uma influência ativa
sobre uma natureza hierarquicamente superior. É necessário, portanto, que a natureza da
adulteração moral se encontre no próprio homem. Mas onde? Agostinho responde:
naquele mesmo atributo da alma que orienta nosso arbítrio, ou seja, na vontade. Diz ele:
9 “Considera agora a justiça, da qual ninguém pode abusar. Ela é contada entre os maiores bens que existem no homem. Como também o são todas as virtudes da alma, com as quais se pode levar vida boa e honesta. Tampouco, ninguém poderá abusar da prudência, nem da força, nem da temperança. Com efeito, nelas, como na justiça, a qual te referiste, reina a reta razão, sem a qual virtude alguma pode existir. Por certo pessoa alguma pode abusar dessa reta razão.” (lib.arb., 2, 19, 50)
54
Ora, é preciso reconhecer: a alma fica impressionada pela vista de objetos, sejam superiores, sejam inferiores, de tal modo que a vontade racional pode escolher entre os dois lados o que prefere. E será conforme o mérito dessa escolha que se seguirá para ela o infortúnio ou a felicidade. (lib.arb., 3, 25, 74)
Não nos esqueçamos, porém, que, enquanto criada por Deus, o livre-
arbítrio é um bem, existente também em algo bom. Não está nele, como tal, aquilo que é
passível de condenação. Ao contrário, qualquer censura só pode ser feita ao
assentimento às representações do mundo em detrimento das realidades superiores, pela
qual vontade humana se priva da perfeição proporcionada pelas virtudes. É este
movimento mesmo que define, em Agostinho, a natureza do pecado. “É bem como
dizes e eu concordo”, afirma Evódio, ao dialogar com o bispo de Hipona no trabalho
dedicado à livre vontade humana,
em que os pecados encontrem-se nessa única categoria, a saber: cada um, ao pecar, afasta-se das coisas divinas e realmente duráveis para se apegar às coisas mutáveis e incertas, ainda que estas se encontrem perfeitamente dispostas, cada uma em sua ordem, e realizem a beleza que lhes corresponde. (Ibid., 1, 16, 35a)
O grande problema, no entanto, é a constante dificuldade que se apresenta
ao homem, afastado de Deus, quando quer ele se aproximar da Verdade e agir conforme
as “coisas divinas”. A própria necessidade de se estabelecer uma prova racional da
existência de Deus nos prova como estamos distantes de uma visão direta do fim último
da busca filosófica e daquilo que nos fornece a verdadeira beatitude. Se precisamos
pensar o problema da ficção com relação à Verdade, precisamos saber, antes, por que
não estamos ligados a Ela, por que uma questão de tal gênero é passível de ser colocada.
Em especial, o afastamento da Verdade — isto é, o mal moral —, que nos
possibilita contrapor a ficção à metodologia que pauta a perfeita busca filosófica, se
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mostra uma tendência universal profundamente explorada por Santo Agostinho, em
especial quando, ao fim da vida, o hiponense se põe a trabalhar os temas que, pelas
mãos do papa Bonifácio VIII, lhe renderiam o título de Doutor da Graça. Portanto, é
preciso que se siga, embora com alguma superficialidade, o caminho que faz o bispo de
Hipona até os primórdios da humanidade, conforme revelados pelas Escrituras. É a
partir dele que descobriremos o porquê de nossa delicada condição e o porquê de, no
contexto agostiniano, podermos transformar a relação entre ficção e Verdade numa
questão entre ficção e beatitude, ficção e finalidade — ainda que, inicialmente, um
desvio tal possa parecer estranho para os padrões da investigação da teoria literária
tradicional. Porém, um (aparente) distanciamento não pode senão demonstrar como o
problema ficcional é um problema que atinge o homem nos mais diversos de seus
âmbitos.
3.2. A Queda e o distanciamento da Verdade
Ao definir o estado elevado dos primeiros homens, Agostinho se vale de
expressões que trazem imagens de “imortalidade”, “integridade”, “impassibilidade”,
“conhecimento” e “preservação”. Com efeito, diz ele, “a humanidade toda seria tão feliz
como eram os primeiros homens, quando nem as perturbações anímicas os inquietavam
nem as incomodidades corporais lhe causavam mela” (civ.dei., 14, 10), pois, como
afirma em apenas uma das diversas passagens de sua bibliografia que se referem aos
nossos pais primitivos,
no paraíso o homem vivia como queria, porque apenas queria o que Deus mandara. Vivia gozando de Deus e era bom por sua bondade; vivia sem nenhuma indigência e estava em suas mãos viver sempre assim. A abundância de alimentos matava-lhe a fome, a de bebidas, a sede, e a árvore
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da vida defendia-o da velhice. Nenhuma dor a corrupção causava ao corpo nem o corpo a seus sentidos. No interior não temia enfermidade, nem ferimentos no exterior. A carne do homem gozava de perfeita saúde; a alma, de tranquilidade absoluta. Como no paraíso eram desconhecidos o calor e o frio, assim em seu habitante era desconhecido o aguilhão com que o desejo ou o temor lhe aguilhoavam a boa vontade. Não havia tristeza nem alegria fútil. Gozo eterno, procedente de Deus, perpetuava-se e nele ardia a caridade do coração puro, de boa consciência e da fé não fingida. A sociedade conjugal era acompanhada de amor honesto. A mente e o corpo andavam de comum acordo e o mandado era fácil e exequível. A fadiga não condenava o homem ao repouso, nem o homem cedia, mau grado seu, à prostração do sono. (Ibid., 14, 26)
Adão fora criado, portanto, num estado de perfeita ordem e, como imagem
de Deus, desfrutava do conhecimento da Verdade, amando a virtude e agindo em sua
consonância. Nessa condição, contemplava o universo e via nele o reflexo de um
Criador, precisando apenas perseverar na obediência a Deus — o que, porém, não era
tão difícil, pois, como desordens resultantes do pecado, as tentações não existiam.
Se tão grande era a integridade humana, não é de se admirar a posição
central que ganha o Pecado Original na análise agostiniana da miserável condição
desfrutada pelo homem hoje. Adão, que precisava apenas permanecer em sua condição
de obediente, encheu-se de orgulho e se rebelou contra a Verdade que ressoava em sua
consciência, dando lugar então à paternidade de todos os pecados: a vontade de
autossuficiência, de fazer-se Deus de si próprio, um egocentrismo “que supõe um duplo
abandono ou deserção: abandona a criatura ao Criador e o Criador, a criatura, deixando-
a nas mãos do próprio arbítrio” (CAPÁNAGA, 1946, p. 80). Tal abandono lança o
homem num mar de dor e miséria, “num profundo abismo de ignomínia e vileza” (Ibid.,
id.), pois perde a criatura a ligação espiritual que mantinha com Deus, doador de todas
as suas virtudes. Deserdada, sua carne se rebela, a concupiscência se instaura, a morte
atinge sua natureza e, afastada da Verdade, se precipita na ignorância e na dificuldade
de perseverar.
57
Das várias expressões que utiliza para descrever o estado atual da
humanidade — massa damnata, massa peccati et peccatorum, massa impiorum, massa
ruinae, entre outras de mesma gravidade —, o Doutor da Graça deixa claro a unidade
que liga todos os homens ao seus pais comuns. Enraizada em Adão, a árvore da
humanidade não poderia produzir, sozinha, frutos decentes10, e portanto, além da
inclinação ao mal, nos vemos também privados da contemplação direta da Verdade.
Mesmo anos antes de se deter com mais afinco sobre os problemas da
Criação e da Queda, Agostinho já se mostrava perfeitamente consciente do estado de
ignorância partilhado pelos homens. Nos Soliloquia, obra precoce de crucial
importância, e na qual o hiponense reproduz as investigações assumidas ao lado da
Razão, a angústia da busca se coloca exatamente da forma como se espera de uma alma
há pouco conscientizada da própria ignorância e das próprias dificuldades: “Nenhuma
outra coisa, além de ti [Pai], se apresente a mim, que estou te procurando. […] Mas se
houver em mim desejo de algo supérfluo, limpa-me e torna-me apto a ver-te.” (sol. 1, 1,
6)
Não à toa se encontram, nos Soliloquia, as considerações mais substanciais
da obra precoce de Agostinho sobre a natureza do falso, assim como aquelas — mais
sucintas, é verdade — que tocam a ficção e o problema da literatura. Afinal, o objetivo
da investigação que o hiponense estabelece com a Razão é “conhecer a Deus e a alma”
(Ibid. 1, 2, 7), e, com tão altas expectativas, não menores podem ser as questões que lhe
10 Agostinho teve plena consciência da dificuldade que tal extensão apresenta ao entendimento humano. Já no segundo livro do De libero arbitrio, o hiponense se empenhava para esclarecer por que sofremos nós, milênios depois, os pecados de Adão e Eva, e no período da maturidade de seu pensamento as fórmulas empregadas para desenvolver a questão ganharam ainda mais destaque. Nós participamos moralmente, diz ele, no pecado de Adão, consentimos à concupiscência e, consequentemente, tudo à nossa volta se constitui como reflexo de nossas fraquezas. Assim, a pena pelo erro adâmico é uma inclinação ao mal que não retira nossa responsabilidade, e por essa inclinação e por nossa fraqueza o estado do homem no mundo é como uma crescente bola de neve, transpassando o âmbito pessoal e alcançando o meio social e as relações humanas. Tal é a gravidade de nossa condição. O homem abraça a desordem e a desordem ataca o homem em todas as suas realidades — uma pena justa para um erro que é atualizado sem cessar.
58
estão associadas. Vejamos, finalmente, a partir deste tratado, e já conhecedores da nossa
condição de “filhos degredados” de Eva e Adão, a posição que a literatura pode ocupar
na alma que considera a própria ascensão e que precisa da Verdade da qual foi privado.
3.3. O falso e a literatura para a alma caída: os Soliloquia
O problema inicial da busca pelo conhecimento das realidades metafísicas
fundamentais é, nos Soliloquia, o de se estabelecer como o ser pensante pode atingir
uma ciência onde tais realidades se manifestem claramente, a fim de que não haja
dúvidas sobre a confirmação da verdade.
Como é evidente, uma tal investigação deve pressupor, em primeiro lugar, a
certeza básica já estabelecida no Contra academicos, e a qual acabamos por explicitar
no capítulo anterior. Não é à toa que, nos Soliloquia, o diálogo entre a Razão e
Agostinho se inicia com mais uma versão do cogito agostiniano:
R. Tu, que queres conhecer-te a ti mesmo, sabes que existes? A. Sei. R. De onde sabes? A. Não sei. R. Sabes que pensas? A. Sei. R. Portanto, é verdade que pensas. A. Sim. (2, 1, 1)
No entanto, a verdade autoevidente não torna possível a compreensão da
maneira que entendemos o mundo externo. Dessa forma, em especial no livro II do
diálogo, a investigação se direciona para a natureza do conhecimento exterior,
59
debruçando-se sobre os elementos que independem de nossa estrutura cognitiva.
Coloquemo-nos, portanto e de início, na mesma situação proposta pela Razão de
Agostinho ao bispo de Hipona.
Se nos diz alguém que é árvore uma parede que vemos à nossa frente,
poderíamos explicar o estranhamento gerado através de três hipóteses: 1) nossos
sentidos talvez estejam a nos levar ao engano; 2) os sentidos do interlocutor em questão
o fazem; ou, 3) para ele, o que chamamos de parede recebe a denominação de árvore.
De qualquer forma, parece-nos evidente que, em si, o objeto tal não pode ser ambas as
coisas ao mesmo tempo. Temos então no diálogo, com a devida retificação oferecida
pela Razão:
A. De modo algum, porque uma mesma coisa não pode ser ao mesmo tempo árvore e parede. Embora pareça a cada um de nós ser determinada coisa, necessariamente um de nós comete erro de imaginação. R. E se não for nem parede nem árvore e ambos estiverem enganados? A. Certamente pode ocorrer isto. R. Acima, deixaste de mencionar isto. A. Confesso que sim. R. Se os dois vierem a reconhecer que é algo diferente do que lhes parece, acaso mesmo assim estão enganados? A. Não. R. Portanto, pode ser enganoso aquilo que se vê e não se enganar aquele que vê. A. Pode. (Ibid., 2, 3, 3)
A confirmação de Agostinho à última afirmação de sua interlocutora
(“Portanto...”) é especialmente importante por estabelecer algumas distinções de
relevância. Em primeiro lugar, há uma diferença clara entre o enganar-se e a percepção
de algo falso. Embora os sentidos possam levar o sujeito ao engano, este só se dá, de
fato, mediante o assentimento. Captar algo de maneira diferente ao que é não configura
o engano; o erro só pode ser um resultado da ação humana. Portanto — e eis a segunda
distinção de Soliloquia 2, 3, 3 —, o sujeito receptor passa a ser uma das condições
60
necessárias da falsidade, pois nada pode ser falso em sua natureza. A conclusão fica a
cargo da Razão:
Por conseguinte, se é falso aquilo que parece diferente do que é e se é verdadeiro aquilo que se parece como o é, neste caso, abstraindo-se daquele a quem parece, não há nem falsidade nem verdade. Ora, se não há falsidade na natureza das coisas, todas as coisas são verdadeiras. (Ibid., 2, 4, 5)
O fundamento de tudo o que é falso, segundo se define pela proposição
agostiniana, encontra-se na diferença entre a essência, aquilo que é, e sua aparência,
abrigada nas representações sensíveis. O problema, por conseguinte, passa a ser o
estabelecimento do nível em que se encontra tal desigualdade, se na utilização dos
sentidos humanos ou na própria realidade daquilo que apreendemos.
O problema acaba por ser resolvido de forma um pouco indireta. Após
uma breve série de considerações no capítulo 5, 7, a Razão leva Agostinho a descartar a
possibilidade de o verdadeiro só existir em função da percepção humana. Uma pedra
oculta num armário, lemos, é ainda uma pedra, ainda que não a vejamos. Assim como o
miolo de um tronco ou qualquer elemento que nos foge aos sentidos. Agostinho é
levado, em seguida, a assumir uma definição breve para a verdade: “Então, assim
afirmo e defino […], verdade é aquilo que é [id quod est].” (Ibid., 2, 5, 8) A conclusão a
que somos guiados através do pensamento agostiniano tal como nos é aqui apresentado
não pode ser senão aquela resumida por M. Bettetini, com as devidas referências:
Durante algumas páginas, a digressão sobre a arte se dá diante da noção de verdade e falsidade, nas quais se reconhece influências aristotélicas, mas sobretudo estóicas — provavelmente como tratadas por Cícero: a falsidade não está nas coisas, mas nos sentidos que se enganam e no juízo que, livremente, opta por assentir ao erro sensitivo. Se verdadeiro é tudo o que é (tal como lemos também no Sofista e no Hípias menor, de Platão), o falsum é o que se mostra diferente do que é, mas enquanto tal é privado de existência, pois apenas o verdadeiro existe [...]. Não há, portanto, realidade falsa, mas juízos equivocados sobre coisas verdadeiras. (2004, p. 40)
61
Retirando o verdadeiro do âmbito subjetivo, “a verdade assume […] a
consistência ontológica do ser real e estável, a partir da qual, por qual e na qual todas as
coisas são o que são” (CERESOLA, 2001, p. 40). De fato, é a verdade que sustenta
qualquer coisa que é, pois o que é o é verdadeiramente. Por toda a sua obra, Agostinho
não cansou de exemplificar as relações entre a verdade e aquilo que ela torna
verdadeiro, e sequer precisamos nos distanciar de nosso tratado para que uma ilustração
como essa nos salte aos olhos:
R. Se este mundo permanecer para sempre, é verdade que o mundo subsistirá para sempre? A. Quem duvidaria disso? R. E se não permanecer, não é verdade que o mundo não subsistirá? A. Nada a contradizer. R. E quando tiver perecido, se é que há de acabar, então não será verdade que o mundo pereceu? Por enquanto não é verdade que o mundo tenha acabado, pois ainda não acabou. Há, pois, uma contradição entre estas duas afirmações: o mundo acabou — não é verdade que o mundo acabou. A. Concordo. R. E parece-te que possa existir algo verdadeiro e não existir a verdade? A. De modo algum. R. Portanto, existirá a verdade ainda que o mundo acabe. A. Não posso negá-lo. (sol. 2, 2, 2)
Tendo já visto a centralidade da verdade na filosofia e teologia
agostinianas, e também a íntima relação da Verdade com o próprio Cristo, não é de
espantar a gravidade do problema do falso na obra do hiponense. Não à toa, a definição
de verdade dada por Agostinho — “aquilo que é” — coloca o próprio santo “em
apuros”, pois, segundo contrapõe a Razão, “nada será falso, porque aquilo que é, é
verdadeiro” (Ibid., 2, 5, 8). Como resolver tal problema, uma vez que seria loucura
negar o falso e nossas situações de engano?
Sob a liderança da Razão, a investigação toma um atalho diverso e passa a
ter como foco a natureza própria da falsidade. Nesse âmbito, basta que consultemos
nossos sentidos para que emerja o fato de a relação entre e o verdadeiro e o falso não se
basear apenas na diferenciação, mas, ao contrário, num radical de semelhança que induz
62
ao erro. Não confundimos um homem com um cavalo pois não há qualquer elemento de
aproximação passível de fazer com que tomemos um pelo outro. Ao mesmo tempo,
dizemos falso o homem com quem sonhamos exatamente por se assemelhar ao
verdadeiro. “Igualmente”, prossegue a discussão, “dizemos que é falsa a árvore pintada,
falso o rosto que se reflete no espelho, falso o movimento das torres de faróis para os
navegantes e falsa a ruptura do remo imerso na água, não por outra coisa senão por sua
semelhança com a verdade [nisi quod verisimilia sunt]” (Ibid., 2, 6, 10). A conclusão é
grave: “a semelhança das coisas […] é a mãe da falsidade [Similitudo igitur rerum […]
mater est falsitatis]” (Ibid., id.), através da qual tende-se ao verdadeiro sem de fato
“realizá-lo”. A diferença caracteriza o erro, enquanto aquilo que existe de semelhante
realiza uma cópia.
A natureza do falso como algo que se caracteriza pela simultaneidade da
semelhança e da diferença é cruel para um jovem pensador como Agostinho, que se vê
incapaz de definir através de qual desses elementos — a semelhança ou a
dessemelhança — definimos de fato o falso.
A fim de acalmar seu interlocutor, a Razão mais uma vez toma as rédeas e
estabelece uma importante distinção entre os elementos falsos — especialmente
importante para o estudioso que, através das definições agostinianas, procura definir
concepções aplicáveis à Teoria Literária: “Vejo que, depois de analisar todas as coisas,
só resta dizer que é falso aquilo que se apresenta ser como sendo o que não é ou
inteiramente tende a ser e não o é [quod aut se fingit esse quod non est, aut omnino esse
tendit et non est].” (Ibid., 2, 9, 16) Entendamos a distinção.
Quando se coloca a falar do primeiro grupo, em cujos elementos falsos há
o fingere, Agostinho aborda aquilo que é fruto de uma ação de qualquer gênero, a qual,
por isso mesmo, “se realiza em parte pela razão e em parte pela natureza: pela razão nos
63
animais racionais, como no homem; pela natureza nos irracionais, como a raposa”
(Ibid., id.) No entanto, isso só vem a carregar um peso moral quando o bispo de Hipona
estabelece uma espécie de subdivisão no grupo daquilo que é falso por alguma
iniciativa. Tal é a nova distinção: dentro daquilo que fingit esse quod non est, se
encontram os elementos falazes (fallax), advindos de um appetitus fallendi, isto é, de
um desejo de levar alguém ao engano; e os elementos que realizam apenas uma ficção,
um falso, caracterizados pelo adjetivo latino mendax.
Crucial, aqui, é a continuação que Agostinho dá à nova divisão. Sob o
abarcamento da categoria não falaciosa, encontra-se, para o hiponense, “as
representações teatrais com mímicas, as comédias e muitos poemas”, os quais, “repletos
de ficções [mendaciorum]”, são criados “mais por razão de lazer do que por vontade de
enganar [delectandi potius quam fallendi volutante]” (Ibid., id.).
Em primeiro lugar, ainda que apenas por inferência, uma tal categorização
reafirma a produção desses “muito poemas” como um ato pensado de criação, uma
vontade que, diferenciada do impulso animal, é apenas humana — algo que, valendo-
nos do exemplo acima, a raposa não seria capaz de realizar. É o ser inteligente que joga,
que cria algo através da brincadeira de aproximação e afastamento da realidade.
O segundo ponto que se impõe não poderia ser mais positivo para os
poetas. Retirando do grupo falacioso a produção literária, Agostinho retira também
qualquer fundo moral da produção teatral e poética. Os que a realizam são apenas
“mentirosos” [mendaces], mas não podem ser acusados de levar o interlocutor ao
assentimento que desvirtua a alma, fazendo-a tomar o fictício pelo real. Agostinho,
assim, “retira o ônus da fabulação ao distinguir a motivação que está por trás dela (o
desejo de deleitar) da motivação por trás da falsidade (o desejo de enganar) e dos erros
causados pelo falho aparato sensorial” (BARISH, 1981, p. 55). Talvez, aqui, já se
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encontrem semeadas as distinções morais que levam Agostinho a declarar, nas
Confessiones, a diferença entre as fábulas recreativas e as fábulas que matam a alma, em
especial aquelas dos maniqueus, na qual tanto acreditara quando jovem e pela qual se
afastava da verdadeira religião:
Antes era eu que estava afastado de ti, excluído até das bolotas que distribuía aos porcos. As fábulas dos mestres e poetas são bem melhores que aquelas mentiras! Os versos, a poesia, o voo de Medeia são realmente mais úteis que os cinco elementos do mundo que se transformam de vários modos em cinco antros de trevas que, além de não existirem, matam a quem neles acredita. Dos versos e da poesia seria possível extrair alimento. Eu podia declamar o voo de Medeia, mas não o aceitava como autêntico; podia ouvir sua declamação, mas não acreditava nele. (conf. 3, 6, 11)
A passagem acima é por demais elucidativa: a alma que reconhece o jogo,
que não toma a ficcionalidade como um dado real, deixando de se prender a ilusões, se
afasta do erro e pode se colocar no caminho de aproximação a Deus.
Curiosamente, ao descrever o segundo grupo de elementos falsos — os
desligados da intencionalidade —, Agostinho elenca as artes pictóricas, retirando delas
o caráter recreativo das ficções literárias. Deixemos de lado uma possível investigação
sobre tais razões e sobre os mais diversos exemplos do falso que tende a ser e não o é —
entre tantos outros, as sombras, as imagens espelhadas, os sonhos... Aqui, nos é de
especial importância o aspecto apresentado pelo hiponense logo após a distinção geral, e
que diz respeito tanto ao que “finge” quanto ao que “tende”.
Ao mesmo tempo em que “a vontade do falso” constitui uma das
características mais basilares da criação literária, há nela, como em todas as outras ações
do fingere, a impossibilidade do tornar-se verdadeiro. O falso literário, tal como as
imagens naturais e as representações figurativas, são verdadeiras exatamente por não o
serem. “Pois”, diz a Razão, “como esse [ator], que citei acima, seria um verdadeiro ator
trágico se não quisesse ser falso Heitor, falsa Andrômaca, falso Hércules e inúmeros
65
outros personagens?” Ou então, prossegue, como “um quadro de cavalo seria verdadeira
pintura se não fosse cavalo falso? Como a imagem de um homem refletida no espelho
seria verdadeira imagem se não fosse falso homem?” (Ibid., 2, 10, 18) A ficção,
portanto, é verdadeira ficção porque, em outro nível, é um elemento falso, que impõe
uma ordem nova, e criada, à realidade. É por isso que Agostinho pode definir sua “ratio
bifrons: a dupla estrutura da obra de arte, que é verdadeira em si, mas que remete a algo
que é 'falso' em sua significação e se torna falsum na interpretação” (BETTETINI, op.
cit., p. 41). Não surpreende que o bispo de Hipona fale, ao se ver diante das
manifestações literárias e teatrais, de uma “espécie de necessidade” do falso, que acaba
por distinguir a arte do relato daquilo que é verdadeiro.
Por essa razão, a condição da obra é inteiramente contraditória. Nos
termos estabelecidos pela busca filosófica de Agostinho, seria impossível findar uma
busca que deseja a “verdade como grande bem” em algo que, como aponta a Razão, não
compõe a própria Verdade, “da qual toma seu nome tudo o que de algum modo é
verdadeiro” (Ibid., id.). Como pouco antes dizia Agostinho:
Pois para sermos verdadeiros em nossa atitude, não devemos nos confundir nem assimilar-nos à atitude de outros e, por isso mesmo, sendo falsos, como atores representando, ou como as imagens refletindo nos espelhos, ou como as novilhas de bronze de Mirão, mas devemos buscar aquela verdade que não seja de dupla face, contraditória consigo mesma, sendo verdadeira por um lado e, por outro, falsa. (Ibid., id., grifo nosso)
Muito difícil é não recordar, nesse momento, das palavras de Sócrates
condenando, na República platônica, a atuação do poeta: “Como em uma cidade onde o
mal pode ter autoridade e o bem é colocado de lado, o poeta imitativo instaura uma má
constituição […] — ele é um fazedor de imagens e está muito distante da verdade.” (X,
605b)
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É relevante também lembrar que, embora simultaneamente falso e
verdadeiro, o objeto que tende/finge ser o que não é não reúne esses dois adjetivos num
mesmo nível. Um objeto ficcional será verdadeiro por ser falso, como determinado por
Agostinho logo no início do diálogo; porém, será ele falso por se revestir de uma
aparência outra, que busca esconder a diferenciação entre si própria e seu modelo. A
palavra que o bispo de Hipona utiliza ao falar desses tipos de seres é modus, a fim de
indicar uma condição, a qual se dá sempre em contraposição a um modelo.
Surge, contudo, um pequeno obstáculo para análise da ficção literária (e
talvez para a análise de algumas representações pitorescas) quando tomamos o elemento
falso como algo dependente de um “original” que sustenta sua condição mimética.
Agostinho toma consciência do problema e o verbaliza da seguinte forma: “Pois quando
se diz que Medeia voou em serpentes aladas atreladas, não há como isto imite o
verdadeiro porque, por não existir, não pode imitar algo uma coisa totalmente
inexistente.” (Ibid., 2, 15, 29)
Certamente, e com alguma prontidão, chamamos falsa a afirmação à qual
se refere o hiponense, certos da impossibilidade da existência do réptil alado. É válida,
portanto, a questão: como poderia existir, em casos como esse, a verossimilhança
crucial ao falso, tal como caracterizado por Agostinho até aqui?
A solução que encontra a Razão é extremamente qualificativa da produção
literária. “Há algo”, diz ela, “que se possa dizer falso. […] A sentença enunciada no
próprio verso” (Ibid., id.). Tal conclusão permite que seja repensado tudo o que é
produzido a partir do esforço imaginativo do sujeito. Sem um parâmetro correlativo
imediato, a narrativa inventada não gera
um enunciado falso, mas sim um conteúdo. De fato, mediante a enunciação, um significado falso “imita” um enunciado verdadeiro, isto é, reproduz as características exteriores do que é verdadeiro, ao qual se assimila, vindo à tona como se fosse transmissor da verdade. (CERESOLA, op. cit., p. 53)
67
A constituição da obra literária “inventada” é tal, que o enunciado se
impõe verdadeiro sem abarcar um significado, isto é, uma referencialidade real. Em vez
disso, ela é falsa e mentirosa por natureza, “dissimulando-a [a não realidade] sob as
vestes que normalmente pertencem ao real, como a coerência formal e a causalidade
lógica” (Ibid., p. 55).
Talvez a série de considerações sobre a origem e a natureza do falso pareça
um pouco deslocada do (ambicioso) objetivo estabelecido pelos interlocutores no início
dos Soliloquia. No entanto, tal impressão não pode ser senão incorreta diante da
pergunta proposta no início do último capítulo do diálogo, fundamental para a busca do
verdadeiro fim da filosofia. Eis o que diz Agostinho:
Seja como dizes e de boa vontade sigo os teus conselhos. Mas eu gostaria que, antes de terminar este volume, ao menos me esclarecesses qual a diferença entre a verdadeira figura, que se concebe pela inteligência, e aquela que o pensamento simula pela imaginação, que em grego se diz fantasia ou fantasma [sive phantasia sive phantasma dicitur]. (sol. 2, 20, 34)
Ao se estabelecer uma investigação que se põe a desvendar a natureza do
falso, torna-se imperativo questionar se, e como, o homem pode conhecer algo
verdadeiro diretamente. É sob esses termos que o problema do falso, e da ficção, precisa
ser colocado, ao menos quando pensamos na relação do homem com o fim último de
uma busca que o plenifica.
Infelizmente, nos Soliloquia, a apuração sobre o conhecimento direto, não
sensitivo, não chega a se desenvolver como o proposto. À prometida continuação do
diálogo se sobrepõem os compromissos do recém-convertido Agostinho, que se coloca a
caminho de Milão e, com sua mãe, chega a Óstia.
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No entanto, são inúmeros os exemplos posteriores que nos indicam as
possíveis respostas que o bispo de Hipona daria à sua pergunta. Nos próprios Soliloquia
já vem indicado aquilo que, como vimos, ele com exaustão viria a explorar: há, fora de
todas as distorções cognitivas impostas pelo conhecimento sensitivo, mnemônico e
imaginativo, os princípios que iluminam as artes liberais e que são conhecidos em si.
Não há como não lembrar do próprio processo de ascensão a Deus explorado no De
libero arbitrio, e visto aqui no capítulo primeiro, quando, nos Soliloquia, a Razão
afirma:
Então, o pensamento imagina e apresenta aos olhos quadrados de diferentes tamanhos, mas a mente interior, que quer perceber a verdade, deve voltar-se, se possível, àquele princípio segundo o qual ela julga que todos aqueles quadrados são simplesmente quadrados. (Ibid., 2, 20, 35)
A escalada agostiniana é, também aqui, aquela mesma escalada nos
degraus do saber, cujo percurso, como tantas outras vezes, tem no horizonte do
conhecimento matemático o seu foco. É nele que a ordem racional se mostra “um
perfeito tipo de saber com sua evidência, sua certeza e sua conexão com um mundo
inteligível puro”, o qual “tanto atrai o santo, fugitivo do cárcere dos sentidos. A
imaginação multiplica as formas espaciais, mas a inteligência interior que busca a
verdade deve se voltar à forma imutável, conforme a qual julga todas as coisas”. Nelas
“não existe a aparência de falsidade, nem pode se misturar a dúvida” (CAPÁNAGA,
1946b, p. 471-472, grifo nosso).
Resta-nos, então, saber se é possível que um trabalho literário auxilie o
homem a atingir um conhecimento de tal gênero.
69
4. Da mentira à retificação de Virgílio
4.1. De mendacio: a mentira, a interioridade e a posição da ficção
Se retomamos o pensamento desenvolvido no De magistro acerca da
linguagem e da impossibilidade de existir uma pedagogia humana eficaz para o
ensinamento das realidades inteligíveis, não poderá nos escapar à atenção que há, sob
todo o raciocínio do bispo de Hipona, a recorrente distinção entre as formas de
percepção sensorial e inteligível.
Com ela em mente, e no contexto da análise linguística, podemos imaginar
então uma locução [locutio] cujo conteúdo se refere a determinado elemento do mundo
sensível: se não o conhecemos, nos restará sempre a possibilidade de apreendê-lo em
sua presença, pelo conhecimento direto. Mas, se tal presença for impossível,
empreendemos um ato de fé e acreditamos ou não em nosso interlocutor. Esse mesmo
ato de fé pode ter lugar quando se colocam em foco objetos e relatos não apreendidos
por contato imediato, mas num momento específico do passado, quando então nos
valemos das imagens psíquicas conservadas na memória.
Ao falar sobre a mentira, Agostinho se move exatamente neste campo do
ato de crer. Ciente da incapacidade da palavra de expressar com clareza o que se passa
em nossa alma [Cf. mag. 13], o hiponense utiliza o raciocínio acima para aproximar a
palavra e o discurso à interioridade do homem, que através de artifícios é capaz de
ocultar e manipular aquilo que traz dentro de si para o receptor a quem somente resta a
fé, na incapacidade de apreender diretamente aquilo a que os signos se refere.
70
Num tal nível, a comunicação, dada entre dois seres pensantes, coloca
sempre em evidência a própria inteligência: tanto por parte do receptor quanto por parte
do emissor, é preciso que haja um julgamento. O primeiro, incapaz de assimilar a
realidade psíquica ou a intencionalidade de seu interlocutor, deve se definir pelo
assentimento ou pela negação, pela dúvida (suspendendo temporariamente a certeza) ou
pela opinião, tomando a matéria como provável. O segundo, por sua vez, deve “definir a
própria posição a respeito do dado experimental, de modo a transmitir a realidade
interior, a situação subjetiva, e não a realidade externa objetiva” (CERESOLA, 2001, p.
132). A emissão de signos, portanto, sejam eles verbais ou não verbais,
sempre se destinam a estabelecer uma relação entre duas inteligências, e esta relação é do tipo cognitivo: com relação à realidade, a solicitação linguística provoca, no interlocutor, o assentimento ou a discórdia, a partir do fato de ele crer, opinar ou duvidar das palavras recebidas. A fé, a opinião e a dúvida não se relacionam apenas às palavras (ou a qualquer outro signo), mas têm como endereço, contemporaneamente, a fonte que as expressou. (Ibid., id.)
É em particular nesse âmbito da interioridade, das relações subjetivas, que
Agostinho coloca as reflexões apresentadas nos tratados em que o problema da mentira
é trabalhado de maneira mais direta e formam o cerne de seu pensamento. De fato, as
próprias considerações iniciais sobre ela, no mais famoso de seus trabalhos sobre o
assunto, indicam como a questão deve ser pensada não apenas no nível da linguagem:
Portanto, mente quem pensa uma coisa e afirma com as palavras, ou qualquer outro meio de expressão, algo de diverso. Por isso se diz que quem mente possui um coração duplo [duplex cor], ou seja, um duplo pensamento [duplex cogitatio]: tem em mente aquilo que sabe ou tem como verdadeiro e que não diz, e também aquilo que sabe e tem como falso, o qual diz no lugar do primeiro. Daí deriva que é possível dizer o falso sem mentir, caso se pense que seja tal como se diz, ainda que assim não ocorra; e que é possível dizer o verdadeiro mentindo, caso se pense que seja isso falso e o afirme ao lugar do verdadeiro, embora na realidade seja assim como se afirma. É, portanto, a partir da intenção da alma, e não da verdade ou falsidade das coisas em si, que se deve julgar se alguém mente ou não mente. (mend. 3)
71
Sobre a dificuldade de distinguir e julgar a mentira, o próprio santo
afirmou ser a questão “extraordinariamente obscura”, ao mesmo tempo em que, por sua
abrangência, atinge a todos. Não à toa, no pequeno tratado se veem condensadas
considerações que perpassam não somente o âmbito teológico ou filosófico, mas
também exegético e (com Agostinho extremamente engajado em suas atribuições
práticas) pastoral.
Com a citação reproduzida acima, Agostinho estabelece no De mendacio
uma definição direta para a mentira, a qual costuma ser relembrada através das imagens
do coração duplo e do duplo pensamento, grifadas com o original latino. Porém, é de
especial importância o estabelecimento dos parâmetros que retiram a mentira da
objetividade dos signos e a posicionam no espaço existente entre o coração e a boca.
Pois, ainda que seja verdadeiro aquilo que é expresso, será mentiroso aquele que o
expressa sem trazê-lo como verdade na alma. Mentir nada mais é do que dizer o
contrário do que se tem como verdadeiro, independente de ser correta a matéria
proferida. É, na verdade, ocultar ou transformar o próprio exame do real.
Se não toma muito espaço a breve definição do mentiroso, o mesmo não
pode ser dito das nuances que as situações cotidianas impõem para aquele que deseja
julgar a mentira. Ainda no início do tratado, Agostinho demonstra a dificuldade através
da seguinte hipótese: “E se alguém dissesse algo falso, e que tem como falso, porque
acredita não ter crédito, de modo a afastar de algo, com esta falsa fé, o interlocutor
[…]?” E ainda no caso contrário, onde alguém dissesse “o verdadeiro porque percebe
que não ganhará crédito”, dizendo-o assim para enganar. Partindo para situações
práticas, Agostinho propõe o seguinte exemplo:
[…] sabe ele que uma estrada está cheia de ladrões: teme que a ela se dirija um homem com cuja salvação se importa e que sabe que não lhe dará crédito. A ele dirá que naquela estrada não existem ladrões, a fim de que para lá não siga, acreditando haver ladrões […]. O segundo, ao contrário, sabendo ou
72
julgando verdadeiro o que diz, o faz com a intenção de enganar. Como se a um homem que nele não crê dissesse que existem ladrões naquela estrada, sabendo que eles de fato nela existem, para que assim aquele a que se diz se dirija para lá […]. (Ibid., 4)
A definição de quem de fato mente e de quem de fato peca, neste caso,
parece não importar tanto a Agostinho, que, embora indique todas as possibilidades de
encarar a questão, não oferece qualquer veredito, afirmando apenas que “não deve temer
nenhuma das definições precedentes […] o espírito bem consciente de afirmar aquilo
que sabe ser verdadeiro, ou que assim o tem ou crê, sem desejar que outro creia senão
naquilo que afirma”. No entanto, não nos deve escapar o fato de que, nos dois casos —
no primeiro, existindo uma duplex cogitatio sem uma fallendi cupiditas; no segundo,
uma voluntas fallendi, destituída do cor duplex —, a mentira precisa ser vista como
fruto de uma intencionalidade que estabelece uma alternativa àquilo que é verdadeiro,
buscando o assentimento de um interlocutor ao colocá-lo diante de uma realidade
linguística vazia, distante da consistência da verdade. Estão aí — nitidamente, se
levarmos em consideração as reflexões dos Soliloquia — os limites que abarcam a
mentira e a ficção.
É particularmente relevante, num tal contexto, o afastamento das
brincadeiras e jogos da análise “séria” que Agostinho pretende empreender. Sabemos,
diante de uma ação jocosa, que há um “pensamento duplo” em operação. Assentimos à
falsidade expressa, mas de uma maneira por demais peculiar: temos consciência de que
as coisas são diversas daquilo que os signos em questão exprimem, e assim nos vemos
numa posição de proximidade e distância do real. Talvez esteja aí, no “sim” ao jogo, a
verdadeira fonte de prazer que sentimos nas comédias, na poesia e nas encenações,
embora seja necessário reafirmar que aqueles que criam tais ilusões permanecem na
73
mentira: ainda que sem a falácia, é uma não realidade que propõem durante a
elaboração lúdica.
Por seu caráter fantasioso, então, o conteúdo ficcional não pode deixar de
ser considerado falso, pois é esse o estatuto que resta àquilo que não tem raízes no real.
A fabula pode não ser falaz por não visar o engano, mas é certamente algo produzido
com enunciados de conteúdo não verdadeiro.
É necessário, no entanto, como nos Soliloquia, atenuar o problema desse
gênero de ficção, contrastando-o com as mentiras que indubitavelmente tomamos como
danosas. Para isso, como Agostinho logo demonstra, de nada mais precisamos além da
lembrança de que os envolvidos numa brincadeira não sofrem qualquer prejuízo em
suas almas, exatamente porque estão distantes do engano, do afastamento da verdade.
Os sinais que envolvem o jogo, e que indicam que deve haver uma suspensão do
assentimento, são suficientes para corrigir a alma e recolocá-la longe do erro. Basta,
para que isso fique claro, nos voltarmos à nossa própria postura diante de uma obra
literária: o reconhecimento de seu caráter ficcional é o bastante para fazer com que não
encaremos seu conteúdo como uma reprodução fidedigna de um acontecimento real,
não manipulado por uma intencionalidade criativa.
É interessante que, nesse ponto, emerja também no pensamento do
hiponense o papel do receptor no processo de reconhecimento da ficcionalidade.
Também ele, ao lado de quem manipula e emite uma não realidade, precisa se envolver
com o que recebe num nível que ultrapassa o plano lógico da palavra. Vimos que, ao
expressar algo inexistente, a palavra não se mostra diferente daquela que indica algo
real. Dessa forma, a ação de contextualização empreendida pelo receptor pode exigir,
para o reconhecimento da ficção, vias não lógicas, como a identificação sensível de um
tom jocoso ou de outros elementos externos, das mais diversas naturezas.
74
Tomar parte na ficção, portanto, é de uma só vez reconhecer a falsidade e
mantê-la válida, colocando em suspensão a realidade para que o elemento inventado ou
modificado tome o seu lugar. É, como muito bem foi afirmado, uma verdadeira relação
de “aproximação e afastamento, de adesão e destaque, a qual diz respeito a tudo o que é
falso ou fingido” (CERESOLA, op. cit., p. 140). E é exatamente por essa dinâmica que,
a partir das declarações de Agostinho, se dá o prazer da ficção.
O bispo de Hipona parece saber, contudo, que um tal prazer não se limita
apenas ao homem que se vê diante de um espetáculo. Suas considerações, no De
mendacio, acerca das modalidades práticas da mentira — as quais inclusive geram uma
espécie de tipologia, classificada em ordem descrescente de gravidade —, contemplam
o caso daquele que se deleita na própria mentira:
E não se deve portanto aceitar as mentiras que não prejudicam ninguém, não oferecem vantagem a alguém e são danosas para os que mentem gratuitamente. Isto deve se referir aos mentirosos propriamente dito. Há, de fato, uma diferença entre quem mente e o mentiroso: quem mente também é quem mente contra a própria vontade, enquanto o mentiroso ama mentir e se diverte habitualmente dizendo mentiras. (mend. 11, 18)
Os detalhes desses dois “deleites do ficcional”, no entanto, não chegam a
ser abordados no tratado sobre a mentira. De qualquer forma, não deve fugir ao leitor
mais atento as considerações célebres que, nas Confessiones, Agostinho tece sobre a
arte teatral, e que certamente servem de suporte para a reflexão da relação prazerosa
obtida diante do fingimento:
Extasiavam-me os espetáculos teatrais, que espelhavam copiosamente
as minhas misérias e alimentavam a minha fogueira. Por que o homem procura no teatro o sofrimento, assistindo a
acontecimentos trágicos e tristes, cuja experiência não desejaria sofrer na vida real? No entanto, o espectador busca só o sofrimento dessas situações que, afinal, para ele constitui o seu prazer.
Que é isso senão deplorável loucura? Com efeito, quanto mais alguém se comove com tais cenas, tanto
menos imune se encontra das paixões apresentadas. (3, 2, 2)
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As afirmações angustiadas do bispo de Hipona não deixam de transparecer
a adesão intencional e a comunhão entre o espectador e o espetáculo. Extasiado, deixa-
se de lado, inclusive, a própria realidade. A relação é sensual; constitui, assim, uma
porta de entrada para as paixões que desvirtuam a alma.
No entanto, poderíamos questionar como se daria tal processo no contexto
literário propriamente dito, onde a ficção não se manifesta por uma ação cênica. A
resposta talvez encontremos nas mesmas Confessiones, quando o bispo de Hipona
procura contrapôr, angustiado, as fabulae dos maniqueus aos poemas que ele mesmo
entoava:
As fábulas dos mestres e poetas são bem melhores que aquelas mentiras! Os versos, a poesia, o vôo de Medéia são realmente mais úteis que os cinco elementos do mundo que se transformam de vários modos em cinco antros de trevas que, além de não existirem, matam a quem neles acredita. Dos versos e da poesia seria possível extrair alimento. Eu poderia declamar o vôo de Medéia, mas não o aceitava como autêntico; podia ouvir sua declamação, mas não acreditava nele. Mas — ai de mim! — acreditei neles. (Ibid., 3, 6, 11)
Diferentemente do relato sobre sua relação “passional” com o espetáculo
teatral, aqui Agostinho contrasta ao reconhecimento da verdade as fábulas dos
gramáticos e poetas. É relevante que, agora, diante deles, estejamos além do apenas
“tomar parte”; sua leitura não nos afasta da verdade, que é restabelecida após tal
contato. E não apenas isso: bem utilizada, e sempre longe do assentimento, essas
histórias podem ser edificantes. Não é o caso das falsidades maniqueias, as quais
arrastavam o jovem Agostinho às “profundezas do Inferno”, ao mesmo tempo em que
ele “atormentado pela sede da verdade, [...] te buscava, Deus meu [...]” (Ibid., id.). É
preciso, então, que o prazer literário tenha o suporte da verdade, a fim de que a alma não
se deixe levar pela falsidade ficcional.
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As afirmações do De mendacio, porém, são claras na hora de censurar o
proferimento de toda e qualquer mentira. Para isso, Agostinho analisa com detalhes
algumas passagens do Antigo Testamento, pela qual muitos reabilitam o mentiroso, e do
Novo Testamento, através do qual muitos outros impiedosamente o condenam. Conclui
o bispo:
Certamente, entre as vantagens as temporais, nenhuma pode ser considarada mais importante e mais preciosa do que a saúde e a vida corporal. Mas, se não devem vir adiante da verdade, aqueles que julgam conveniente mentir procuram em vão contrapôr um motivo pelo qual seja lícito mentir. (mend. 6, 9)
Agostinho sabe que sua situação é delicada, pois a condenação da mentira
parece condenar também algumas estratégias que as Escrituras empregam na hora de
fomentar o amor a Deus e a propagar os caminhos da vida reta. Como justificar as
obscuridades que parecem mentirosas e falsas? Pois, se ocultam a verdade, elas não
poderiam ser um meio digno da grandeza do Cristo.
No De mendacio, o autor justifica as aparentes mentiras afirmando serem
elas algo que deve ser encarado em sentido figurado. Não poderiam, assim, entrar na
categoria falaciosa que o bispo se põe a analisar:
[…] pois qualquer exemplo [do Antigo Testamento] pode ser visto em sentido figurado, embora referente a um fato verdadeiro; e tudo aquilo que se dá ou é dito em sentido figurado não é uma mentira. (Ibid., 5, 7)
O conceito de sentido figurado, que se encontra por trás do célèbre
processo de leitura alegórica, é, aqui, de crucial importância. Em especial no tratado
acima, o exame minucioso das passagens do Antigo Testamento tomam como certa a
existência de um tal sentido, mas não chegam, de fato, a indicar como poderia funcionar
seu tipo de técnica interpretativa. É em outra obra, de enorme influência para a história
77
da hermenêutica e da teoria literária, que esse mecanismo se revela com maior
detalhamento.
4.2. Os sentidos da alegoria
Sobre os fatores relevantes na exposição das Sagradas Escrituras,
Agostinho afirma, no De doctrina christiana, haver dois igualmente importantes: “[...] a
maneira de descobrir o que é para ser entendido e a maneira de expor com propriedade o
que foi entendido” (doc.chr. 1, 1, 1). Para o cumprimento desse duplo objetivo,
portanto, o bispo de Hipona julga necessário estabelecer as distinções que possam
fundamentar os estudos bíblicos de quem quer deseja descobrir, através deles, a
verdade.
Seu passo inicial é novamente o de diferenciar as coisas dos sinais, tal
como já fizera no De magistro. Com efeito, diz Agostinho, toda doutrina se reduz ao
ensino desses dois elementos, e sobre eles é realizada a seguinte distinção, principiada
pela definicão de coisa [res]:
Portanto, acabo de denominar coisas a tudo o que não está empregado para significar algum outro objeto, como, por exemplo, uma vara, uma pedra, um animal ou outro objeto análogo. Não me refiro, contudo, àquela vara da qual lemos que Moisés atirou às águas amargas para diluir sua amargura [Ex 15, 25]. Nem à pedra que Jacó pôs debaixo da cabeça, como almofada [Gn 28, 11]. Nem àquele cordeiro que Abraão imolou no lugar de seu filho [Gn 22,13]. Esses objetos, de fato, são coisas, mas nas circustâncias mencionadas tornaram-se ao mesmo tempo sinais de outras coisas. (Ibid., 1, 2, 2)
E arrematada com o esclarecimento do termo sinais [signa]:
78
Daí se deduz que denomino sinais a tudo o que se emprega para significar alguma coisa além de si mesmo. É porque todo sinal é ao mesmo tempo alguma coisa, visto que, se não fosse alguma coisa, não existiria. Mas, por outro lado, nem toda coisa é ao mesmo tempo sinal. (Ibid., id.)
O sinal, portanto, como novamente se lembra ao leitor, exercerá não
somente a impressão de si mesmo em nossos sentidos, mas também trará uma ideia
outra. Tal é o caso da pegada, que nos remete a um animal, ou da fumaça, que nos
indica o fogo que há sob si.
Há, no entanto, uma série de sinais que fogem à categoria dos dois
exemplos acima, ambos originados no mundo natural. São estes os sinais convencionais
[data signa], estabelecidos entre indivíduos para “manifestar — o quanto isso lhes é
possível — os movimentos de sua alma, tais sejam as sensações e os pensamentos”
(Ibid., 2, 2, 3). Obviamente, num tal grupo, os sinais verbais, se não ocupam a posição
de maior importância, ao menos guardam uma complexidade própria, e dessa forma se
transformam no principal objeto de análise do bispo de Hipona.
Empregadas unicamente para significar algo [Cf. Ibid., 1, 2, 2], as palavras
proferidas trazem tão somente a duração de suas sílabas. Para que fossem fixadas e não
se esvaíssem com a vibração produzidas no ar, portanto, Agostinho relembra que seus
signos foram instituídos “por meio das letras”, e assim “as palavras manifestam-se aos
olhos não por elas próprias, mas pelos sinais que lhes são próprios” (Ibid., 2, 4, 5).
Ao estudioso das Sagradas Escrituras, ter em mente essa condição
aparentemente óbvia das palavras é crucial para a verdadeira interpretação bíblica, a
qual traz sempre como fim a Verdade. Afinal, o que seriam as Escrituras senão os sinais
do “movimento da alma” daqueles que as redigiram — movimento que, por sua vez, nos
leva a conhecer a vontade de Deus revelada na História?
79
O problema da ambiguididade e da obscuridade da comunicação retorna
aqui porque é muito fácil tomar um sentido por outro na leitura dos textos sagrados. E
uma dificuldade tal ainda se agrava naquelas ocasiões em que sentido algum parece
existir. A fé agostiniana atribui obscuridades assim a uma disposição particular da
Providência divina, que auxilia o homem na luta contra o orgulho e o tédio que se
originam da facilidade dos trabalhos. Além disso, é para ele também muito mais
gratificante e produtivo quando o significado final se estabelece em meio a veredas mais
“penosas”. No entanto, dificilmente julgamos tão produtivas as considerações de
Agostinho sobre o tema quanto nas ocasiões em que o santo se coloca a dar exemplos.
Recorrendo ao livro do Cântico dos Cânticos, o hiponense se detém sobre
o seguinte trecho, retirado do capítulo 4, 2: “Teus dentes… um rebanho tosquiado
subindo após o banho, cada ovelha com seus [dois, na tradução de Agostinho] gêmeos,
nenhuma delas sem cria.” De difícil interpretação, a passagem, como nos é prontamente
indicado, procura nos mostrar como há
homens santos e perfeitos, graças a cuja vida e costumes a Igreja de Cristo retira das superstições os que vêm a ela e os incorpora a si, caso imitem os bons. Esses justos, como fiéis e verdadeiros servos de Deus, ao depositar o fardo do século, aproximam-se do banho sagrado do batismo e, erguendo-se de lá, sob a ação fecundante do Espírito Santo, produzem o fruto do duplo amor — o de Deus e o do próximo. (Ibid., 2, 6, 8)
Essa forma associativa, nos diz Agostinho, se mostra mais suavius do que
uma que expressasse seu sentido de maneira direta, sem apresentar qualquer elemento
comparativo. É difícil, continua, explicar o porquê do maior prazer obtido a partir desse
movimento; ainda assim, o exemplo é bastante conveniente para sublinhar a maneira
como funciona aquilo que ficou consagrado sob o nome de allegoria.
À primeira vista, a interpretação agostiniana parece não ter conexão com
as imagens evocadas pelos vocábulos. Assim, diante da explicação, a configuração das
80
imagens aparentemente demanda “algum padrão abstrato de significado, o qual […] se
encontra completamente por trás das imagens ordenadas” (YOUNG, 1969, p. 293). De
fato, é difícil imaginar “homens santos como os dentes de uma bela mulher”, ainda mais
quando a vemos “arrancando com os dentes o mal dos homens, mastigando-o para que
se suavize e, em seguida, digerindo-o”. E, para aumentar nosso choque, “os dentes se
tornam ovelhas que são tosqueadas, banhadas e, por fim, abençoadas com gêmeos”
(Ibid., id.).
O interessante, aqui, é notar como as palavras, sendo sinais, não são
“preenchidas” pelo seu significado, mas, ao contrário, servem apenas como um caminho
que nos guia até ele, o qual, enfim, é prontamente descartado como supérfluo.
Para o estudante das Escrituras, o grande obstáculo se torna o de distinguir
o que deve ser encarado como signo próprio daquilo que deve ser encarado como signo
figurado ou metafórico. De fato, nos diz Agostinho, é essa a grande causa da
incompreensão e dos equívocos que se espalham quando desejamos descobrir a verdade
oculta por trás das expressões sagradas. É como, exemplifica ao abordar os sentidos
próprios, naquelas ocasiões em que pegamos a palavra latina ox e lembramos de fato do
animal que ela designa, conhecido em português como boi; ao contrário, quando nos
vemos diante da expressão figurada, tomamos o boi como o bicho que “se costuma
chamar por esse nome e, além disso, entenderemos que se alude ao pregador do
evangelho, conforme o deu a entender a Escritura na interpretação do apóstolo, que
disse: ‘Não amordaçarás o boi que tritura o grão.’” (doc.chr 2, 9, 15)
Torna-se logo claro que a grande dificuldade para esse tipo de estudo é a
interpretação das expressões figuradas, e, ciente disso, o bispo de Hipona não deixa de
definir uma série de fatores que ajudam o leitor a compreender melhor o texto que se lhe
está adiante. É nesse momento que o Agostinho expressa, por exemplo, como é
81
importante que conheçamos a natureza das coisas, em especial dos animais, pedras e
plantas, para podermos entender por que devemos ser prudentes como a serpente [Cf.
Mt 10, 16], a qual, para “preservar a cabeça, expõe seu corpo todo a que as espancam”
(Ibid., 2, 17, 24). A forma como o autor elenca as interpretações possíveis é por demais
esclarecedora:
Assim, é fato notório que a serpente, para preservar a cabeça, expõe
seu corpo todo aos que a espancam. […] Isto é, devemos saber apresentar nosso corpo aos que nos perseguem, de preferência a expor nossa cabeça que é Cristo. Assim, não deixar morrer em nós a fé cristã, renegando a Deus, ao poupar o nosso corpo.
Sabe-se ainda, a propósito da serpente, que por instinto penetra em passagens estreitas da caverna para aí despojar-se da antiga pele e receber forças novas. Quanto essa transformação nos incita a imitar sua astúcia, a nos despojar do homem velho e nos revestir do novo, conforme a palavra do Apóstolo! Despojar-nos assim através da via estreita, conforme a palavra do Senhor: “Entrai pela porta estreita” (Mt 7, 13).
São vários, ainda, os exemplos, e todos parecem tocar pontos de crucial
dificuldade interpretativa, como quando nos vemos incapazes de decifrar a simbologia
numérica do Antigo Testamento, completamente metafórica, ou as expressões que
fazem referência a noções musicais.
O problema, porém, que se impõe a quem deseja compreender e mapear a
possível influência agostiniana sobre o pensamento literário não se encontra
propriamente na identificação do que deve ser encarado como sentido figurado, e sim na
adaptação das concepções de signo — e da própria exegese — à realidade da ficção não
bíblica.
A questão parece se agravar ainda mais quando, na própria De doctrina
christiana, o bispo de Hipona estabelece, dentro das instituições estabelecidas pelos
homens, as categorias de úteis ou supérfluas. Ao mesmo tempo em que têm validade
convenções como as vestimentas e os signos, as moedas e as noções de peso e medida,
as obras artísticas ganham a categoria da superficialidade:
82
Quanto às pinturas, às estátuas e outras obras do gênero, sobretudo
quando produzidas por hábeis artistas, ninguém se engana ao reconhecer a semelhança com o objeto reproduzido. Contudo, todas essas instituições humanas são supérfluas, a não ser que um interesse se prenda a elas, pela finalidade, pelo motivo, lugar ou tempo ou ainda pela autoridade de quem as mandou fazer.
De igual modo, em relação às mil fábulas falsas e de ficção com cujas mentiras os homens se deleitam, elas também são instituições humanas. Na verdade, nada se há de julgar mais próprio à natureza do homem do que essas falsidades. (2, 26, 39)
O problema aqui, portanto, parece não ser exatamente o da eficácia dos
signos nos trabalhos que não possuem matizes religiosas, mas o da possibilidade de as
obras desse gênero contribuírem efetivamente para se chegar à Verdade do cristianismo.
Sabemos, hoje, o quão controverso era o uso de fontes seculares na
educação cristã durante o rápido crescimento das primeiras comunidades. Cipriano e
Tertuliano são exemplos daqueles que se mostravam contrários ao estudo da filosofia,
da retórica e da literatura pagã, ao passo que Clemente de Alexandria parecia adotar
posições mais moderadas, julgando útil o estudo das doutrinas que partilhassem do
ensinamento cristão sem achar necessário, porém, que se recorresse à eloquência e as
artes seculares. Gregório de Nissa e Orígenes, por sua vez, se mostraram mais abertos e
abraçaram o platonismo, ajudando a desenvolver o cristianismo que Agostinho
encontraria em santo Ambrósio.
Em meio a essa completa série de divergências, a posição do bispo de
Hipona nunca se mostrou suficientemente clara: “Em resposta ao banimento de toda e
qualquer literatura secular, Jerônimo e Agostinho partilhavam uma ambivalência,
alternando entre a concordância e a objeção, quando o acusavam de ser uma restrição
imprudente.” (SWEARINGEN, 1991, p. 192) De fato, os pontos restritivos apontados
pelo hiponense são frequentemente lembrados — a atribuição do sensualismo ao teatro
e às histórias lidas na meninice, a acusação da mímese que afasta o receptor da verdade
etc.; contudo, pouco se diz sobre os pontos de apoio que poderiam causar, se não o
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restabelecimento completo da ficção como fator importante à busca da beatitude, o
resgate de uma utilidade que não negativizaria as produções literárias pagãs.
Para tanto, precisamos ter em mente que, embora sejam sinal que remete à
Palavra, as Sagradas Escrituras não podem ser a única forma de conhecimento das
verdades que elas mesmas trazem. Agostinho sabe, e muitas vezes afirma, que,
independente de onde a verdade se manifeste, ela está em Deus e pertence à sua Igreja.
Na própria De doctrina christiana ele diz: “Bem ao contrário, todo bom e verdadeiro
cristão há de saber que a Verdade, em qualquer parte onde se encontre, é propriedade do
Senhor.” (2, 19, 28) Se assim não fosse, por exemplo, deveríamos abandonar a Justiça e
a Virtude por terem os pagãos edificado templos a elas.
É preciso, dessa maneira, abrandar as acusações que muitos teóricos fazem
ao bispo de Hipona, sob as alegações de que não existiria qualquer espaço para a ficção
em sua doutrina. Isso só pode ser parcialmente verdade, e apenas se tomamos como
receptor alguém que não tivera qualquer contato com a verdade atualizada pelos textos
sagrados. As restrições impostas à arte ficcional são claras, assim como as atribuições
de superficialidade que lhe são dadas — e isso talvez se mostre extremamente
justificável diante da avidez que Agostinho apresenta em sua incessante busca pela
Verdade. Porém, na obra de maior expressão do hiponense, surge logo ao leitor mais
atento o exemplo de como é possível utilizar a ficção secular que “desenvolve, antecipa
ou representa — de qualquer maneira — as verdades encontradas nas Escrituras”
(SWEARINGEN, op. cit., p. 199).
4.3. Agostinho, um novo Enéias: corrigindo Virgílio
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Não é preciso muita pesquisa para que se torne clara a impossibilidade de
se superestimar a posição de Virgílio na educação romana dos séculos IV e V. Se já
encontramos na Saturnalia de Macróbio as indicações de que o poeta alcançara extrema
fama e autoridade, os pesquisadores modernos parecem ainda mais corroborar com tal
proposição.
Em Agostinho, a posição educacional da Eneida é manifesta. Descrevendo
sua vida escolar no primeiro livro das Confessiones, o bispo relembra, em tom negativo,
de quando precisava parafrasear trechos do épico, exercício pelo qual, ao transformar
em prosa uma longa declaração de Dido, veio a ser premiado.
A atmosfera de negatividade que Agostinho coloca ao redor do poeta não
tem fim, como já vimos, no contexto de sua educação; ela se expande também ao efeito
de autoesquecimento produzido pelo drama da amante abandonada de Eneias [Cf. conf.
1, 13] e, indiretamente, na comparação das ciladas ficcionais às armadilhas das
imaginações maniqueias. Há, porém, mais.
Em sua Civitate Dei, o problema da figura virgiliana se amplia para
abarcar ainda o âmbito político e social. Diz Agostinho:
[…] Não era a estátua que velava pelos homens, mas os homens que
velavam pela estátua. E o culto público punha a pátria e os cidadãos sob a guarda dessa deusa, impotente para guardar seus próprios guardas!
Eis, por conseguinte, a que deuses os romanos se felicitavam de confiar a tutela de Roma. Erro digno de imensa compaixão. E insurgem-se contra nós, quando assim falamos de suas divindades, e não se insurgem contra seus poetas. Longe disso, pagam para aprendê-los; honras e salário público a seus olhos não passam de justa recompensa de tais professores. Pois bem, o grande poeta Virgílio, entregue às mãos da infância por ser o mais excelente e sábio, a fim de as crianças, imbuídas em sua leitura, não a esquecerem com facilidade, […] mostra-nos Juno, inimigo dos troianos, sublevando contra eles Éolo, rei das tempestades […]. É, pois, a penates vencidos que a prudência deveria recomendar a cidade de Roma, a fim de assegurar-lhe a vitória? (1, 2; 1, 3)
85
Embora muito bem demarcados, os problemas que a criação poética,
incorporada pela opera magna do Império, impõe à alma não devem vir, como
frequentemente se coloca, afastados das possibilidades que se abrem quando Agostinho
afirma que “[dos] versos e da poesia seria possível extrair alimento”. No entanto, mais
do que as esparsas afirmações que reiteram essa posição, é preciso antes tomar o
Agostinho das Confessiones — tal qual já anunciado no De ordine, e posteriormente
consolidado por completo na Civitate Dei — como exemplo da maneira de estabelecer a
transformação de uma irrealidade literária em crescimento espiritual. E para isso sequer
é necessário ir tão longe na leitura de seu trabalho mais conhecido.
Carol Ramage aponta o paralelismo entre Agostinho e os eventos da
Eneida como já existentes no início da obra agostiniana, quando o bispo de Hipona
afirma estar o homem peregrinando inquieto, em busca do repouso de seu coração em
Deus [Cf. conf. 1, 1]. A relação com o herói do épico romano vem assim expressa:
O repetido verbo circumferens é demarcadamente virgiliano. Virgílio se vale constantemente de circum, […] como uma das formas de ampliar a concepção da viagem de Enéias […]. Enéias é como o homo ferens. Ele carrega seu pai e os “deuses conquistados” de Tróia em suas costas. De maneira menos literal, ele carrega seu filho, assim como o miserabile vulgus de Tróia, o futuro de Roma. Para o homem cristão, o objeto da circumferens é o Pecado Original e sua consequência, a morte. De semelhante peso é o conhecimento de que o homem deve se humilhar, como a imagem artística de Enéias, caso deseje ver seu Criador. (1970, p. 55)
Mais ainda, diz Ramage, se encontra quando cotejamos as imagens
marítimas dos livros I e III da Eneida com o conjunto de imagens evocadas por
Agostinho. É preciso, como se mostra aos olhos do leitor atento, ter em mente que o
ambiente construído por Virgílio tem imagens ligadas a um contexto politico-social, ao
contrário de Agostinho, que transforma a imagística virgiliana em descritores de sua
condição; porém, o cotejo dificilmente poderia negligenciar o débito do bispo de
Hipona, que
86
fala do fluctus temptatiorum, e também da forma como “[amor e luxúria] ardiam [confusamente] em mim, arrastando minha fraca juventude pelos despenhadeiros das paixõs, e a submergiam num abismo de vícios” (11, 2). Noutra parte, ele escreve exaestuarent fluctus aetatis mea (11, 2). Em determinado momento, se dirige ao flumen moris humani, questionando o quão mais se jogariam — o verbo é volvere — os filhos de Eva no mare magnum et formidulosum que representa uma vida desordenada pelas paixões. A qualidade altamente retórica dessa passagem em particular, as imagens do rio e o uso do volvere são por demais alusivas ao famoso discurso do terque quaterque beati de Enéias, que é concluído com: Simois correpta sub undis scuta virum galeasque et fortia corpora volvit! (Ibid., p. 56)
O mesmo débito parece existir na apropriação agostiniana das situações
onde desempenham importante função as mulheres que demarcaram episódios
relevantes à narrativa de sua conversão. Assim como Enéias, que precisa deixar para
trás as mulheres a fim de cumprir a missão da qual está incumbido — misturando duas
das expressões que T. S. Eliot identificou como fundamentais para a aceitação da
Eneida pelo cristianismo: pietas e fatum [Cf. ELIOT, 1969] —, Agostinho se vê diante
da necessidade de abandonar sua concubina de juventude ao enviá-la de volta à Àfrica.
É no momento da descrição de sua dor e inequietação que lembramos da mesma dor e
inquietação que o herói virgiliano sente nas situações análogas:
Retornamos assim aos suspiros e gemidos, e voltamos a percorrer os
largos e trilhados caminhos do século, porque muitos eram os nossos planos, mas o teu plano permanece eternamente. De fato, rias de nossas resoluções e preparavas as tuas, aguardando o momento oportuno para dar-nos o alimento e abrires a mão para saciar-nos com tuas bênçãos.
[…] Quando de mim foi arrebatada a mulher com quem vivia, considerada impedimento ao meu casamento, meu coração, que lhe era afeiçoadíssimo, ficou profundamente ferido e sangrou por muito tempo. (conf. 6, 14, 24; 6, 15, 25).
Mais impressionante ainda parece ser o jogo de imagens estabelecido entre
os episódios de Dido e Mônica, que, tal qual a Vênus da Eneida diante do herói do
épico, era responsável por interceder junto à divindidade — neste caso, pela conversão
de seu filho Agostinho. (E ainda como Vênus, consolada por Júpiter, que lhe mostra o
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triunfo final de seu protegido, Mônica é consolada por Deus, que em sonho lhe mostra o
futuro bispo de Hipona após conversão.) Dido, no que talvez seja o mais famoso e
comovente episódio da epopeia romana, chora, abandonada, no litoral de Cartago,
pranteando diante da partida do amado, no livro IV:
Feliz, oh! mui feliz, se as naus Troianas Não houvessem tocado as minhas praias! Disse; e, no leito os lábios imprimindo, Morrerei sem vingar-me?... Sim, morramos. Quero assim, mesmo assim, descer aos Manes. Veja lá do alto pélago este fogo Com seus olhos o Dárdano e o presságio Do meu trágico fim leve consigo.
É desta mesma Cartago de Dido que Agostinho foge, como relata no livro
V das Confessiones, em direção a Roma. Não existe em sua fuga, vemos, uma
motivação que se equipare à de Enéias; mas no litoral, tal como representado na Eneida,
também uma mulher chora em desespero, ao perceber seu filho partindo. Mônica, que
não desejara a ida de Agostinho e foi por ele enganada, “enlouqueceria de dor e
encheria de lamentos e gemidos teus ouvidos indiferentes” (5, 8). A comparação das
descrições é inevitável até mesmo ao menos atento dos leitores.
Inevitável também parece ser o questionamento do porquê uma
apropriação tão manifesta — em especial num contexto que tinha a Eneida em posição
de destaque, tornando as justaposições facilmente identificáveis — das imagens
virgilianas. Afinal, quatro livros antes, nas mesmas Confessiones, o próprio Agostinho
criticava a forma como chorava por Dido enquanto esquecia de suas próprias mazelas.
Por que evocar então a mesma situação que o afastava do conhecimento de si próprio e
de Deus?
Há, obviamente, diferenças que saltam aos olhos no exemplo de Dido e
Mônica: Dido tem existência duvidosa, enquanto Mônica, real, de fato estava lá,
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angustiada; assim também, é esta uma mulher santa, devota, enquanto a personagem
épica se encontra num contexto outro, inteiramente distinto. É possível pensar, portanto,
exatamente no deslocamento contextual como chave para a interpretação do objetivo
didático de Agostinho ao tornar presentes as evocações à obra de Virgílio. No caso
agostiniano, são legítimas as lágrimas derramadas por Mônica e, eventualmente, por
nós, leitores. O objeto pelo qual choramos é real, e sofremos por um motivo nobre,
fundamentado na própria realidade. O bispo de Hipona, assim, “purifica a experiência
literária que molestou de maneira tão prejudicial sua infância” (RAMAGE, op. cit., p.
57), o que está em extrema consonância com a intenção das Confessiones, a saber: “a
reconstrução e correção da capacidade que tanto o escritor como o leitor têm de se
deleitar” (Ibid., id.).
De fato, uma correção feita dessa maneira seria muito eficaz no período de
vida de Agostinho. Com a Igreja florescendo, ainda atraindo fiéis da nobreza e da
intelectualidade romana, utilizar a literatura pagã, em especial aquela de maior status, é
uma inteligente opção tática daquele que outrora se destacara como retórico [Cf. conf. 3,
3]. Além disso, se apresentar em contraste com Eneias poderia muito bem aumentar a
credibilidade do autor diante do ambiente que o circundava.
No entanto, é preciso se adiantar à tentação de ver Agostinho como
“justificador” da literatura pagã. Como Camille Bennett e outros afirmam, o que o bispo
de Hipona realiza nas Confessiones precisa ser visto sob a ótica repreendedora que o
hiponense mesmo desenvolve em seus diálogos e tratados anteriores. Uma questão tal,
diz ela, só pode ser compreendida “se entendermos que as referências à Eneida nas
Confissões fazem parte de uma crítica, em parte do próprio poema, mas também da
forma como ele era lido na Antiguidade Tardia” (1988, p. 48).
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De fato, se lermos as evocações a Virgílio tendo em mente as pontuações
sobre arte e literatura que Agostinho espalha por toda a (e em todas as fases de) sua
bibliografia, é muito difícil aceitar a utilização do autor romano como uma espécie de
“modelo positivo”; o que Agostinho apresenta é, ao contrário, uma forma segura de
leitura, a serviço da verdade, e que só pode se dar através de um olhar já educado,
conhecedor das verdades cristãs. Por isso mesmo, em sua meninice, longe de ter
encontrado a riqueza da Igreja, ele foi capaz de chorar por Dido e de não perceber que
deveria chorar pela morte de sua própria alma: não se lhe estava impresso, ainda, as
marcas do encontro com os padrões interpretativos gerados a partir das Escrituras.
O que realmente se observa, portanto, é a transformação do leitor imaturo,
propenso à autoalienação, em um leitor correto, capaz de reorientar o texto original em
proveito da própria alma — o que, como logo fica claro, independe da intencionalidade
do autor primeiro. Enquanto na Bíblia as situações poderiam ser literalmente
verdadeiras, ou então, como sinais, válidas por indicarem as verdades através do sentido
figurado, em Virgílio nada poderia ser encarado como realidade passada. Mas, como
histórias que relatavam elementos universais (se assim não o fosse, como se identificar
com o drama de Dido e chorar por ela como se o drama pertencesse a si próprio?), é
possível encontrar verdades capazes de serem convertidas para o engrandecimento da
alma. Para isso, entretanto, como a própria vida de Agostinho demonstra, “é preciso
conhecer a si próprio como alma e conhecer a história de sua alma” (Ibid., id., p. 66).
Sob uma ótica assim, é difícil não perceber a forma pela qual, nas
apropriações agostinianas de Virgílio, se encontra subjacente toda a teoria que o bispo
de Hipona desenvolvera acerca da literatura e das artes. Podemos ver nelas,
pragmaticamente, o problema da meia-verdade que afasta a alma de Deus, como
explicitado nos Soliloquia; a possibilidade de encontrar o verdadeiro quando a alma, já
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esclarecida, retorna ao texto, sabendo de sua condição; e o problema dos sinais que não
se referem a algo verdadeiro e enriquecedor, como se depreende a partir da Doctrina
christiana. É preciso, portanto, ter muito cuidado ao se tentar atribuir a Agostinho uma
radicalidade antiliterária que talvez fosse muito mais branda, assim como é preciso
cautela antes de tentar abrandar sua posição através do uso que o hiponense dá ao poeta
maior do Império. O olhar do bispo de Hipona é de fato muito mais complexo, e as
considerações que o envolvem são realmente dignas de toda a repercussão que lhe foi
dada não apenas na Idade Média e depois, mas ainda em vida.
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5. Conclusão
É uma encruzilhada o que se encontra diante do pesquisador das Letras que
procura se debruçar sobre a obra de Agostinho para descobrir traços da natureza
literária: de um lado, avista ele a possibilidade de encarar o objeto ficcional em seus
diversos aspectos, numa perspectiva horizontal que necessariamente evoca um
considerável número de obras; do outro, abre-se diante de si a rica verticalização do
pensamento, isto é, a opção de explorar com todo o vigor da filosofia e teologia
agostinianas um simples aspecto da obra de literatura, passível de inúmeros
desenvolvimentos e atualizações.
Se diferem em suas estratégias, porém, ambas as veredas exigem um
enorme fôlego e uma enorme humildade. Sem procurar em momento algum se desviar
da primeira trilha desta bifurcação, e curvando-se sob a grandiosidade da obra de
Agostinho, este trabalho foi desenvolvido sempre na busca desses dois elementos e
norteado pela elucidação de várias faces da literatura. Assim formulado, teve num
primeiro momento o intuito de identificar a própria posição do problema na obra do
santo, só então partindo para os desdobramentos que os alicerces agostinianos trazem ao
debate literário.
O primeiro capítulo foi, portanto, construído como um capítulo de
fundamentação. Ao tomar os elementos que servem como base para o bispo de Hipona,
buscou explicitar aspectos gerais sem se debruçar, por muito tempo, sobre conflitos
internos e refutações posteriores. Mas não foi só. Além das pilastras de Agostinho, o
capítulo inicial – e isto o assevera também a diferença de tamanho que tem com relação
aos demais – mostra por contraste a real posição que o problema especificamente
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literário ocupa na obra do santo. A ficção é de fato um problema, mas está à sombra de
uma série muito maior e mais grave de certezas.
A questão, no entanto, não deve ser diminuída. Ela é menor diante da
imensidão teológica e filosófica de Agostinho, mas recebe um vigor novo diante do
olhar direcionado do teórico da literatura.
Uma renovação como essa dificilmente poderia passar ao largo das
discussões propostas pelos Soliloquia, e que até hoje se mostram tão pouco exploradas
ao lado das afirmações das magna opera de Agostinho. Foi o resgate do pequeno
trabalho do início de sua vida como cristão que nosso segundo capítulo procurou. Nele,
as considerações sobre a relação entre ficção e verdade nas mais diversas formas
artísticas foram destacadas da ambiciosa busca agostiniana pelo entendimento da alma e
de Deus, mostrando como a questão literária pode ser muito mais grave a uma alma que
procura a beatitude eterna: ela é, no fundo, uma escolha entre a adesão ao que está por
trás do verdadeiro – isto é, a Verdade – e a adesão a uma ilusão que, como tal, não
possui “consistência”.
Da mesma forma, pela análise dos Soliloquia emerge a própria natureza da
literatura como 1) contradição, sendo verdadeira como obra e falsa em conteúdo; e 2)
como algo moralmente irrepreensível na vontade do sujeito que não deseja enganar ao
elaborá-la. De fato, são muitos os desdobramentos possíveis num tratado de extensão
tão reduzida.
Sob óticas diferentes, as posições já encontradas nos Soliloquia são
reforçadas em trabalhos posteriores, como no De mendacio, dedicado especialmente ao
problema da mentira. É esse o gancho de que o terceiro capítulo se vale para indicar
como as concepções agostinianas acerca do signo, esboçadas no De mendacio apenas
com brevidade e no contexto da discussão proposta, contribuem para a discussão
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literária ao se tornarem base para a noção de alegoria, a qual permite resolver o
problema da “mentira bíblica”.
O desenvolvimento mais profundo da alegoria agostiniana se encontra no
famoso tratado De doctrina christiana, e é nele que o terceiro capítulo se foca quando
transfere a questão da mentira à questão da interpretação através dos signos. Porém,
vimos como o problema do teórico da literatura surge exatamente quando uma
decodificação alegórica cruza os limites da exegese bíblica e alcança o campo da obra
artística ficcional. Foi preciso, por isso, se voltar às formas de aplicação da literatura
pagã – cuja personificação, na obra do hiponense, se dá na figura de Virgílio – na vida
do cristão convertido que foi Agostinho, de modo a perceber de que forma o olhar de
seu cristianismo direciona o aproveitamento do objeto ficcional.
Os resultados, neste ponto, são especialmente surpreendentes,
demonstrando, a partir das Confessiones, como a apropriação que Agostinho faz do
épico mais famoso do Império — modelando-o e retificando-o a partir de sua própria
vida — traz latente as posições já desenvolvidas nos trabalhos previamente abordados: a
relação entre verdade e ficção, as paixões sensuais evocadas pelas obras poéticas e pelo
teatro, o alheamento dos verdadeiros valores e finalidades... Além disso, também se
encontra nas Confessiones o dedo em riste de Agostinho, apontando para a maneira
como o verdadeiro cristão deve encarar as ficções pagãs: sempre sob os valores da
ortodoxia nascente.
Por todos os aspectos da literatura que ilumina com as formulações de sua
teologia e filosofia, o bispo de Hipona é uma riquíssima fonte de interrogações aos
olhos do leitor atual, acostumado a aceitar a natureza da ficção nos moldes em que hoje
é discutida. Agostinho, pelo que aqui foi superficialmente esboçado, traz em si muitos
aspectos de uma discussão que, cada vez mais, o pesquisador da Letras se vê levado a
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resgatar, numa busca que, enquanto renova o debate teórico do nosso tempo, também
confirma a grandeza dos Pais da Antiguidade.
Seria, por isso, extremamente ambicioso cogitar aqui – em grau algum –
qualquer princípio de exaustão dos debates centrais deste trabalho. Ainda assim, após
esta experiência de buscas e de redação, não pode haver dúvidas: o imenso e possível
contributo de Agostinho às Letras se revela até ao menor e mais superficial esforço de
pesquisa.
95
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