Upload
duongdan
View
223
Download
1
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA
TEORIA LITERÁRIA
MARCO AURELIO REIS
A CRÔNICA DE LÉO MONTENEGRO
UM OLHAR SOBRE O CARNAVAL DO SUBÚRBIO DO RIO
ENTRE 1965 E 2003
Rio de Janeiro
2010
2
A CRÔNICA DE LÉO MONTENEGRO
UM OLHAR SOBRE O CARNAVAL DO SUBÚRBIO DO RIO
ENTRE 1965 E 2003
Marco Aurelio Reis
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária) Orientador: Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes
Rio de Janeiro Abril de 2010
3
FICHA CATALOGRÁFICA
A CRÔNICA DE LÉO MONTENEGRO
UM OLHAR SOBRE O SUBÚRBIO DO RIO ENTRE 1965 E 2003
Reis, Marco Aurélio Reis
A crônica de Léo Montenegro – um olhar sobre o Carnaval do subúrbio do Rio entre 1965 e 2003/ Marco Aurélio Reis - Rio de Janeiro, 2010.
Dissertação de Mestrado em Ciência da Literatura – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Faculdade de Letras, 2010. Orientador: Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes
4
A Crônica de Léo Montenegro - Um olhar sobre o Carnaval do subúrbio do Rio entre 1965 e 2003
Marco Aurelio Reis Orientador: Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Examinada por: _________________________________________________ Presidente, Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes Faculdade de Letras / UFRJ _________________________________________________ Profª Doutora Flora de Paoli Faria Faculdade de Letras / UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor Luiz Alberto Alves Faculdade de Letras / UFRJ Suplentes: _________________________________________________ Prof. Doutor Luiz Edmundo Bouças de Coutinho Faculdade de Letras / UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor Eucanaã Nazareno Ferraz Faculdade de Letras / UFRJ
Rio de Janeiro Abril de 2010
5
Dedico primeiramente este trabalho a minha
companheira Claudia Thomé
Depois a nossos filhos Clara, Felipe e Arthur
6
AGRADECIMENTOS
A meus irmãos Sonia Cristina e Luiz Ricardo
A meus pais, gratidão eterna
A Eucimar Oliveira e Alexandre Freeland,
diretores de Redação de O DIA, pela colaboração
durante a pesquisa
A editora O DIA S.A. por ter aberto as portas para
a presente dissertação
Ao departamento de pesquisa da Editora O DIA
S.A. pela ajuda durante a recuperação dos dados a
respeito do Avesso da Vida
7
RESUMO
A presente dissertação busca resgatar crônicas escritas pelo jornalista Léo
Montenegro no matutino carioca O DIA entre 1965 e 2003, ano de sua morte. A proposta
foi buscar, nessas crônicas, traços de continuidade com a tradição literária nacional, em
particular com a retratação do malandro, do cronismo sobre o subúrbio da cidade do Rio de
Janeiro e com os textos dos cronistas de Carnaval, os chamados cronistas de Momo. O
primeiro passo foi localizar e recuperar em parte crônicas que estão em sua totalidade
arquivadas em empresa privada, de acesso restrito. Pontuar o estado atual em que se
encontra tal acervo. Depois a proposta foi descobrir sinais claros de continuidade com o
cânone literário, em especial com a obra de Lima Barreto, com a chamada dialética da
malandragem e com o cronismo de Momo. Por fim, resgatou-se todo o conjunto de textos
citados, entre eles o raro texto inaugural do autor no cronismo diário.
8
ABSTRACT
This work aims to rescue chronicles written by journalist Leo Montenegro in
newspaper O DIA, based in Rio de Janeiro, between 1965 and 2003, the year of his death.
The proposal was to seek, in these chronicles, traces of continuity with the national literary
tradition, particularly with the portrayal of the streetwise, the cronyism on the outskirts of
Rio de Janeiro and the texts of the chroniclers of Carnival, known as chroniclers of Momo .
The first step was to locate and recover in the chronicles that are archived in its entirety in a
private company with restricted access. Score the current state you are in this collection.
After that the proposal was to find clear signs of continuity with the literary canon, in
particular the work of Lima Barreto, called the dialectic of trickery and the cronyism of
Momo. Finally, it rescued the entire set of texts cited, including the rare inaugural text of
the author in cronyism daily.
9
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................10
2. O AVESSO DA VIDA DE LEO MONTENEGRO .....................................................16
2.1. As crônicas na trajetória do jornal O DIA .............................................................21
2.2. Crônica literária ou coluna jornalística?.................................................................30
2.3. O registro do cotidiano na literatura ......................................................................32
2.4. Conversa com Lima Barreto no subúrbio do Rio ..................................................38
3. CRÔNICA E FOLHETIM – GÊNEROS QUE DIALOGAM NA TRA DIÇÃO LITERÁRIA .....................................................................................................................45
3.1. Diálogo possível entre Manuel Antônio de Almeida e Léo Montenegro .............46
3.2. Dialética da malandragem ....................................................................................50
4. A CRÔNICA DE CARNAVAL E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDA DE BRASILEIRA .................................................................................................................52
4.1. Os cronistas de Momo..........................................................................................60
4.2. Rei Momo no Avesso da Vida..............................................................................64
CONCLUSÃO................................................................................................................70
REFERÊNCIAS.............................................................................................................73
ANEXOS ........................................................................................................................76
10
1. INTRODUÇÃO
Falar em primeira pessoa em trabalho acadêmico é reprovável. Embaralha objeto e
pesquisador. Mas esse estilo nas primeiras linhas desta dissertação é justificável. Editor de
Economia do jornal carioca O DIA, fui abordado há quase um ano por uma repórter de 26
anos de idade, dois de profissão, sobre o que eu pesquisava na academia.
— Crônicas de Léo Montenegro, respondi.
— Quem?, ouvi
O jornal O DIA de hoje, em formato menor, em nada lembra o que Léo Montenegro
trabalhou. Morto em 2003, sete anos atrás, Léo é desconhecido por boa parte da nova
geração de repórteres do matutino carioca. É para esta e futuras gerações de jornalistas que
essa dissertação primeiramente se destina. Para os outros destinatários cabem duas
explicações.
A primeira delas diz respeito à forma como o matutino será citado. Ao longo desta
dissertação o jornal O DIA, editado pelo Grupo de Comunicação Ary Carvalho (ARCA),
será grafado todo em letras maiúsculas, exatamente como o jornal refere-se a si mesmo em
suas páginas nos últimos 10 anos, para destacar o nome da publicação do restante do texto.
Como será necessário usar ao longo da dissertação textos publicados no próprio jornal,
procurou-se uma uniformização estética da grafia do nome da publicação.
A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que o jornal em estudo é
encontrado hoje nas bancas e a forma em que era encontrado durante o período em que o
autor em questão publicava diariamente suas crônicas. Em 15 de março do ano de 2009 o
matutino carioca O DIA chegou às bancas com novo projeto gráfico assinado pelo editor-
executivo de Arte, André Hippertt, em formato tablóide. O jornal resgatou o amarelo em
seu logotipo, retirado na reforma gráfica anterior (de 2007) que, diga-se, não fora feita com
Léo Montenegro em vida. Segundo Milton Coelho da Graça (2009), em artigo publicado no
site Comunique-se, com o novo formato O DIA jogou “o que poderá ser sua última cartada
pela sobrevivência. As dificuldades da empresa vêm se acumulando há mais de um ano
com a crise global, a queda da receita publicitária e também da circulação”.
É nesse cenário atual de queda de circulação não só de O DIA, mas também de
outros jornais impressos de grande porte e de porte regional, que a Internet vem se
destacando como fonte de informação. Usando essa ferramenta, a dissertação deparou
11
também com indícios de desconhecimento a respeito de Léo Montenegro e de sua obra em
forma de crônicas diárias. No site Google, atual líder absoluto entre os serviços de buscas
na Internet, Léo aparece em poucos registros. Um deles chama para a missa em sua
memória cinco anos após sua morte, e dá uma pista sobre o risco de esquecimento que paira
sobre a obra do cronista:
Missa pelo jornalista Léo Montenegro será neste sábado Rio - Missa pelos cinco anos da morte do jornalista Léo Montenegro será realizada neste sábado, às 9h, na Igreja da Ressurreição, na Rua Francisco Otaviano 99, Copacabana. Léo assinava desde 1965 ‘O Avesso da Vida’, coluna bem-humorada (sic) que trazia histórias com personagens com nomes inusitados. (http://odia.terra.com.br/rio/htm/missa_pelo_jornalista_leo_montenegro_sera_neste_sabado_183000.asp, acesso em 12 de julho de 2009)
Ora, com todo o respeito ao redator anônimo da nota acima, Léo mais que assinava
um espaço no jornal O DIA. Léo Montenegro Maia de Castro era autor de crônicas com
publicação diária desde 1965 no espaço batizado de Avesso da Vida. Mais que uma coluna
bem humorada com personagens com nomes inusitados, Avesso da Vida se prestava a
retratar situações ambientadas no subúrbio do Rio. Muitas dessas situações eram contatas
ao cronista como verdadeiras por moradores do subúrbio. Outras eram inspiradas em
registros policiais. Ao cronista cabia resumi-las no restrito espaço que lhe estava reservado
no jornal. Para isso, imaginava diálogos e dava a seus textos tom coloquial e com profunda
marca de oralidade – forma usual de contar com menos palavras – na quase totalidade das
vezes usando nomes insólitos no lugar dos relatados pelos moradores do subúrbio ou
escritos nos registros policiais. Assim escapava de complicações com personagens reais ou
com aqueles que por ventura se identificassem com as histórias das crônicas e se sentissem
invadidos em sua privacidade.
A presente dissertação se propõe a colocar um holofote sobre as crônicas de Léo. É
fruto de uma paixão que o pesquisador compartilha com outros profissionais de imprensa,
como o cartunista Ziraldo, o colunista de Carnaval Cláudio Vieira e o professor
universitário e ex-redator de O DIA José Argolo – isso para citar três que tornaram essa
paixão pública em textos.
A título de antecipar um desses textos e acrescentar que Léo também pôde ser lido
após sua morte em breve período de tempo (de maio a setembro de 2005) nas páginas do
12
Jornal do Brasil (JB), cabe reproduzir uma resposta de Ziraldo, então editor do Caderno B
do JB, a uma leitora que elogiava a obra de Léo, sem nunca o ter lido em O DIA. Dizia a
leitora Raquel Duque, do Rio, por e-mail, queixando-se de não encontrar mais textos de
Léo no Jornal do Brasil: “Sou fã do Caderno B. As colunas de Léo Montenegro, Silvio
Lach e Aldir Blanc são minhas preferidas. Informem ao Léo que meus finais preferidos são
os que acabam no hospital. Fiquei surpresa ao verificar que nada mais havia de O avesso do
Avesso da Vida, e sem explicação”. A resposta de Ziraldo é gentil e emblemática:
Raquel, a coluna do Léo Montenegro (foto) no JB é resultado de uma paixão minha por suas absurdas e hilariantes histórias da vida carioca. Sempre achei que o Léo era o Nelson Rodrigues deste absurdo, só possível nos subúrbios do Rio: um inventor da sua possibilidade. Léo escreveu durante 37 anos no jornal O Dia e faleceu há três anos, Raquel. Selecionamos algumas de suas mais inventivas crônicas, com os personagens mais criativos e irônicos, para ajudar a manter viva a memória de seu talento. Nestes quatro meses de vida do novo Caderno B esgotamos esta seleção e apresentamos a você, e ao velho leitor do Léo, o segundo adeus de um carioca perfeito. (in http://jbonline.terra.com.br/jb/ papel/cadernob/2005/09/14/jorcab20050914010.html, acesso em 11 de novembro de 2005)
Além da paixão pelas crônicas de Léo, uma outra inquietação motivou a presente
dissertação. Na atual sociedade da informação, em que a televisão é apontada como a mídia
dominante, as crônicas publicadas nos jornais estão cada vez mais escassas. As que
resistem estão defendidas sob a aura de autores conhecidos do grande público e, ainda
publicadas entre fios, se apresentam como verdadeiras trincheiras na imprensa diária. Além
disso, com as novas tecnologias de informação e a exigência de uma produção de notícias
em tempo real, cada vez mais o repórter “flaneur” foi dando lugar ao profissional que hoje
não sai da redação e mantém pouco contato com o dia a dia da cidade, aprisionado a uma
rotina de produção incessante de conteúdo, muitas vezes para mais de uma mídia ou
veículo de comunicação.
Resgatar essas crônicas é, então, um doce desafio: um resgate também do olhar
sobre uma cidade e sobre personagens que correm o risco de serem esquecidos ou nunca
conhecidos por gerações futuras. São textos produzidos dentro da lógica industrial da
imprensa diária, mas que apresentam aquilo que o noticiário deixa de lado, que noticiam
fatos, reais ou fictícios, carregados de humor.
13
A primeira crônica de Léo foi publicada numa edição que circulou no feriado de 1º
de maio de 1965, um sábado. Neste período os jornais não circulavam em dias seguintes a
feriados, nem às segundas-feiras porque os jornalistas folgavam nos feriados e domingos.
Com isso, a estréia de Léo no Avesso da Vida circulou durante três dias, edições números
4.764, 4.765 e 4.766. Seus dois últimos textos circularam no dia 6 de julho de 2003, edição
seguinte ao seu sepultamento, no Cemitério do Pechincha, em Jacarepaguá. Estes textos
estão no exemplar número 18.651. Entre uma e outra edição, estão 13.885 edições. Os
publicados nos feriados e aos domingos valiam por dois dias até a década de 1990, quando
o jornal passou a circular também nos dias seguintes a feriados e às segundas-feiras, dias
em que, dependendo do espaço, era publicada ou não uma crônica inédita de Léo. Esse
aspecto da rotina de publicações do matutino levou a dissertação a um número de crônicas
entre 11.720 e 11.900. Como ao longo da dissertação não foi possível resgatar todos esses
textos (muitos em microfilmes em poder do departamento de pesquisa de O DIA e a quase
totalidade em encadernações nos arquivos do jornal, uma amostra considerável na
Biblioteca Nacional e os posteriores a 1990 em arquivo pessoal mantido pela viúva do
autor, d. Lídia Montenegro) optou-se por uma ordem de grandeza confiável de 11.700
crônicas.
Apresenta-se como desafiador estudo deslocar os holofotes para essas crônicas da
mídia impressa que resistiram às crônicas de rádio e posteriormente televisivas mesmo
durante o período em que a TV gradualmente foi ocupando o espaço de mídia dominante.
Mais desafiador ainda é focar a análise para crônicas da mídia impressa que tratam
do subúrbio do Rio, enfoque tão escasso na tradição literária nacional, tendo destaque antes
de Léo, só que com peso nacional, Lima Barreto. Peculiar ainda é tratar de uma obra
contemporânea que fala abertamente do Carnaval na mídia impressa fora dos meses de
janeiro e fevereiro, mesmo quando a festa popular, já consolidada como tradição nacional
pelo trabalho dos chamados cronistas carnavalescos (COUTINHO: 2006, p.89), ganhou
espaço nobre na programação televisiva e teve sua presença nas páginas dos jornais
bastante reduzida.
Essa é a proposta da presente dissertação: resgatar e detectar uma obra autoral
inserida no sistema literário nacional entre as quase 12 mil escritas diariamente, entre 1965
e 2003, pelo cronista carioca Léo Montenegro no jornal O DIA do Rio. Cabe aqui pontuar
14
que serão usadas as definições propostas pelo crítico literário Antonio Candido
(CANDIDO, 2006, p. 25-27) para o que chama de literatura propriamente dita, ao
considerar obras ligadas por denominadores comuns, e para o que chama de continuidade
literária, ao pontuar a formação de uma tradição quando a atividade de escritores de um
determinado período se integra a um sistema que a liga a atividade de escritores de um
período anterior ou posterior.
Jornalista profissional, Léo Montenegro (nascido em 1938 e tornado cronista em
1965) morreu aos 65 anos de idade, em 5 de julho de 2003, deixando vasta obra, que até
hoje não obteve reconhecimento fora do grupo de leitores dos jornais O DIA e JB. Vale
frisar que foram 37 anos de atividade ininterrupta. Nas férias, antecipava o trabalho e
deixava crônicas para serem editadas em sua ausência.
O objetivo da dissertação é buscar nas crônicas e na trajetória profissional traços
que posicionem a obra de Léo Montenegro na tradição literária nacional, mesmo que em
um primeiro olhar seus textos não encontrem eco no cânone literário. Em especial, a
proposta de dissertação é localizar na obra analisada a brasileiríssima tradição cronista e,
em alguns desses textos, a particular tradição dos chamados Cronistas de Momo, termo
primeiramente usado pelo pesquisador Eduardo Granja Coutinho (2006) para se referir aos
jornalistas que no fim do século XIX e início do século XX tinham como tema central o
Carnaval e seus personagens para suas crônicas diárias na imprensa do Rio de Janeiro.
Assim, o tema desta dissertação se divide em quatro capítulos e em algumas seções.
Neles não houve a preocupação em separar viés teórico da apresentação do autor e sua
obra, ainda pouco conhecidos fora do grupo formado por jornalistas e leitores de jornal,
particularmente os do Rio de Janeiro. Seguindo a orientação crítica proposta por Candido
(2006: p: 26), no Capítulo 2 da dissertação buscou-se contextualizar as crônicas analisadas
ao longo da dissertação ao período histórico em que foram escritas e publicadas e ao
veículo que as publicou. No Capítulo 3, buscou-se na tradição literária elementos de
continuidade identificáveis na obra do autor. Por fim, o Capítulo 4 e suas seções trazem
características da obra de Léo Montenegro, seu diálogo com os Cronistas de Momo e,
também, algumas crônicas que sinalizam o vínculo do cronista com as temáticas do
Carnaval.
15
Importante destacar que a presente dissertação não força a caracterização da obra de
Léo Montenegro a orientações críticas e definições pré-estabelecidas. Procurou-se
promover um diálogo da obra estudada com críticos e teóricos da literatura e com autores
consagrados pelo cânone literário ou reconhecidamente importantes para a tradição da
crônica nacional e, em particular, da tradição da crônica de Carnaval. O convite que se faz é
observar como esses diálogos se transformaram em saborosas conversas, bate-papos que,
ousa o pesquisador supor, nunca foram imaginados por Léo Montenegro em seu longo,
rotineiro e despretensioso trabalho de cronista diário.
16
2. O AVESSO DA VIDA DE LEO MONTENEGRO
Por se tratar de um autor ainda pouco estudado e mais conhecido entre os leitores
dos matutinos O DIA e Jornal do Brasil, cabe uma pausa para apresentação do cronista.
Léo Montenegro produziu crônicas diárias durante 37 anos. Dois anos após sua morte,
como já foi mencionado, chegou a ter alguns de seus textos republicados pelo JB, a partir
de acordo feito entre a viúva do autor e o escritor e cartunista Ziraldo.
É nos arquivos do jornal O DIA, no Centro do Rio, que está guardado todo o seu
acervo – a maior parte em microfilme em cópias de difícil leitura. É no mesmo matutino
popular que se encontra a memória de sua trajetória como cronista, seja textos a seu
respeito por ocasião do aniversário do jornal ou por ocasião da morte do autor, seja nas
entrevistas que concedeu ao próprio veículo.
Durante uma dessas entrevistas ao jornal O DIA, publicada na edição de 14 de
janeiro de 2001, Léo Montenegro contou que sua estréia na crônica ficcional aconteceu por
acaso. Era um feliz repórter policial quando o secretário de redação do jornal em 1965,
Carlos Vinhais, o chamou para cobrir o espaço da coluna Avesso da Vida, cuja
característica era entreter o leitor com um bem humorado texto de ficção sobre a rotina
suburbana carioca.
Vinhais, segundo depoimento dado em 26 de agosto de 2009 pelo jornalista Lúcio
Natalício (35 anos de profissão em 2009, 31 trabalhando como repórter policial em O DIA),
era um homem de voz firme que dava suas ordens aos berros sem levantar de sua cadeira na
chefia de reportagem do matutino carioca. “Todo mundo contava que o Vinhais berrou para
o Léo ir escrevendo o Avesso da Vida porque o cara que escrevia não estava indo para
redação há alguns dias e não havia mais gaveta (sobras) da coluna”, conta Natal. “Léo
escreveu quatro laudas (algo em torno de 120 linhas datilografadas) e entregou. O Vinhais
leu, foi cortando para caber no espaço e gostou. No dia seguinte Léo continuou a escrever e
no outro também, até que o titular voltou, acho que estava doente, e o Vinhais disse que ele
ia retornar só para reportagem e a coluna ia ficar com o Léo”, completa.
“O cara que escrevia a coluna fazia dramalhões que sempre terminavam em morte. Certo dia, ele não enviou a coluna e o Carlos Vinhais me escalou para fazer qualquer bobagem. E foi o que fiz. Algo engraçado e completamente diferente. O pior é que gostaram, e a coluna passou a ser assinada por mim.” (Léo Montenegro em entrevista ao jornal O DIA publicada na edição de 14 de janeiro de 2001)
17
O “cara” foi identificado, em depoimento para esta dissertação, por Nylson
Guimarães Peixoto, repórter e redator contemporâneo de Léo, pelo nome de Bouças,
jornalista que não foi lembrado por mais nenhum dos ouvidos na pesquisa. Bouças não teria
enviado seu Avesso da Vida para “emendar” o feriado, faltando alguns dias antes da folga
prevista de três dias. Cabe salientar o caráter boêmio dessa fase do jornalismo, quando era
comum, como diz Nylson Guimarães em seu depoimento, redatores tomarem uns “tragos”
no meio do expediente no botequim em frente à redação ou mesmo durante o trabalho na
mesa de revisão de textos (copy desk).
Essa primeira crônica foi publicada em 2 de maio de 1965. Nela (ANEXO I), em
três parágrafos, Léo narra a prisão de um vigarista, viciado em jogo e caloteiro. O desfecho,
que ficaria como uma marca de suas crônicas, é a prisão do picareta que tentara molestar
moça que batera à sua porta para cobrar prestações atrasadas. Prisão que não ocorre sem
que antes o personagem central sofra uma surra de seus vizinhos. O estilo coloquial,
jornalístico e econômico que se repetira nas aproximadamente 11.700 crônicas seguintes
também já pode ser percebido.
Durante cinco anos Léo dividiu a função de repórter policial com a de cronista. Em
1970 passou a acumular a crônica diária com a função de redator, como recorda o professor
universitário e ex-redator de O DIA José Argolo (1999), em texto sobre o jornalista Ricardo
Galeno, com quem trabalhou no DIA entre 1983 e 1988.
Léo Montenegro, Loren Falcão Armindo, Moysés Meohas, Nylson Guimarães Peixoto, José Luíz Tavares, Arhur Oscar, Paulo Schnoll, Jorge Costa Nascimento (Ricardo Galeno) e - muito modestamente - o jornalista que assina o presente trabalho, compunham a “espinha dorsal” do copy, posteriormente reforçada por Cid de Albuquerque Kling (remanescente da equipe da Última Hora de Samuel Wainer) e Mário Ribeiro (ex-correspondente do Diário Carioca durante a Guerra de Libertação da Argélia). Esses profissionais de imprensa integravam a seleção responsável por um enorme quantitativo de notícias impregnadas de bom humor, mistério e aventuras. (ARGOLO, 2008, p. 1)
Não perdia o humor mesmo quando atuava no copy desk de o DIA, com a árdua
obrigação de rever os textos antes da publicação para observar a sintaxe, ortografia e
mesmo melhorar o estilo. Em O DIA, a mesa dos copy, hoje mais identificados como
redatores, tinha o nome de filtro, termo usado para designar a função deles: depuradores de
impurezas dos textos, como um filtro de água. Nessa tarefa Léo não deixava de lado a
18
referência a termos e situações naturalizadas no subúrbio do Rio e que marcariam suas
crônicas no Avesso da Vida. É o que revelam seus contemporâneos no matutino carioca,
como o jornalista João Antônio Barros. Em depoimento para esta dissertação, João Antônio
recorda como Léo “melhorou muito” a cobertura que o jornal estava fazendo das eleições
municipais de 1992. Naquele ano, o então deputado estadual Manoel Rosa, o Neca (PDT)
derrotou Miguel Abrão (PFL), candidato do clã do bicheiro Anísio Abraão David, patrono
da escola de samba Beija-Flor, nas eleições para prefeitura de Nilópolis.
Por si só isso já era notícia. Mas quando cheguei à redação e entreguei o texto, o Léo pediu os números dos candidatos e cravou no título “Deu zebra”!, um animal que não tem no jogo do bicho. Para justificar colocou no pé da matéria (reportagem) todos os números da eleição, com seus bichos correspondentes. O texto ficou bem leve e foi o maior comentário em todo o estado no dia seguinte.
O texto bem humorado merece ser reproduzido:
Para quem gosta de números, eis algumas curiosidades: Neca teve 43.264 votos, dezena que corresponde ao leão, Miguel Abraão ficou nos 14.409, numa infeliz coincidência, a dezena do burro. O mais irônico: a diferença foi de 1.855 votos, a dezena do gato, ou o pulo do gato, como queiram.” (Jornal O DIA, 11 de outubro de 1992, Caderno Grande Rio, página 6)
Com a assinatura de Léo Montenegro, o Avesso da Vida foi ganhando aos poucos
outros temas não policiais, como fatos corriqueiros do dia a dia do subúrbio do Rio,
mantendo, porém, o estilo de ficção inspirada em fatos reais e em relatos de amigos ou na
pura e simples observação do cronista em suas andanças pelos bairros do subúrbio do Rio.
Seu trabalho, recorda o jornalista Lúcio Natalício, começava quase sempre pela leitura de
todo o noticiário. Nessa leitura buscava inspiração para uma crônica. Isso só não acontecia
quando, às vezes, o cronista vinha de casa já com um tema que alguém havia lhe contado
ou que ele próprio havia testemunhado ou conversava com os repórteres e tirava do bate-
papo uma história que ia escrever. “Certa vez olhou da mesa dele para a minha e bolou uma
crônica inspirado na minha cara. O personagem foi batizado com nome inusitado, para
ninguém me ‘sacanear’ (sic) na redação”, recorda Lúcio Natalício em depoimento
concedido para esta dissertação em 26 de agosto de 2009.
A crônica diária permaneceu em O DIA até a morte de Léo. Sobreviveu até mesmo
às reformas gráficas e de conteúdo do jornal iniciadas no fim dos anos 1980 e consolidadas
na década seguinte. O objetivo explícito das mudanças foi qualificar o jornal de modo que
ele pudesse disputar com O Globo os leitores da classe média do Rio. Nesse novo cenário, a
19
coluna passou a dar mais espaço às ficções de conteúdo humorístico e ligadas à rotina da
cidade, tendo personagens alegóricos do subúrbio ocupando mais e mais espaço. Situações
pitorescas, engraçadas e o lado curioso e não exclusivamente policial do cotidiano
suburbano do Rio passaram a predominar nos textos a partir da década de 1990 até a morte
do autor, em 2003.
Como ponto comum a toda a obra de Léo Montenegro estão os personagens com
nomes insólitos e ora enganados, ora ludibriando seus pares apesar do verniz de malandro
comum aos dois lados. Em entrevista ao jornal O DIA, publicada na edição de 14 de janeiro
de 2001, Léo Montenegro explica a escolha dos nomes dos personagens:
“Passei a usar nomes estapafúrdios em meus personagens quando alguns leitores chamados Paulo, José, Antônio, enfim, gente de nome comum, passaram a reclamar por acharem ter sido postos em situações vexatórias”, explicou Léo na entrevista de 14 de janeiro de 2001. A estratégia não se mostrou, porém, infalível. Ainda nos anos 70, um personagem batizado com o nome Trinitário iria causar o maior reboliço: um homem também chamado Trinitário invadiu a Redação de O DIA e foi preciso muita conversa para convencê-lo de que era uma coincidência”. (O DIA, 14 de janeiro de 2001)
Finalmente, em 1993 passou a se dedicar exclusivamente às narrativas ficcionais
vividas por personagens identificáveis pelos leitores suburbanos do matutino e que faria do
Avesso da Vida não mais uma seção do jornal carioca, mas um espaço que não poderia mais
ser desassociado ao nome de Léo Montenegro. Ocupando coluna diária em veículo de boa
circulação nos bairros cariocas, foi natural que Léo conquistasse leitores fiéis. Tanto que,
na década de 70, uma leitora escreveria cartas diárias para o jornalista. Essa mesma leitora
de uma hora para outra parou de dar notícias de vida, até que um advogado procurou o
cronista na redação do jornal para informá-lo que fora incluído no testamento dessa
senhora, que falecera exatamente no mesmo período em que suas cartas pararam de chegar
à caixa postal do jornalista, como o próprio autor contou na entrevista de 2001.
Apesar de o foco ser o estudo de suas crônicas e ser pressuposto desta dissertação
que a trajetória pessoal do autor é pouco relevante para crítica de sua obra, cabe sublinhar
um relato a respeito de Léo para destacar a proximidade do cronista com os temas
retratados em seus textos. Narrando um dos aspectos relevantes da vida de Léo e que o
aproxima dos chamados cronistas de Momo pela intimidade que mantinha com os
bastidores do samba, o jornalista Cláudio Vieira revela que um verso de Léo pode ser
20
encontrado no samba de enredo do histórico e vitorioso desfile da Escola de Samba Portela
no Carnaval de 1970, sob o título Lendas e Mistérios da Amazônia (ANEXO II).
VIEIRA (2009) conta que os três autores do samba (Sebastião Vitorino Teixeira dos
Santos, o Catoni, Waltenir e Dinckel Martins, o Jabolô, trio vencedor de mais dois
concursos de sambas-enredos na Portela — em 1967, com Tal dia é o batizado; e, em 1977,
com Festa da Aclamação —, após colocarem a mão na sinopse do enredo de autoria de
Clóvis Bornay e Arnaldo Pederneiras, fizeram alguns encontros na casa de Jabolô, que era
taxista, em Irajá. Ainda segundo VIERA, outros encontros ocorreram no bar Salada
Tropical, em frente à estação de Madureira, e outros no Aero Willys táxi com o qual Jabolô
trabalhava na praça.
Catoni morava em Jacarepaguá, era quase vizinho de Léo Montenegro. O cronista,
amigo dos autores do samba, testemunhou diversos encontros deles.
Num desses convescotes, regados a cerveja, é claro, o portelense Léo também teve a oportunidade de dar a sua contribuição. Conta que os autores estavam aflitos com um buraco que havia entre as primeira e segunda estrofes. O intervalo poderia gerar o atravessamento do samba. O jornalista, então, recorreu a um macete de redação, sugerindo que fizessem um encadeamento entre as duas partes, usando a expressão “E dizem mais...” O intervalo foi preenchido sem que a poesia da letra perdesse a fluência. Era o toque que faltava. (in http://sambaonline.blogspot.com/ acessado em 23 de julho de 2009)
Sua atuação no universo do subúrbio do Rio como cronista e sua intimidade com
temas relevantes para a população dessa parte da cidade pode ser comprovada por registros
como esse e até mesmo pela diversidade de situações narradas em sua intensa produção. Na
análise de sua trajetória é possível detectar os primeiros elos de ligação entre seu trabalho e
o dos cronistas de Momo, ligação que se explicitaria em sua obra em diversas crônicas,
algumas delas republicadas até mesmo pelo nada suburbano Jornal do Brasil, entre elas a
intitulada “O bate-bola”, publicada em O DIA na edição do Domingo de Carnaval, 10 de
fevereiro de 2002, que conta a história de um funcionário público que volta ao trabalho
após os dias de folia ainda fantasiado e termina demitido após ficar nu diante do chefe, que
insistia que ele retirasse a fantasia na repartição (ANEXO III).
21
2.1- As crônicas na trajetória do jornal O DIA
Antes, porém, de buscar nas crônicas de Léo sua ligação com os chamados cronistas
de Momo — segundo definição do pesquisador Eduardo Granja Coutinho (2006) ao se
referir aos cronistas carnavalescos conforme já mencionado nesta dissertação —, é preciso
associar sua obra à trajetória do jornal que primeiro e mais publicou seus textos; jornal
recente, se comparado aos seus concorrentes contemporâneos secundários, O Globo e
Jornal do Brasil (JB). Fundado em 5 de junho de 1951 — 60 anos após o JB e 26 anos após
o Globo —, O DIA foi idealizado por Antônio de Pádua Chagas Freitas, que
posteriormente seria nomeado pela Ditadura Militar (1964 – 1985) governador biônico do
Estado da Guanabara (de 1971 a 1975) e do Rio de Janeiro (de 1979 a 1983). Chagas
Freitas fundou o jornal para servir na década de 1950, de palanque no Rio para o então
governador de São Paulo Adhemar de Barros. Chagas Freitas era correligionário de
Adhemar e dirigente de seu partido político, o PSP, no Rio.
Para chegar ao eleitor cobiçado pelos dois políticos populistas, O DIA enveredou
pelo chamado jornalismo sensacionalista, marcado pela predominância do noticiário
policial e por títulos maliciosos, como destaca SANDRONI.
“Com manchetes marcadas pelo impacto extraído do conteúdo dramático da notícia, ressaltando o sensacionalismo dos fatos, com tipos (letras gráficas) enormes, conhecidos com zincos, assim chamados porque recortados em zinco, como se fossem clichês, para compor os títulos que se destacavam na primeira página, anunciando escândalos, crimes e desastres. Mancheteiros especialistas em jornalismo popular, daqueles que muitas vezes inventavam o título e depois iam perguntar ao repórter o que acontecera, empenhavam-se na tarefa de atrair o leitor com o mínimo de palavras, na exploração do duplo sentido, do humor macabro, da metáfora brega ou até de ironia grosseira.” (SANDRONI, 2001, p. 21)
Estreando nas bancas do Rio uma semana antes do jornal Última Hora (UH) – de
Samuel Wainer, correligionário de Getúlio Vargas, à época aliado ocasional de Adhemar –
O DIA já traria fotos e diagramação nos padrões copiados da imprensa norte-americana do
pós-Segunda Grande Guerra. Viria com conteúdo diverso de UH — lançado para fazer
frente ao oposicionista Tribuna da Imprensa, que Carlos Lacerda levara às bancas em 1949.
UH, com mais páginas que a Tribuna da Imprensa, faria frente a Lacerda e a seus
ataques a Vargas. O DIA, com apenas oito páginas, atingiria público formado por grupos
sociais de menor poder aquisitivo , predominantemente moradores dos bairros do subúrbio
22
do Rio e cidades da Baixada Fluminense. Um público não alcançado por UH e pela
Tribuna, mas muito cobiçado por Adhemar e seus PSP no Rio. Léo, como dito acima, seria
o repórter policial deste O DIA antes de assinar o Avesso da Vida.
De 1965 a 2003, ano de sua morte, acompanharia as transformações editorais e
gráficas do jornal mantendo o mesmo modelo de inspiração para suas crônicas — baseado
em fatos reais e histórias ouvidas ou vividas por ele — e estilo — textos breves, recheados
de humor, tendo o subúrbio do Rio e seus habitantes como cenário e personagens centrais, e
o Carnaval, os foliões e os blocos carnavalescos como temas frequentes.
Em 1967, Léo ainda repórter e cronista, passaria a ser chefiado por Tássilo Mitke,
que trabalhara como secretário de redação em O DIA de 1958 a 1961 e retornaria naquele
ano para ficar lá por mais exatos 20 anos. É relevante destacar esta longa convivência entre
Léo e Mitke, em função da ideia que o secretário de redação tinha de jornalismo popular e
que, nas duas décadas seguintes, impôs como orientação para sua equipe de repórteres,
redatores, colunistas, cronistas e editores. Tal orientação é resumida por SANDRONI ao
definir jornal popular como O DIA se propunha a ser:
“Tem de trazer informações relevantes que garantam a fidelidade do leitor. Tem que apresentar textos e títulos, principalmente manchetes, que extraíam da realidade aspectos incomuns com a finalidade de conquistar e comover”. (SANDRONI, 2001, p. 37).
Nos dois períodos sob comando de Mitke, o jornal destinou mais espaço para
notícias sobre sindicatos, funcionalismo público e futebol. Criou seções fixas com
orientações e respostas para queixas de inquilinos e consumidores, espaços fixos com
informações sobre horóscopo, palavras cruzadas e registro de santos do dia e colunas sobre
rádio e televisão e a crônica Avesso da Vida, cuja fórmula foi copiada do jornal irmão
Última Hora. Natural, portanto, que Mitke destinasse atenção especial à coluna de crônicas
do subúrbio carioca e determinasse que sua temática e estilo seguissem a orientação
editorial que ele dava para todo O DIA de modo o matutino consolidar e não perder sua
característica de jornal popular.
Analisando este período de O DIA, em particular, e do jornalismo dito policial,
como um todo, SERRA (1986, p. 17 e 18) destaca que neste recorte o jornal se presta como
ampliação dos “órgãos sensórios, perceptivos e experienciais do leitor, o qual, através dele,
alcança uma realidade afastada e por seus próprios meios individuais, inalcançável.” Em
23
outras palavras, é apresentar fatos e situações onde o jornal chegou e o leitor, não, apesar de
seu interesse pelo ocorrido. Neste aspecto, a verossimilhança ou mesmo a inspiração em
fatos ocorridos noticiados na imprensa emprestam às crônicas do Avesso da Vida poder de
elo entre o fato e o leitor, importância que fideliza o público, como defendia Mitke.
Cabe inferir que a consolidação do estilo de Léo no Avesso da Vida se deu no que a
presente dissertação classifica, para efeitos teóricos, como primeira fase de sua obra, que
vai de 1965 a 1987, quando Mitke deixa o jornal. A comparação de crônicas desse período
colabora com essa inferência. A título de exemplo cabe observar duas. Uma de 5 de junho
de 1968, no aniversário de 17 anos de O DIA e com Mitke de volta há pouco menos de um
ano, com outra de 5 de junho de 1986, no aniversário de 35 anos do jornal e a um ano da
despedida do referido secretário de redação.
Em ambas, o texto econômico marcado pela oralidade da linguagem serve de
instrumento para descrever situação inusitada e humorística. São dois “causos” com a
localização definida pelo ante-título dado à coluna nesta primeira fase: Aconteceu no
Rio/Avesso da Vida.
Na primeira, intitulada “Os dentes do defunto” (ANEXO IV), um claro diálogo com
a obra de Nelson Rodrigues (que escrevera entre 1951 e 1961 no jornal Última Hora a
coluna “A Vida Como Ela É”, cuja proposta de ficcionar sobre fatos jornalísticos inspirou
as crônicas do Avesso da Vida de O DIA). O personagem central da crônica de 1968, um
bandido morto, é Boca de Ouro, numa clara referência ao bicheiro consagrado na peça de
teatro homônima de Nelson Rodrigues, escrita nove anos antes.
Na histórica crônica de Léo (disponível em O DIA em microfilmagem com
pequenos trechos inelegíveis), Boca Ouro está sendo velado por 800 bandidos. Dois deles
declaradamente cobiçam furtar seus dentes de ouro, chamados uma vez no texto de
brodoegas, numa referência a uma erva da culinária mineira hoje pouco usada. O desfecho
humorístico consiste numa inusitada “falta” de luz em pleno momento entediante do velório
(com a cachaça acabando e nenhum boteco aberto). Na escuridão furtam não só a dentadura
dourada do bandido (não identificado na crônica de Léo por seu tipo de crime), mas
também carteiras, relógio, paletó e até um dos pés de um par de sapatos, não sem antes
alguém ter gritado no meio da confusão: “A cueca, não! A cueca, não!”
24
Cabe destacar, neste texto de 1968, a citação ao sambista Almirante (Henrique
Foréis Domingues, 1908-1980), então radialista de sucesso, primeiro biógrafo de Noel
Rosa e colunista do jornal A Notícia. Almirante convivia com os jornalistas de O DIA na
década de 1960 e como conta Nylson Guimarães Peixoto, no depoimento para esta
dissertação, adorava contar pelo cantos histórias de assombrações, algumas publicadas em
sua coluna em A Notícia, outro jornal de Adhemar de Barros no Rio e que funcionava no
mesmo prédio de O DIA, tendo sido fundado em 1950 pelo político paulista também em
parceria com Chagas Freitas (in http://www.alerj.rj.gov.br/memoria/historia/govgb/
cfreitas.html).
Na segunda crônica a ser analisada, 18 anos depois, o texto ainda mais econômico
aparece mais amadurecido, sem perder as características centrais do seu precursor de 1968.
Nela (ANEXO V) um delegado é surpreendido num dia de pouco movimento na delegacia
por seu auxiliar que tenta alertá-lo para o que ia acontecer: três senhoras iam tirar mais de 1
mil cruzados de seu chefe. Na hora do alerta, em se pensando tratar de bandidos, o
delegado puxa a arma. Quando sabe que são três senhoras inicia um diálogo cujo desfecho
é também inusitado: as mulheres iam apresentar para o delegado um livro de ouro (aquele
que arrecada dinheiro mediante assinatura de comerciantes e autoridades em torno de uma
igreja, escola ou entidade afim) que financiaria uma festa no domingo seguinte na paróquia
católica local. Vão logo avisando: “Quem deu menos, deu 1 mil cruzados”. O delegado
assina e depois vai pedir desculpas ao auxiliar afirmando que a visita das senhoras foi “pior
que oitocentas quadrilhas juntas”.
Nos dois textos, a retratação de situações do contexto policial (nos casos analisados
bandidos e delegacia) que marcariam toda a primeira fase da obra de Léo. Em ambos,
ainda, a posição das crônicas no pé da página, a propósito, a mesma quarta página. Cabe
ainda sublinhar que com o Avesso da Vida vinham diagramadas logo acima as seções fixas
criadas por Mitke com horóscopo e palavras cruzadas e comentários sobre a programação
da TV. Na de 1968, o registro de santos do dia e na 1986, o Cantinho das Canções (seção
também idealizada por Mitke) que traria pagodes e sambinhas de compositores admirados
pelos moradores do subúrbio do Rio, tendo no elenco nomes consagrados por este público,
como Oswaldinho da Cuíca, e outros ainda pouco conhecidos fora de seus bairros.
25
Cabe destacar que em 1986, O DIA já havia mudado de mãos. Três anos antes, o
jornalista Ary Carvalho comprara o jornal de Chagas Freitas. No ano do negócio – assinado
em 14 de outubro e consolidado dois dias depois, Ary também era dono do jornal Última
Hora. Em um primeiro momento o empresário em nada mudaria na linha editorial de O
DIA, como informou ao assumir a presidência do matutino em comunicado publicado na
primeira página de O DIA:
Ary Carvalho na presidência de O DIA: O jornalista Ary Carvalho assume, a partir de hoje, o controle acionário e a presidência de O DIA. O novo proprietário manterá a mesma linha editorial do jornal fundado há 32 anos pelo jornalista (sic) Chagas Freitas. (Primeira página de O DIA, “O jornal de maior circulação no país”, 16 de outubro de 1983).
Importante frisar que, fundado em 1951 por Samuel Wainer, vinte anos depois o
jornal Última Hora foi vendido por Wainer a um grupo que já havia arrendado o jornal
Correio da Manhã e era liderado por Maurício Nunes de Alencar. Dois anos depois, o
jornal passou a ser arrendado pelo jornalista Ary Carvalho (ex-repórter do próprio UH e
então dono da empresa de sociedade anônima Ary Carvalho Editora, ou simplesmente Arca
Editora S.A.). Em 1987, já à frente do jornal O DIA, Ary Carvalho vendeu o UH ao
empresário José Nunes Filho, que o comandaria até o ano de 1991, quando teve a falência
decretada pela Justiça em função de dívidas com fornecedores e ex-funcionários. (In
Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, verbete Última Hora, versão online
http://cpdoc.fgv.br/dhbb/htm/dhbb_ultimahora.htm, acessada em 08 de setembro de 2008.)
Ao manter a linha editorial do jornal O DIA, a presença de Ary consequentemente
em nada alteraria, nesta fase do matutino carioca, o estilo das crônicas de Léo Montenegro,
como pode ser notado na crônica de 14 de maio de 1987, três anos e meio após Ary
comprar o DIA e no mesmo momento que o empresário se desligaria do jornal Última Hora
para começar a empreender mudanças no matutino popular que comprara de Chagas
Freitas.
Nesta crônica de 1987 (ANEXO VI), os elementos característicos da primeira fase
da obra de Léo Montenegro: o desfecho com personagens presos no “xadrez”, a referência
a bairros do subúrbio do Rio (Cordovil e Jacarepaguá) e a predominância de diálogos
servem para contar como terminaria em confusão a festa que o personagem de nome
26
insólito, Gersonildo, pretendia dar em família após ganhar no (jogo do) bicho e com o
dinheiro comprar um peru. No breve texto, referências ao preço “camarada” do prato,
classificado pelo cronista como acepipe, que o filho de cinco anos nunca havia comido e
que os vizinhos e seus agregados também iriam cobiçar. Com particular fluência, a crônica
insinua diálogo de baixo calão (Então você pega esse seu peru e ...) que resultaria na
confusão entre Gersonildo e sua mulher com os vizinhos e agregados, sendo que alguns
terminariam não comendo o cobiçado peru, mas sim a “canja miserável” de um hospital.
As mudanças que Ary Carvalho empreenderia em O DIA seriam graduais, de modo
a não perder leitores fiéis e a conquistar outros. Esse cuidado garantiria a Léo o espaço do
Avesso da Vida mesmo quando O DIA se transformava, ganhando novos cronistas e
colunistas. Uns de prestígio intelectual e político, como Arthur da Távola (começou a
escrever crônicas de terça-feira a domingo na edição de 16 de dezembro de 1987) e Millôr
Fernandes (escreveu entre 10 de setembro de 1995 e 3 de agosto de 2000) e outros de forte
apelo popular, como a crítica de programação televisiva e shows Maria Helena Dutra (sua
seção estreou em 18 de dezembro de 1987), como a personalidade do mundo do samba
carioca Ruça (sua coluna foi publicada pela primeira vez em 4 de julho de 1988, quando ela
presidia a Escola de Samba Vila Isabel) e como o ator e diretor de teatro e televisão Miguel
Falabella (suas crônicas sobre o Rio começam a ser publicadas em 26 de janeiro de 1991).
Ary também inauguraria seções novas no matutino, como o Caderno Grande Rio,
voltado para noticiário da Baixada Fluminense (foi às bancas pela primeira vez em 2 de
outubro de 1988), a edição dominical do Caderno D (suplemento de cultura que estreou aos
domingos em 20 de maio de 1990), o Caderno de Automóveis (publicado às quintas-feiras
desde 12 de setembro de 1990 e que ganhou o nome Automania em 27 de janeiro de 2000),
o Caderno Esportivo (com forte cobertura dos clubes cariocas de futebol, tendo sido
lançado em 6 de julho de 1992 e mudado para o nome Ataque em 17 de agosto de 1997) e o
Caderno de Empregos (suplemento dominical com oferta de vagas que circula desde 17 de
janeiro de 1993).
Ary também modernizaria a produção do jornal, inaugurando novo parque gráfico
(em 03 de julho de 1992), o que permitiu a publicação de fotos coloridas (estréia em 05 de
julho do mesmo ano) e de cadernos regionais com circulação restrita em algumas regiões
do estado do Rio, como Serrana (estréia em 17 de agosto de 1993), Norte e Noroeste (em
27
31 de agosto de 1993), Grande Niterói (a partir de 27 de agosto 1995) e Baixada
Fluminense (em substituição ao Caderno Grande Rio, a partir de 1º de outubro de 1995).
Com essas modificações o jornal O DIA passou a atingir públicos distintos e a
liderar as vendas de exemplares em banca em todo o estado (em 1998 bateu a marca de 1
milhão de exemplares vendidos em banca aos domingos). Não perdeu, porém, seu foco em
grupos de leitores específicos, notadamente aposentados do INSS, servidores públicos da
área meio (atendentes de repartições, agentes administrativos e secretárias) e moradores do
subúrbio do Rio e Baixada Fluminense. Léo Montenegro acompanhou essas mudanças em
suas crônicas, tornando mais gerais as referências aos subúrbios da cidade do Rio e
aumentando as citações indiretas sobre o que o público via na televisão e acompanhava no
noticiário político e cotidiano não-policial. Mostrou uma versatilidade que já exercitara
antes mesmo de Ary assumir o jornal O DIA, quando sua coluna começou a circular no
suplemento dominical Jornal da Televisão e de Mulheres, que passou a ser publicado em 9
de setembro de 1979 e ainda estava na bancas quando da morte de Léo.
Em uma de suas crônicas no Jornal da Televisão e de Mulheres, a de 14 de outubro
de 1984, uma demonstração do que seria o estilo de Léo nessa segunda fase de sua obra
(que para efeitos teóricos nesta dissertação pode ser entendida entre 1987, quando Mitke
deixa o jornal, passa pelas transformações empreendidas por Ary e termina com a morte do
autor em 2003). Nessa crônica (ANEXO VII), inserida em um suplemento voltado para o
público feminino e publicada no alto de página e não no rodapé, o protagonista com seu
nome insólito seria uma mulher, sua temática, a busca por um marido, e a referência a
assuntos econômicos, tão comuns ao longo dos anos 1980 com seus sucessivos programas
de controle da inflação. Tais aspectos, impensáveis nos primórdios do Avesso da Vida,
marcariam a segunda fase da coluna, quando as crônicas passaram a dedicar especial
atenção ao Carnaval de Rua do subúrbio, então mergulhado no ostracismo diante da ampla
cobertura televisiva que ganharia o Desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial na
Avenida Marques de Sapucaí.
É isso que pode ser percebido na crônica de 27 de fevereiro de 2003 (ANEXO
VIII). Nela, o personagem central é Nescrópio, que procura uma loja para comprar uma
fantasia de Carnaval. A crônica se passa no interior da loja, onde Nescrópio tenta encontrar
uma roupa de mulher árabe semelhante a de Jade, personagem central da novela ‘O Clone’,
28
exibida no horário das oito da noite na TV Globo entre os dias 1º de outubro de 2001 e 15
de junho de 2002. Com 221 capítulos, a trama, de autoria de Glória Perez, conta a história
de amor entre Jade (Giovanna Antonelli) e Lucas (Murilo Benício), que se conhecem no
Marrocos. (In http://www.jaymemonjardim.com/clone/conteudo.htm, consultado em 10 de
outubro de 2006).
Voltando à crônica de Léo Montenegro, Nescrópio procura uma fantasia semelhante à
roupa de Jade. Diz que vai comprá-la para a esposa e, por isso, quer uma fantasia que
esconda bem o rosto. No fim do texto a revelação: a fantasia seria usada por ele mesmo,
que até então se mostrara um genuíno machão suburbano carioca. Diz o personagem ao sair
da loja: “– Mal posso esperar o momento de arrasaaaaar lá no baile!”.Vale destacar que se
trata de baile de coreto, evento carnavalesco típico de periferia, e não de baile de hotel ou
teatro, evento característico da área central e da Zona Sul do Rio.
Escanildo, da crônica de 1º de março do mesmo ano (ANEXO IX), é o esperto
carioca que tenta driblar toda a família para brincar os dias de folia sozinho no coreto do
bairro, onde a Prefeitura do Rio promoveria um baile popular. Desde os anos 90 a Riotur
promove bailes ao ar livre, de sábado à terça-feira de Carnaval, em pontos espalhados pela
cidade. Na Zona Norte, muitos desses bailes têm as bandas instaladas em coretos. Escanildo
diz querer levar toda a família ao coreto, disfarçando não saber que o filho desejava ver
pela TV o desfile das escolas de samba do Grupo Especial do Carnaval do Rio, que a sogra
sonhava aproveitar a folia e o sol para se banhar no Piscinão de Ramos e que a mulher
pensava em passar a festa de Momo num retiro espiritual sem coloração religiosa evidente.
Por fim, ele é desmascarado pela esposa, que dá uma surra no personagem. Escanildo passa
o Carnaval sambando deitado na maca no “Hospital Souza Aguiar, que fica bem pertinho
do Sambódromo”.
Interessante observar como Léo Montenegro ambienta suas crônicas, com ganchos na
contemporaneidade. O Piscinão de Ramos foi idealizado pelo Governo do Estado do Rio de
Janeiro, em parceria com a Petrobras, como Projeto de Requalificação Urbana da Praia de
Ramos. Foi inaugurado em dezembro de 2001 e, em abril de 2002, sua denominação foi
alterada para Parque Ambiental da Praia de Ramos. A sua criação teve como objetivo
principal recuperar o espaço urbano local. O lago (piscinão) é abastecido com água da Baía
29
de Guanabara, tratada por uma estação de tratamento de água, segundo o site
www.terranova.org.br/proj_piscinao2.htm, consultado em 11 de outubro de 2006.
Antes de debruçar sobre a aproximação da obra de Léo com os chamados cronistas de
Momo, cabe um olhar prévio sobre esse estilo literário no qual as crônicas do Avesso da
Vida se inserem. Cabe, em particular, uma análise sobre o verniz malandro dos personagens
centrais de suas crônicas, um verniz comum ao conjunto de sua obra, presença marcante
nas duas fases apontadas por esta dissertação.
30
2.2 - Crônica literária ou coluna jornalística?
Jornalista, Léo Montenegro não chamava seu espaço literário no matutino O DIA de
crônica. Chamava-o de coluna, como pode se comprovado na entrevista de 2001 já
mencionada nesta dissertação. Coluna é uma referência mais jornalística que crônica. Diz
respeito à divisão dos jornais, em colunas separadas por pequenos espaços. O titular da
coluna é o colunista, indivíduo inserido na redação, que redige seus textos dentro dela em
meio aos repórteres, redatores, fotojornalistas e editores. Para Léo e seus contemporâneos,
como Nylson Guimarães Peixoto, cronista é alguém que redige seus textos fora da redação
e os encaminha para redatores e editores os colocarem nas páginas do jornal. Avesso da
Vida, para eles, era uma coluna. Os textos de Arthur da Távola, crônicas.
Na classificação de Léo e seus contemporâneos, supõe-se, pesava mais o fato de, em
seus 37 anos de Avesso da Vida, Léo ter redigido suas crônicas dentro da redação durante
27 anos e as ter escrito de casa apenas nos últimos 10 anos, exatamente quando se
aposentou do “jornalismo”. Já em seus últimos anos de vida, com a redação de O DIA já
renovada e Léo em casa, Avesso da Vida passou a ser tratado internamente pela nova
geração de jornalistas como crônica, afinal o texto vinha de fora para ser editado na
redação.
Com a permissão que o distanciamento temporal permite, cabe afirmar que as
colunas de Léo são crônicas e que o conjunto de textos do Avesso da Vida (pelo menos
11.700) é uma obra completa em forma de cronismo diário. Por que? A resposta vem do
professor Jorge de Sá. Ele destaca (SÁ, 2005, p. 7) que o termo crônica é definido
habitualmente como soma de jornalismo e literatura, exatamente como se propunha o
Avesso da Vida e seu autor desde os anos 60 até o seu encerramento em 2003.
Sá pontua que as crônicas derivam do período de influência literária, quando
grandes escritores comandavam as redações, determinando a linguagem e o conteúdo.
Deriva, portanto, dos folhetins, só que com a linguagem mais solta que faz mais lembrar
uma conversa do que um texto literário. Trata-se, porém, de uma conversa entre o narrador
e seu público leitor, que tem as páginas dos jornais — com seus limites editoriais, espaciais
e ideológicos — como ponto de encontro.
“Daí a imagem do narrador-repórter, [que] dirige-se a uma classe que tem preferência pelo jornal em que ela [a crônica] é publicada (...), o que significa uma espécie de censura ou, pelo menos, de limitação: a ideologia do veículo
31
corresponde ao interesse dos seus consumidores, direcionados pelos proprietários do periódico e/ou pelos editores-chefe de redação. Ocorre ainda o limite de espaço, uma vez que a página comporta várias matérias, o que impõe a cada uma delas um número restrito de laudas, obrigando o redator a explorar da maneira mais econômica possível o pequeno espaço de que dispõe. É dessa economia que nasce sua riqueza estrutural.” (SÁ, 2005. p. 7 e 8)
É nesse direcionamento de seus textos a uma classe que tem preferência pelo
popular O DIA, público-alvo bem definido pelos interesses conjunturais dos dois
proprietários que comandaram a empresa nos 37 anos do cronismo diário de Léo
Montenegro, que se encontra explicação possível para a escolha de personagens do Avesso
da Vida. São moradores suburbanos com nomes insólitos, como já dito aqui, sendo eles e
seus pares tipos humanos identificados nas crônicas por características físicas de forma
politicamente incorreta (careca, gordão, baixinho, caolho etc), por sua ocupação ou fonte de
renda (aposentado, bicheiro, dona de casa, delegado etc) ou por seu grau de parentesco
(sogra, filho, mulher etc).
Outro aspecto comum às crônicas é que seus personagens são integrantes de blocos
carnavalescos de bairros suburbanos. Em nenhum momento integram escolas de samba
conhecidas do Carnaval do Rio. Seus blocos são desorganizados, que promovem ensaios e
desfilam nos dias de Carnaval mas em locais periféricos, como ruas do bairro onde se
localizam. São blocos “da comunidade”, como gostava de caracterizar o autor. Por este
motivo, estão inseridos na vida dessa comunidade, sendo lembrados mesmo em situações
não diretamente relacionadas ao Carnaval, como pode ser conferido na crônica intitulada
“A Diferença”, publicada em 20 de maio de 1994 (ANEXO X). Nela o personagem
secundário identificado como “negão”, interessado na personagem central Eustrázia, cogita
convidá-la para o cargo de madrinha da bateria do bloco da comunidade, uma deferência
para a senhora que na crônica é definida por suas formas nada esbeltas (“A gente nunca
sabe quando a dona Eustrázia tá indo ou vindo!”) e até assustadoras (“Se ela tirar a blusa
aqui na rua, vai assustar criancinhas, nós teremos pesadelos terríveis, os croquetes do bar
vão ficar revoltados, o...”).
Reforçando o que pode ser conferido nas crônicas já citadas acima, cabe sublinhar o
que o professor Jorge Sá (2005) destaca como liberdade dos cronistas que, em seus textos,
tanto podem tratar de um acontecimento jornalístico, quanto fazer um comentário acerca
desse acontecimento. Podem ainda inventar personagens e dar um toque ficcional aos seus
32
textos. Com isso, conto e crônica se aproximariam e quase se igualariam caso o ofício do
cronista não fosse menos denso que o do contista. Isso ocorre uma vez que o narrador, na
maioria das vezes, é o próprio cronista. Alguém que produz seu texto sob a imposição da
indústria jornalística quanto à simplicidade da linguagem e quanto ao pouco apego literário.
Ora, em linhas gerais, a crônica só terá a efêmera duração das 24 horas da edição do jornal
que a veicula.
Tendo em vista o que já se falou da obra de Léo até aqui, cabe reforçar a adequação
de seus textos à classificação de estilo proposta por Sá (2005). Em particular, o “pouco
apelo literário”, que distancia as crônicas do Avesso da Vida do cânone consagrado, mas
que, visto com o distanciamento hoje possível, acaba por se tornar uma característica que
valoriza a obra de Léo. Valoriza porque mostra que a obra hoje encerrada pela morte do
cronista tem estilo com marcas autorais e características que a inserem na tradição cronista
e literária nacional apesar de seus limites espaciais (o Avesso da Vida tem no máximo uma
lauda, o que equivale a 30 linhas em folha de papel A4, espaço 1,5), da necessária
adequação vocabular e temática voltada para o público-alvo do jornal popular e dos
direcionamentos editoriais do veículo. Cabe reafirmar ainda que o veículo, o matutino O
DIA, nasceu como suporte político de cunho populista, profissionalizado apenas após Ary
Carvalho assumir o comando e empreender mudanças, na década de 90, o que se refletiu
gradualmente durante 13 dos 37 anos do Avesso da Vida.
Tal simplicidade e falta de perenidade das crônicas como as de Léo não fazem do
gênero algo menor, ainda mais quando se leva em consideração que autores consagrados da
tradição literária nacional, como José de Alencar e Machado de Assis, experimentaram em
crônicas de jornais personagens e temas que posteriormente iriam reaparecer em seus
romances. São eles que consolidam o gênero exatamente nos primórdios da formação da
tradição literária nacional.
2.3 – O registro do cotidiano na literatura
Em biografia recente do escritor José de Alencar, o jornalista Lira Neto (2006) fala
dessas primeiras crônicas veiculadas na imprensa brasileira do Segundo Reinado. Situa
Alencar entre esses primeiros cronistas de meados do Século XIX.
Sem exceção, os periódicos seguiam todos a mesma fórmula já aprovada pelo público leitor. Nos dias úteis, saíam os folhetins literários, ou seja, romances
33
escritos em capítulos, em sua grande maioria traduções de romances franceses. Os fins de semana, principalmente os domingos, eram reservados aos folhetins em forma de crônica, a exemplo daqueles que Alencar havia sido contratado para escrever no Diário do Rio de Janeiro. “Não sei se darei conta da tarefa; mas a falar a verdade, pouco abalo se dá isso num tempo em que o cumprimento da promessa é cousa que passou de moda e já não está em voga. Sobre mérito literário não falemos, é outra antigalha, outro prejuízo a que não se dá grande peso”, advertiria aos leitores, com malícia, em seu folhetim de estréia (NETO, 2006, p. 90)
A professora Marlyse Meyer (1996, p. 351), em sua extensa pesquisa acerca dos
folhetins, extrai um texto referencial sobre romance-folhetim francês do início do Século
XX, fazendo paralelo com os folhetins consumidos por leitores operários (especialmente de
origem italiana) do Brasil do mesmo período. No texto, menção ao romance-folhetim sobre
a vida do povo, possível primórdio do cronismo literário sobre o povo da periferia (no caso
moradores do subúrbio do Rio) que caracterizaria o Avesso da Vida.
Esses romances-folhetim sobre a vida [do povo] têm dois aspectos. O primeiro, óbvio: distraem , interessam, fazem passar o tempo. O segundo: discutem as dificuldades da vida, suas armadilhas, suas desgraças, seus riscos, o infortúnio e a miséria dos coitados. E um aspecto não exclui o outro. Por que haveria de excluí-lo [...] E de todas essas misérias cotidianas ficou esta massa de romances-folhetim que delas testemunham [...] “Os Gritos da Miséria humana”, pedra angular da literatura popular. (JEAN LECLERCQ apud MEYER, 2005, p. 351-352)
Neste aspecto, crônicas herdeiras dos romances-folhetim sobre a vida do povo,
como as escritas por Léo Montenegro, evidenciam o poder de registro de época das
crônicas de maneira geral. Ora, para ser registro de época, a crônica não precisa
necessariamente retratar fatos ocorridos ou fazer referência à política ou à economia do
momento em questão. As angústias, as queixas, as situações descritas, os diálogos, mesmo
que fictícios, são traços documentais para o historiador, que pode encontrar no texto, por
exemplo, o que era naturalizado por aquele público naquele momento, o que era motivo de
riso, e o que era considerado desgraça. Como afirma a professora Margarida de Souza
Neves, na coletânea de artigos Cronistas do Rio organizada por Beatriz Resende, “(...) o
historiador encontra na crônica não apenas a personalíssima escrita do cronista, mas o
espírito do tempo, num sentido quase hegeliano.” (RESENDE, 2001, p.23)
Um exemplo dessa “naturalização” na obra de Léo está na crônica publicada no dia
21 de junho de 2003 (ANEXO XI). Nela, o personagem Grindélio passa aperto para
34
encontrar os sapatos e enfim participar do ensaio de uma peça de teatro em que trocaria
beijos com três mulheres. A esposa dele, intrigada, quer saber: “Que ensaio? O Carnaval
ainda tá muito longe!”. Tal referência à festa popular se insere no texto mostrando que no
universo cultural dos personagens retratados pelo cronista, o primeiro pensamento que vem
à cabeça diante da palavra ensaio é ensaio de Carnaval, para o desfile nos dias de folia. A
citação não é gratuita, uma vez que está intimamente ligada à rotina dos apaixonados pelo
Carnaval carioca. Afinal, começam timidamente em agosto ou mais tardar em setembro os
ensaios das escolas de samba e blocos carnavalescos para escolha dos sambas enredos e
definição das alas que desfilarão no início do ano seguinte.
O espírito do tempo encontrado nas crônicas se revela com importante material não
só para o historiador, mas também para o educador que usa contemporaneamente os meios
de comunicação em sala de aula. Em reportagem publicada em O DIA na edição de 3 de
outubro de 1998 a professora Marise Borges, então lecionando na Escola Municipal
Frederico Eyer, da Cidade de Deus, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, revelava que
fazia naquele ano trabalhos com os alunos usando o jornal, em particular as crônicas do
Avesso da Vida. A escola fazia, então, parte do programa O Dia Na Sala de Aula, que
enviava exemplares do matutino para escolas públicas de modo a formar novos leitores. A
professora aproveitava a cortesia para dramatizar situações descritas nas crônicas do Avesso
da Vida.
“Por ser uma sessão que trata de assuntos do cotidiano as crianças se identificam com algumas histórias e, por isso, gostam de trabalhar com elas", explica a professora. O trabalho que os alunos de Marise fazem em cima da Avesso da Vida é uma dramatização. "Nós conversamos muito para sobre a história antes de dramatizá-la. Falamos sobre os personagens para poder fazer a composição", conta Marise. Ela diz que os próprios estudantes escolhem as crônicas que querem representar e depois discute-se a história. Segundo Marise, nesses debates os alunos têm a oportunidade de discutir os valores que fazem parte da sociedade. "Quando a gente está nessa fase da atividade, as crianças se põem na situação dos personagens e, por isso, consigo falar sobre valores, sobre certo e errado", explica. (Jornal O DIA edição de 03/10/1998, página 99)
Na reportagem, a professora revelou que acabara de virar esquete a crônica “Velório
do Chefe” do Avesso da Vida. Mas ela referia-se à crônica “Ir ou não ir”, publicada em 18
de abril de 1998 (ANEXO XII). Nela, Léo conta a história de um homem simples em
35
dúvida se vai ou não ao enterro do chefe que acaba de morrer. Pensa que velório de rico é
cheio de frescura.
A crônica também é o registro daquilo a que não foi dado importância, do que
escapou aos olhos da imprensa ou mesmo do historiador, dos fatos miúdos e corriqueiros,
dos sentimentos, das situações do dia a dia. É um olhar subjetivo sobre fatos selecionados,
assim como tantos outros. Como afirma NEVES, crônica e história são escritas
memorialísticas (RESENDE, 2001, p. 27). Porém, enquanto o historiador “se acostumou a
medir o tempo por séculos” (RESENDE, 2001, p. 24), afirma a pesquisadora, o cronista “se
reconhece como ‘historiador das coisas miúdas”.
A crônica é um registro então dessas “coisas miúdas”, rotineiras, captadas pelo
cronista que anda pelas ruas e, no caso de Léo, pelo subúrbio do Rio. É um texto sem
pretensões de durabilidade nem de eternizar a obra e seu autor, como pontua Antonio
Candido (CANDIDO, 1992, p. 14). E é exatamente esta despretensão, continua Candido,
que humaniza, que aproxima o leitor do que está sendo contado. A crônica, segundo o
crítico, “pega o miúdo e mostra nele sua grandeza”.
“Ela não foi feita originariamente para o livro, mas para essa publicação efêmera que se compra num dia e no dia seguinte é usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da cozinha. Por se abrigar neste veículo transitório, o seu intuito não é o dos escritores que pensam em ‘ficar’ (...). Por isso mesmo consegue quase sem querer transformar a literatura em algo íntimo com relação à vida de cada um, e quando passa do jornal ao livro, nós verificamos meio espantados que a sua durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava”. (CANDIDO, 1992, p. 14-15)
Em vida, Léo publicou um único livro, em 1976, com suas crônicas. Nele reuniu,
como dizia a amigos, suas melhores histórias. Teria vendido mais de 100 mil exemplares
em poucos dias. Brochura para ser vendida em banca, o livro em questão está esgotado.
Tratou-se de coletânea com 60 crônicas que já haviam sido publicadas em O DIA em anos
anteriores. Sua edição serviu para antecipar para o autor que sua obra teria durabilidade
maior que as edições diárias do matutino carioca, que serviram de suporte para o conjunto
de crônicas que hoje se apresenta como volumosa obra apesar de nunca ter sido esse seu
objetivo.
Caso exemplar de cotidiano tornado literatura na obra de cronista está no Avesso da
Vida “Uma lâmpada queimada”, publicado em 16 de março de 2003 (ANEXO XIII). Nele,
36
Alternaldo conta com a ajuda de amigos que seguram uma escada pela ele trocar uma
lâmpada. Mulher, sogra e filho começam a alertar para o risco de queda da escada e
Alternaldo se queixa do mau agouro que vem dos alertas feitos pela família e pelos próprios
amigos. “Em vez de ficarem me agourando, façam o favor de segurar a escada! Ela tá
sambando como se ainda fosse Carnaval!”, diz para em seguida, distraído, tocar num fio
desencapado, tomando um choque que também é sentido pelos amigos que seguravam a
escada. Na nada relevante troca de uma lâmpada, referências a costumes suburbanos, como
tomar cerveja num bar e a naturalização de atos nobres de aparente desimportância, como a
doação de sangue.
A despretensão é que aproxima a crônica do leitor, ensina Candido (1992). É ela
que garante o seu sucesso, que agiganta um gênero considerado menor. O que parece estar
por trás dessa diferenciação de enfoques é a função que se pensa para a crônica: ela deve
registrar, noticiar, criticar ou divertir? Não há uma fórmula nem uma receita a seguir. O
tom das crônicas, suas temáticas, a relação com o noticiário são características variáveis ao
longo dos anos e que oscilam dentro da obra de um mesmo autor como Léo Montenegro.
Se a carta de Pero Vaz de Caminha representa “a criação de um cronista no melhor
sentido literário do termo”, como afirma Sá (2005, p. 5), pode-se inferir que o gênero teve
em suas origens uma forte ligação com a notícia, o relato, o registro. Mas não é qualquer
relato: é um texto que detalha o irrelevante, uma narrativa que leva em conta a experiência
vivida. “Estabelecendo essa estratégia, Caminha estabeleceu também o princípio básico da
crônica: registrar o circunstancial” (SÁ, 2005, p. 6). No jornalismo, não foram poucos os
cronistas que assumiram a função de comentar fatos já noticiados, criticar ações do
governo, pontuar o contexto político vivido pela sociedade em cada década. Tanto é assim
que o gênero nem sempre é de fácil percepção, sendo frequente a dificuldade na hora de se
distinguir, por exemplo, o trabalho dos articulistas, que comentam o noticiário, e o dos
cronistas, nas páginas dos jornais.
A forma dura do comentário político, da crítica panfletária, entretanto, não se tornou
dominante. Muitos cronistas adotaram a escrita leve, até com uma pitada de humor, para
comentar e criticar o momento político. Outros assumiram o tom de conversa com o leitor,
que deu à crônica a leveza e a intimidade que a caracterizam como gênero na atualidade.
37
Do comentário sério à conversa fiada, a crônica assumiu um “ar despreocupado”,
como afirma o crítico literário Antonio Candido (CANDIDO, 1992, p, 17-18), passando
uma ideia falsa de superficialidade. Como pontua o crítico, a crônica “foi largando cada vez
mais a intenção de informar e comentar (deixada a outros tipos de jornalismo), para ficar
com a de divertir”, o que não significa que tenha se afastado da crítica social.
“É importante insistir no papel da simplicidade, brevidade e graça próprias da crônica. Os professores tendem muitas vezes a incutir nos alunos uma idéia falsa de seriedade; uma noção duvidosa de que as coisas sérias são graves, pesadas, e que consequentemente a leveza é superficial. Na verdade, aprende-se muito quando se diverte, e aqueles traços constitutivos da crônica são um veículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão das coisas. “ (CANDIDO, 1992, p. 19)
Os textos de Léo Montenegro têm ingredientes que garantem a diversão, que
ajudam a amadurecer e debater assuntos graves fazendo rir. É o que constatou o anônimo
repórter que entrevistou em 1998 a professora e os alunos da Escola Municipal Frederico
Eyer, na Cidade de Deus. Após conversar com a docente e com os estudantes sobre a
dramatização da crônica “Ir ou não ir”, do Avesso da Vida, ele reportou:
“Nós adoramos fazer essa dramatização porque colocamos toda a nossa fantasia sobre como achamos que é um velório de gente rica. Ficou engraçado por isso", lembra Tainá Falcão, 11 anos, aluna da 4ª série, que diz estar se preparando, por meio dessa atividade, para ser atriz, seu sonho de futuro. Através dessa crônica Marisa diz que falou sobre diferenças sociais com seus alunos. "Trabalhando com essa crônica ficou mais fácil, por exemplo, discutir com as crianças as diferenças de classes”, observa a professora. (Jornal O DIA edição de 03/10/1998, página 99)
Quando escrevia os textos para o matutino, o autor não tinha ainda uma obra, a ser
vista toda reunida, não era essa sua preocupação. O cronista tem por meta apresentar ao
leitor o olhar irônico ou crítico acerca das coisas miúdas do dia a dia e, particularmente,
daquele dia, para seu público-alvo, o que compra o jornal para o qual escreve. E é esta
despretensão, seguindo Candido, que fisga o leitor, que transforma a literatura em “algo
íntimo com relação à vida de cada um”. Na obra de Léo, este “cada um” é o leitor que mora
no subúrbio do Rio, retratado com tamanho cuidado na tradição literária nacional apenas na
obra de Lima Barreto.
38
2.4 - Conversa com Lima Barreto no subúrbio do Rio
O termo subúrbio deriva do inglês suburb, cuja tradução literal é sub-cidade. Diz
respeito a áreas que ficam ao redor do aglomerado urbano central. Diferentemente dos
países como Estados Unidos e Canadá, onde os subúrbios são ocupados pela classe média
que mora em casas luxuosas e não apartamentos, no Brasil, como nos demais países da
América Latina, os subúrbios são marcados pelas vilas operárias, pela falta de infra-
estrutura e pelas casas simples e população de menor renda.
Nas metrópoles brasileiras, descreve o professor Flávio Villaça (2001), o subúrbio
decorre de um processo de segregação. Com as classes mais ricas ocupando as melhores
áreas de cidade. No caso do Rio de Janeiro, a orla foi a escolhida pela elite. Como a área
central urbana foi destinada a edifícios comerciais e do governo, teatros, museus e
biblioteca, os grupos de menor renda foram sendo empurrados para áreas de baixo interesse
imobiliário, especificamente os bairros suburbanos e as favelas.
Dado relevante na formação suburbana carioca se dá na reforma empreendida pelo
prefeito Pereira Passos e seus sucessores nos primeiros anos do século XX no centro urbano
do Rio de Janeiro. Conhecida como “Bota-abaixo”, a reforma foi inspirada na feita 50 anos
antes em Paris pelo prefeito barão de Haussmann e alargou ruas, afrancesou novas
imponentes construções, demoliu sobrados e expulsou os pobres dos cortiços centrais para
o subúrbio. Tal movimentação será ingrediente para cronistas do período, como pontua a
professora Beatriz Resende (2001).
(...) Ao cronista de plantão cabe a tutela da coisa pública, a guarda do espaço da cidade. O tom pode ser mais ou menos nostálgico, a defesa mais ou menos apaixonada, nela interferindo ou não o humor, conforme as circunstâncias da demolição, da interferência do poder (público) no cotidiano do cronista, do passante, do habitante. Como a interferência do poder público na própria anatomia do Rio de Janeiro, em sucessivas cirurgias (grifo da autora) é uma constante, tal assunto nunca faltou aos nossos escritores. A derrubada do casario colonial, a construção da Avenida Central, a demolição do morro do Castelo, o violento corte que o centro da cidade sofreu para que a monumental Avenida Presidente Vargas surgisse, à custa da Praça Onze, do Paço Municipal, e de igrejas barrocas, o aterramento da praia do Flamengo, a construção da ciclovia, tudo isso pode ser rememorado, analisando, investigando, a partir dos textos dos cronistas do Rio. (RESENDE, 2001, p. 52-53)
Especificamente preocupado com a movimentação social da reforma urbana está
Lima Barreto e seu emblemático olhar sobre o subúrbio carioca, exposto em crônicas e
39
também em romance, como o póstumo Clara dos Anjos. Especificamente a demolição do
morro do Castelo serviu de porta de entrada para Lima Barreto nos jornais de maior
circulação. Foi em 1905, com uma série de reportagens sobre a demolição, que Lima
Barreto fez sua estréia no Correio da Manhã.
Crítico do arbítrio com que se deram as mudanças estruturais no Rio de Janeiro no
Século XX, Lima Barreto pioneiramente pontua, em crônica de 1921, a divisão em duas
partes que se dava na cidade, uma “será a européia e a outra, a indígena”. Barreto vai além,
e se debruça sobre temas densos, como segregação racial na ocupação urbana dos
subúrbios: tratando da divisão da cidade em uma parte rica e outra pobre tocada pela
administração pública.
Vê-se bem que a principal preocupação do atual governador do Rio de Janeiro é dividi-lo em duas cidades: uma será a européia e a outra, a indígena. [...] dia pela manhã, quando vou dar meu passeio filosófico e higiênico, pelos arredores da minha casa suburbana tropeço nos caldeirões da rua principal da localidade de minha residência, rua essa que foi calçada há pelo menos cinquenta anos [...] Lembro-me dos silhares dos caminhos romanos e do asfalto com que a Prefeitura Municipal está cobrindo os areais desertos de Copacabana. Por que será que ela não reserva um pouquinho dos seus cuidados para essa útil rua das minhas vizinhanças, que até é caminho de defuntos para o cemitério de Inhaúma? Justos céus! (BARRETO, 1961, p. 116)
Assim, Léo segue uma tradição ao ambientar suas crônicas no subúrbio. Uma
tradição que tem Lima Barreto como expoente, com seu olhar peculiar, sua linguagem
coloquial e seu aguçado censo crítico de cunho social.
Quando há mais de vinte anos fui morar nos subúrbios, o trem me irritava. A presunção, o pedantismo, a arrogância e o desdém em que olhavam as minhas roupas desfiadas e verdoengas, sacudiam-me os nervos e davam-me ânimos de revolta. (Barreto, 1961, p. 245)
A professora Beatriz Resende defende, em sua obra sobre as crônicas de Lima
Barreto (1993), que a análise cuidadosa da tradição iniciada pelo autor contemporâneo à
formação do subúrbio carioca revela que as crônicas referentes à vida nessa parte do Rio de
Janeiro são bem próximas do ficcional. Ela pontua que nesses textos os habitantes
anônimos do subúrbio são tratados como personagens.
40
Léo, portanto, segue a mesma tradição de tornar os habitantes anônimos do subúrbio
personagens. Peculiar em sua obra, porém, sendo o que o distancia de Lima Barreto, é o
olhar lançado sobre este subúrbio, a perspectiva do flaneur que perambula pela cidade em
busca de diversão, o prisma da malandragem carioca a qual ele parece se incluir.
Esse é o caso da crônica publicada no Avesso da Vida em 2 de março de 2000 sob o
título “A carta” (ANEXO XIV). Nela, o personagem Enosprézio revela, ao avistar um
carteiro, ter parentes em, pelo menos, cinco bairros diferentes do subúrbio carioca (Pavuna,
Jacaré, Cascadura, Madureira e Méier). Revela uma situação cotidiana, como a curiosidade
despertada entre vizinhos suburbanos, em geral moradores em casas simples — muitas
compondo vilas, como já dito aqui — quando um carteiro aparece para entregar cartas ou
contas. Os demais personagens são anônimos, designados pela característica física (careca e
gordinho) e definidos apenas pelo grande número (multidão). Por fim, a carta faz rir ao
expor que seu texto, lido em voz alta pelo personagem central de nome insólito, acusava a
esposa dele de cometer traição. Enosprézio acaba tendo que ouvir a multidão gritar em
coro: “Corno! Corno!”.
Léo Montenegro não faz de suas crônicas um alto-falante para reclamar nem
reivindicar nada, de forma panfletária. Ele ambienta seus personagens suburbanos nos
novos cenários que lhes são impostos, como o trem de passageiros, sem fazer deles a razão
central da história contada. Mostra, nas entrelinhas, como aquilo reflete na vida das
pessoas, mas trata a mudança como inevitável, assim como ela se apresenta para a maioria
dos moradores do subúrbio, seus leitores.
Desta forma, o autor cria uma empatia com seu público, partindo do que já existe,
sem se colocar em local privilegiado, de porta-voz, na pretensão de que tem uma missão de
guarda da cidade. Não abdica, porém, de criticar costumes, expor situações inusitadas
estranhamente naturalizadas pelos moradores do subúrbio e retratar tipos humanos
tipicamente cariocas que, caso contrário, se manteriam no ostracismo ou seriam
inevitavelmente esquecidos sem mesmo terem sido conhecidos fora de seus ambientes
suburbanos.
Cabe aqui citar a crônica “Maus Momentos”, publicada em 26 de maio de 1994
(ANEXO XV). Ambientada no interior de um vagão de trem suburbano, retrata a má
conservação do transporte: sujo, com baratas, e com defeito, tendo possibilidade de abrir a
41
porta em movimento. Apresenta personagem com linguajar inculto (“...essa barata é
daquelas que avoam”) sem ridicularizá-lo, mas pontuando pelo riso se tratar da fala
incorreta. Naturaliza o fato de haver alguém armado entre os passageiros do trem (“ ... Um
nordestino, largando o ferro: - Faça isso e será um homem morto, porque se a barata sair
das suas costas e voar pra cima de mim não respondo pelo que vou fazer!”)
A história consiste em um dos passageiros do vagão, o personagem central
Florepildes, ter uma barata do tipo voadora nas costas. O dilema reside em um personagem
identificado apenas como Negão matar a barata dando um tapa nas costas de Florepildes ou
este se sacudir forçado a barata a sair de suas costas. Como é isso que o personagem central
faz, ele toma uma surra e a barata se esconde embaixo do banco do vagão, denotando a má
conservação da composição.
Além da naturalização de situações que causariam estranhamento fora do ambiente
suburbano, Léo Montenegro privilegia em suas crônicas também o registro de situações
cotidianas aparentemente banais dos moradores do subúrbio do Rio. Muitas ambientadas
sem fazer descrições (o espaço da crônica na página do jornal não permite), essas crônicas
levam o leitor para dentro das casas e vidas simples dos moradores locais. Esse é o caso da
crônica “O boa-vida”, publicada em 15 de novembro de 2000 (ANEXO XVI). Nela, o
personagem central, Juresvaldo, chega em casa após a aposentadoria. Comemora não ter
mais de pegar o trem suburbano da Central do Brasil e de poder, enfim, descansar do que
deve ter sido uma vida de árduo trabalho. Diante da reação da mulher e do filho, que
planejam tarefas para ele executar, passa a tentar a anulação da aposentadoria.
Os hábitos humildes de Juresvaldo e seus familiares — ele pensa em se divertir
jogando cartas com amigos numa praça próxima e o filho sonha em ser levado por ele mais
vezes ao Maracanã e ao circo — não questionam o cotidiano suburbano. Moram em casa (a
mulher diz que Jurevaldo terá de varrer o quintal), mas não é problema o entorno dessa
casa.
A violência na região, apesar de também naturalizada, não escapa da pena de Léo
Montenegro, que, pelo humor, a ridiculariza. Esse estilo pode ser visto na crônica “A
pendência”, publicada em 7 de fevereiro de 1998 (ANEXO XVII). Naquele ano como em
quase toda a década de 90, assaltos a ônibus estavam amedrontando cariocas de todo o Rio,
inclusive do subúrbio. A crônica retrata um desses assaltos, mas o insere numa confusão
42
tipicamente suburbana. Como o deslocamento de ônibus pelos bairros do imenso subúrbio
carioca é demorado, é comum um passageiro se incomodar com outro sentado a seu lado,
que esteja muito perto. Não raro um passageiro reclama com outro o fato de ele estar
encostado apesar de haver espaço no banco do ônibus. É numa dessas confusões que o
assalto acontece e nenhum passageiro dá atenção aos bandidos enquanto a bate-boca (com
insinuações sobre sexualidade) não termina. Como habitual nos textos de Léo Montenegro,
tudo acaba numa imensa briga, que fere até mesmo os assaltantes armados. Todos acabam
em um hospital.
Ao ironicamente pontuar mazelas suburbanas contemporâneas, mesmo que de
forma humorística, Léo Montenegro dá sinais de continuidade literária com as crônicas
sobre o subúrbio do início do Século XX. Continuidade que pode ser identificada até
mesmo com a produção romancista de Lima Barreto, um expoente desses cronistas
históricos como já dito aqui. Em Clara do Anjos — romance editado pela primeira vez em
1948, mas cuja redação data entre 1904 e 1922 — o abandono do subúrbio é apresentado
não pela falta de policiamento ou pela violência (problemas contemporâneos do subúrbio e
cujo agravamento se deu na década de 1990), mas, sim, pela falta de infraestrutura, ainda
presente, mas não nas cores do início do Século XX. Esse abandono pode ser conferido nas
descrições feitas no romance (que tem espaço para tanto), como a em que Lima Barreto
constrói a rua em que morava a família dos Anjos:
A rua em que estava situada a sua casa desenvolvia-se no plano e, quando chovia, encharcava e ficava que nem um pântano; entretanto, era povoada e se fazia caminho obrigatório das margens da Central para a longínqua e habitada freguesia de Inhaúma. Carroções, carros , autocaminhões que, quase diariamente, andam por aquelas bandas a suprir retalhistas de gêneros que os atacadistas lhes fornecem, percorriam-na do começo ao fim, indicando que tal via pública devia merecer mais atenção da edilidade. (BARRETO, s/d. p. 17)
Ambientado no subúrbio do Rio de Janeiro, o romance conta a história da mulata
Clara dos Anjos, que se apaixona e é enganada pelo malandro branco Cassi Jones. Morador
na mesma região que a personagem-título, Cassi tem vida financeira um pouco mais
tranquila que a dela. A proteção da mãe garante a ele vida de sedutor: com tão pouca idade
— menos de 30 anos — “contava perto de dez defloramentos e a sedução de muito maior
número de senhoras casadas”. (BARRETO, s/d. p. 22). Clara dos Anjos entra no rol de suas
43
vítimas. Grávida, a personagem revela sua condição à família quando o malandro já está
bem longe. Expondo divisão de classes, Lima Barreto evidencia no romance latente
preconceito racial. Quando a mãe de Clara dos Anjos entra em contato com a mãe de Cassi,
vê a si própria e a filha tratadas com desdém racial, chamadas de “gente dessa laia” e de
aproveitadoras.
— Engraçado, essas sujeitas! Queixam-se de que abusaram delas ... É sempre a mesma cantiga ... Por acaso, meu filho as amarra, as amordaça, as ameaça com faca e revólver? Não. A culpa é delas, só delas ... (Barreto, Lima. Clara dos Anjos, s/d. p. 104)
Abandonada e grávida do malandro, Clara dos Anjos sentencia para a mãe na última
página do romance: “— Não somos nada nesta vida” (p. 105).
A retratação de malandros e suas vítimas é outro ponto de continuidade encontrado
entre as crônicas de Léo Montenegro e obras consagradas da tradição literária brasileira. No
rol estão o Leonardo, do Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de
Almeida; o Cassi de Clara dos Anjos, de Lima Barreto e Macunaíma, do romance
homônimo de Mário de Andrade.
Diálogo direto entre Léo Montenegro e essa tradição que remonta o Romantismo
brasileiro está na crônica do Avesso da Vida publicada em 1º de dezembro de 1968
(ANEXO XVIII). Com o título “A Fofoca” ela também relata um caso de sedução como o
presente em Clara dos Anjos. Na crônica, o malandro Alarico tenta despistar da mulher e da
família um caso de adultério com a “guria” Esmeraldina. Sendo do mesmo nível social da
vítima — ambos moram em um morro não localizado com precisão —, acata conselhos de
amigos e tenta se livrar do que estava chamando de “fofoca”, promovendo uma confusão na
casa da vítima. Mostra indignação, mas, diferentemente do destino de Cassi, é
desmascarado por Esmeraldina. Leva uma surra e termina internado em hospital público do
bairro de Marechal Hermes.
Em “A Fofoca”, crônica publicada numa edição de domingo que teria validade,
naquele ano, também para a segunda-feira, dia 2, nota-se a retratação de linguajar pouco
usual para jornais da época, como sinais de oralidade popular. É o caso de “mermo”, do
“fofoqueiras de carteira assinada” e do “fim da picada”, sinais de continuidade com o
malandro de Mário de Andrade e sua empreitada modernista. Texto localizado logo abaixo
da seção de palavras cruzadas, no pé da página — sobre duas cartas, sendo uma pedindo a
44
volta do teatro de revistas, com “rebolado” para “a gente ver” — a crônica de Léo
Montenegro de 40 anos atrás conversa pelo seu meio de divulgação com romances
publicados nos jornais do século XIX em forma de folhetins, berços das crônicas ficcionais,
tradição na qual o Avesso da Vida de Léo Montenegro se insere. Entre tais folhetins, um
conjunto de fragmentos em particular, o que resultou no romance Memórias de um sargento
de milícias, se comunica com a tradição literária brasileira de retratar malandros e anti-
heróis, também presente na obra de Léo Montenegro. Sobre esse diálogo em particular cabe
um detalhamento.
45
3 – CRÔNICA E FOLHETIM – GÊNEROS QUE DIALOGAM NA TR ADIÇÃO LITERÁRIA
Publicadas, como já dito, entre fios, na maioria das vezes nos rodapé e laterais dos
jornais, desde os primórdios as crônicas são associadas aos folhetins.
‘O folhetim é frutinha de nosso tempo’, disse Machado de Assis numa de suas deliciosas crônicas. E volta ao assunto na crônica seguinte. ‘O folhetinista é originário da Franca [...] De lá espalhou-se pelo mundo, ou pelo menos por onde maiores proporções tomava o grande veículo do espírito moderno; falo do jornal. ‘E Machado tenta “definir a nova entidade literária’, procura esmiuçar ‘a organização do novo animal’. Mas dessa nova entidade só vai circunscrever a variedade que se aproxima do que hoje chamaríamos de crônica. (MEYER, 2005, p.57)
Cabe aqui, ainda baseado na pesquisadora M. Meyer, definir folhetim como o
romance industrial, publicado em capítulos nos jornais, para ser acompanhado dia a dia
pelos leitores. Gênero nascido na França no século XIX, encontraria eco no Brasil do
mesmo período, tendo em vista a centralidade francesa naquele tempo. Aqui teria, como já
dito, José de Alencar e outros autores românticos como seguidores. Nesse rol, está inserido
Manuel Antônio de Almeida e seu Memórias de um Sargento de Milícias.
Jovem médico, Manuel Antônio de Almeida passou a escrever e fazer traduções
para jornal como forma de sustentar irmãos menores. Escreveu “Memórias” aos 21 anos de
idade (morreu aos 30) sob o pseudônimo “Um Brasileiro”. (SODRÉ, 1977, p. 218). A obra
despretensiosa e divertida foi publicada no formato de folhetim. Escrita possivelmente na
república estudantil onde o autor morava dividindo a despesa com outros estudantes, a obra
apresenta problemas, sendo exemplar o caso da personagem Chiquinha, identificada ora
como sobrinha (ALMEIDA, 1978, p 47) e ora como filha da comadre (idem p.62).
Narrador onisciente orientando a leitura, leitor incluso e linguagem quase
jornalística, marcadamente coloquial e fora aos padrões românticos vigentes no Segundo
Reinado (1840 a 1889), são outras características do romance, e que encontrariam
continuidade nas crônicas e nos romances de Lima Barreto, nos autores modernos e nas
crônicas do Avesso da Vida. Nada, porém, que comprometa sua importância para formação
da tradição literária nacional.
“...Memórias são um livro agudo como percepção das relações humanas tomadas em conjunto. Se não teve consciência nítida, é fora de dúvida que o autor teve
46
maestria suficiente para organizar um certo número de personagens segundo intuições adequadas da realidade social” (CANDIDO, 1970, p. 74)
Exatamente por destoar na linguagem e no estilo vigentes à época de sua publicação
(no formato de folhetim no Correio Mercantil do Rio de Janeiro, entre 1852 e 1853),
Memórias ... reúne ampla fortuna crítica, uma vez que a obra constituiu problema para a
visão tradicional da crítica preocupada em rotular e catalogar os textos a partir das
concepções próprias da periodização por estilos. A crítica pioneira de José Veríssimo
(1894) viu a obra como realismo antecipado. Posteriormente, Mário de Andrade (1941)
apontaria o romance como picaresco, ponto de vista reforçado por Josué Montello. Ambos
identificaram as matrizes do romance em obras como La vida de Lazarillo de Tormes
(1554), tratando-se, portanto, de “continuador atrasado” (CANDIDO, 1970, p. 67 ).
Seria Candido, já na sua obra referencial “Formação da Literatura Brasileira”, o
primeiro a apontar para além das duas visões, classificando o texto como “livro de
costumes urbanos, romance picaresco”, mas antecipando, porém, o que iria desenvolver no
ensaio do ano de 1970 ao lembrar que a narrativa evidencia equivalência do bem e do mal.
“Não há que considerar-se picaresco um livro pelo fato de nele haver um pícaro mais adjetival que substantival, mormente se a este livro faltam as marcas peculiares do gênero picaresco; nem histórico seria ele, ainda que certa dose de veracidade haja servido à criação de tipos ou à evocação de época; menos ainda realista, quando a leitura mais atenta nos torna flagrante o predomínio do imaginoso e do improvisado sobre a retratação ou a reconstituição histórica”. (CANDIDO, 1970, p. 67).
3.1 – Diálogo possível entre Manuel Antônio de Almeida e Léo Montenegro
Ao retirar de Leonardo, protagonista de Memórias, o adjetivo de pícaro
acrescentado pela fortuna crítica da obra e classificá-lo como o primeiro grande malandro
da “novelística brasileira, vindo de uma tradição quase folclórica e correspondendo, mais
do que se costuma dizer, a certa atmosfera cômica e popularesca de seu tempo, no Brasil”
(CANDIDO, 1970, p. 70), Antonio Candido traçaria um fio condutor do personagem de
Manuel Antônio de Almeida com o personagem símbolo do modernismo nacional:
Macunaíma, de Mario de Andrade. Fio que com facilidade pode ser estendido a alguns dos
personagens de Léo Montenegro, que, mesmo no espaço limitado da crônica em jornal
47
contemporâneo, buscou ao retratar no subúrbio do Rio a comicidade do malandro nacional,
inserido na tradição literária pelo jovem médico do Segundo Reinado.
Esse é o caso, por exemplo, da crônica de Léo Montenegro intitulada “O enredo
malandro”, publicada no dia 2 de janeiro de 1998. Nela, o personagem Arafobildo inventa
um fato histórico para o dono de um bar ser enredo do bloco carnavalesco do bairro. Tudo
com o objetivo de se alimentar e beber de graça. Consegue seu objetivo, mas fica
impossibilitado de voltar ao bar (ANEXO XIX). Em Arofobildo, a mesma suspensão de
juízo moral presente no teatro de Martins Pena e nas caricaturas de Araújo Porto Alegre,
contemporâneos de Manuel Antônio de Almeida e que possivelmente o influenciaram no
Memórias ...
Suspensão de juízo moral que chegou a ser tratada como tema central da crônica do
Avesso da Vida de 14 de agosto de 2001 (ANEXO XX). Com o título “O vigarista”,
idêntico ao dado à crônica de estréia de 1965, a narrativa, publicada fora de período
eleitoral, conta a história de Pilantrézio, malandro que se faz passar por candidato para
iludir pessoas humildes e almoçar de graça. Por fim comemora a esperteza sem nenhum
traço de culpa moral: “Esse conto do candidato é genial! Até a eleição, não morro de
fome!” Detalhe, a eleição seria apenas no ano seguinte.
No fato de Memórias ser apresentado como documentário restrito ao ignorar as
camadas dirigentes, de um lado, as camadas básicas, de outro (CANDIDO, 1970, p. 72), é
possível apontar outra aproximação É o caso de crônicas de Léo como a intitulada “O golpe
furado”, publicada em 29 de novembro de 1996 (ANEXO XXI). Nela o malandro
Escrovelino tenta obter dinheiro de seus iguais inventando que uma das mulheres do grupo,
com quem bebera em um bar na véspera, tinha como sonho conhecer a Disneylandia, lugar
que ela desconhecia totalmente e nunca desejara visitar. Ela, porém, inicialmente não se
lembra de ter revelado tal desejo e o malandro prossegue tentando arrancar dinheiro dos
amigos para financiar a viagem. Por fim termina desmascarado pelo grupo, formado por
iguais, trabalhadores da mesma classe social e moradores do mesmo bairro provavelmente
suburbano. Nenhum tem autoridade sobre o outro ou é subalterno de outro, revelando-se
documentário também restrito daquele universo social.
Nessa mesma crônica, o desfecho, com golpe do malandro Escrovenildo sendo
desbaratado antes de se realizar e tudo terminando numa briga, evidencia a dialética da
48
ordem e da desordem, apontada no ensaio de 1970 como outro traço inaugural na obra de
Manuel Antônio de Almeida.
“Ordem e desordem, portanto, extremamente relativas, se comunicam por caminhos inumeráveis, que fazem (em Memórias) do oficial de justiça um empreiteiro de arruaças, do professor de religião um agente de intrigas, do pecado do Cadete a mola das bondades do Tenente-Coronel, das uniões ilegítimas situações honradas, dos casamentos corretos negociatas escusas”. (CANDIDO, 1970, 76).
No golpe furado, o malandro tentando ludibriar amigos em cima da inocência de
uma das mulheres do grupo e sendo desmascarado, o equilíbrio da aparente ordem sendo
destruído pela desordem provocada pela revelação do golpe iminente. Por fim, o malandro
é internado em uma enfermaria e retoma a ordem ao tentar outro golpe, desta vez contra os
enfermeiros que o estavam atendendo.
Em outra aproximação possível entre o romance do Segundo Reinado e as crônicas
contemporâneas, a retratação de um mundo sem culpa, como já pode ser conferido na
crônica do falso candidato Pilantrézio, publicada em 14 de agosto de 2001. Em outra
crônica, esta de 24 de março de 2002, um marido esconde broche da mulher no quintal, se
faz de desinteressado quando ela dá falta e até ironiza a bijuteria para no fim, sem nenhum
remorso, trocar a descoberta da “jóia” perdida por noite de sexo com a esposa (ANEXO
XXII). Ora como aponta Candido (1970, p. 79), é em Memórias ... que, diferentemente de
quase todos os romances brasileiros do século XIX, se retrata pela “primeira vez um
universo que parece liberto do peso do erro e do pecado. Um universo sem culpabilidade”.
No romance os personagens transitam sem repressão, a não ser a que vem do
exterior por meio do Vidigal, figura ficcional que Manuel Antônio de Almeida teria
retratado a partir de um major que de fato teria existido e ganhado fama pelo rigor. É o
elemento guardião da ordem que, ao se apresentar de casaca militar e cuecas em um dos
trechos do romance, personifica a tênue linha da ordem e da desordem apontada por
Candido no ensaio de 1970.
Em Léo Montenegro, é impressionante como se pode identificar, em suas crônicas
dos primeiros anos do século XXI, a mesma linha tênue. Em um desses textos, como o que
levou o título “O careca e os otários”, crônica publicada em 12 de outubro de 2001
(ANEXO XXIII), todos os personagens estavam em um bar quando a determinação
49
inusitada para o comércio fechar é atribuída a um traficante. O equilíbrio inicial é
interrompido pelo medo, alimentado pela narrativa de situações fantasiosas protagonizadas
pelos bandidos. O grupo tem a ideia de subornar o traficante para manter o comércio, e
principalmente o bar onde estavam, abertos. Recolhem dinheiro e o entregam para o
personagem central, Esnervaldo, convencer o bandido a mudar de ideia em troca do mimo
financeiro. Ele volta radiante e a ordem é restabelecida, com o bar podendo continuar
aberto. Só o leitor fica sabendo, pelo narrador onisciente, que não havia ameaça alguma
nem traficante na região.
Cabe usar o exemplo acima e voltar ao trabalho inicial de Candido em “Formação
da Literatura Brasileira: Momentos decisivos” (CANDIDO, 2006, p. 531 – 535), para traçar
mais linhas de continuidade literária entre Memórias ... e a obra de Léo. Ambos,
empenhados na tarefa de timbrar costumes urbanos colocam seus personagens em
constantes movimentos, atingindo breves momentos da estática felicidade, que logo se
perde em mais e mais movimentos. Quando os acontecimentos por fim se entristecem, ao
cessar o movimento — em Memórias ... , com as mortes de D. Maria e Leonardo Pataca; ou
nas crônicas de Léo Montenegro, com personagens centrais sendo presos, espancados ou
internados em hospitais — coloca-se o ponto final.
Léo dialoga com Almeida também no que diz respeito aos personagens. Tomando
emprestada a caracterização proposta pelo crítico Antonio Candido (CANDIDO, 2006, p.
533) e a estendendo a Léo, cabe pontuar que ambos autores descrevem seus personagens
numa categoria mais social do que psicológica. Os nomes são substituídos pelas posições
que eles têm no grupo: em Almeida, “compadre”, “comadre” e “duas velhas”. Em Léo,
tomando como referencial em particular a crônica acima, que pode ser revista no anexo
XXIII, “magrinha”, “careca” e “gordão”. Uma vez definidos, permanecem, assim, de modo
a escaparem do tempo sugerido nos textos, em que os acontecimentos são mais importantes
que seus participantes e até mesmo que o protagonista.
Cabe recorrer a Candido para uma aproximação a mais, esta no campo dos
propósitos. Analisando Memórias, o crítico literário aponta o ordenamento sociológico da
obra.
Manuel Antônio deseja contar de que maneira se vivia no Rio popularesco de D. João VI: as famílias mal organizadas, os vadios, as procissões, as festas, as danças, a polícia; o mecanismo dos empenhos, influências, compadrios, punições,
50
que determinavam um certa forma de convivência e se manifestavam por certos tipos de comportamento. Como é artista, vê, não o fenômeno, mas a sua manifestação, o fato: vê as situações em que aquelas condições se exprimem e apresenta uma coleção de cenas e acontecimentos. (CANDIDO, 2005, p. 534)
Vendo a obra de Léo Montenegro agora fechada, sem novos textos, é possível uma
ilação sobre os propósitos do cronista que se cruzam com os do jovem médico folhetinista
do Século XIX. Léo Montenegro conta a maneira como se viveu no subúrbio do Rio entre
os anos 1960 e 2000. Precário e abandonado pela administração pública, invenção de
prefeitos que afrancesaram o centro da cidade e empurraram os pobres para ele, o subúrbio
de Léo é também o das famílias mal organizadas e numerosas, dos malandros e delegados,
das igrejas e carolas, das festas e entre elas, principalmente o Carnaval; as confusas
relações de parentesco, os amigos de bar e bloco carnavalesco, os golpes e as brigas de fato,
as prisões e as internações em hospitais públicos. Vendo o subúrbio como um
caleidoscópio, congela em suas crônicas uma cena colorida que vai durar apenas o tempo
de umas linhas e poucos parágrafos de jornal. Buscando o riso no cotidiano banal, oferece o
raro que fideliza, ao propor a identificação de quem está lendo com o que está sendo
narrado por sua verossimilhança com o vivido ou conhecido.
Importante sublinhar que o fim moral (o malandro não conseguindo sua intenção)
não é regra nas crônicas de Léo, como pode ser visto em alguns dos exemplos apresentados
nesta dissertação. Neste aspecto, uma derradeira aproximação com Manuel Antônio de
Almeida. O autor de Memórias ... fez do personagem Leonardo um malandro e não um
pícaro, uma vez que nem sempre sai vitorioso nas tramas.
O mesmo fez Léo em crônicas como a publicada em 12 de junho de 1998, só para
citar um exemplo entre inúmeros. Sob o título “A Mágica” (ANEXO XXIV), a crônica
mostra o personagem central, sem nome definido, tentando aplicar um golpe em
passageiros em um vagão de um trem se passando por mágico. Chega a pegar um serrote,
mas não divide ninguém ao meio. Quer é um real de cada passageiro para fazer o valor
dobrar. Tendo sua tentativa de golpe descoberta, leva uma surra e vai parar no hospital.
3.2 - Dialética da malandragem
Ao buscar paralelos da tradição iniciada por Manuel Antônio de Almeida em
Memórias de um Sargento de Milícias na obra de Léo Montenegro o objetivo foi identificar
51
na narrativa aparentemente simplória do jornalista contemporâneo elementos que a elevem
ou ao menos a aproximem do romance folhetinesco do século XIX e de Macunaíma de
Mário de Andrade. Para esse fim cabe recorrer à contribuição do crítico Roberto Schwarz
ao comentar o ensaio Dialética da Malandragem.
Declaradamente discípulo de Candido, Schwarz destaca que seu mestre foi para o
campo da ideologia para ver em Memórias a “transformação de um modo de ser de classe
em modo de ser nacional” com a “particularidade, no caso, de não se tratar de generalizar a
ideologia da classe dominante, como é hábito, mas da classe oprimida” (SCHWARZ, 1979,
p 144). Esse parece ser o fio condutor predominante no presente recorte da obra de Léo
Montenegro, em que a ideologia de seus leitores, moradores do subúrbio do Rio, leva o
modo de ser desta classe social periférica para o centro da narrativa.
A peculiar dialética da ordem e da desordem, presente nas crônicas mesmo que de
forma não intencional por parte do jornalista, soa mais direta e às vezes grosseira. Porém,
não restam dúvidas que a mesma dialética presente na obra do Segundo Reinado se
encontra nos textos do século XXI analisados.
Ao inserir Léo Montenegro na tradição da dialética da malandragem, vendo em sua
obra um registro temporão do estilo inaugurado por autor do Segundo Reinado, o presente
trabalho busca, porém, mais que o mero reconhecimento do cronista carioca além do grupo
de leitores do jornal O DIA. A intenção foi inserir autor e obra na tradição literária
nacional. Não que essa porta seja a única de entrada do cronista nesta tradição. Sua obra vai
além da temática.
É possível vê-lo ainda na tradição dos chamados cronistas de Momo, jornalistas que
no fim do século XIX e início do século XX tinham como tema central o Carnaval e seus
personagens para suas crônicas diárias na imprensa do Rio de Janeiro. Tais cronistas
tiveram papel relevante na formação da ideia que se tem hoje do chamado Carnaval
Brasileiro. Sobre mais essa e derradeira aproximação a presente dissertação propõe uma
reflexão: qual aspecto da ideia de Carnaval que o cronista de Momo temporão Léo
Montenegro dará publicidade e perpetuará em seus textos?
52
4 - A CRÔNICA DE CARNAVAL E A CONSTRUÇÃO DA IDENTID ADE BRASILEIRA
A atuação de Léo Montenegro como cronista é marcada por sua intensa produção.
São, pelo menos, 11.700 textos como dito no início do trabalho. Neles o Carnaval é tema
recorrente. Também como já dito aqui, nas crônicas de Léo que tratam do Carnaval,
aspecto comum é que seus personagens são integrantes de blocos Carnavalescos, nunca das
festejadas e pomposas escolas de samba cariocas do Grupo Especial do Carnaval do Rio,
identificadas como elemento central da festa carioca desde os anos 70. Seus blocos não são
os grandes e bem organizados, que promovem ensaios regulares e desfilam nos dias de
Carnaval no Centro do Rio de Janeiro e na Zona Sul.
Nas crônicas estão os blocos de subúrbio ou “da comunidade”, um recorte que soa
proposital e que serve, na grande maioria das vezes, de disfarce ideal para levar para os
leitores do jornal informações sobre a realização do Carnaval nos bairros periféricos da
cidade. Meio peculiar de levar para público ampliado a visão dessa região da cidade a
respeito dos elementos centrais da festa popular, sobretudo a organização, a disputa e o
modo de desfile das escolas da elite carioca, as grandes agremiações que se apresentam
domingo e segunda-feira de Carnaval no Sambódromo do Centro da Cidade.
Como parte dessas grandes escolas de samba é do próprio subúrbio — Portela,
Imperatriz Leopoldinense, Mocidade Independente de Padre Miguel e Caprichosos de
Pilares ou da Baixada Fluminense (cidades ligadas ao Rio por trens) — Beija Flor e Grande
Rio – natural que a crítica na forma de humor do principal desfile tivesse grande
repercussão no próprio subúrbio. Cabe destacar que esse objetivo era alcançado sem a
necessidade de os nomes das grandes escolas de samba serem citados nas crônicas.
Nas poucas vezes em que aparecem nas crônicas, as grandes escolas são só citações
periféricas para narrar cenas do cotidiano do subúrbio. Ora surgem com parâmetro para os
blocos, ora para ajudar a retratar costumes suburbanos, como a vontade de brincar os quatro
dias de folia sem parar e sem se preocupar com regras, com família ou patrão. Esse é o caso
da crônica “Um pouco atrasado”, publicada em 26 de fevereiro de 1998, quinta-feira da
semana de Carnaval daquele ano (ANEXO XXV). Nela, o personagem central Braustrézio
chega em casa também na quinta-feira depois do Carnaval dizendo que havia saído de casa
para assistir ao desfile das escolas de samba do Grupo Especial. Chega citando os nomes
das escolas que desfilaram naquele ano, mas não na ordem de pontuação — Mangueira,
53
Portela, Mocidade, Viradouro, Salgueiro, Beija-flor, Imperatriz e Vila Isabel — mas sua
desculpa esfarrapada não é aceita pela mulher, Bregonelda Regina, e por quem
acompanhou seu sofrimento com o sumiço do marido. Braustrézio leva uma surra e acaba
internado em um hospital, onde a “família e a comunidade sabem onde ele está”.
Na análise de sua trajetória é possível detectar os primeiros elos de ligação entre seu
trabalho e o dos cronistas de Momo. Afinal como seus antecessores, Léo também
frequentava rodas de samba, tendo franca admiração pela escola de samba Portela, do Rio.
Também como alguns dos cronistas pioneiros de Carnaval, chegou a contribuir com um
verso seu para um samba, como mencionado no início desta dissertação.
Mas quem são esses cronistas de Momo, grupo no qual a presente dissertação
pretende inserir o nome de Léo Montenegro como integrante temporão?
Cronistas de Momo é como o professor Eduardo Granja Coutinho (2006), da Escola
de Comunicação da UFRJ, define o grupo de jornalistas que primeiro escreveram sobre
Carnaval do Brasil na imprensa nacional, sobretudo do Rio de Janeiro. Ambíguos, falavam
em jornais destinados à elite letrada sobre um universo iletrado que costumavam frequentar
como participantes e não apenas como observadores.
Os autores das chamadas crônicas carnavalescas atuaram, nas palavras de Coutinho,
como mediadores (COUTINHO, 2006, p.25). Conciliadores dos interesses disciplinadores
da festa popular de Momo, então brutal, com, pode-se assim dizer, os interesses dos
promotores informais e participantes dessa própria festa. De um lado a elite nacional da
Primeira República, não muito diferente da elite do Segundo Reinado, representada pela
autoridade governamental e pelas empresas jornalísticas. Do outro os foliões (escravos
forros, brancos pobres de origem humilde, mães de santo egressas da Bahia, jovens
compositores populares de ritmos dançantes e demais amantes do Carnaval), representados
pelos cronistas, eles próprios foliões explícitos.
Tal mediação ocorre num momento em que o Estado tentava abolir das reformadas
ruas do Rio de Janeiro mais de uma manifestação carnavalesca popular, negra e muitas
vezes agressiva. No lugar, tentava-se impor padrões estrangeiros, sobretudo europeus.
Dessa mediação decorre a incorporação de elementos dessas manifestações populares à
cultura nacional em formação, moldando a ideia de Carnaval brasileiro que se tem hoje.
54
Importante ressaltar que os cronistas de Momo cumprem a tarefa de mediação sem
assumirem o papel de engajamento ideológico com o Carnaval popular e sem agirem como
colaboradores com a domesticação dessa festa. Mantendo explícita ambigüidade, ora são
vistos como instrumento da domesticação, ora como divulgadores e aglutinadores das
culturas populares que os jornais para os quais trabalhavam tentavam abolir do cenário
nacional.
Cabe recorrer à professora Margarida de Souza Neves (in RESENDE, 2001, p.23)
que, falando da importância do gênero, destaca as crônicas das décadas de 1920 e 1930,
período áureo dos cronistas de Momo, como fundamentais na busca de uma identidade
nacional num período em que se originavam todas as formas de expressão cultural
brasileira, entre elas o Carnaval brasileiro como concebemos hoje.
A respeito desse cronismo diário, Eduardo Granja Coutinho (COUTINHO, 2006,
p.44) destaca a existência de textos sérios (meramente informativos, opinativos ou
referenciais) e outros literários, no que chama de “poética carnavalesca”. Nos sérios, a
predominância do discurso disciplinador, que soava bem aos ouvidos da elite.
Mesclando informação e opinião, havia textos sérios condenando determinadas práticas populares, invocando medidas policiais, propugnando por uma festa disciplinada e “civilizada” (grifo do autor), tudo isso numa linguagem oficial, nada carnavalesca. Sob essa forma manifestava-se a faceta repressiva das colunas de Momo. Esses textos se assemelhavam mais a editoriais do que a crônicas, no que diz respeito à forma. (COUTINHO, 2006, p.45)
Nas chamadas crônicas literárias, com poética diferenciada, explícito movimento de
aproximação e assimilação. Ao jornal em que eram veiculadas, agregavam novos leitores,
numa imprensa que fazia movimento de massificação. Aos leitores tradicionais da mídia
impressa do início do Século XX, maioria da elite ou simpática a ela, davam conta de um
universo desconhecido em tom simpático, divertido.
Mas a graça da crônica estava naquela categoria de textos que utilizavam uma linguagem carnavalesca — o linguajar dos foliões — , com paródias, trocadilhos, jogos de palavras, gírias, chistes e expressões populares. Diferentemente das matérias opinativas ou meramente informativas, que revelavam distanciamento em relação à festa, tais textos de caráter jornalístico-jocoso, informavam ao mesmo tempo que divertiam e faziam rir, expressando o mais característico do humor carioca. (COUTINHO, 2006, p.45)
55
É a este segundo grupo que as crônicas do Avesso da Vida se filiam em processo de
continuidade. Elas tratam de festejos periféricos de Carnaval suburbano adotando o
vocabulário e a ambientação locais. Festejos que, nos 37 anos de cronismo diário de Léo
Montenegro, foram ofuscados na imprensa pelo Carnaval do Centro da Cidade
(sambódromo e blocos de embalo famosos) e da orla (bandas que levam nomes de bairros e
de pontos turísticos da Zona Sul da cidade) que predominava no noticiário informativo.
Momento exemplar dessa divisão pode ser encontrado na edição do jornal O DIA do
Domingo de Carnaval, 13 de fevereiro de 1994. Nessa data, o jornal trazia um caderno
especial sobre o desfile das escolas de samba do Grupo Especial na Marques de Sapucaí.
Na página 6 desse caderno, a Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense do subúrbio de
Ramos, franca favorita ao campeonato daquele ano, tinha seu desfile apresentado em texto
informativo detalhado (ANEXO XXVI). Trata do enredo da escola que seria campeã
daquele Carnaval exatamente por apresentar com mais luxo o mesmo tema que a escola
concorrente Império Serrano levaria para a Avenida, amargando o último lugar. A
reportagem vai à escala do detalhe, para apresentar aos leitores o complexo enredo que
contava a “história da participação de 50 índios brasileiros numa festa promovida em 1550
pela comunidade de Rouen, na França, para homenagear o rei Henrique II e a rainha
Catarina de Médicis”. Sem essa apresentação pela mídia certamente a escola perderia um
pouco da empolgação vista nas arquibancadas da passarela do samba no Carnaval daquele
ano.
Na mesma edição, a crônica do Avesso da Vida trazia crônica sobre um bloco não
identificado. Nela (ANEXO XXVII), Léo Montenegro conta a hilária história da
agremiação com poucos recursos e poucos componentes, com enredo que citava D. Pedro I.
Fala de um universo improvisado, em que o Carnaval é a festa pela festa, motivo para
reunir amigos. Satiriza a briga por pontos protagonizada pelas Escolas de Samba do grupo
especial (“Com mil notas zero, metade do bloco está no bar!”) e com o financiamento do
desfile por meio de benfeitores: nas Escolas de Samba, bicheiros; no bloco, o quitandeiro.
Ironiza também as fantasias luxuosas das escolas e seus componentes apolíneos,
comparando-os com fantasias de um quilo e meio e o folião magricela do bloco, cuja ala
das baianas tem uma só senhora e a bateria cabe em um bar.
56
Brincando, a crônica de Léo Montenegro traz para o centro a discussão suburbana
sobre o luxo excessivo das escolas de samba do Grupo Especial. Ainda aproveita o espaço
para criticar a conservação das ruas do bairro periférico voltando a apresentar continuidade
com Lima Barreto. Quando o presidente do bloco autoriza que um componente fosse ao bar
buscar os integrantes da bateria da agremiação, diz: “A sua pessoa vai num pé e volta no
outro! E cuidado com a vala! Se a sua pessoa cai naquela porcaria e quebra um pé a gente
fica desfalcado!”
No Domingo de Carnaval 25 de fevereiro de 2001 outro exemplo, esse mais
categórico, sobre a divisão entre a crônica informativa e a crônica com poética carnavalesca
no período em que Léo Montenegro escreve diariamente. Também cronista de Carnaval, o
jornalista Cláudio Vieira apresenta no caderno principal do matutino O DIA o desfile das
escolas de samba do Grupo Especial daquele ano. Destaca o novo favoritismo da Imperatriz
Leopoldinense, que naquele Carnaval obteria o primeiro tricampeonato da Marques de
Sapucaí. Em texto informativo, fala do então novo ranking das agremiações e de casos de
censura à liberdade característica da festa, revelando que àquela altura, já no ano de 2001
(setenta anos após a consolidação da festa popular), o Carnaval do Rio estava totalmente
disciplinado e controlado (ANEXO XXVIII): “A Mocidade não vai mais exibir a fita com a
tragédia do ônibus 174. A Grande Rio também não mostrará cenas de PMs em pancadaria.
Para evitar as farpas da Funai, a Viradouro aboliu a ala dos índios-preguiça.”
Léo Montenegro em seu Avesso da Vida daquele Domingo de Carnaval (ANEXO
XXIX) destila toda a liberdade do cronismo de Momo. Fala do indisciplinado Carnaval dos
blocos do subúrbio. Com poética carnavalesca, usa palavrão (porrada) e sugere cena de
sexo da costureira da agremiação com o marido. Faz rir, mas toca diretamente na ferida do
Carnaval disciplinado daquele ano ao explicitar a violência urbana do Rio que fora proibida
de desfilar na Marques de Sapucaí. Na crônica, tal referência sai da boca do presidente do
bloco: “Quero todo o mundo sambando e cantando o samba dos nossos compositores que,
por coincidência, são do cerol aqui da área!”. Ou seja, fala que os compositores são
bandidos assassinos, usando gíria do subúrbio e do morro. Um personagem caracterizado
pelo tipo físico, magricela, completa: “Concordo! Afinal, eles queimaram as pestanas pra
fazer o samba, ficaram dias e noites sem dormir e ainda tiveram que ameaçar a comissão
julgadora com aqueles fuzis pro samba deles ganhar!”
57
Mas que movimento foi esse que 100 anos depois transformou o indisciplinado e
criticado Carnaval carioca do início de século XX numa festa bem comportada e submissa a
censuras? Sem perder o foco da dissertação, é possível buscar uma resposta nas crônicas
carnavalescas dos pioneiros cronistas de Momo. Esse olhar poderia ser estendido até
mesmo aos cronistas que contemporaneamente migraram do jornal impresso para a
Internet, como Cláudio Vieira e Bruno Fillipo, para citar dois que já escreviam crônicas de
Carnaval em O DIA ou no site do jornal na Internet (www.odia.com.br) quando o Avesso
da Vida era publicado diariamente. Mas se limitará a olhar até 2003, ano da morte de Léo
Montenegro.
Como já destacaram os pesquisadores Maria Laura Vieiros de Castro
CAVALCANTI (1999) e Eduardo Granja COUTINHO (2006), o Carnaval que os pioneiros
cronistas de Momo vão tratar é o que vai substituir pelos domesticados ranchos os
agressivos entrudos e os zé-pereiras, festejos populares então condenados pela elite.
Após a ostensiva campanha contrária na própria imprensa da segunda metade do
século XIX, o entrudo e os zé-pereiras começavam a desaparecer na sua forma agressiva.
Mas no lugar deles brotava uma outra forma negativa a ameaçar o Carnaval civilizado: os
cordões, “caótica e explosiva manifestação da patuléia vozeiruda e farrapenta”
(COUTINHO, 2006, p. 60).
Esses cordões de foliões contrastavam com os bailes dos grandes clubes e das
grandes sociedades: eram grupos mascarados (como velhos, palhaços, diabos, baianas e
índios) que brincavam o Carnaval agredindo passantes e brigando com grupos rivais.
É o Carnaval praticado por esses cordões que será condenado pelos primeiros
cronistas de Momo, que apoiarão a repressão policial e a troca dessa manifestação pelos
disciplinados ranchos, cuja existência muitas vezes vai depender de sua aparição nos
jornais em crônicas informativas.. Se até a virada do Século XIX para o XX era a visita à
casa das “tias” baianas (negras imigrantes da Bahia, mães de santo e liderança nos morros
do Rio) que legitimava o Carnaval popular, de 1907 em diante seriam as citações nas
crônicas dos jornais, as notas nas colunas de Momo, que passariam a ter valor de
legitimação da festa popular.
Os ranchos a essa altura eram chamados de pequenas sociedades numa referência às
Grandes Sociedades (grupos da elite que ao longo do Século XIX faziam um Carnaval
58
ordeiro, aos moldes europeus, quase sempre dentro de clubes). O que a sociedade
demonstrava esperar desses ranchos por meio das crônicas de Momo? Um Carnaval de
caráter alegre e ordeiro, feito por grupos formados por rapazes de boa família que querem
folgar em honra de Momo (COUTINHO, 2006, p.70), como o retratado na crônica de
Dominó Preto, sobre o Carnaval no subúrbio de Engenho de Dentro:
Pelas ruas centrais, quase intransitáveis, cheias de famílias que se entregavam à loucura da renhida batalha de confete, passavam diversos grupos de cordões, precedidos de atordoadores zé-pereiras. A estação da Estrada de Ferro estava apinhada de povo, que se divertia em uma lacridade comunicativa, sendo para registrar que não houvesse o menor distúrbio, a mais insignificante nota que perturbasse a harmonia festiva dos que se entregavam aos folguedos preparatórios dos grandes combates Carnavalescos. (in COUTINHO, 2006, p. 70)
Para estimular os ranchos ordeiros, os jornais por meio dos cronistas de Momo vão
promover concursos, expor estandartes das agremiações, defender autorizações
governamentais para os desfiles. Em 1904, o Jornal do Brasil expôs 62 estandartes, que só
seriam buscados à meia noite na véspera de Carnaval. Esses concursos valorizam a ordem e
o bom gosto como critérios premiáveis. A aprovação dos jornalistas era buscada pelos
organizadores desses ranchos.
O simples registro de sua ida aos diários era signo de status para a agremiação; uma nota com a composição da diretoria era um grande motivo de orgulho (por isso era “cavada” insistentemente por seus integrantes); a descrição do préstito com reprodução da marcha executada era a glória para a comunidade. (COUTINHO, 2006, p. 73)
Como pontua Coutinho, era como se a existência do grupo dependesse da aparição
dele nas páginas dos jornais. Por isso, nos ranchos os cronistas eram recebidos como
autoridades, com fartas ceias e festejadas citações. Não raro esses mesmos cronistas
procuravam redações de jornais diferentes para os quais trabalhava para obter lá citações a
respeitos dos ranchos e blocos que os tinham recebido bem.
O também professor Felipe Ferreira (2004, p. 229) pontua que a nova configuração
do Carnaval que se dava naquele período (três primeiras décadas do Século XX)
redistribuía a festa pela cidade. Ao mesmo tempo que novos espaços da periferia passavam
a ser ocupados por grupos festivos, dando vez para moradores do lugar desfilarem pelas
ruas em forma de sociedades; o espaço central, notadamente a Rua do Ouvidor, a Avenida
Central e a Praça Onze, passava a ser cobiçado por mais grupos como local privilegiado de
59
desfile. Natural que tais grupos cedessem a regulamentações impostas pela elite para obter
o status de desfilar no centro reconfigurado do Rio de Janeiro. Afinal, era a elite que
detinha o controle dos locais importantes e podia autorizar ou não os grupos que poderiam
desfilar lá, limitando as formas de brincadeira.
A nova configuração permitiria, desse modo, que novas formas de brincadeira carnavalescas aparecessem, como os grupo de samba que, pouco depois, seriam conhecidos como escolas de samba. Paralelamente a esse lento processo de enquadramento da folia multifacetada e inclassificável de finais do século XIX em categorias mais definidas, e portanto mais controláveis pelo poder constituído — reelaborava-se a forma de Entrudo. Esse englobaria, como sempre, todo tipo de brincadeira carnavalesca que não se enquadrasse dentro da idéia de Carnaval. (FERREIRA, 2004, p. 230).
O pesquisador pontua que essa nova ideia de Carnaval deixa de ser imposição do
que queria a elite, como defendido por ela por meio dos jornais da virada do Século XIX
para XX em textos informativos e opinativos, para ser derivada de uma negociação que,
como já dito aqui, se deu por meio das crônicas de Momo nesses mesmos jornais
controlados pela elite. Ocorreu uma conciliação de interesses da elite e das camadas
populares sem mediação, em que o poder público assumiu o papel de controlar de que
forma se brincaria nos locais onde era necessária autorização oficial para tanto e os grupos
se condicionavam a aceitar e desfilar ou recusar, e não desfilar.
Quanto mais longe do Centro mais flexíveis se tornavam as regras. Lá, nas regiões
periféricas ao centro, os festejos eram inspecionados pelos próprios participantes da festa,
numa autoregulamentação que mimetizava o que era e não era permitido nas áreas
importantes, só que com certa licenciosidade. Isso se dava sem que seus participantes
deixassem de almejar uma evolução, quase sempre inalcansável, que os levasse para a área
central dos desfiles.
Os blocos sobre os quais Léo Montenegro fala em suas crônicas do Avesso da Vida
são esses da periferia. Derivados da reorganização noticiada pelos primeiros cronistas de
Momo, custaram a ganhar espaço exclusivo nos jornais, que sempre se ocupavam mais com
os grupos organizados e destinavam espaços também periféricos para os grupos festivos
menos organizados. Léo inovou ao dar a esses grupos voz e espaço para veicularem seus
pontos de vista sobre a festa central, espécie de musa inspiradora dos foliões suburbanos
60
que em genuíno processo de inversão carnavalesca, não a endeusam e nem se privam de
criticá-la duramente. Léo demonstra isso por meio do humor.
A crônica “O retrato”, publicada no Avesso da Vida no dia 6 de abril de 1994
(ANEXO XXX) é um exemplo da crítica severa, mas divertida. Sobre a formalização dos
componentes das grandes escolas de samba do Rio, com ficha cadastral e até carteirinha
para ter acesso gratuito ou mais barato aos ensaios e poder desfilar, o cronista lança olhar
crítico a partir da divertida história do folião Aubregaldo, que em abril já se preparava para
tirar sua carteirinha do bloco carnavalesco. O personagem caminha pela área Central do Rio
— o Campo de Santana, a poucos passos da Passarela do Samba —, quando lembra de tirar
foto para sua carteirinha. Encontra um negão que o orienta a sorrir. Diz: Lá no meu bloco
quem não ri na foto da carteirinha, não desfila!”. A formalização é mesmo geral e está
naturalizada.
O cronista aproveita, então, no seu pequeno espaço para criticar mais um aspecto do
desfile das grandes escolas de samba, naquele período marcado cada vez mais por
componentes apolíneos em trajes mínimos, em especial a novíssima categoria foliã
conhecida por madrinha da bateria. É uma magrinha que sugere a Aubregaldo que pose nu
para o retrato da carteirinha do bloco: “- Já que é fotografia pra carteirinha de bloco, o
senhor podia posar pelado, que é pra ficar no clima.”. Claro que Aubregaldo fica injuriado.
Seu Carnaval periférico ainda mimetiza regras antigas do desfile central, as novas
tendências não chegam e nunca chegaram à região de imediato: e é ele que responde à
magrinha:”- Fique a senhora sabendo que ninguém desfila pelado no bloco da minha rua!”
Nem a madrinha da bateria, nem ela!”.
Feitas as críticas, a crônica caminha para uma costumeira briga, com Aubregaldo
levando uma surra, sendo internado no hospital Souza Aguiar, bem pertinho do
Sambódromo. Por fim, metacitação da relação histórica do Carnaval brasileiro com a
imprensa: “O retrato dele até saiu no jornal. Como vítima.”
4.1 - Os cronistas de Momo
O pesquisador Eduardo Granja Coutinho relaciona em sua pioneira pesquisa sobre a
imprensa carnavalesca nada menos que setenta e cinco cronistas de Momo (COUTINHO,
61
2006, p. 127 e 128). Quase a totalidade escrevia seus textos sob pseudônimos inusitados,
apelidos que surgiam no ambiente carnavalesco.
A identidade entre o cronista e o folião se revelava já em seu próprio nome, ou melhor, em seu cognome, que tanto nas redações dos jornais quanto nos folguedos de Momo era o mesmo. Esses apelidos surgiam no âmbito carnavalesco e, posteriormente, eram incorporados pelos cronistas, o que pode sugerir uma primazia do folião sobre o jornalista. (COUTINHO, 2006, p. 127 e 128)
Observando estes cognomes chistosos — K.K. Reco, K. Peta, Diabo Coxo, Calunga
e Bode Brabo, só para nomear alguns — cabe a sugestão que os nomes inusitados dos
personagens centrais das crônicas do Avesso da Vida fazem referência ao humor folião com
o qual os cronistas de Momo eram reconhecidos.
Aubregaldo, Bregonelda Regina, Braustrézio, Alternaldo e Grindélio, também só
para nomear alguns entre os milhares de personagens do Avesso da Vida, eram usados por
Léo Montenegro, como já dito anteriormente, para evitar confusões com moradores do
subúrbio que se viam e viam sua intimidade associada às hilariantes histórias narradas nas
crônicas. Passaram a ser usados no mesmo ano em que Léo assumiu o Avesso, ainda em
1965, quando na memória dos leitores ainda estavam os divertidos cognomes dos cronistas
de Momo. Natural, portanto, que Léo buscasse aí sua inspiração e a levasse como marca
por quase quatro décadas de cronismo diário.
Outra aproximação entre os cronistas de Momo e Léo Montenegro está fora das
linhas do Avesso e das crônicas da Primeira República. Os primeiros jornalistas de
Carnaval, exatamente como Léo Montenegro, frequentavam o chamado mundo do samba.
Alguns eram compositores populares, outra aproximação com o cronista contemporâneo
que, como conta sua viúva, dona Lídia Montenegro, em depoimento para esta dissertação,
participava de serestas e, como já mencionado aqui, foi o autor do verso simples e salvador
que evitou que o samba vitorioso da Escola de Samba Portela de 1970 atravessasse durante
o desfile de Carnaval daquele ano.
A par de sua atividade jornalística, os cronistas, como ficou dito, promoviam e incentivavam realizações animadoras do Carnaval. Mas suas atividades “foliônicas” iam além da promoção de eventos carnavalescos: eles próprios se divertiam nas sociedades, fundavam blocos, participação das batalhas, desfilavam, ensaiavam os ranchos. Alguns eram músicos ou letristas. O negro K.
62
Peta era um que compunha sambas e marchas-rancho para pequenas sociedades. (COUTINHO, 2006, p. 129)
Essa aproximação participativa com o mundo do samba Léo Montenegro levava
também para suas crônicas por intermédio de seus personagens. Esse é o caso, por
exemplo, da crônica “O Samba”, de 25 de janeiro de 1994 (Anexo XXXI). Nela, durante
um enterro, o compositor de samba enredo de um bloco, Onestonério, vê no defunto fonte
inspiradora para mais uma composição. Logo compõe os primeiros versos (“O Come
Quieto deslumbrante/vem cheio de galhardia/pra desfilar na avenida/com seu jeito
exuberante...”). Em seguida, surgem parceiros para o samba e saem os outros versos, para
irritação dos parentes do morto. Um desses familiares começa um briga com os
compositores e com outros parentes. Ele termina por dar uma boa surra Onestonério e seus
parceiros, que vão parar na enfermaria.
A composição de sambas enredo é, a propósito, outro tema recorrente dos textos de
Léo Montenegro. Na hilariante história “Escolha de samba-enredo”, publicada no dia 7 de
fevereiro de 2003, três semanas antes do Carnaval (ANEXO XXXII), o presidente do bloco
tem de ir ao bar em frente ao local de ensaio da agremiação carnavalesca para buscar os
componentes que insistiam em tomar cerveja apesar de a comissão julgadora do samba
enredo já estar aguardando a todos. Lá, dá bronca nos foliões e lembra do fiasco do
Carnaval passado, sem, no entanto, abalar seus irreverentes subordinados. O próprio
presidente, no entanto, não resiste quando o dono do bar anuncia que ficara pronto o
mocotó, prato classificado como “acepipe” pelo autor. É o próprio presidente que, diante da
iguaria, esquece da escolha do samba e até mesmo dos jurados (um deles vereador) para
pedir uma cerveja para saborear o prato.
É possível ver ainda outros traços de continuidade entre os cronistas mais
conhecidos e Léo Montenegro. Primeiro a ser reconhecido como cronista de Momo,
Francisco Guimarães, o Vagalume (1877-1947), era negro, filho de pais pobres. Foi o
idealizador do Dia dos Ranchos no Jornal do Brasil, data em que os estandartes das
agremiações seriam expostos na portaria do jornal. Como Léo Montenegro, esse primeiro
cronista também foi repórter policial e dividia seu tempo entre as crônicas de Carnaval e o
noticiário. Ao deixar o JB, Vagalume vai para o jornal A Tribuna onde escreverá, na coluna
Ecos Noturnos, reportagens sobre acontecimentos da madrugada no Rio (como o também
63
cronista João do Rio), já marcada pela malandragem e por fatos policiais. Em seus textos
sobre Carnaval na mesma A Tribuna, a proposta de legitimar a cultura popular, tratando de
moldá-la para ser aceita pela elite:
Começamos a madrugada de domingo para segunda-feira pelo maxixe do Moisés e do Ventura [...] Notavam-se os principais desordeiros e valentões desta cidade, que bastava para se prever um turumbamba de mil demônios no final da festa ... Não queremos dizer que sejamos contra tais bailes. Não senhores; eles representam uma necessidade, mas sendo frequentados por um pessoal ordeiro, ou que os desordeiros respeitem ao menos os donos da casa, o que justamente não acontece no maxixe da rua Espírito Santo, porque os donos não têm força moral. Acabe-se com aquilo de uma vez. (in COUTINHO, 2006, p 96 )
Com o Carnaval já consolidado como festa popular nacional, Léo Montenegro exibe
o mesmo tom crítico em suas crônicas. Altera, porém, a temática, preferindo, aos moldes de
Lima Barreto, expor os problemas do subúrbio e o destinatário da crítica, disparando
preferencialmente farpas humorísticas contra governos e administradores municipais e
contra a elite do Carnaval representada pelas grandes escolas de samba. Esse é o caso da
crônica “Os Buracos”, publicada em 15 de fevereiro de 1996, sexta-feira antes do Carnaval.
Nela (ANEXO XXXIII), o presidente de um bloco não nomeado evidencia a pouca
preocupação da gestão municipal de então com o Carnaval do subúrbio. A despeito de fazer
obras na cidade, as ruas por onde passaria a agremiação carnavalesca estavam cheias de
buracos abertos simultaneamente sem aparente planejamento viário ou momesco. Em
momento raro, o destinatário da crítica, o prefeito do Rio, é nomeado pelo seu nome de
batismo. Primeiro por atrapalhar o transporte coletivo no bairro (“... a rua onde passa o
ônibus tá assim de buracos abertos pelo Cesar Maia!”). Depois por atrapalhar o próprio
Carnaval: “— Esse ano a pessoa do bloco não sai, por causa dos buracos do Cesar Maia! E
não vai sair mesmo.”
Para restringir a citação dos cronistas à proposta da dissertação, cabe ainda destacar
o papel do até hoje tido como o último dos cronistas de Momo: João Ferreira Gomes, o Jota
Efegê (1902- 1987). O mais longevo do grupo, que começou a escrever nas primeiras
décadas do século XX, foi o único que ficou para contar histórias dos cronistas, atestando
que eles, como Jamanta (José Luiz Cordeiro), cronista do Correio da Manhã, eram tão
foliões quanto jornalistas, exatamente como Léo Montenegro.
Efegê escreveu suas crônicas de Carnaval até as décadas de 60 e 70, quando o
gênero estava totalmente diferente daquele que consagrara os cronistas de Momo seus
64
contemporâneos. Seu objeto, pontua Coutinho (2006, p. 124), não era o Carnaval de então,
planejado, luxuoso e televisivo, e que “ele julgava sem espírito, crítica e irreverência”.
Publicados em vários jornais, seus textos se tornaram memorialistas no mesmo momento
em que Léo Montenegro começava a inserir e a consolidar na tradição dos cronistas de
Momo o ponto de vista dos suburbanos sobre o Carnaval midiático, que Jota Efegê fazia
questão de ignorar. De quebra, falava da organização do Carnaval do subúrbio que nunca
antes havia tido o privilégio de ser tema preferencial de um cronista de Momo.
Último representante, portanto, da primeira geração de cronistas de Momo, é Jota
Efegê que vai deixar para gerações futuras histórias como a do Carnaval em que Heitor
Melo, secretário de redação do cronista Jamanta no nada Carnavalesco Correio da Manhã,
o enviou para Santa Cruz, bairro bem distante do Centro, onde ocorria o desfile dos
ranchos. Jamanta não obedeceu o chefe e desfilou escondido em um carro alegórico em
forma de garrafa. Só que teve que enfrentar o chefe quando o carro quebrou na Rua do
Ouvidor, no Centro.
“Lá pelas tantas, não podendo mais suportar o calor de seu esconderijo, o Carnavalesco saiu da garrafa, quase nu, sujo e aclamando pelos companheiros, diante do olhar incrédulo do secretário. Ao olhar para cima e deparar com o temível Heitor Melo, o folião sorriu com ternura, atirou-lhe um beijo para, em seguida, berrar com todas as forças dos pulmões: ‘Viva o Correio da Manhã, Viva o Clube dos Democráticos’ ”. (COUTINHO, 2006, p. 132)
Cabe notar no relato o bom humor da história, de cunho bem popular e no clima da
festa de Momo. Aliás, é esse mesmo bom humor e esse mesmo clima que vão se tornar uma
regra nas crônicas de Léo Montenegro na coluna Avesso da Vida de O DIA.
4.2 - Rei Momo no Avesso da Vida
O tema Carnaval sempre foi recorrente na obra do cronista Léo Montenegro e
ganhou destaque ainda maior após o jornal carioca passar para o controle do jornalista Ary
Carvalho, no fim dos anos 80, e gradativamente ir abandonando o perfil policial que o
marcara nas duas décadas anteriores. Nos anos 90 e nos primeiros anos do século seguinte,
o assunto Carnaval passou a ser lido com mais frequência mesmo em datas de pequena
mobilização popular para a festa, como os meses de inverno, colocando-o por força das
circunstâncias e da própria ligação pessoal com o tema entre os cronistas de Momo.
65
Era previsível, portanto, que períodos que antecediam a festa popular e nos logo
posteriores a ela seus textos com citações e personagens envolvidos com o Carnaval
aumentassem consideravelmente em número, levando a conclusão possível de que o autor
buscava traduzir o subúrbio com os assuntos que são mais lembrados na região da cidade
do Rio no período temporal em que eles estavam mais em evidência.
Nas crônicas desse período há a presença de todas as características que marcariam
a obra de Léo Montenegro: personagens com nomes insólitos muitas vezes enganados por
seus pares apesar do verniz de malandro, texto com marcas de oralidade e vocabulário
popular e o humor simples com desfecho apresentando personagens presos, internados em
hospitais ou simplesmente envolvidos em brigas ou confusões.
Uma dessas histórias que terminam com o personagem internado em hospital marca
a hilariante crônica “O figurinista fresco”, publicada em 28 de abril de 1996 (ANEXO
XXXIV). Nela, o figurinista do bloco insiste em confeccionar uma roupa nova para o corpo
de um ex-benemérito da agremiação, “seu Ramalhagem”, que estava sendo velado. O
finado, diz, está vestido com roupas que não combinam. Quer confeccionar um terno lilás
com lenço no pescoço para o falecido usar no próprio enterro. Provoca revolta no velório e
termina internado no Hospital Estadual Carlos Chagas, no subúrbio de Marechal Hermes,
“onde está insistindo com os médicos para botarem cortinas rosas nas janelas da
enfermaria”.
Nos textos do cronista, o Carnaval também é citado como referência para situações
não relacionadas diretamente à festa popular. É notório o uso nas crônicas de expressões
populares associadas ao Carnaval. Esse é o caso, por exemplo, da expressão “botar o bloco
na rua” para tratar da morte ou enterro de alguém. A expressão com este sentido foi usada
no Avesso da Vida publicado em 7 de julho de 1996 sob o título “As vítimas da bomba”
(ANEXO XXXV). A crônica narra a confusão que a explosão de uma bomba de Festa
Junina causa em um bar lotado. Pitoresco é que no grupo estava até uma personagem
identificada apenas como velhinha. Logo após ter levado um tombo com a explosão da
bomba ela, já em pé e refeita, usa a expressão popular: “— Quase botei o bloco na rua, por
causa do susto, caramba”. A história termina com todos os frequentadores saindo do bar
para tomar satisfação com o homem “deste tamanho” que havia soltado a bomba. “Uns
oito” acabam levando uma surra e indo parar no hospital. No registro policial da causa dos
66
ferimentos surge a imprecisão, foram “vítimas de bomba junina”, numa referência às
vítimas de bala perdida que começavam a ser mais freqüentes nos anos 90 no noticiário
informativo do jornal.
Carnaval para os personagens de Léo Montenegro não é só festa popular. É também
papel social, como deixaram transparecer os primeiros cronistas de Momo em seus textos
do início do século XX. Na crônica do dia 12 de abril de 2002 (ANEXO XXXVI), a festa é
sinal de status. O camelô que vendia uma garrafada cita o Carnaval para atestar a eficiência
do produto. Isso ocorre quando ele trava um interessante diálogo com um cliente. “Esse
creme pra fazer nascer cabelo é jóia, ou o senhor tá só jogando pra platéia?”, pergunta o
cliente careca. “O que é isso, meu camarada? Sou um cientista de valor! Fique sabendo que
no Carnaval vou ser enredo do bloco da rua!”, responde o camelô para um careca muito
impressionado, que confessa: “É que meus cabelos estão caindo loucamente! Pra falar a
verdade, estão se atirando da minha cabeça!” A eficiência do produto é testada por uma
personagem identificada como magrinha, possivelmente comparsa do camelô. Por fim o
camelô acaba preso. O tal careca era delegado de polícia.
Os personagens do Carnaval carioca, diante de autoridades, como um delegado de
polícia, têm status para denunciar e colocar na cadeia quem tenta enganá-los, mesmo
apresentando biótipo inapropriado para as funções no desfile. Esse é o caso da crônica “A
vergonha”, publicada no dia 5 de fevereiro de 1994 (ANEXO XXXVII). Nela, um baixinho
vai para o xadrez após não entregar fantasias da rainha da bateria e do mestre-sala e dos
demais componentes do bloco Carnavalesco. Bastou a queixa dos foliões para o delegado
colocar o encarregado das fantasias na prisão. Não funcionou nem mesmo o argumento do
baixinho, destacando com ironia que o bloco (com componentes acima do peso e muito
confusos) tinha mesmo que ser enganado. O diálogo entre o delegado e o baixinho é
divertido. “Eu não tinha que aproveitar, doutor?”, diz o baixinho, numa referência à
confusão dos reclamantes. “O delegado não achava:”, pontua o narrador para acrescentar a
picardia. “Calado! E já pro xadrez!”, diz o delegado para, depois, chamar a atenção dos
queixosos: “Se vocês desfilarem, não digam que são da minha jurisdição! Ia pegar mal pra
minha delegacia pra caramba!”.
Referências a tipos humanos, típicos do subúrbio e do Carnaval cariocas, também
são outra marca dos textos de Léo Montenegro. Na crônica de 16 de janeiro de 1997, por
67
exemplo, um “negão”, termo politicamente incorreto mesmo para aquele ano, é eleito
presidente do bloco, tendo disputado o cargo com um gay e um comerciante emergente. A
localização geográfica dos personagens desse Avesso da Vida sob o título “A grande
eleição” (ANEXO XXXVIII) não é precisa, mas dá outra pista do público que o cronista
tenta retratar. Tendo em vista que os principais desfiles do Carnaval carioca se dão no
Centro do Rio ou em áreas centrais dos bairros, a indicação que “ninguém mais vai precisar
pegar trem pra desfilar naquele fim de mundo, porque vai tudo na minha Kombi” mostra
que a periferia é onde o autor vai buscar os elementos para a sua narrativa.
Na crônica, quatro personagens tentam a presidência do bloco. Identificados por
suas características físicas ou papel na comunidade local – negão, gay, quitandeiro e gordão
– disputam a eleição que seria ganha pelo primeiro deles. Pitoresco, porém, é o surgimento
de um novo personagem suburbano que já começava a frequentar as páginas informativas
do matutino, o gordão emergente, que oferece a Kombi e simboliza no texto os novos ricos
da periferia.
Reunir num só texto elementos díspares, vivendo situações imprevistas, também se
tornou uma marca do cronista. No texto publicado em 27 de janeiro de 2001 (ANEXO
XXXIX), aposentada do INSS tentando ser madrinha de bateria de bloco Carnavalesco
parece ser a situação menos verossímil possível, quanto mais sua aprovação pelo
financiador do desfile da agremiação no Carnaval carioca. A verossimilhança virá no
malicioso desfecho, que insinua uma ligação amorosa entre a aposentada (sogra do
característico personagem com nome inusitado Gorovenildo) e o financiador (classificado
pelo autor como “benemérito português da quitanda”).
Outros textos demonstrariam laços mais evidentes de continuidade temática e
literária do Avesso da Vida com os primeiros cronistas de Momo. Um conjunto deles se
dedica a explicitação das ligações do Carnaval e do samba com os candomblés africanos.
Apesar de numa primeira visão tanto cronista quanto seus personagens suburbanos se
apresentarem como católicos, a narrativa aponta para direção dos terreiros. Era assim, por
exemplo, com o cronista Vagalume (1877-1947), como pontua o pesquisador Eduardo
Granja Coutinho.
Entre padres e babalorixás, o cronista demonstrava maior reverência por estes últimos. Frequentava os candomblés do pai-de-santo João de Alabá, em cujo terreiro Tia Ciata era Ya-kekerê (mãe-pequena), e os de Cipriano de Abedé, em sua época “o maior babalô do Brasil (...) Esses candomblés, usualmente,
68
terminavam ou eram precedidos por sambas que “tiveram fama e deixaram nome na história”. Segundo Vagalume, foi a gente da roda de samba e do candomblé quem, de forma respeitosa e disciplinada, institui o rancho, essas pequenas sociedades que fazem o “Carnaval das Famílias”, o “Carnaval do futuro” (grifos do autor). (COUTINHO, 2006, p. 107)
O longevo Jota Efegê não se diferenciava de Vagalume. Estava atento, segundo
Coutinho, a tudo que acontecia nas rodas de samba, fandangos e candomblés. Mais que
atenção, o cronista pertencia a esse universo sociocultural, “embora nele se destaque pela
sua condição de moço inteligente que escreve pros jornais e faz discursos com palavras
difíceis e pernósticas”(COUTINHO, 2006, p. 121).
Léo Montenegro, com suas crônicas que faziam rir no matutino O DIA, vai também
explicitar sua aproximação e a dos moradores do subúrbio com os candomblés, os
chamados barracões de santo do subúrbio carioca, ambientes que congregam praticantes e
simpatizantes. É das reuniões que precediam os rituais ou ocorriam logo após eles que
vieram o ritmo, os instrumentos e as primeiras letras dos primeiros sambas cariocas.
Tal aproximação está em crônicas do Avesso da Vida, como a publicada em 22 de
outubro de 2000, sob o título “A macumba para espantar os ladrões” (ANEXO XXXX).
Nele, os moradores de toda uma rua, congregados pelo personagem Elisfrênio, se preparam
para fazer um trabalho ritual orientado por pai de santo para espantar ladrões. Era o ano de
2000, e os assaltos a residência, cada vez mais constantes do Rio, eram assunto do subúrbio
e da cidade inteira. Todos acabam sendo assaltados. A explicação: para economizar, em vez
da galinha, Elisfrênio comprara para o despacho um pacote de caldo de galinha.
Na crônica “O despacho”, publicada no feriado de 7 de setembro de 2001 (ANEXO
XXXXI), uma evidência do relacionamento “envergonhado” dos moradores do subúrbio
com o candomblé. Auristênio, personagem central, está em um dia difícil. Nada dá certo.
Ao encontrar amigos, um sugere banho de arruda com sal grosso. Ele já tinha tido essa
ideia, mas estava sem dinheiro para comprar o sal. Arruda ele já tinha no quintal? O
cronista não responde, mas sugere.
Interessante mesmo é quando um amigo de Auristênio, identificado apenas como
baixinho, se apresenta como “vizinho do primo de uma senhora que namora um carteiro
que entrega cartas numa rua onde mora um pai-de-santo” e assume a autoridade de receitar
um trabalho para o personagem central escapar da maré de má sorte. A receita é
69
especializada, evidenciando a intimidade do grupo com as casas de santo: “uma garrafa de
cachaça, um alguidar dos grandes, farinha, óleo de dendê, cinco pacotes de velas e uma
galinha preta”. A situação tem, como esperado, desfecho divertido, expressando o típico
humor carioca. Baixinho sugere que o despacho seja colocado em frente ao prédio do
Ministério da Guerra naquele momento, 9 horas da manhã, do feriado 7 de setembro. Como
é em frente ao prédio que acontece a parada militar, Auristênio se dá conta da
impossibilidade, dá uma surra no baixinho e vai preso.
Outros exemplos poderiam ser citados. São inúmeros os que dão uma demonstração
da importância da temática da ideia de Carnaval (seus personagens, costumes e práticas)
nas crônicas de Léo Montenegro. Escreve divertidos textos sobre o Carnaval do subúrbio
nas quase quatro últimas décadas do Século XX, mas não deixa de registrar, por meio do
humor, as discussões sobre o Carnaval da área central, herdeiro da modelagem registrada
pelos cronistas pioneiros de Momo. O conjunto de sua obra o faz entrar, mesmo sem que
essa tenha sido sua intenção premeditada, pela porta da frente no grupo dos cronistas de
Momo.
70
CONCLUSÃO
Ao inserir Léo Montenegro no rol dos cronistas de Momo, vendo em sua obra um
registro temporão do estilo inaugurado por jornalistas na Primeira República, a presente
dissertação tenta buscar, porém, mais que o mero reconhecimento do cronista carioca além
do grupo de leitores do jornal matutino O DIA. A intenção foi identificar na obra indícios
de continuidade com a tradição literária nacional.
Não que essa porta seja a única de entrada do cronista nesta tradição. Como
apresentado aqui, sua vasta obra vai além da temática Carnavalesca. Afinal, Léo
Montenegro falou em suas crônicas do subúrbio do Rio e seus personagens, como fez Lima
Barreto. Com estilo totalmente diferente, mas com olhares bem semelhantes. Escreveu em
um jornal popular sobre casos inspirados no noticiário policial, como Nelson Rodrigues em
sua atividade como titular das crônicas publicadas na coluna “A vida como ela é”, do jornal
Última Hora. Registrou em seus textos personagens malandros, que nem sempre se dão
bem em suas trapaças, evidenciando continuidade literária com tradição iniciada por
Manuel Antonio de Almeida.
A escolha de sua entrada na tradição pelo cronismo de Momo vai além da temática e
do estilo. Está também ligada à trajetória pessoal do autor. Como seus antecessores, Léo
Montenegro estreou no jornalismo pelo noticiário policial. Atuou a vida inteira em redação
de jornal, sob a imposição dessa indústria e efemeridade de seus produtos. Como eles usou
pseudônimo para escrever crônicas para o jornal A Notícia e manteve o anonimato nas
crônicas que escreveu para o programa de rádio do comunicador Haroldo de Andrade,
aspectos de sua carreira que não foram abordados neste trabalho por serem secundários na
extensa produção do cronista para o jornal O DIA.
O olhar sobre essa produção principal do cronista carioca evidenciou, durante a
pesquisa, o risco de os textos se perderem. Os escritos até o fim da década de 70 estão em
microfilmes. Alguns ilegíveis. A coleção inteira está nos arquivos do jornal. Como a
qualidade do papel não é de livro, esse material não fica disponível para pesquisadores. Só
o microfilme. O restante está na forma digital, no banco de dados da empresa.
Como firma privada, a editora O DIA franqueou o acesso aos arquivos sem maiores
dificuldades em função da ligação deste pesquisador com a empresa. Trabalhei lá de 1997 a
2000 e de 2001 até os dias atuais. Deparei com arquivo organizado por profissionais, mas
71
com limite de investimento. Microfilmes com falhas de leitura, danificados. Material que
corre risco de se perder por falta de investimento em sua preservação ou mesmo se o jornal
mudar de donos para grupo que dê pouca importância para material associado à fase
sensacionalista e policial do matutino.
Na empresa, profissionais mais velhos, hoje em cargos de chefia, se recordam de
Léo Montenegro. Alguns abertamente não gostavam de suas crônicas. As associam ao
jornal O DIA policial, anterior a Ary Carvalho. Outros dão importância a eles. Hilka Telles,
chefe de reportagem da manhã, criada no subúrbio, diz que ganhou gosto pela leitura
ouvindo o pai ler para ela, hoje aos 50 anos de idade, as crônicas do Avesso da Vida. Um
único, Cláudio Vieira, ele mesmo cronista de Carnaval, vê em Léo importância para o
cronismo de Momo.
Por que Léo Montenegro está no rol dos cronistas de Momo? Ele não escreveu
exclusivamente sobre a festa de Momo, diferente de seus antecessores, porque essa mesma
indústria exigiu isso dos primeiros cronistas e não de Léo Montenegro. Ainda pensando em
sua trajetória, é necessário destacar que escreveu sobre Carnaval sendo assíduo
frequentador de ensaios de blocos e escolas de samba, exatamente como os cronistas
pioneiros de Momo. Como foi dito, chegou a ajudar na composição de um samba de
sucesso. Por meio do humor, criticou a midiatização do Carnaval central do Rio, a censura
e o gigantismo das escolas de samba, sempre comparadas em seus textos aos improvisos
dos blocos de embalo suburbanos.
A inserção de Léo Montenegro na lista dos cronistas de Momo também passa pela
temática de seus textos sobre Carnaval, mesmo que num primeiro olhar seja mais fácil ver
diferenças que semelhanças entre seu trabalho e o dos pioneiros. Esse primeiro olhar é, sem
dúvida, embaçado.
Os primeiros cronistas tratavam do Carnaval que estava sendo formatado nos
moldes que conhecemos hoje. Falavam da substituição dos violentos entrudos pelos
organizados ranchos. Falavam do dia a dia dos ranchos, de suas festas e embates para
conquistar o direito de desfilar. Usavam linguagem jornalística datada, longe da
objetividade que se buscaria no jornalismo após os anos 50.
Léo Montenegro escreve quando o Carnaval já está consolidado como festa popular
nacional e carioca em particular, portanto não havia como tratar da formatação. Mas segue
72
essa tradição ao escolher falar apenas de blocos de subúrbio e não das consagradas escolas
de samba, de certa forma propõe um ajuste na festa, que ao longo dos anos 70, 80 e 90 teria
o desfile das escolas como peça principal, relegando aos blocos da Zona Sul e Centro um
segundo plano e o esquecimento aos blocos de subúrbio.
Léo Montenegro escreve após os anos 50. Portanto, após a padronização da
linguagem jornalística em torno da pretensa objetividade e clareza. Escolhe, porém, colocar
nomes inusitados e pomposos em seus personagens, de certa forma uma referência aos
inusitados nomes de ranchos e de cronistas da Primeira República. Usa a ficção, mas não
perde a ligação com situações, vistas por ele ou contadas por seus interlocutores, comuns
aos blocos de subúrbio. Por fim, escolhe o humor para encerrar suas narrativas, imbuído do
mesmo espírito de Momo que embalava seus antecessores no cronismo sobre Carnaval.
Se essas credenciais ainda não são suficientes para inserir Léo Montenegro no rol
dos cronistas de Momo, uma última característica apresentada na presente dissertação há de
resolver o problema: a representação dos foliões dos blocos do subúrbio, seus amigos,
desafetos, parentes ou conhecidos em personagens que dão notícia de um cotidiano vivido
por quem mora no subúrbio. Estereótipos e alegorias à parte, os leitores do subúrbio podem
ou não se identificar com tais personagens, mas é certo que tinham no Avesso da Vida uma
vitrine de seu cotidiano, um olhar bem-humorado de seu dia a dia, em ganchos de
identificação com sua rotina, no ônibus, no trem e no bar. Não parece ousado demais dizer
que muitos liam as crônicas à procura de tais identificações.
Ora, não era atrás de seus pares e suas histórias que os foliões dos primeiros anos do
século XX liam as crônicas sobre Carnaval nos jornais da Primeira República? Não era esse
público leitor que garantia aos cronistas de Momo seu emprego e espaço nesses jornais?
Também não foi a fidelidade do leitor do subúrbio que garantiu tão duradouro espaço para
a ficção de Léo Montenegro? Não foi esse leitor que manteve Léo Montenegro em O DIA
durante todas as transformações que o jornal passou nos anos 80 e 90?
Por essas características, Léo Montenegro foi o filho temporão do cronismo de Momo,
mesmo quando se acreditava que o cronismo de Momo já havia desaparecido.
73
REFERÊNCIAS
ABREU, Alzira Alves. A modernização da imprensa (1970-2000). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2002.
ALBIN, Ricardo Cravo, KAZ, Leonel; MÁXIMO, João; SOUZA, Tárik de; HORTA, Luís
Paulo. Brasil Rito e Ritmo. Rio de Janeiro: Aprazível Edições, 2003/ 2004.
_________________. Vai passar nessa avenida um samba popular. In: KAZ, Leonel e
LODDI, Nigge (org.). Meu Carnaval Brasil. Rio de Janeiro: Aprazível Edições, 2008.
ALMEIDA, Manuel Antônio. Memórias de um Sargento de Milícias. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1978.
ARGOLO, José. Ricardo Galeno: Um Poeta no Cotidiano de Chumbo. In: Lumina -
Facom/UFJF - v.2, n.1, p.41-57, jan/jun. 1999 – www.facom.ufjf.br, acesso em 2 de junho
de 2008.
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Ed. Ediouro,s/d, Col. Prestígio.
_________________. Feiras e Mafuás. In: BARBOSA, Francisco de Assis (Org.). Obras
de Lima Barreto. 2ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1961.
CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem (caracterização das Memórias de um
sargento de milícias) In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, número 8. São Paulo:
USP, 1970.
_________________. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 10ª ed. Rio
de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006.
_________________ (et al.) A Crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no
Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui
Barbosa, 1992.
74
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval Carioca dos Bastidores ao
Desfile. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ. 3ª ed. 2006.
CAVALCANTI ____________. O Rito e o Tempo: ensaios sobre o Carnaval. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
COELI, Humberto de Lemos Medina. O Novo Jornalismo Popular. A Reforma do Jornal O
Dia e suas consequências. Dissertação de Mestrado em Comunicação Social. Brasília:
Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, 2003.
COUTINHO, Carlos Nelson. O significado de Lima Barreto em Nossa Literatura. In:
Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas. BH: Oficina de Livros, 1990,
pp. 69-115.
COUTINHO, Eduardo Granja. Os Cronistas de Momo: Imprensa e Carnaval na Primeira
República. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006.
DICIONÁRIO Histórico-Biográfico Brasileiro, Última Hora, versão online
http://cpdoc.fgv.br/dhbb/htm/dhbb_ultimahora.htm, acessada em 08 de setembro de 2008.
DINIZ, André. Almanaque do Carnaval: a história do Carnaval, o que ouvir, o que ler, onde
curtir. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008.
FERREIRA, Felipe. O livro de ouro do Carnaval brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
________________. Terra de samba e pandeiro. In: KAZ, Leonel e LODDI, Nigge (org.).
Meu Carnaval Brasil. Rio de Janeiro: Aprazível Edições, 2008.
FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de. Lima Barreto e o fim do sonho republicano.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.
75
GÓES, Fred (org). Revista Terceira Margem – Pensando o Carnaval na Academia. In:
Revista do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, ano X, nº 14, Rio de
Janeiro: Fundação Universitária José Bonifácio, 2006.
____________. Brasil, mostra a sua máscara. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007.
GRAÇA, Milton Coelho da. Mais um vira tablóide: O DIA, In http://www.comunique-
se.com.br/conteudo/newsshow.asp?menu=JI&idnot=51010&editoria=301. Acessado em 12
de outubro de 2009.
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
RESENDE, Beatriz (org). Cronistas do Rio. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2001.
____________________. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos. RJ: Ed. UFRJ;
Campinas: Ed. UNICAMP, 1993.
RIBEIRO, Ana Paulo Goulart. Imprensa e História do Rio de Janeiro dos anos 50. Tese de
Doutorado em Comunicação Social. Rio de Janeiro, Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.
SÁ, Jorge de. A Crônica. São Paulo: Editora Ática, 6ª ed., 2005.
SANDRONI, Cícero. 5D Melhor Todo Dia. 50 anos de O Dia na história do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Editora O Dia, 2001.
SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da Malandragem”. São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1979.
SERRA, Antônio A. O desvio nosso de cada dia. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986.
SODRÉ, Nélson Werneck. História da Imprensa no Brasil.Rio de Janeiro: Graal, 1977.
76
VIEIRA, Cláudio. Lendas e mistérios de um clássico. In: http://sambaonline.blogspot. com
/2009/05/ lendas-e-misterios-de-um-classico.html, acesso em 1º de junho de 2009
VILLAÇA, Flavio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 2001.
77
ANEXOS
78
ANEXO I
Avesso da Vida
Título: O vigarista
Jornal O DIA, página 5; edição dos dias 2 e 3 de maio de 1965
Clodoaldo não tinha mais jeito. Era jogador inveterado. Não interessava que o ambiente
fôsse o de um cassino luxuoso ou de uma esquina de malandros. Onde houvesse um dado,
baralhos ou lá o que fosse, onde pudesse arriscar o salário, lá estava o Clodoaldo. Chegava
ao cúmulo de parar na rua, com outro viciado, e jogar ‘par ou impar’ na chapas de
automóvel que passava. E foi assim que conseguiu acumular uma ‘fortuna’ de dívidas. Era
tal a sua situação, que não parava mais em casa, para evitar a visita indesejada, mas
constante, do cobrador. Não pagava e nem podia pagar a nenhum.
Certa tarde, quando não fora ao serviço porque nem o da condução arranjara, eis que houve
uma batida sinistra na porta. Só podia ser mais um ‘miserável de um cobrador’ – pensou lá
com seus botões.E qual não foi a sua surpresa, quando, olhando pela fechadura, verificou
que era uma mulher, e por sinal jovem, bonita. Abriu ràpidamente e, ao perguntar, todo
solícito, a que devia tão agradável visita, a mocinha respondeu: “Sou da Loreiro Antunes e
Cia: o Sr. deve cinco prestações atrasadas, referentes a compra de um ventilador.
— Pois não, entre. Estive viajando e só agora estou recompondo meus negócios. Pagarei
agora mesmo – disse o jogador. A jovem acreditou e logo que transpôs a porta foi agarrada.
Vendo que seria desrespeitada, pois a boca no mundo: os vizinhos a libertaram enquanto
dava tremenda surra no Clodoaldo que ainda foi parar no xadrez.
79
ANEXO II
Lendas e Mistérios da Amazônia
Samba enredo da Portela de 1970
Autores: Sebastião Vitorino Teixeira dos Santos, o Catoni; Waltenir e Dinckel Martins, o
Jabolô
“Nesta avenida colorida
A Portela faz carnaval
Lendas e mistérios da Amazônia
Cantamos neste samba original
Dizem que os astros se amaram
E não puderam se casar
A lua apaixonada chorou tanto
Que do seu pranto nasceu o Rio-Mar
E dizem mais (sic)
Jaçanã
Bela como uma flor
Certa manhã viu ser proibido o seu amor
Pois um valente guerreiro
Por ela se apaixonou
Foi sacrificado pela ira do Pajé
E na Vitória-Régia
Ela se transformou
Quando chegava a primavera
A estação das flores
Havia uma festa de amores
Era a tradição das amazonas
Mulheres guerreiras
Aquele ambiente de alegria
Terminava ao raiar do dia
Ô esquindô lá lá
80
Ô esquindô lê lê
Olha só quem vem lá
É o Saci Pererê”
http://sambaonline.blogspot.com/ em 23 de julho de 2009
81
ANEXO III
Avesso da Vida
Título: O bate-bola
Jornal O DIA, página 7, edição do dia 10 de fevereiro de 2002
Jornal do Brasil, Caderno B, página 4, edição do dia 1º de fevereiro de 2005
Bestenaldo entrou na repartição fantasiado de bate-bola:
– Quem foi que disse que eu não vinha?
Um careca levantou os braços, tremendo de medo, e se rendeu:
– A gente entrega tudo! Mas não nos faça mal!
Bestenaldo tirou a máscara e se revelou:
– O que que é isso, cara? Sou eu!
Foi aquela surpresa:
– O que é que você tá fazendo aqui fantasiado desse jeito, colega?
O doido contou:
– Quem manda botar plantão em dia de Carnaval? Eu sai agora do maior baile e nem tive
tempo de ir em casa trocar de roupa!
Um gordão torceu o nariz pro Bestenaldo:
– Que mau gosto! Podia, pelo menos botar uma fantasia mais fresquinha, poxa!
Bestenaldo tinha lá os seus motivos:
– Negativo, porque, de máscara, a gente faz um monte de besteiras e aí, ninguém fica
sabendo quem foi que fez!
Um baixinho teve um momento de lucidez:
– Acho melhor você ir tirando essa droga, porque o nosso chefe...
Foi interrompido pela chegada do chefe, que arregalou os olhos quando viu o Bestenaldo
vestido daquele jeito:
– Tá pensando que isto aqui é coreto? Só falta começar a rebolar!
O careca explicou pelo Bestenaldo:
– É que ele tava num baile de Carnaval, chefe! E fazendo tudo aquilo que nós, que
dormimos bem cedo, não fizemos!
O chefe explodiu:
82
– Não interessa! Não admito palhaçadas aqui na repartição!
Falou e espetou o dedo na cara do Bestenaldo:
– Tira essa porcaria imediatamente, ou tá despedido agora!
O homem enviesou o olhar para o delegado:
– Não acho uma boa idéia, chefe! Tá cheio de contribuintes aqui!
O chefe deu um soco na parede e gritou:
– É por isso mesmo, né, sua besta!
E carbonizou o Bestenaldo com o olhar:
– Vou contar até três pra você tirar essa coisa ridícula, senão, vai ser demitido
sumariamente, sem dó nem piedade! Ouviu bem??? Hein??? É um, é dois...
Bestenaldo, célere:
– Eu tiro, pronto!
Como não tinha nada por baixo da fantasia de bate-bola, ficou pelado na frente de todo
mundo. Foi despedido do mesmo jeito, coitado.
83
ANEXO IV
Aconteceu no Rio - Avesso da Vida
Título: Os dentes do defunto
Jornal O DIA, página 4, edição do dia 5 de junho de 1968
Era um velório de bandido.
E conto o negócio que aconteceu num velório porque, sei lá como hoje me sinto, assim
meio como o Almirante: “Tô” vendo enforcado e alma penada pra tudo que é lado.
Mas, voltando ao velório, o defunto chorado era o do “Boca de Ouro”, respeitável
assaltante morto, ninguém sabe de que maneira. E o apelido dele era “Boca de Ouro” por
uma razão muito simples: tinha uma pá (sic) de dente de ouro na boca.
Quando visto, cada sorriso do marginal era de uma iluminação tão forte (...) o Denner visse
ficava desluminado. E foi sorrindo num sorriso de 500 réis que o cara fechou, ou melhor,
foi fechado, talvez (suspeitamos que sim) por coleguinha de crime. No velório do bandido,
como não podia deixar de ser, só tinha bandido. Um deles, por sinal, gozando excelente má
reputação, não tirava os olhos dos dentes de ouro do extinto. Catucou um outro coleguinha
seu:
– Espia só que beleza de brodoegas. Aqueles dentes no “prego” iam dar uma nota violenta
pra caramba.
– É mesmo, cara! Pensou se a gente “montamos” naquela dentadura?
Um outro marginal mais responsável sentiu o drama:
– Já tô adivinhando o que vocês estão pensando aí, pombas! Nós “tem” que “arrespeitar” o
Boca de Ouro, o que que há?
Veio a defesa:
– Não, a gente tava só admirando o perfil do Boca, rapaz! Não tem nada disso aí que você
falou não!
– É sim! A gente nem tinha pensado em nada disso.
O defensor da dentadura do defunto meteu o dedo na cara dos dois:
– É bom mesmo que vocês não façam nada no santo defunto.
84
E a conversa morreu ali. Acontece porém que o velório tinha bandido que Deus me livre,
tudo de olho na dentadura de ouro do falecido marginal que, se vivo fosse, fechava a boca e
se mandava porque ser olhado com olhar de peixe morto é meio esquisito.
Lá pelas tantas quando o velório entra naquele período chato (a cachaça ia acabando e não
tinha boteco aberto àquela hora), com a turma querendo forçar o sono, houve um corre-
corre dos diabos, intercalado por gritos.
– Tira a mão daí droga!
Outros iam além:
– A cueca não, a cueca não!
A luz tinha apagado. E sabem lá o que é apagar a luz de uma sala com mais de oitocentos
bandidos misturados? Não se sabe se foi por defeito ou se alguém desligou o troço. O
negócio é que a luz apagou, tudo escureceu e foi um tal de meter a mão no bolso do outro
que puxa vida!
Quando restabeleceram a luz, foi iniciado o balanço. Dois estavam sem a carteira e o
relógio, um sem o paletó e um pé de sapato e outro sem o cordão de ouro com a medalha de
São Jorge.
Ah, sim, o defunto estava com a boca murcha às pampas.
85
ANEXO V
Aconteceu no Rio - Avesso da Vida
Título: O ataque
Jornal O DIA, Página 4, edição do dia 5 de junho de 1986
Tava o delegado muito tranquilo, respirando o ar puro da delegacia, quando o auxiliar
chegou, botando os bofes pela boca:
– Tranquem as portas e janelas! Peguem as armas, chamem reforços! Ai,meu Deus, vai sair
o maior tiroteio aqui nesta porcaria.
O delegado viu tudo rodar, recuperou-se, pegou o revolvão e deu um salto da cadeira!
– Quantos são? Puxa, logo hoje? O pagamento sai amanhã!
O auxiliar:
– Três! São três velhinhas!
O doutor já ia abrir a janela pra começar a atirar, mas parou em tempo:
– Três velhinhas? E quase que eu fuzilo as três coitadinhas! Você ficou maluco?
O auxiliar ia responder, mas não deu, as três senhoras simpáticas entraram sorridentes:
– Bom dia, doutor delegado!
O delegado tratou de esconder o revolvão:
– Bom dia! O que é que três simpáticas senhoras vieram fazer aqui na minha modesta
delegacia?
O auxiliar, escondido atrás da cadeira do delegado:
– Cuidado, doutor, é fria! Se elas abrirem a bolsa tome cuidado!
O delegado espanou o auxiliar:
– Fora da minha sala, pombas!
Mandou as velhinhas sentarem:
– Mas, voltando ao assunto, o que as senhoras desejam?
Uma delas:
– Nós somos da paróquia local!
O doutor:
– Até que enfim! Não costumo receber visita de enviados do padre! Aliás, parece que ele
não gosta da minha delegacia!
86
Uma velhinha:
– Não diga isso, doutor.Ele até mandou um abraço pro senhor!
Uma outra:
– E também mandou convidar o senhor pra nossa festinha de domingo!
O delegado ficou como o diabo gosta, de tão satisfeito:
– É claro que irei!
Jogaram um livro na frente dele:
– O comércio e as autoridades estão assinando!Quem deu menos deu 1 mil cruzados!
O delegado sentiu vontade de assinar com revólver, mas usou mesmo a caneta.Depois foi
pedir desculpas ao auxiliar:
– Pior que oitocentas quadrilhas juntas!
87
ANEXO VI
Aconteceu no Rio - Avesso da Vida
Título: O Peru
Jornal O DIA, página 4, edição do dia 14 de maio de 1987
Gersonildo comprou um peru, levou para casa, mostrou o embrulho pra mulher dele e pediu
que ela adivinhasse:
– Se acertar ganha um beijo na boca!
A mulher, que tava carente para dedéu, cruzou os dedos e arriscou:
– Um penico novo pro Tonico!
Gersonildo jogou um balde de água fria na mulher:
Penico pe a sua cara! Eu ia deixar você apertar, pra tentar acertar, mas agora não vou mais!
Aí ela voltou a ficar acesa:
– Deixa eu apertar, pombas! Mereço mais uma chance!
Ele deixou e ela apertou. E no que apertou arriscou:
– Suéter pro inverno que se aproxima!
Gersonildo perdeu a paciência:
– Que é suéter? Você acaba de apertar um peru deste tamanho!
A mulher ficou vermelhona, sem graça, tonta, surda e cega, mas Gersonildo abriu o
embrulho e mostrou:
– Não é uma beleza? Tava lá no balcão do supermercado, com um precinho pra lá de
camarada em cima! Não resisti e comprei! Afinal, eu dei uma prorradinha no bicho e a
gente precisa comemorar!
Pergunto pelo filho:
Cadê o Tonico? Ele vai ficar doido quando souber que vai comer peru!
O garotinho, de cinco anos, se chegou e o Gersonildo deu um tratamento de choque no
coitado:
Hoje vamos comer peru aqui em casa!
O menino, assustado:
– De quem?
Gersonildo disse que tinha comprado no supermercado e mostrou:
88
– Não é uma beleza? Você nunca comeu isto na sua vida!
O Garoto saiu, Gersonildo deu o peru para mulher preparar e já ia entrando no banheiro
para aquele banho comemorativo, quando a casa foi invadida:
Seu amável filhote foi lá em casa e disse que hoje vai ter peru aqui! Trouxe a patroa, as
crianças e a minha cunhada lá de Cordovil, que tava la em casa com os oito filhos dela!
Um gordão:
– Vim só eu e a patroa, mas já mandei recado pro Zoca e sua rapaziada botafoguense lá de
Jacarepaguá! Não demora muito e eles chegam!
Gersonildo:
E quem mandou convidar vocês? A comemoração é só em família!
O gordão:
Ah, é assim? Então você pega esse seu peru e ...
Não deu pra completar, porque o pau comeu firme na sala e a mulher do Gersonildo, sem
ter o que usar, desandou a bater com o peru em todo mundo. Alguns estão no xadrez e
outros no hospital, tomando aquela canja miserável.
89
ANEXO VII
Aconteceu no Rio - Avesso da Vida
Título: Os homens que mudam
Jornal O DIA, suplemento dominical Jornal da Televisão e das Mulheres, página 6, edição
do dia 14 de outubro de 1984
ARQUITETRONILDA (sic) era bonitinha as pampas naquele retrato que seus pais tiraram
quando ela tinha uns oito meses, por aí. Mas, aos 26, tava como tinha que ser, ou seja, feia,
chata, solteira e doidona pra arranjar marido:
– Tem que aparecer alguém, pombas! E toda macumba que eu fiz, não vale nada?
– Dormia de janela aberta, porta encostada, enfim, tudo na maior facilidade, mas não
pintava nada naquele escuro, razão pela qual a donzela já tava pensando besteira:
Acho que vou sair por aí atacando!
Mas não encontrava coragem na hora e ficava na dela, esperando o seu príncipe encantado,
certa que ele pintaria no pedaço, braços abertos e cheio de conversa:
Minha princesa, enfim nos encontramos!
Qual nada. De tanto esperar a Arquitetronilda resolveu armar a maior festa em sua casa,
convidando todos os homens da rua, os casados, os solteiros, os vivos e os mortos, não
livrando nem a cara do mendigo da esquina:
Tenho certeza que na festa uma dessas bestas vai acabar se declarando! Aí, quando acordar
do porre, já era! Vou exigir casamento e outros bichos!
E desandou a convidar todo o mundo, alegando que era para festejar seu aniversário:
Vai ter chope, salgadinhos e, ao contrário das outras festas, ninguém precisa me me dar
presente! Eu é que vou dar!
Aquilo deixou meio mundo escabriado, inclusive o Gerôncio, famoso porque não livrava a
cara de mulher nenhuma:
– Aí tem coisa!
Mas não se recusou e juntou-se ao resto da patota:
– Vai ver, coitada, ela se sente muito solitária!
Um gordinho:
90
– Se eu estiver comendo um croquete e ela passar, cuspo tudo fora! É impossível comer
alguma coisa olhando a cara dela!
A bronca:
– Faz uma esforço, pombas! Cadê o seu sentimento cristão?
Dia de festa, a casa cheia de homem.
A única mulher era a Arquitetronilda:
Estou me sentindo uma sultona no meio dessa homada toda!
Enchia-se de gentilezas. Era croquete pra cá, croquete pra lá, chope jorrando, música,
enfim, aquela festa. Um cara:
– Se ela não estivesse presente,seria bem melhor!
Lá pelas tantas, depois de piscar muito os olhos, fazer mil caras e bocas, Arquitetronilda
resolveu apelar para a ignorância:
– Tenho uma novidade para contar!
Todos os homens recuaram até a parede, temendo o avanço. Mas ela continuou:
Com esses 11 e pouco por cento de setembro, minha poupança chegou a vinte e cinco
milhas!
Tá até agora escolhendo um naquela fila enorme que se formou em seguida à sua
declaração de bens.
91
ANEXO VIII
Avesso da Vida
Título: Fantasia de Carnaval
Jornal O DIA, página 8, edição do dia 27 de fevereiro de 1987
Nescrópio entrou na loja de fantasias e foi à balconista:
– Quanto custa aquela fantasia da Jade da novela?
A balconista, uma magrinha:
– Cinco reais, por causa de que tá em liquidação! Vai experimentar aqui mesmo?
Nescrópio ficou irado:
– Tenho cara de quem se fantasia de Jade? É pra minha patroa!
Um careca:
– Essa fantasia é quente, colega! Mas, se você tá a fim de matar sua senhora
de calor, compra logo uma Dama Antiga, que é de tafetá e tem o maior chapelão!
A magrinha:
– Tem que se meter? O freguês compra a fantasia que ele quiser, por causa de que a mulher
é dele e ninguém tem nada com isso!
Nescrópio, para a magrinha:
– Obrigado! Me dá aquela preta, com aquele véu que só dá pra gente ver os olhos da
criatura!
A magrinha:
– É mesmo pra sua senhora brincar o Carnaval, ou o senhor tá comprando essa fantasia pra
fazer saliências com ela?
Nescrópio, furioso:
– Mais respeito! Fique sabendo que não sou nenhum tarado! Quero o véu tapando tudo,
porque quanto mais a minha mulher ficar escondida, melhor!
Sabe como é, em baile de coreto, ninguém é de ninguém!
Um gordinho comentou:
– Desperdício! O que é bonito é pra se mostrar! O que é um pedacinho de bunda de fora?
O pessoal da loja teve que segurar o Nescrópio, que queria estrangular o gordinho:
92
– Insano mental! Minha primeira-dama é uma senhora de respeito, até canta no coro da
igreja!
A balconista magrinha:
– Toma logo, moço! Paga os cinco reais e se manda!
Nescrópio pegou a fantasia, pagou e perguntou à magrinha:
– A senhora garante que minha senhora vai poder botar essa fantasia e rebolar sem ser
reconhecida por ninguém?
A balconista garantiu, e o Nescrópio saiu da loja com o coração aos pulos:
– Mal posso esperar o momento de arrasaaaaar lá no baile!
93
ANEXO IX
Avesso da Vida
Título: Programa de Carnaval
Jornal O DIA, página 10, edição de 1º de março de 2003
Escanildo fazia planos com a família para os dias de carnaval:
– De tarde, a gente vai levar o Júnior ao baile infantil e, de noite, a gente vai se acabar lá no
coreto! Alguma sugestão?
A sogra era do contra:
– Carnaval é perdição! Prefiro passar esses três dias no Piscinão de Ramos!
Até já pedi aquela bóia emprestada ao Seu Fimóseo!
O garotinho também tinha outros planos:
– Não gosto de sambar! Prefiro ver o desfile das escolas de samba na TV!
Tomou um cascudo do pai na mesma hora:
– A essa hora você tem que estar na cama, seu tarado! Além do mais, nunca que eu vou
deixar você ver mulher nua na TV!
O menininho ponderou:
– Mas eu preciso saber como é que é quando a mulher cresce, pra ver se a minha namorada,
a filha da Dona Piranhelda, vai ficar igual quando for mulher!
A mulher do Escanildo interrompeu a discussão para encostar o marido na parede. Em
seguida, deu sua opinião sobre o carnaval:
– Eu quero ir pra um retiro espiritual nesse carnaval! Preciso rezar muito pra pagar todos os
pecados que cometi antes de me casar!
Escanildo abriu os braços, insatisfeito:
– Mas e o coreto? A prefeitura gastou uma nota pra botar baile lá e vocês ficam falando em
outros programas! Que ingratidão!
A sogra bateu o pé:
– Eu vou pro Piscinão, nem que tenha que ir sozinha! Vai fazer o maior sol!
O garoto não ficou para trás e reivindicou:
– Eu quero ver mulher pelada nos desfiles!
A mulher do Escanildo emendou:
94
– Eu quero fazer retiro espiritual! E você tem que me acompanhar! Família que reza unida,
jamais será vencida! Entendeu bem?
Escanildo riu:
– É ruim! Ficou maluca? Esqueceu que meu nome tá em tudo que é lista negra de retiro
espiritual?
A mulher lembrou:
– É mesmo! Também, nunca vi ninguém ir pra retiro espiritual fantasiado de pirata e com a
garrafa térmica cheia de conhaque!
Escanildo tentou com a mulher dele:
– Tive uma idéia genial! O Júnior fica vendo os desfiles, a minha sogra passa os três dias
no Piscinão, você vai pro diabo do retiro espiritual e eu brinco os três dias no coreto! Que
tal?
Mulher e sogra engrossaram o coro:
– Você vai brincar o Carnaval em outro lugar, seu cretino! Vem aqui agora!
Escanildo, depois da surra que levou, escolheu o Hospital Souza Aguiar, que fica bem
pertinho do Sambódromo. Está sambando deitado na maca.
95
ANEXO X
Avesso da Vida
Título: A diferença
Jornal O DIA, página 9, edição de 20 de maio de 1994
Corbélio estava no bar, bebendo e pensando na Vera Fischer, quando a dona Eustrázia
passou pela calçada e o cara não se conteve:
– Putz! Salve a diferença!
Dona Eustrázia entendeu aquilo à maneira dela:
– Não tem vergonha, seu maníaco? Imagine, me cantado a essa hora e nas barbas de
oitocentas testemunhas! Sabia que eu tenho marido?
Corbélio largou o copo:
– Mas isso nem me passou pela cabeça!
Um baixinho se meteu:
– Desculpe, mas eu ouvi bem e posso garantir que você elogiou a diferença dela!
Corbélio tratou de explicar:
– Eu me referi à diferença entre a senhora e a Vera Fischer!
O baixinho entrou em pânico:
– Com mil reais, o Corbélio tá achando a dona Eustrázia mais bonita que a Vera Fischer! O
homem pirou!
Corbélio, quase voou no pescoço do baixinho:
– É o contrário, sua besta! Dona Eustrázia não gostou:
– E o que é que ela tem, que eu não tenho?
Corbélio não se fez de rogado:
– É o que é que a Vera Fischer não tem, que a senhora tem.
O baixinho, curioso:
– E o que é?
Corbélio mandou ver:
– E você ainda pergunta?
A gente nunca sabe quando a dona Eustrázia tá indo ou vindo!
Um negão que andava de olho na dona Eustrázia não gostou:
96
– Também não precisa humilhar a pessoa dela! Inclusive, eu até ia oferecer o cargo de
madrinha da bateria do nosso bloco pra ela!
Dona Eustrázia agradeceu:
– Obrigada pela lembrança! E fique todo mundo sabendo que eu tenho tudo no lugar!
O negão acendeu os olhos:
– Que a sua pessoa prove!
Corbélio:
– Mas nem que a vaca tussa! Se ela tirar a blusa aqui na rua, vai assustar criancinhas, nós
teremos pesadelos terríveis, os croquetes do bar vão ficar revoltados, o...
O negão:
– Pensando bem...
A santa senhora não gostou:
– Vou fazer uma coisa que a Vera Fischer não faz!
Disse isso e caiu dentro da galera, arriando uns dois, entre eles o Corbélio, que está no
Getúlio Vargas, aos cuidados de uma enfermeira muito parecida com a dona Eustrázia.
97
ANEXO XI
Avesso da Vida
Título: O astro
Jornal O DIA, página 6, edição do dia 21 de junho de 2003
Grindélio, liderando uma multidão de vizinhos, chegou em casa aos berros:
– Meus sapatos! Onde estão os meus sapatos?
A mulher dele chegou da cozinha, assustada:
– Mas o que é que tá acontecendo, afinal de contas? Tomei o maior susto! Na hora, eu tava
temperando o feijão e mexendo a sopa! Agora, não sei mais o que eu fiz!
Grindélio repetiu:
– Quero meus sapatos agora! Vou ensaiar, e os sapatos são essenciais!
Ela continuou sem entender o que acontecia:
– Que ensaio? O Carnaval ainda tá muito longe!
Grindélio fez pose:
– Eu agora sou artista! Imagine que o pessoal lá da firma vai fazer uma peça e me escolheu
pra ser o mocinho!
Um careca, do meio do bolo de vizinhos:
– Pena que ele morre no fim! Mas, até isso acontecer, ele já comeu a mocinha, uma vizinha
e a secretária do chefe!
A dona da casa, ainda de olhos arregalados:
– E o que é que vocês estão fazendo aqui?
Um magricela sorriu exibindo os três dentes da frente:
– A gente tamos acompanhando o artista aqui da comunidade! A senhora sabia que ele até
já me deu um ortógrafo hoje de manhã?
Grindélio, aos berros de novo, começou a dar ordens:
– Seguranças! Tirem esse fã da minha frente! Agora eu vou ensaiar! E ensaio exige muita
concentração!
A mulher do Grindélio, já começando a entender a confusão, resolveu perguntar:
– Essa peça tem mesmo essas sacanagens todas que o Seu Alionério disse?
Grindélio, solene:
98
– Tem, mas é tudo muito profissional! Os beijos são técnicos, não vai ter aquele negócio de
língua e outros bichos, não!
A madame era uma oferecida e foi logo sugerindo:
– Tô pronta pra ensaiar com você! Mas sem platéia!
Grindélio desiludiu a mulher:
– Perdão, meu amor, mas já prometi ensaiar com outra pessoa! E a platéia é necessária,
para que eu sinta a mesma emoção que sentirei quando estiver no palco!
A mulher começou a encrencar imediatamente:
– E eu posso saber com quem você vai ensaiar?
Ele não devia, mas disse:
– Com a Dona Piranhelda Regina! E o ensaio é lá na casa dela! Portanto, trate de me dar os
meus sapatos, porque não pega bem eu...
Parou ali, ao receber a sapatada na cabeça. Desmaiou em grande estilo, enquanto a
multidão de vizinhos chegava ao delírio:
– Bravo!!! Bis!!! Bis!!!
99
ANEXO XII
Avesso da Vida
Título: Ir ou não ir
Jornal O DIA, página 11, edição do dia 18 de abril de 1998
Parafernaldo estava perto da capela, quando parou:
— Acho que não vou! Velório de rico é cheio de coisa! Tem que tomar uisque usando
guardanapo, pegar salgadinho com delicadeza, enfim, essas frescuras!
Quando notou, tinha uma multidão em volta:
— Pode continuar falando sozinho! Aliás, meu avô não faz outra coisa na vida!
Um garotinho, ao lado da mãe, uma magrinha:
— A mãe também! Sempre que o pai tá trabalhando ela se tranca no quarto e fica
falando sozinha!
Parafernaldo ficou tiririca da vida:
— Não falo sozinho! Eu apenas dizia a mim mesmo que não quero ir ao velório do meu
chefe!
Um gordão arregalou os olhos:
— Tem que ir! Tá na lei que nós temos que ir ao velório do nosso chefe!
Um baixinho muito do covarde:
— Quando o meu botar o bloco na rua eu vou! Só assim vou poder chamar ele de tudo que
é nome sem ser despedido!
Parafernaldo, célere:
— Jamais faria isso com o meu chefe! Lá na repartição ele me deu uma porrada de
gratificações, auxílio-isso, auxílio-aquilo e outros bichos! Não tô querendo ir por causa de
que odeio velório de rico!
Um magricela concordou:
— Também acho! Velório de rico não tem aquele coisa linda que é a
primeira-dama do evento gritando que quer ir junto, não tem cerveja, não tem
tira-gosto e nem tem Zeca Pagodinho na vitrola!
Parefernaldo, mais do que depressa:
— A viúva desse velório é uma deusa! E lá tem uisque, cascata de camarão e garçom!
100
Todo mundo se agarrou ao Parafernaldo:
— Você vai e nós também!
Um cara de bigodinho:
— Diz que eu, o gordão e o baixinho somos seus irmãos e que a magrinha é sua cunhada e
o filho dela seu sobrinho! Garanto que vai colar!
Parafernaldo se sacudiu todo:
— Rapa fora todo mundo! Não vou e se fosse jamais levaria um bando de famintos
comigo!
O pessoal não gostou e caiu em cima do Parafernálio, que teve que ser levado para o
hospital, onde até que está aliviado:
— Escapei daquele velório chato!
101
ANEXO XIII
Avesso da Vida
Título: Uma lâmpada queimada
Jornal O DIA, página 19, edição do dia 16 de março de 2003
Alternaldo, irritadíssimo, discutia com a família:
– É claro que eu sei trocar uma lâmpada queimada! Querem ver meu diploma, por acaso?
A mulher dele era a mais preocupada com aquilo:
– Não é a lâmpada, criatura! Nosso medo é que você caia dessa escada! Vai fraturar todos
os seus ossinhos!
O filho do Alternaldo, um garotinho, resolveu se pronunciar:
– Vou logo avisando que se o pai cair e quebrar uma perna eu não vou ficar empurrando a
cadeira de rodas dele, pra lá e pra cá!
Alternaldo, trepado na escada, isolou no teto:
– Vira essa boca pra lá, pivete! Já não bastam as pragas que a sua mãe roga?
A sogra rebateu:
– Meu neto tem razão! E se você acha que o que ele disse é praga, faço minhas as palavras
dele!
Os vizinhos chegaram, tendo à frente um careca:
– O que é que você tá fazendo em cima dessa escada, homem de Deus? Esqueceu que
temos que abrir os trabalhos no bar?
Alternaldo explicou:
– Agora não dá, meus amigos! Tenho que trocar a lâmpada da sala, que queimou!
Um magricela notou a escada:
– Não tem medo de despencar de cima dessa escada? E, se despencar, lembre-se de que nós
estamos aqui embaixo!
Um velhinho lembrou:
– Eu não subo mais em escada de jeito nenhum! Já chega cair aqui embaixo mesmo! Só
este mês já levei três tombos!
Alternaldo pediu:
102
– Em vez de ficarem me agourando, façam o favor de segurar a escada! Ela tá sambando
como se ainda fosse carnaval!
Um baixinho ficou preocupado:
– Segurar, assim, a seco? E se você cair em cima da gente?
Alternaldo se sacudiu todo lá em cima:
– Não vou cair, não, pombas! Eu garanto a vocês que não vou cair daqui de cima! Por isso,
tratem de segurar a escada!
O careca, meio vacilão:
– Você garante que não cai em cima da gente? Não posso me machucar hoje, por causa de
que amanhã tenho que tirar sangue lá no posto de saúde!
Alternaldo garantiu, e os vizinhos, mais a família, seguraram a escada com
toda a força:
– Pronto, manda brasa, mas cuidado pra não cair!
Alternaldo garantiu que era seguro, meteu a mão num fio e veio aquele choque que passou
pela escada e pegou todo mundo em cheio lá embaixo:
– Desgraçado! Isso foi pior do que cair em cima da gente!
Alternaldo continua trepado na escada, com o pessoal embaixo, esperando...
103
ANEXO XIV
Avesso da Vida
Título: A carta
Jornal O DIA, página 10, edição do dia 02 de março de 2000
Estava todo mundo na esquina, quando o carteiro apareceu lá longe e um careca deu o
alarme:
– Espiem só, é o carteiro!
Foi aquela correria, tendo à frente o Enosprézio:
– Devo ter um monte de cartas! Afinal, tenho parentes na Pavuna, no Jacaré, em Cascadura,
em Madureira, no Méier, em...
Parou ali, porque foi agarrado por um gordinho:
– Quem mandou correr na nossa frente? Vai ver, o carteiro só tem conta para o senhor
pagar!
O careca berrou de novo:
– Mais rápido, colegas! O carteiro saiu desembestado quando viu a gente correndo na
direção dele!
Enosprézio era teimoso:
– É porque ele só tem uma carta pra entregar e é pra mim! Ele tá pensando que vocês vão
pegar a minha carta e ler!
Como o carteiro era gordo, o pessoal chegou junto num instante, e o pobre homem
capitulou:
– Eu me rendo! Mas não avancem na mala!
Enosprézio não era fácil:
– Comece logo a fazer a chamada, conforme juramento que prestou quando se formou em
carteiro!
O carteiro, preocupado com a multidão:
– Só tem uma carta pra entregar! E ela é pro seu Enosprézio Fagundes da Silva, morador na
casa 39! A besta do remetente esqueceu de botar o nome dele!
Enosprézio:
– Que besta? E se foi a minha pobre mãe que me escreveu, seu biltre?
104
Um gordinho:
– A letra que tá no envelope não é de mãe! Sei disso, por causa de que letra de mãe é
diferente!
O coro da multidão:
– Leia, leia!!!
Enosprézio:
– Jamais farei isso em público! Esta carta será lida no recesso do meu lar e sem
testemunhas!
Mas, como o pessoal insistiu, o Enosprézio abriu e começou a ler:
– A carta começa dizendo que a minha patroa anda pulando a cerca e...
A gargalhada e o coro o interromperam:
– Corno! Corno!
105
ANEXO XV
Avesso da Vida
Título: Maus momentos
Jornal O DIA, página 10, edição do dia 26 de maio de 1994
O trem, cheio como sempre, corria tranquilo, derrubando uns e outros nas curvas, quando
uma velhinha deu o maior berro;
– Céus! Uma barata voadora!
Florepildes, segurando o ferro, se torceu todo para perguntar:
Aonde? Aonde?
Um baixinho respondeu pela velhinha:
– Bem nas suas costas, caramba!
Um negão, para o Florepildes:
– E a sua pessoa fica quietinha aí, sem se mexer, por causa de que essa barata é daquelas
que avoam!
Florepildes, suando frio:
– Mas nem pensar! Pensam que as minhas costas são aeroporto de barata? Vou é me
sacudir todo!
Um nordestino, largando o ferro:
– Faça isso e será um homem morto, porque se a barata sair das suas costas e voar pra cima
de mim não respondo pelo que vou fazer!
A velhinha:
– Sugiro que o negão, que tem uma mão enorme, dê uma porrada na barata!
Florepildes, célere:
– Como ela pousada nas minhas costas? Mas nem pensar, minha senhora! Se o cara fizer
isso, a barata morre e eu vou ter que ser internado!
O baixinho:
– Então, deixa que eu dou o tapa, por causa de que tenho mão pequena.
O negão:
– Negativo! O máximo que a sua pessoa vai conseguir é fazer a barata voar por aí! Minha
mão é que vai acabar com ela!
106
Florepildes, sem se mexer:
– Nem ouse! E não precisa ficar preocupado, porque eu vou até a porta e lá me sacudo todo
pra ela sair e cair na linha férrea!
Os pingentes, em coro:
– Não se aproxime da porta com esse monstro nas suas costas! Vai causar uma tragédia!
A velhinha cismou de dar bronca no Florepildes:
– Viu no que dá sair de casa com uma barata de estimação nas costa?
Florepildes:
– Mas eu nunca vi essa barata mas gorda!
O negão:
– Pra cima da gente? A pessoa da barata parece sua amiguinha desde que era pequenininha!
Foi nessa que o Florepildes se invocou:
– Pra mim chega! Vou me sacudir todo!
E se sacudiu mesmo, fazendo a barata voar em todas as direções. O pessoal
preferiu esquecer a barata e deu o maior piau no Florepildes, que teve que ser socorrido na
primeira estação. A barata se escondeu debaixo de um banco, com medo da briga.
107
ANEXO XVI
Avesso da Vida
Título: O boa-vida
Jornal O DIA, página 12, edição do dia 15 de novembro de 2000
Juresvaldo chegou em casa com os olhos parecendo faróis de neblina:
– Adivinhem o que aconteceu!
A mulher dele, célere:
– Pela sua cara, tomou todas! Não tem vergonha?
Ele, sacando uma papelada da pasta:
– Veja lá como fala com um aposentado! Sabia que isso pode dar cadeia?
A mulher arregalou os olhos:
– Aposentado? Deus é pai! Eu sabia que um dia você ia conseguir!
Juresvaldo beijou a papelada:
– Eu não agüentava mais! Se não me aposentasse hoje, nem sei o que faria! Fechou os
olhos:
– Meu primeiro dia em casa, sem ser domingo, feriado, nem nada!
A sogra entrou na prosa:
– Que bom! Agora tenho um coleguinha em casa!
Juresvaldo:
– Exatamente! E como somos colegas agora, me poupe daquelas sacanagens!
O filho menor do Juresvaldo adorou:
– Agora o senhor pode me levar ao Maracanã, ao circo e mais uma pá de lugar!
Juresvaldo, todo alegrinho:
– Isso, na hora em que eu não estiver dando milho pra pombo, jogando sueca com os
colegas lá na pracinha, dormindo ou vendo televisão! E continuou, feito vitrola:
– Adeus trem da Central! Adeus patrão! Adeus trabalho!
A mulher dele:
– Vai ter tempo pra dedéu a partir de hoje, né, amor?
Ele sacou o lance:
108
– Pode ir tirando o cavalinho da chuva, minha senhora! Quando me aposentei, me aposentei
mesmo! Saliências, nunca mais!
A sogra se voltou contra o coleguinha:
– Vai deixar minha filha a ver navios, seu desnaturado?
Juresvaldo, no ato:
– Ué, a senhora não parou também depois que o falecido botou o bloco na rua?
E acendeu o olhar em cima da poltrona:
– Vou sentar e ficar vendo televisão até a hora que me der vontade de dormir!
A mulher dele era vingativa:
– Nem pensar! Agora que tá aposentado, vai varrer o quintal todo dia, limpar a fossa, fazer
compras no supermercado, encerar a casa, consertar o telhado...
Juresvaldo está tentando anular a aposentadoria.
109
ANEXO XVII
Avesso da Vida
Título: A pendência
Jornal O DIA, página 15, edição do dia 7 de fevereiro de 1998
Flaustrézio, no ônibus, quase suplicou a um gordão ao lado dele:
– Dá pra desencostar? É que podem pensar que o senhor é o outro na minha vida!
O gordão arrepiou em cima do Flaustrézio:
– Se tá incomodado, salta e pega um táxi!
Naquele justo momento, três camaradas armados se revelaram:
– Vamos parar de presepadas aí, que é um assalto!
Um careca se colocou entre os assaltantes e os demais passageiros:
– Mas nem que a vaca tussa! Primeiro, vamos ver como termina o impasse criado pelo
gordão ali, que estava se encostado no cavalheiro aqui!
O gordão quase voa na carótida do careca:
– Ninguém tava se encostando em ninguém, seu invertebrado! Mas que mania, essa de ficar
acusando sem prova!
Uma magrinha se colocou ao lado do careca:
– Eu tô de prova, por causa de que tava vendo tudo, mas não disse nada, porque pensei que
o senhor e o moço aí fossem namorados!
Flaustrézio meteu o dedo na cara do gordão:
– Viu o que arrumou com esse negócio de ficar se encostando em mim?
O chefe do bando sacudiu o 38:
– Parem com essa frescura! Isto é um assalto!
Uma velhinha, para o bandido:
– Dá um tempo! Eu quero ver como vai terminar essa pendência toda aí!
Uma baixinha pediu licença pra falar:
– Uma vez eu tava no trem e fui me encostando! O meu marido, que na época não era nada
meu, foi deixando e quando abriu os olhos a gente tava diante do padre! Tô casada até hoje!
Um assaltante mirou na baixinha:
– Mais uma gracinha dessa e vai levar um pombo sem asa na testa, sua anã!
110
Flaustrézio estava injuriado:
– Ninguém manda pombo em ninguém, enquanto esse verme não me pedir desculpas!
O gordão fez jogo duro, disse que não ir pedir desculpa nenhuma e o Flaustrézio ignorou o
assalto por completo:
– Ah, é?
E iniciou o maior conflito no ônibus, que terminou com ele, o gordão e os três assaltantes
em estado precário. No hospital, para se garantir, Flaustrézio pediu para que a maca onde
estava estendido ficasse bem longe da do gordão.
111
ANEXO XVIII
Avesso da Vida
Título: A Fofoca
Jornal O DIA, página 4, edição dos dias 1 e 2 de dezembro de 1968
No boteco chorava suas mágoas.
– É o caos, o caos! Foram espalhar que eu andava com a guria e deu um rolo desgraçado!
Alguém cheio de inspiração agarrou-o pelo braço:
– Antes que a bomba estoure por completo vá lá, junta a turma e boca a boca no mundo!
Impressiona às pampas!
Alarico deu um salto na cadeira:
– É isso "mermo" , rapaz, é isso "mermo" (sic)
Ato contínuo subiu o morro. Pegou a mulher, os filhos, a sogra, os primos, as cunhadas e
rumou para casa da guria.
Lá juntou a mãe, a guria, o pai, os irmãos, vizinhos e inúmeros penetras, e iniciou a coisa:
– Vamos parar de fofocas! Andam dizendo que andei com a Esmeraldina aí, mas é mentira!
E antes que alguém pudesse dizer alguma coisa:
Não admito, não admito, entendem? Não posso permitir que meu nome seja usado
assim,sem mais nem menos, num troço que nada tem a ver comigo!
Alguém ia dizer qualquer coisa, mas Alarico não deixou:
– Eu processo, eu processo! Meto na cadeia quem anda falando coisas pela aí! (sic)
Tomou fôlego e reiniciou:
– Sou homem casado e não posso andar metido nessas coisas. Amo minha espôsa e meus
filhos! Por isso não posso admitir fofocas envolvendo meu nome! De jeito nenhum, de jeito
nenhum! Cuspiu de banda, limpou a boca na manga da camisa e prosseguiu:
– E tem mais, quero saber quem começou essa palhaçada!
Alarico falava com tanta grossura que ninguém animou dizer nada, do que ele se aproveitou
para continuar sua bronca.
– É o fim da picada, pombas!
Qualquer coisinha vão logo inventando as coisas mais incríveis! Tá a Esmeraldina aí que
não me deixa mentir!
112
Todo mundo olhou para Esmeraldina, pivô de todo o caso, mas quando a moça tentou abrir
a boca para dizer a sya (sic), o Alarico não a deixou:
– Claro que ela vai responder que não houve nada! O que houve foi um mal-entendido e
muita maldade por parte dos fofoqueiros aqui do morro!
A Esmeraldina tentou dizer qualquer coisa, mas o Alarico não deixou:
– Não admito!!! Torno a repetir que não admito que meu nome seja maculado por
fofoqueiras profissionais e de carteira assinada, que não fazem nada mais na vida, senão
arruinar vidas!
Vivo muito bem com a minha espôsa e não posso permitir que minha felicidade seja
destruída por línguas ferinas!
Num esfôrço supremo a Esmeraldina conseguiu dizer:
– É, mas não foi isso que você falou! Prometeu tudo, tudo!
Alarico recebe visitas às quintas-feiras, no hospital Carlos Chagas, onde se encontra
internado com fratura exposta.
113
ANEXO XIX
Avesso da Vida
Título: O enredo malandro
Jornal O DIA, página 10, edição do dia 2 de janeiro de 1998
Arafobildo chegou no bar sem um centavo no bolso e a cabeça cheia de más Intenções:
– Depois de meses e meses encontrei um enredo sensacional pro nosso bloco!
O presidente, um gordão:
– Até que enfim uma alma caridosa se lembrou que o nosso bloco existe!
Arafobildo sacou um papel do bolso:
– Saquem só a preciosidade: Pereironildo Silva, uma rua cheia de encanto e fantasia !
Um baixinho, pasmo:
– Céus, essa é a nossa rua! Mas que diabo de encanto é esse numa rua que não é calçada, só
conhece o Fusca do seu Almironeldo e tem uma vala desgraçada onde todo mundo vive
caindo quando sai do bar?
Arafobildo enfeitou o pavão:
– Fui na biblioteca e fiquei sabendo que quem descobriu a nossa rua foi um português que é
tataravô do patrício aqui do bar!
O português riu:
– É ruim! A rua não tem nem 20 anos! Como é que meu tataravô descobriu ela?
Arafobildo estava com tudo decorado:
– E antes de ser rua, hein? Saiba que o seu tataravô, Pereironildo Silva, aportou aqui
quando o mar batia ali na esquina e foi recebido por uma porrada de índias, tudo de bunda
de fora!
O português acendeu os olhos:
– E depois? E depois?
Arafobildo entrou com a segunda parte do plano:
– Perdão, mas enredo tem que ser guardado a sete chaves!
Um negão não sacou a sacanagem:
– Claro! Sempre tem a pessoa de um co-irmão querendo roubar a idéia!
Uma magrinha não perdeu tempo:
114
– Quero sair de índia! E pelada feito as que receberam esse navegante aí!
O português se emocionou:
– Puxa, quanta honraria! Pois o artista que bolou o enredo não paga nada hoje aqui no
estabelecimento!
Arafobildo guardou o papel no bolso:
– Obrigado! Inicialmente, uma bem gelada e umas rodelas de lingüiça!
O safado caiu de boca nas geladas e nos quitutes, mas vai ter que ficar uns dez carnavais
sem aparecer naquele bar, por motivos óbvios.
115
ANEXO XX
Avesso da Vida
Título:O vigarista
Jornal O DIA, página 9, edição do dia 14 de agosto de 2001
Pilantrézio se meteu na rua mais pobre do lugar e pegou um monte de gente do local
batendo papo:
– São eleitores? – perguntou, intrigando um gordinho:
– Quem quer saber?
Uma velhinha arriscou:
– Já sei! O senhor é do Ibope! Acertei?
Pilantrézio riu:
– Quase! Sou é candidato e, segundo o Ibope, já estou em 785º lugar entre os preferidos
pelo eleitoraldo!
Uma magrinha histérica:
– Ai, meu pai! Um candidato veio à nossa rua! E eu hoje ainda nem penteei os cabelos e
botei desodorante!
Pilantrézio, malandro:
– Nem deve! Povo tem que ser povo, cheirar a povo e falar como povo!
A velhinha, preocupada:
– Se o senhor for eleito, jura que acaba com a dengue?
O safado:
– A senhora quer?
A velhinha confirmou, e o Pilantrézio bateu o martelo:
– Acabou a dengue! – decretou e impressionou um careca:
– Puxa, eu não sabia que era tão fácil assim! E assalto?
Pilantrézio jurou:
– Esse caso, só depois de tomar posse! Agora mesmo, quando sair daqui, vou visitar 80
comunidades carentes que sofreram assalto nas últimas 24 horas!
Vou falar com os delegados e botar os bandidos a pão e água!
Respirou fundo e jogou o verde para os eleitores:
116
– Embora ainda não tenha almoçado e esteja com a barriga vazia, como vocês do povo
costumam dizer!
Um gordão, célere:
– Não seja por isso, doutor! Vamos ao bar ali em frente, que é por nossa conta!
No bar, o Pilantrézio, justiça seja feita, fez uma verdadeira devastação. Foram dois pratos
feitos, cinco cervejas e goiabada de sobremesa:
– Comi como um rei e juro que, em troca, calçarei esta rua, botarei luz, água, esgoto,
ônibus, caminhões, guardas de trânsito e um Cristo Redentor maior do que o verdadeiro!
Depois, chegou a ser comovente, a cena: os moradores, acenando com lenços brancos, e o
Pilantrézio se mandando e rindo:
– Esse conto do candidato é genial! Até a eleição, não morro de fome!
117
ANEXO XXI
Avesso da Vida
Título: O golpe furado
Jornal O DIA, página 14, edição do dia 29 de novembro de 1996
Escrovelino, malandro como ele só, achou de ganhar uma grana nas costas da magrinha e
subiu num caixotinho para se dirigir ao pessoal:
– A dona Piranhelda aqui precisa de ajuda, por causa de que disse que não morre sem
visitar a Disney!
A dona Piranhelda ia tirar o dela da reta, mas uma baixinha alienada perguntou:
– Disney? Quem é essa piranha?
Escrovelino ia descer do caixotinho para encestar a baixinha, mas não podia pagar mico:
– Disneylândia, sua burra! Aquele lugar onde tem o Pateta, o Pluto, o Pato Donald...
A magrinha conseguiu falar:
– Mas eu nunca na minha vida disse que queria ir a esse lugar, seu Escrovelino!
Escrovelino tinha um certo domínio sobre a magrinha:
– Como não disse, dona Piranhelda? Esqueceu de ontem lá no bar?
A magrinha, célere:
– Então eu tava de porre, deve ser isso! Mas se o senhor tá falando...
Um negão, coçando o queixo:
– Afinal, a sua pessoa quer viajar para o Estados Unidos mesmo ou é sacanagem da pessoa
do Escrovelino?
Um careca, autoritário:
– Isso, interroguemos a suspeita! E sem essa dela dizer que só fala diante do juiz!
Levou um cascudo do negão:
– A sua pessoa parece que bebe, pombas! Pára de dar ordens, caramba!
A magrinha, se lembrou de que não tinha dito nada:
– Posso até jurar que nunca disse que queria viajar pra porcaria de lugar nenhum! Pra ir
daqui de Marechal até Cordovil eu me engasgo toda! Imagine ir assim tão longe! Eu não ia
agüentar tanto tempo no ônibus!
Escrovelino não desistia:
118
– De avião, dona Piranhelda!
Um baixinho, bem alto:
– Esse negócio tá muito estranho! Pra mim tem sacanagem nesse troço!
O negão, para o Escrovelino:
– Que a sua pessoa desça do caixotinho e explique tudo direitinho!
Escrovelino sacou a reta, tentou engatar uma terceira e sair a mil, mas foi seguro pelo
braço:
– E ainda por cima usando a Dona Piranhelda Regina, seu filho das unhas! Quer grana, né?
E deram a maior surra no cara, que está no hospital, bastante avariado, mas tentando
enganar os coleguinhas de enfermaria.
119
ANEXO XXII
Avesso da Vida
Título: O broche
Jornal O DIA, página 26, edição do dia 24 de março de 2002
A mulher do Breucrildo chegou em pânico à sala da casa:
– Ai, meu pai, perdi meu broche!
Breucrildo, sentado na poltrona, sem tirar os olhos do jornal:
– Qual deles? Você tem broche que não acaba mais, pomba!
Ela, chorosa:
– Aquele do gnomo! – o maridão exultou:
– Até que enfim, você perdeu aquela imoralidade! Eu morria de vergonha quando você
botava aquele troço no peito! Cruz credo!
A mulher, injuriada:
– Ele não é imoral! Aquele negócio que ele tem é uma verruga no lugar errado! Além do
mais, o broche me protegia de assalto e de bala perdida! E agora?
A sogra do Breucrildo entrou na prosa:
– Todo mundo procurando o broche! Não quero que minha filha ande por aí sem o seu
talismã de estimação!
Breucrildo não gostou:
– Onde já se viu um talismã com um...um apêndice daqueles, minha senhora?
Chegava até a me dar aquele complexo de inferioridade, caramba!
A velha, com o dedo em riste pro genro:
– Fique sabendo que os gnomos só usavam calça apertada! Não reparou nos livros,
indecente?
Mas o Breucrildo tinha boa memória e respondeu na bucha:
– Até pode ser! Mas me explica por causa de que sempre que a sua filha
botava aquele broche no peito, as colegas carentes dela ficavam alisando a peça? Hein?
A mulher do Breucrildo arrumou uma desculpa:
– Porque o broche era bonito, ora essa!
Breucrildo voltou rapidamente às páginas do jornal que lia:
120
– Sinto muito, mas tô lendo meu horóscopo! Dêem licença!
A sogra dele:
– Olha só: se a minha filha levar uma bala perdida na idéia quando sair à rua, a culpa será
sua! Aquele broche protegia ela de todos os perigos, seu salafrário!
Breucrildo, rindo:
– Mas é claro, ora! Até o pior dos bandidos se rendia às coisas daquele gnomo depravado!
A mulher do cara resolveu apelar:
– Mas eu tô acostumada com o broche! De tanto usar, espia só a marquinha que ficou aqui
no meu peito!
Breucrildo chegou perto da mulher, esticou o pescoço e teve até vertigem com a visão:
– Que panorama! Eu vou achar, fica fria! Mas, depois, quero uma recompensa, hein!
E o malandro do Breucrildo, que estava doido por uma noite de saliências com a patroa,
achou o broche rapidinho. Ele havia escondido a peça bem escondidinha num buraco no
quintal.
121
ANEXO XXIII
Avesso da Vida
Título: O careca e os otários
Jornal O DIA, página 9, edição do dia 13 de outubro de 2001
A notícia correu célere e pegou o pessoal na esquina em cheio:
– O traficante aqui da área mandou o comércio da rua fechar hoje! – era um careca dando a
notícia. Falou e continuou:
– É em sinal de luto pela morte da vizinha de uma das amantes dele!
O Esnervaldo, maior malandro, estÁ presente e se revoltou:
– Quem esse camarada pensa que é, pra botar essa banca toda?
Uma magrinha se empolgou:
– Isso! Vai lá e diz isso na cara dele! Imagina se a gente vai ficar calada!
O careca lembrou:
– Cuidado, que ele anda armado até os dentes! Dizem, inclusive, que ele rifou a mãezinha
dele, quando era criancinha, só pra comprar uma cocada!
A magrinha voltou atrás:
– Coitado! Alguém aqui devia ir lá pra dar as condolências ao infeliz! Não é mole perder,
assim de repente, a vizinha de uma das amantes!
Só que o Esnervaldo não se assustou:
– Sabiam que botequim é comércio? – fez o pessoal cair na real:
– Fechar o bar, não!
Um velhinho, preocupado:
– Moro aqui há 50 anos e essa é a primeira vez que o comércio fecha por causa de um
negócio como esse! Gostaria de saber quem é o rapaz que resolveu trilhar o caminho do
mal, para uma conversinha ao pé do ouvido com ele!
Um gordão precavido:
– Nunca vi esse traficante! Mas o que eu quero mesmo é distância dele!
Esnervaldo enfeitou o pavão:
– É forte pra caramba, costuma almoçar chumbo derretido e jantar salada de comigo-
ninguém-pode ao molho de cicuta e antes de dormir sempre mastiga umas balas!
122
A magrinha se animou:
– Bala? Então é um maricas! Vai lá e enfia a porrada nele, Seu Esnervaldo!
Esnervaldo, aos gritos:
– Balas de pistola 45, sua mosquita anêmica!
O careca sugeriu:
– E se a gente subornasse o meliante? Sugiro que todo mundo caia com um real na mão do
colega Esnervaldo! Aí, é só ir até o sujeito e negociar uma saída política!
Como essa prática anda muito em voga, a galera concordou e choveu grana na mão do
Esnervaldo, que se foi e voltou logo em seguida:
– Tudo em cima! O homem voltou atrás e o comércio vai abrir!
E foi para o bar, gastar a grana dos otários com o cúmplice dele, o careca.
A rua nunca teve traficante.
123
ANEXO XXIV
Avesso da Vida
Título: A mágica
Jornal O DIA, página 15, edição do dia 12 de junho de 1998
O trem estava assim de gente quando o sujeito magrinho botou o turbante e pediu:
– Por favor, afastem-se para que eu possa apresentar o meu número!
Foi aquele espanto:
– Um mágico no trem!
Uma baixinha entrou em pânico:
– Ai, se ele usa turbante deve ter cobra na parada! E eu tenho pavor de cobra, meu São
Bregonildes!
O cara, que não era mágico, coisa nenhuma, ficou tiririca da vida:
– E eu lá trabalho com cobra? Saiba que minhas mágicas são científicas! Falou e pegou um
serrote:
– Uma dama, por gentileza!
Uma magrinha foi empurrada pela multidão:
– Ela!
A magrinha se sacudiu toda nos braços do malandro:
– Me larga, seu coisa! Nunca que eu vou deixar o senhor me serrar ao meio!
Um careca, para a magrinha:
– Fica fria, minha filha! Eu conheço esse cara do Largo da Carioca e sei que ele é bom
nesse troço! Uma vez ele errou, mas lá no hospital colararam direitinho a moça!
Ai mesmo é que a baixinha deu uma queda de asa e saiu em direção à porta:
– Quero saltar!
O safado teve que apelar:
– Quem quer dobrar a grana que tem no bolso? Se alguém me der um real eu transformo em
dois reais!
Um sujeito de bigodinho enviesou o olhar:
– É ruim! Pensa que alguém aqui é otário?
Um baixinho ingênuo:
124
– E se for verdade? Puxa, eu ia tomar uma latinha lá na estação, mas se ele dobrar a minha
grana eu vou poder tomar duas!
Aquele negócio de cerveja mexeu com todo mundo, mas um negão achou por bem tomar as
devidas precauções:
– Cerquem a pessoa dele na hora da mágica! Assim, as nossas pessoas garantem a grana de
volta!
O cara era um artista:
– Recuso-me a trabalhar sob pressão!
O cerco se apertou:
– Ah, é?
A única mágica que o sujeito conseguiu foi a de ser atendido na hora quando chegou ao
hospital, todo arrebentado por causa da surra.
125
ANEXO XXV
Avesso da Vida
Título: Um pouco atrasado
Jornal O DIA, página 8, edição do dia 26 de fevereiro de 1998
Braustrézio chegou em casa com a bermuda imunda e os cabelos em pé:
– Mangueira! Portela! Mocidade! Viradouro! Salgueiro! Beija-flor! Imperatriz! Vila Isabel!
A mulher dele, a sogra e todos os vizinhos estavam na casa:
– Hoje é quinta-feira! Vai tratando de dizer onde se meteu, seu cretino!
Um baixinho, indignado:
– Antes do seu relatório, fique sabendo que fomos a hospitais e necrotérios à sua procura!
Como a gente tava no meu Fusquinha e parou em tudo que era bar que tinha pela frente,
levei cinco multas, fui reprovado no teste do bafômetro e perdi até a carteira!
Braustrézio, tropeçando na própria língua:
– Pô, eu só fui ver as escolas e depois vim pra casa!
A mulher dele pagou geral:
– Mentira! As escolas desfilaram há três dias!
Braustrézio ficou com os olhos deste tamanho:
– Putz, bem que eu achei que o motorista tava dirigindo o ônibus muito devagar! Acho que
ele tava de porre!
Um negão, tiririca da vida:
– Com todo respeito, mas quem está de porre é a sua pessoa!
O papa-defuntos do bairro estava presente:
– Não tinha nada que aparecer! Perdi quase três dias de sono por nada!
Uma magrinha arrepiou em cima do Braustrézio:
– Isso se faz? Eu a sua patroa pensamos em já usar luto, por causa de que...
Uma velhinha interrompeu a magrinha:
– Que horror! E se o Juizado de Menores pega você dormindo na rua?
Braustrézio desandou a dar pulinhos:
– Tenho quarenta anos, minha senhora, quarenta!
Um gordão disse o que não devia:
126
– Fique sabendo que passamos esse tempo todo consolando a sua senhora,
pensando que você já fosse um ex! Com aquela, Braustrézio teve um momento de lucidez:
– Como é que é? Na certa abraçaram a Bregonelda Regina, passaram a mão e coisas piores,
só porque eu fui até ali e demorei um pouquinho pra voltar!
Foi dizer aquilo para os vizinhos, injuriados, cairem dentro do infeliz, que foi parar no
hospital. Só que, agora, a família e a comunidade sabem onde ele está.
127
ANEXO XXVI
Reportagem
Título: Indios caçam às margens do Sena
Texto sem assinatura
Jornal O DIA, página 6, Caderno Especial de Carnaval, edição do dia 13 de fevereiro de
1994 (Domingo de Carnaval)
O enredo que a carnavalesca Rosa Magalhães criou para a Imperatriz, contando a
história da participação de 50 índios brasileiros numa festa promovida em 1550 pela
comunidade de Rouen, na França, para homenagear o rei Henrique II e a rainha Catarina de
Médicis, tem tudo para gerar a grande polêmica do Carnaval de 1994. Ele é exatamente
igual ao tema do enredo que o Império Serrano mostrará no Sambódromo. A tentativa da
população de Rouen era, segundo o histórico oficial do enredo, ofuscar a festa que a cidade
de Lyon oferecera aos reis um ano antes, numa época em que era costume receber a família
real com grandiosas festas.
A festa de Rouen foi um delírio carnavalesco. Os franceses montaram às margens
do Sena um cenário destes que os autores de samba-de-enredo chamam de deslumbrante.
Até as árvores foram fantasiadas, para ficarem parecidas com as espécies tropicais
existentes no Brasil. Muitas ganharam frutos imitando os naturais. Foram erguidas cabanas,
entre galhos de árvores que abrigavam macados, marmotas e sagüis, levados do Brasil. Para
completar a alegoria, 50 índios brasileiros foram levados de navio para a França. A eles
misturaram-se 250 marinheiros locais, nus e pintados como os nossos ingênuos tupinambás
e tabajaras, que simularam o cotidiano de uma aldeia indígena.
O sucesso foi tão grande que os reis pediram bis. A representação foi repetida no
dia seguinte. Entre alas com fantasias de índios, nobres franceses, marinheiros, a Imperatriz
vai mostrar carros que prometem: “Rei Henrique II e seus acompanhantes”, “As musas no
séquito da Rainha Catarina de Médicis”', “As alegorias marinhas nas águas do rio Sena”,
entre outros. Difícil é imaginar como será o carro alegórico “Montaigne escreve seus
ensaios e a floresta invade sua imaginação”, provavelmente uma referência aos textos em
que o filósofo escreveu sobre o Brasil.
128
ANEXO XXVII
Avesso da Vida
Título: O bloco
Jornal O DIA, página 8, edição do dia 13 de fevereiro de 1994 (Domingo de Carnaval)
O presidente do bloco estava quase tendo um filho:
– Caramba, a gente desfila daqui a três horas e a pessoa dos componentes da bateria não
apareceu ainda!
A madrinha da bateria:
– Sem bateria eu não desfilo nem por um decreto! Não vou ficar me
sacudindo toda sem ter uma bateria atrás de mim!
O presidente estava uma arara:
– É claro, sua besta! Onde já se viu desfile sem a pessoa da bateria?
Uma senhora, única componente da ala das baianas:
– Já procurou no bar? A nossa bateria é tão pequena que cabe todo mundo lá!
Um passista se ofereceu:
– É isso aí, chefia! Vai ver, o pessoal foi tomar um goró pra não fazer feio no desfile aqui
da rua! Posso ir lá e chamar a rapaziada?
O presidente:
– A sua pessoa vai num pé e volta no outro! E cuidado com a vala! Se a
sua pessoa cai naquela porcaria e quebra um pé a gente fica desfalcado!
O cara foi e cinco minutos depois o presidente já estava preocupado:
– Já era tempo da pessoa dele voltar!
Um magricela que ia desfilar como destaque, fantasiado de Pedro I:
– Mesmo com esta fantasia de um quilo e meio eu vou até lá pra convocar a rapaziada!
O presidente repetiu aquela coisa de ir num pé e voltar no outro e o destaque foi. Dez
minutos depois, nada do cara voltar:
– Com mil notas zero, metade do bloco está no bar!
O cara de uma ala de três:
– Deixa comigo, chefia, porque vou trazer a galera no peito e na raça!
– Olha a pessoa da vala! Essa fantasia de índio custou uma nota!
129
O quitandeiro, benemérito do bloco fez o maior discurso, por causa da demora do destaque:
– É por isso que o nosso bloco não vai pra frente! Como benemérito, vou ao bar e trazer
todo mundo na base da porrada!
O benemérito foi e nada de voltar. O presidente se encrespou:
– Vou fazer valer a autoridade da minha pessoa! Agora quem vai lá sou eu!
Foi, chegou e encontrou todo mundo lá, enchendo a cara. Olhou as cervejas, o tira-gosto e
capitulou:
– E ficou também. O bloco, é claro, não saiu.
130
ANEXO XXVIII
Reportagem
Título: Imperatriz: rival de todas
Legenda: DE NOVO. Enredo da campeã lembrou Cabral, o descobridor do Brasil
Liga das Escolas faz o seu ranking
Jornal O DIA, página 3, edição de 25 de fevereiro de 2001
CLÁUDIO VIEIRA
Escolas sonham em impedir o terceiro título consecutivo da verde-e-branco e tentam
vencer o primeiro Carnaval do milênio O desfile do Grupo Especial deste ano anuncia uma
disputa das mais interessantes. Enquanto 11 escolas tentarão o título de primeira campeã do
milênio, a Imperatriz Leopoldinense lutará por um tricampeonato milenar, pois faturou os
dois últimos do milênio que passou. Se conseguir, feito igual só daqui a mil carnavais. No
mínimo. A façanha teria um sabor ainda mais especial por se tratar do primeiro
tricampeonato da história do Sambódromo.
Durante os 17 anos em que desfila na Avenida, a verde-e-branco de Ramos foi a
agremiação que mais títulos conquistou: cinco ao todo, sendo dois bicampeonatos; depois,
vêm a Mangueira e a Mocidade Independente, ambas com quatro vitórias. Vila Isabel,
Estácio de Sá (ambas no Grupo A, atualmente), Salgueiro, Viradouro e Beija-Flor
completam a galeria. Outra curiosidade: a Portela, que tem o maior número de vitórias em
todos os tempos – 21 ao todo –, nunca foi campeã no Sambódromo.
Ameaças de censura alteram desfile de escolas
O Carnaval da Paz sofreu turbulências durante a semana por ameaças de censura.
Escolas que programavam levar vídeos e performances criticando os estragos que a
violência faz à sociedade tiveram que alterar seus planos. A Mocidade não vai mais exibir a
fita com a tragédia do ônibus 174. A Grande Rio também não mostrará cenas de PMs em
pancadaria. Para evitar as farpas da Funai, a Viradouro aboliu a ala dos índios-preguiça.
Sobraram a Era de Aquarius e a esperança que ela traz .
131
Mas essa paz não vai muito além do enredo. Na disputa, todo o cuidado é pouco.
Basta meio pontinho para decidir o título ou jogar uma escola nas profundezas do Grupo A.
O escorregão representa um prejuízo superior a R$ 1 milhão.
A Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) criou o ranking das agremiações
do Grupo Especial, levando em conta sempre os cinco últimos carnavais. Das 14, apenas as
10 primeiras colocadas recebem a pontuação.
A Imperatriz está no topo com 73 pontos, seguida da Beija-Flor, com 72 pontos, e
da Mocidade, com 61. As últimas são União da Ilha e Império Serrano, ambas com 6.
132
ANEXO XXIX
Avesso da Vida
Título: O mandão
Jornal O DIA, página 11, edição do dia 25 de fevereiro de 2001 (Domingo de Carnaval)
Ostremeldo, como presidente do bloco, dava ordens em todas as direções:
– É no pé e na boca! Meto a porrada em quem desfilar com cara de velório!
A porta-bandeira:
– Então, tô fora, porque minha dentadura tá no conserto e não posso rir!
Ostremeldo tinha solução:
– Sem problema! Vai até a dona Clotidonelda, da ala das baianas, e
pede a dentadura dela emprestada! Baiana não precisa rir!
O português do boteco:
– Como patrono, exijo uma explicação!
Ostremeldo respeitava o financiador do bloco:
– Pois não, excelência!
O português, injuriado:
– Por que o fado que eu fiz foi desclassificado? Ia ser uma novidade o bloco cantar fado em
vez de samba!
Ostremeldo:
– Patrono tem mais é que beijar a bandeira, passar a mão na madrinha da bateria e ser o
primeiro a assinar o livro de ouro! Não basta? Um garotinho chegou, a mil:
– Seu Ostremeldo, a mãe disse que a fantasia do destaque não vai ficar pronta na hora, por
causa de que o pai chegou agora com fome e ela se trancou com ele no quarto pra ele
comer!
Ostremeldo quase arranca os cabelos:
– Filhos da mãe! Isso é hora disso? A gente vai desfilar daqui a pouco!
Quero todo o mundo sambando e cantando o samba dos nossos compositores que, por
coincidência, são do cerol aqui da área!
Um magricela, célere:
133
– Concordo! Afinal, eles queimaram as pestanas pra fazer o samba, ficaram dias e noites
sem dormir e ainda tiveram que ameaçar a comissão julgadora com aqueles fuzis pro samba
deles ganhar!
Lá pelas tantas, quando os preparativos terminaram, Ostremeldo avisou:
– Vou até em casa um instantinho e volto rapidinho!
Chegou em casa e deu com a mulher dele, de cara amarrada:
– Já era tempo! Varre o quintal, encera a sala, ajeita a antena da televisão e vem comigo ao
supermercado, que a gente não come brisa!
O bloco vai desfilar atrasado, porque, em casa, o Ostremeldo não manda nada.
134
ANEXO XXX
Avesso da Vida
Título: O retrato
Jornal O DIA, página 10, edição do dia 6 de abril de 1994
Aubregaldo caminhava pelo Campo de Santana, quando sacou um lambe-lambe:
– Que sorte! Tenho mesmo que tirar um retrato pra minha carteirinha de sócio do bloco!
Foi ao retratista:
– Capricha que eu quero meia dúzia! Um eu vou dar pra minha patroa, só para fazer a
carne-seca com abóbora que eu tanto adoro!
Foi sentando na cadeira. E no que se sentou, um baixinho se chegou e opiniou:
– Sem sorrir. O Ministério do Trabalho não aceita retrato de gente rindo feito hiena.
Aubregaldo, para o baixinho:
– Que Ministério do Trabalho? Vou tirar retrato pra minha carteirinha do bloco!
Um negão ouviu e entrou no papo:
– Então a sua pessoa tem que sorrir pra dizer o samba na boca. Lá no meu bloco quem não
ri na foto da carteirinha, não desfila!
O retratista:
– Pô, vocês estão atrapalhando o trabalho de um profissional! Rapa todo mundo fora!
Um careca entrou no bolo, pagando geral em cima do retratista:
– O senhor é o último a falar!
A lei garante que a gente prepare o seu modelo para que a foto saia perfeita!
Uma magrinha sugeriu ao Aubregaldo:
– Já que é fotografia pra carteirinha de bloco, o senhor podia posar pelado, que é pra ficar
no clima.
Aubregaldo ficou injuriado com a magrinha:
– Fique a senhora sabendo que ninguém desfila pelado no bloco da minha rua! Nem a
madrinha da bateria, nem ela!
O negão:
– A sua pessoa pode ficar fria, por causa de que o caso da magrinha aí é outro!
O retratista, já arrancando os cabelos:
135
– E eu nunca que ia tirar retrato de ninguém pelado!
Minha máquina é pura e imaculada e até já tirou retrato de padre!
Aubregaldo, para a multidão em torno dele:
– Arreda todo mundo que eu tô com pressa pra tirar o retrato!
O negão:
– A sua pessoa devia agradecer a nossa colaboração! Retrato é uma coisa que dura pra toda
vida, pombas!
Aubregaldo se levantou da cadeira:
– Vão encher o saquinho da mãe!
Ah, pra que ele disse aquilo?
Apanhou tanto que teve que ir pro Souza Aguiar. O retrato dele até saiu no jornal. Como
vítima.
136
ANEXO XXXI
Avesso da Vida
Título: O samba
Jornal O DIA, página 10, edição do dia 25 de janeiro de 1994
O velório do Antenor, corria tranquilo, quando o Onestonério começou a batucar na parede:
– “O Come Quieto deslubrante/vem cheio de galhardia/pra desfilar na avenida/com seu
jeito exuberante...”
A fila se desfez, um velhinho caiu sentado, a viúva dispensou os abraços e um parente do
Antenor foi ao Onestonério:
– Endoideceu? Daqui a pouco a sua pessoa vai querer mestre-sala e porta-bandeira,
oitocentas alas e uma bateria desfilando aqui na capela!
Onestonério, célebre:
– É que sou da ala dos compositores do glorioso bloco aqui da comunidade e olhando o
extinto nasceu a inspiração pro samba-enredo.
O parente:
– E desde quando defunto serve de inspiração? Se a sua pessoa quiser fazer samba, que seja
lá fora, pombas!
Um baixinho tomou as dores do Onestonério e meteu o dedo na cara do parente do falecido:
– Não respeita mais o poeta? Inclusive, eu tô me oferecendo pra entrar na parceria e
olhando o defunto me inspirei pra fazer o outro verso!
Onestonério gostou:
– Parceria aceita! Manda ver!
O baixinho, batucando no caixão:
“E não tem pra ninguém mais/porque vamos arrebentar/mas também queremos
paz...”
Onestonério botou defeito:
– Mais com paz rima, chefia? Acho meio forçado!
Um gordão, que também queria entrar na parceria:
– Não só rima, como combina com o verso que eu fiz, inspirado na visão do Antenor inerte
aí feito um babaca. Escutem só!
137
Mas o tal parente do extinto não deixou:
– Escutem só o escambau! Ninguém mais vai batucar porcaria nenhuma aqui dentro
inspirado no saudoso Antenor, que não tem cara de muso inspirador!
O gordão, para o Onestonério:
– Ih, ó o cara querendo atrapalhar nosso esforço para que o bloco desfile com um samba à
altura de suas tradições!
O parente encheu a mão:
– Vocês querem samba? Pois vão sambar agora mesmo!
Daí em diante o que se viu no velório foi a maior briga, com o parente do
extinto levando nítida vantagem e mandando os três para o hospital. Eles agora
estão é enchendo o saco dos outros pacientes na enfermaria.
138
Anexo XXXII
Avesso da Vida
Título: Escolha de samba-enredo
Jornal O DIA, página 10, edição do dia 7 de fevereiro de 2003
O presidente do bloco não pensou duas vezes quando notou a falta de um monte de
componentes da agremiação:
– O boteco! Aposto que todo mundo tá enchendo a cara naquela espelunca ali da esquina!
Mas que vício filho da mãe, caramba!
Chegou ao bar e não deu outra. Todos estavam lá:
– Cachaceiros do inferno! O ensaio vai começar daqui a pouco! Inclusive, os jurados que
vão escolher o samba-enredo já chegaram!
O mestre-sala já estava em órbita:
– Calma, que dá tempo! Se não der, o senhor paga hora-extra a eles!
O presidente era um negão invocado:
– Tá de porre? Tem até vereador na comissão! E a pessoa de um vereador, como vocês
sabem, trabalha 24 horas por dia em benefício da cidade! Cadê o Florinaldo, nosso diretor
de bateria?
Um gordinho da Ala do Arrastão informou ao presidente, na maior calma:
– Tava quase subindo pelas paredes e se mandou lá pra zona! Ele disse que era rapidinho,
rapidinho!
O presidente ficou alarmado com a informação:
– Que rapidinho? Ele tem 70 anos! O colóquio da pessoa do Seu Florinaldo vai demorar
pelos menos um dia inteiro pra conseguir!
Um magricela, da Ala dos Compositores, tentando alegrar o presidente:
– O meu samba ficou pronto, chefe! Custou, mas, depois de três noites sem dormir,
encontrei uma rima perfeita pra palavra amor!
O cara falou e deu de batucar no balcão:
– Escuta só a primeira parte: “A sereia, deusa do amor, morreu afogada no mar e não sentiu
nenhuma dor”. Poesia pura, gostou?
O mestre-sala, para o português dono do boteco:
139
– Manda mais meia dúzia, que o presidente vai tomar um copo com a gente!
O negão deu o maior soco no balcão e gritou:
– Nem meia dúzia, nem uma dúzia! Vocês vão parar de beber agora mesmo! Já chega o
vexame do ano passado lá na quadra!!!
O mestre-sala se defendeu:
– Pô, vamos passar uma borracha nisso! Eu já disse que só esqueci a nossa porta-bandeira e
comecei a fazer presepadas na frente daquela velhinha porque não enxergo bem! Mas este
ano vou ensaiar de óculos!
O português nem deixou o negão explodir, pois veio com a boa notícia:
– Aí, galera, o mocotó tá saindo quentinho!
O negão balançou:
– Mocotó? Acho que a pessoa da comissão julgadora pode esperar! Manda também uma
bem gelada pra acompanhar esse acepipe!
O bloco, pelo jeito, vai desfilar sem samba este ano.
140
ANEXO XXXIII
Avesso da Vida
Título: Os buracos
Jornal O DIA, página 16, edição do dia 15 de fevereiro de 1996
Na esquina, o presidente do bloco estava apreensivo:
– Nossas pessoas precisam encontrar uma solução, senão o bloco não desfila!
O mestre-salas sugeriu:
– E se a gente só desfilasse aqui na rua?
O presidente quase encaçapa o mestre-sala:
– A sua pessoa pirou? Parece até que a minha pessoa tá vendo as baianas caindo na vala,
porque elas ficam tontas sempre que dão aquelas rodadinhas!
Uma velhinha:
– Mas não tem outro jeito, por causa de que a rua onde passa o ônibus tá assim de buracos
abertos pelo Cesar Maia!
O presidente era teimoso:
– Custa alguma coisa driblar os buracos?
O diretor de bateria:
– Não dá, chefia! A bateria vem no meio e não vê por onde está pisando! E se cair num
buraco? A bateria é tão pequena, que cabe todo mundo lá dentro!
Um careca, célere:
– E se a gente desfilasse até a esquina, dobrasse pra outra rua e fizesse o retorno pelo
mesmo caminho?
O presidente do bloco:
– Aqui, ó! A outra rua também está cheia de buracos!
Uma magrinha, a rainha da bateria:
– Eu capitulo e não quero mais ser a rainha da bateria, porque, se cair dentro de um buraco,
qualquer gato que estiver passando no momento vai jogar terrinha em cima de mim!
Um careca não perdeu tempo:
– E o gato vai ter toda razão! Afinal, a senhora parece, com todo respeito, titica de gato!
O presidente do bloco, injuriado:
141
– Um de cada vez, pombas! E vamos parar com essa baixaria! A rainha da bateria merece
todo respeito!
O careca pediu desculpas à magrinha e lembrou:
– Vamos voltar a discutir o itinerário do bloco!
O presidente, enumerando nos dedos:
– Na pessoa da rua onde passa o ônibus não dá, na outra rua paralela a esta também não,
naquela outra que tem o nosso bar também não dá, por causa de que a prefeitura abriu uma
porrada de buracos lá!
E decidiu, autoritário:
– Esse ano a pessoa do bloco não sai, por causa dos buracos do Cesar Maia!
E não vai sair mesmo.
142
ANEXO XXXIV
Avesso da Vida
Título: O figurinista fresco
Jornal O DIA, página 27, edição do dia 28 de abril de 1996
O figurinista do bloco, tão logo chegou ao velório do seu Ramalhagem, foi ao caixão, deu
uma olhada e teve a maior crise de frescura:
– Cruzes, que horror!
A viúva, de olhos arregalados:
– O que foi? Ele se mexeu, por acaso?
O figurinista, com a mão no peito:
– Antes fosse, poderosa!
Um negão, presidente do bloco e irritado pra dedéu:
– Então, que a sua pessoa diga logo do que se trata, pombas!
O figurinista do bloco, apontando o extinto:
– A gravata! Não combina com o terno, não combina, não combina!
Um careca, realista:
– Ora, e daí? Nunca vi defunto ter que se embonecar todo para ser plantado!
O figurinista do bloco, soltando a mão:
– Ah, é? Pois fiquem sabendo que ele deve estar morrendo de vergonha por estar tão mal
vestido assim!
O coro:
– Mas ele já está morto!
O figurinista, sacando uma fita métrica do bolso:
– Mero detalhe. Vou tirar as medidas dele e confeccionar uma roupa decente, para que ele
chegue lá em cima sem pagar mico!
Um parente do defunto:
– Acho bom que não! Se se meter a besta de fantasiar o Ramalhagem de Conde, como se
ele fosse desfilar em alguma passarela, eu não respondo por mim!
O figurinista:
– Conde nada, meu bem! Eu pensei num v, um...
143
Uma velhinha, em pânico:
– Minha Nossa Senhora da Penha! O figurinista do nosso bloco quer que o seu
Ramalhagem seja enterrado com uma roupa de bicha!
A viúva, para o figurinista:
– Pode ir tirando o cavalinho da chuva, porque o meu ex-marido vai vestido como está!
O negão, para o figurinista:
– E como presidente do bloco, declaro que a sua pessoa está demitida do cargo, por causa
de que está tumultuando o velório de um ex-benemérito!
O figurinista pegou pesado:
– Que se dane! Pobre é uma m...
Não completou porque o pessoal caiu dentro dele e o infeliz foi parar no Carlos Chagas,
onde está insistindo com os médicos para botarem cortinas rosas nas janelas da enfermaria.
144
ANEXO XXXV
Avesso da Vida
Título: As vítimas da bomba
Jornal O DIA, página 24, edição do dia 7 de julho de 1996
O bar estava assim de gente maltratando o fígado, tudo de copo na mão e falando besteira,
quando uma cabeça-de-negro explodiu na rua, bem na porta do estabelecimento. Foi um
deus-nos-acuda. Uma velhinha caiu sentada com o susto, um gordão jogou o copo pro alto,
um baixinho se engasgou com a cerveja, um magricela se agarrou ao balcão para não cair e
uma magrinha, lívida como um cadáver, confessou, de olhos arregalados:
– Me borrei toda! O desgraçado que soltou essa bomba não tem mãe!
Um negão saiu do mictório e mostrou as calças molhadas:
– Justo na hora que a minha pessoa estava com o chafariz ligado! Na hora tremi todo e
vejam só o estado que a minha pessoa ficou!
A velhinha, já em pé e refeita do susto, estava injuriada:
– Quase botei o bloco na rua, por causa do susto, caramba!
O português, desolado com o prejuízo:
– Estava com uma bandeja com cinco copos e todos se quebraram na hora do susto, porque
eu joguei tudo pro alto!
O gordão, se sacudindo todo:
– Chega de abobrinhas, pombas! O que nós temos que fazer é procurar o irresponsável que
soltou esse troço!
A velhinha se lembrou:
– E se foi coisa de traficante? Traficante é que tem essa mania de estourar bomba!
O negão, lamentando as calças molhadas:
– Minha pessoa nem taí pra quem foi! A pessoa do cara que soltou essa cabeça-de-negro
merece mesmo umas porradas!
Um velhinho, cauteloso:
– Eu tô fora! Meu coração agüentou esse tranco, mas não sei se está com quilometragem
pra encarar uma briga!
O baixinho que tinha se engasgado com a cerveja:
145
– Não interessa! Vamos dar um corretivo nesse filho da mãe!
E saiu todo mundo do bar à procura do autor da gracinha. Deram com um cara deste
tamanho, já preparando outra bomba, mas encararam:
– Por que não vai soltar bomba na casa da sua mãe?
O sujeito não gostou e encarou todo mundo, arriando uns oito, que foram parar no hospital.
No boletim de ocorrências, o registro: vítimas de bomba junina.
146
Anexo XXXVI
Avesso da Vida
Título: Olha a contra-indicação!
Jornal O DIA, página 7, edição do dia 12 de abril de 2002
O camelô, um magricela, gritava que tinha remédio pra tudo:
– Garrafada pra acabar com a impotência! Garrafada pra abaixar o colesterol!
Creme pra fazer nascer cabelo! Pomada pra calo! Pó pra...
Foi interrompido por um careca, alto e mal-encarado:
– Esse creme pra fazer nascer cabelo é jóia, ou o senhor tá só jogando pra platéia?
– O que é isso, meu camarada? Sou um cientista de valor! Fique sabendo que
no Carnaval vou ser enredo do bloco da rua!
O careca ficou muito impressionado:
– É que meus cabelos estão caindo loucamente! Pra falar a verdade, estão se atirando da
minha cabeça!
O ambulante era um baita artista:
– Pois fique sabendo que com o meu creme seus cabelos vão parar de cair! E os que caíram
vão retornar à sua cabeça amargamente arrependidos!
Um gordão já ficou logo interessado:
– Esse seu creme faz nascer cabelo só na cabeça ou atua em outras áreas?
Uma magrinha respondeu pelo camelô:
– O creme dele faz nascer cabelo em tudo que é lugar! Nas axilas, no peito e mais num
monte de lugares! Perguntou por quê?
O gordão abriu a camisa:
– É que meu peito é lisinho e eu fico morrendo de vergonha quando tiro a camisa! Minha
patroa sempre reclama e diz que eu vim com defeito de fábrica!
O tal careca enorme deu um soco na bancada do magricela:
– O freguês da vez sou eu, pombas!
O ambulante se apavorou e não perdeu tempo:
– Perdão por eu estar perdendo tempo com esses muquiranas, excelência! Já se decidiu, ou
quer mais detalhes?
147
O homem queria saber muito mais:
– Como esse troço atua? Leva muito tempo? É que não agüento mais ser careca!
Quero recuperar meus cabelos e voltar a fazer jus ao meu apelido de Cabeleira.
O magricela exagerou:
– Em dois dias seus cabelos chegarão aos pés! É tão poderoso, que o senhor terá que ir ao
barbeiro três vezes por semana! Quantos potes vai levar?
O homem deu a carteirada:
– Dois! E vou levar você também, porque sou o delegado de polícia daqui da área! Você só
vai sair do xadrez quando meus cabelos nascerem!
Pelo visto, o camelô pegou prisão perpétua.
148
Anexo XXXVII
Avesso da Vida
Título: A Vergonha
Jornal O DIA, página 6, edição do dia 5 de fevereiro de 1994
O delegado estava posto em sossego, quando uma multidão invadiu a sala dele, aos berros:
- Urge que sejam tomadas sérias providências, para que tais fatos não se repitam!
O doutor jogou tudo pro alto por causa do susto, deu um soco na mesa e berrou:
- um de cada vez, pombas! E que negócio é esse de invadirem a minha sala assim sem mais
nem menos?
Um gordão levantou o dedo:
- Mil perdões, meretríssimo! É que aconteceu uma coisa muita chata e que só uma
autoridade como o senhor pode resolver!
O delegado, que e não era meritíssimo - e muito menos meretríssimo - deu outro soco na
mesa:
- Mais uma dessa e boto todo mundo no xadrez!
Um negão:
- Perdoe a pessoa do gordão aqui, doutor, mas se alguém tem que ir pro xadrez, esse
alguém é a pessoa do baixinho aqui!
O delegado quis saber:
- E por que?
Uma magrinha:
- Por causa de que ele disse que era costureiro, pegou nossos figurinos, levou grana
adiantada e até agora não entregou as fantasias!
O delegado, para o acusado:
- Mas o senhor, hein?
Desse tamaninho e já fazendo sacanagem com os outros!
O baixinho:
- Eu precisava levantar uma grana, doutor! Sabe como é, o Carnaval está aí mesmo e a
gente tem que se forrar!
A magrinha:
149
– E a minha fantasia até que não ia dar trabalho, por causa de que era só um biquinizinho de
nada!
O delegado não se conteve:
- Se a senhora saísse sem nada ninguém ia notar, pombas!
O negão:
- Pô, doutor, respeita a pessoa da madrinha da nossa bateria nota dez!
O gordão:
- A minha ia dar mais trabalho porque eu sou o mestre-sala e...
O delegado arregalou os olhos:
Mestre sala gordo desse jeito? Mas que diabo de bloco é esse?
O baixinho não perdeu tempo:
- Eu não tinha que aproveitar, doutor?
O delegado não achava:
- Calado! E já pro xadrez!
Depois, chamou os queixosos:
- Se vocês desfilarem, não digam que são da minha jurisdição! Ia pegar mal pra minha
delegacia pra caramba!
150
Anexo XXXVIII
Avesso da Vida
Título: A grande eleição
Jornal O DIA, página 17, edição do dia 16 de janeiro de 1997
A esquina pegava fogo por causa da eleição para presidente do bloco. Um negão, trepado
num caixotinho, prometia:
– Se a minha pessoa for eleita o bloco sai do grupo 65 e vai pro 19 em menos de vinte anos!
Uma magrinha comentou com uma baixinha:
– O seu Nicaronézio tá falando sozinho, por causa de que vou votar no Apolonério Regino,
que tem uma plataforma que é uma gracinha!
A baixinha arregalou os olhos:
– Cruzes! Se ele for eleito vai querer ser presidente, madrinha da bateria, baiana e porta-
bandeira!
Uma velhinha ouviu:
– Sem falar que vai passar a mão em tudo que é homem na hora do desfile, desfalecer se
alguém atravessar o samba e outros bichos!
A magrinha abriu os braços:
– Mas ele prometeu mudar as cores do bloco de preto e branco pra rosa e azul!
Um baixinho meteu o dedo na cara da magrinha:
– Comporte-se, minha senhora! Estamos vivendo um momento cívico e não podemos
pensar em sacanagem! Votemos no seu Cabrubraldo, dono da quitanda, que já garantiu o
lugar de madrinha da bateria pra uma criatura da minha mais alta estima!
O negão desceu do caixotinho injuriado:
– Se as suas pessoas pensam que a minha pessoa vai ficar falando sozinha podem ir tirando
o cavalinho da chuva! Que cochicho é esse na hora do meu improviso?
O pessoal ia capitular e prometer o voto ao negão, mas um gordão chegou e se meteu no
rolo:
– Com todo respeito, seu Nicaronézio, a minha candidatura faz mais sentido, porque na
minha gestão ninguém mais vai precisar de pegar trem pra desfilar naquele fim de mundo,
porque vai tudo na minha Kombi!
151
O negão se encrespou:
– A pessoa de um quitandeiro, a pessoa de um viado e agora a pessoa de um emergente?
Não vou mais responder pela minha pessoa!
E nem precisou, porque foi eleito por unânimidade, numa votação vap-vup.
152
ANEXO XXXIX
Avesso da Vida
Título: A eleita
Jornal O DIA, página 8, edição do dia 27 de janeiro de 2001
A sogra do Gorovenildo pediu a palavra na reunião do bloco:
– Este ano não quero sair na ala das baianas!
O genro emendou:
– Bela decisão, minha cara senhora! Tem hora em que a idade pesa!
A velha:
– Velha é sua mãe! Eu falei que não quero mais sair na ala das baianas porque vou ser
candidata a madrinha da bateria!
O presidente do bloco, um magricela:
– Mas a senhora, com todo respeito, tem idade pra ser madrinha da madrinha!
A mulher do Gorovenildo:
– Minha mãe ainda é novinha! E ainda tá com tudo no lugar!
Gorovenildo riu:
– Claro! O remédio pro reumatismo tá no armário, o xarope tá na bolsa e o cartão do INSS
tá na gaveta! Tudo nos devidos lugares!
O mestre-sala tentou:
– A senhora não prefere ser porta-bandeira ? É só fazer tudo o que eu mandar!
Ela não topou:
– É ruim! O senhor faz um monte de presepadas e eu odeio passar vergonha em público!
Quero dizer no pé, mas na frente da bateria, com os peitos de fora!
Gorovenildo quase caiu:
– Pirou? Periga o Juizado de Menores prender a senhora no desfile!
A velha adorou:
– Por quê? Tenho cara de menor?
Gorovenildo, injuriado:
– A senhora pode ser presa por atentado ao pudor e por assustar as criancinhas que vão ver
o desfile!
153
O presidente do bloco:
– Pensa que é assim, madame? Esqueceu que quem escolhe a madrinha da bateria é sempre
o nosso benemérito, o português da quitanda?
O luso estava presente, com seu bigodão e tudo:
– Até que enfim se lembraram da minha modesta presença! Não conhecem a Constituição?
Gorovenildo, todo preocupado, perguntou:
– O que o senhor quer dizer com isso?
O homem surpreendeu:
– A cachopa tá aprovada e não se fala mais nisso!
O presidente também bateu o martelo e o Gorovenildo se convenceu de que a sogra dele
sabe fazer campanha como ninguém.
154
ANEXO XXXX
Avesso da Vida
Título: A macumba para espantar os ladrões
Jornal O DIA, página 25, edição do dia 22 de outubro de 2000
Elisfrênio reuniu os vizinhos:
– Vou arriar um despacho da maior responsabilidade e preciso da ajuda de vocês!
Uma magrinha foi a primeira a aderir:
– Posso pegar carona nessa macumba e pedir um homem pra mim?
Um careca ignorou a magrinha:
– Tá com a receita do pai-de-santo?
Elisfrênio, célere:
– Com certeza! Fica frio que eu já comprei tudo e só tô esperando dar meia-noite pra gente
ir até a encruzilhada e mandar ver!
Um velhinho, desconfiado:
– É pra quebrar as perninhas de alguém? Se é, tô fora!
Elisfrênio teve que se explicar:
– É que dá muito assalto aqui na rua e só macumba resolve! Experimenta ligar pra polícia
pra ver só o tempão que ela vai demorar!
E o pessoal se mandou para a esquina, tendo o Elisfrênio à frente:
– Todo mundo pensando em mãe, em padre, essas coisas! Nada de safadezas na cabeça,
senão o feitiço vira contra o feiticeiro!
Elisfrênio nomeou a magrinha:
– A senhora foi escolhida pra ser a instrumentadora! Eu vou pedindo e a senhora vai me
passando as coisas, assim feito, operação!
E começou:
– As velas!
A magrinha entregou:
– Pronto, doutor!
Lá pelas tantas, diante de todos os vizinhos, Elisfrênio pediu:
– Agora, dona Piranhelda, passa a galinha!
155
A magrinha toda enrolada:
– É ruim! Não tô achando porcaria nenhuma de galinha aqui na bolsa! Só tem um pacotinho
de caldo de galinha!
Elisfrênio, concentrado:
– E a senhora pensa que meu dinheiro é capim pra eu comprar uma galinha inteira? É só o
caldo mesmo!
Um magricela ficou injuriado:
– O santo vai ficar tiririca da vida e jogar a maior praga em cima da gente por causa dessa
sua mão de vaca!
Naquele momento, chegaram os cinco assaltantes:
– Que bom encontrar a comunidade reunida! Vão passando a grana!
Depois do assalto, os vizinhos quase lincharam o Elisfrênio porque acharam que o assalto
foi por culpa daquele negócio de ele querer engabelar o santo.
156
ANEXO XXXXI
Avesso da Vida
Título: O despacho
Jornal O DIA, página 9, edição do dia 7 de setembro de 2001
Auristênio chegou cabisbaixo ao bar e chamou a atenção de um careca:
– O que foi, rapaz? Algum problema?
Auristênio exagerou:
– Um milhão de problemas! Briguei com a patroa e a minha sogra assim que acordei e fui
tomar café!
Um gordinho riu:
– E isso é problema? Faz parte do cotidiano, homem! Se eu fosse me preocupar com uma
coisinha dessas, não sairia da fila do posto de saúde!
Auristênio deu de enumerar os problemas:
– Mas e pisar em cocô de cachorro? E vir aquela bicicleta e tirar um fino de você? E
descobrir que o mês ainda tá começando e o dinheiro tá no fim? E...
O coro do pessoal:
– Pára! – o grito assustou o Auristênio:
– Mas isso tudo aí aconteceu comigo hoje! E olhem que ainda são 9 horas da manhã!
Um baixinho não teve dúvidas e mandou a real:
– Urucubaca! Já experimentou tomar um banho de arruda-macho com sal grosso? Diz a
lenda que é um ótimo descarrego!
Auristênio, desolado:
– Fui comprar o sal grosso e quase me prenderam no supermercado, porque esqueci de
levar o dinheiro para pagar no caixa!
Uma magrinha isolou,batendo três vezes no balcão:
– Credo! E eu, preocupada porque fui atropelada na outra esquina, perdi o emprego e
troquei de mal com a minha madrinha!
O baixinho gozador pediu a palavra:
157
– Realmente, o caso do colega é muito mais grave! E eu, como vizinho do primo de uma
senhora que namora um carteiro que entrega cartas numa rua onde mora um pai-de-santo,
vou resolver o problema!
Só faltou o Auristênio pedir a bênção ao baixinho:
– Jura? Fala, meu pai!
O baixinho, cheio de moral, aconselhou:
– Anota aí: uma garrafa de cachaça, um alguidar dos grandes, farinha, óleo de dendê, cinco
pacotes de velas e uma galinha preta! Mas tem que arriar tudo agora de manhã! E, como
seu caso parece mais uma guerra, você vai ter que fazer o despacho em frente ao antigo
Ministério da Guerra, ali na Avenida Presidente Vargas, haja o que houver!
Depois de anotar tudo num papel é que o Auristênio caiu na real:
– Opa! Pera lá! Agora? Na Presidente Vargas? Na hora da parada militar, seu filho da mãe?
Para piorar as coisas, o Auristênio está no xadrez da delegacia pela surra que deu no
baixinho.